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IID Existéncia e contingéncia (comentario de A nausea) A descoberta da contingéncia A descoberta da contingéncia é um percurso pontuado pelas manifestacdes da ndusea. H4, portanto, uma relacao entre a modifica- sao do sujeito causada pela ndusea e a aproximacao progressiva do desvelamento da existéncia como contingéncia. As manifestagées da ndusea so, 20 mesmo tempo, modificagoes do sujeito, primeiramente porque implicam mudangas na relacdo entre o sujeito eas coisas, Tanto 6 assim que tais modificagbes coisas e nas pessoas com quem ele se relaciona. Jé aqui se nota uma certa ambigitidade, caracteristica da relagao entre a consciéncia ¢ as (0 sentidas antes fora do sujeito, nas coisas: Roquentin nfo saberia dizer ao certo se © que ocorre é uma mudang¢a na sua maneira de ver as coisas ou no modo como estas se oferecem a consciéncia.’ De modo que o incémodo inicial de Ro: quentin provém da dificuldade de interpretar a metamorfose: nfo apenas CE a esse respeito Moutinho, arte —psclogaefonomeno 5, pts a1 orque ela se dé de méltiplas maneiras, 4 medida que o sentimente de ndusea progride, mas também porque ele nao onsegue avaliai muito bem a que ponto essa metamorfose esté se dando nele mes- mo. De qualquer modo, a sensaco é a de que as coisas jé nfo s4o como antes, ¢ a variedade em que isso se manifesta tende para a cons- tatacdo final de que as coisas nao sto. A metamorfose significa que a confianga que até entio se depositava no ser das coisas desmorona. A suspensao da imagem habitual do mundo e sua substituigao pelo bi zarro e pelo nao-previsivel configuram assim a perda de estabilidade ser, E nesse que as coisas detinham quando possuiam a api sentido que as coisas se desi ecisamente quando deixam de ser j4 que o ser que as caracterizava consistia somente na projecao do onjunto de expectativas do sujeito. sse conjunto de expectativas refere-se sobretudo a permanéncia das coisas no tempo. O fato de poder reencontrar as coisas do mesmo modo que eram antes faz da sucesso uma seqiiénc a estavel na qual © sujeito encontra também a referéncia para a continuidade de si mesmo. E por isso que o actimulo do presente e a perda do passado pesam decisivamente na metamorfose do proprio Roquentin. Hé uma mudanca na qualidade da vida conforme ela seja sentida como conti nuidade entre passado e presente ou como um presente desconectado do fio da sucess4o. A vida no é um romance de aventuras - descobriré Roquentin ~ porque ela nfo depende de um narrador que articule os eventos e faca que a historia vivida se produza a partir dessa articula 60, 0 que significaria que se poderia contar com o fio da narracao como suporte dos acontecimentos e ¢ omo sustentéculo temporal. A vida possui uma forma de acontecer que nao comporta a estabilidade de uma continuidade narrativa; ela se constitui de fatos e nada asse gura que haja entre eles conexao e teleotogia. Por isso, de nada adianta Roquentin lembrar o pasado: isso no torna o presente mais necessé- rio.* Roquentin tem o habito de arrar-se a sua vida porque assit 10s le 0 sentimento onsegue aval ando nele mes. disas jA nao so nde paraa cons- significa que a sdesmorona. A elo bi de estabilidad: fo deixam de na projegie do )apermanéncia visas do mesme wel na qu inuidade de si rda do pasado sentin. Hé uma ida como conti edesconectado as —descobrira que articule os dessa articula- fio da narracio lo temporal, A aa.estabilidade os e nada a de nadaadianta emais necessé orque assim os fatos dao a impress de um encadeamento conseqiiente. A cena em 1 de Hamburgo € signifi que Roquentin esté com Etna num ativa, encadeamento de eventos que ele mesmo Ele narra no passado anizadas por um aparecem cc protagon fo. Mas, quando os préprios tém a gratuidade do vivido es; ie de necessidade nanente a narra fatos acontecem no present. én lhante a relago neo e nao a necessidade do jé acontecido. E algo sem 1e um objeto que Roquentin manté e assim Ihes confere sentido. Ri com o marques de Rollebon: e ordenaa lece a continuidade dos momentos ia vida porque estal 9 pela qual esse objeto acabaré por dominar o sujeito. Aordem do vivido 86 é visivel a posteriori: 6 entdo que escapamos nific do acaso. Isso si que nao se pode verdadeiramente escapar do acaso. O acontecimento presente tem um peso que advém precisa- no esté imediatamente inserido num cursode even- mentede que ele conta nos livros pode acon tos. Por isso, Roquentin diz que 0 que tecer realmente, mas nao da mesma maneira. As historias que se contam buir ao seu proprio nos livros tém um rigor que Roquentin tenta at passado, porque assim o presente, enquanto conseqiiéncia desse pas sado, participard do encadeamento rigoroso. E por isso que, quar Roquentin como se esforcava para forjar o rigor do presente, é a necessidade 0 e dé conta de que o rigor do passado fora forjado, assim enquanto tal que se revela iluséria, O passado nao a posstiiu mais que o presente, falvez nao preze nada no mundo como o s ntimento de aventura. Mas ele vem quando quer; ¢ abandona-me tao depressa! E fico tao seco quando se vai embora. Far-me-é ele essas curtas visitas ironicas para me mostrar que falhei na vida? Jo : 4 tent forjar ama aventura presente, criande cativasd no” por s quais ele part Franklin Leopoldo Silva O que passanecessariamente éo tempo. Os. chem 0 tempo nio so dotados de necessi a passagem necesséria do tempo para o eventos. O que Roquentin chama de que ele gostaria de ver na sua vida.! © incomodo de Roquentin, que por vezes se aproxima do deses- evo, Provém de que, desconectado do passado, da continuidade de Sentido, o presente aparece quase como uma ameaca. A auséncia de necessidade torna o mundo ameac. ser assimilado simples acontecimentos que pree; aventura é essa ordem narrativa aclor; um presente que nao pode smente como conseqiiéacia do passado implica lima insjablidale que provoca.aperda de orientacdo: “tudo pode acon. tecer”. Ea extensio absolutamente indefinida das possibilidades que expde 0 sujeito 20s riscos de um mundo imprevisivel, em que os con- tornos das coisas nao podem ser antecipados. Eo. ‘que Roquentin deno- mina “uma espécie de inconsisténcia”, proliferacio de metamorfose, MSamente porque o mundo nao conserva nada daquilo que hd pouce Parecia ser. Nada h4 que identifique o presente com aquilo que ele teria conservado do passado, E €nesse ponto que a necessdade de ser niz” que oculta aparece comoo mero “ver. & contingéncia. O ser revela-se a “fina pelicula” que cobre as coisas. Em lugar do ser e da necessidade, aexistncia a «contin. séncia. A requalificagao da verdade é posta conju berta. Depois queo véu se rasgou, uma vez por sao (“compreendi, vi"), a sensag segue 4 descoberta da verdade ea ndusea sao um, intamente com a desco- ssibilitada a compreen- '40 no € a do contentamento que se A nausea nao se foi: agora Roquentin # CE Moutinho, Sart psilagi ef oagin, 1953, p53, 5 Comparease as textos: “O maré verde a namsée, 1977, p.18061; ed por, como sea verdad aparece verde, frmeza da predie 70 verdadeteo mar 216. Note-se 0 empre “verdad. da pales apenas quando deixamos de predicar abso fo ocultaocariter true da pelcul ‘que coisa alguma possui propriedades tenga o mar. essa forma de no 6 fnalmente se vi la. O mar ndoé verde, por as. Vere ndo 6 uma classe de objeros 8 qual ps Ea verdade do mar Tanto é assim que véu; compreendi, vi" (ibid, que Roquentin pode dizer" P-181; ed. port. p.216), 34 esto comy janei toc nem Nao mento d sea, poi seria fale nos obje daorden mente s Nause: Mas 0 ci possivel existénc sujeito p existénc do, senti se em m era no} 3 que preen. projetamos amento dos narrativa ado deses. nuidade de 4 auséncia tendo pode ido implica pode acon- idades que Jue 0s con- nntin deno- tamorfose, eha pouco ilo que ele nero “ver ‘cula” que eacontin- madesco- ompreen- nto que se toquentin 3 qual per viene literatura em Sartre vio posso dizer que me sina aliviado nem content, pelo contriso Smagadle. Somente, atingl o meu fit: sei o que queria saber: ‘hnalmente tudo que me vem sucedendo desde o més de ¢ nao creio que me abandone estou 6s compreendi janeiro. A Nausea nfo me abandonou, i srr ceo; mas deixel de sofrer com ela, ndo se trata jf de uma doensa mem de um acesso passageira: a Nausea sou eu. No se pode dizer que a descoberta da existéncia seja um mo- slacdo de todas as manifestagSes anteriores da Néu- mento de rearticu as uma ordem e uma finalidade. Melhor cea, pois isso seria dar a el seria falar de um processo de desorlnagao do sujete: pois as mudangas ros objetos € no sujeito consistiram precisamente em rasgar o véu “Trordem e do curso das coisas. E certo quea Nausea veio progressiva- dizer, como 0 faz Roquentin, que agora “a parece como o resultado de um processo. Jno desse “resultado” retira dele uma Precisamente a mente se ampliando, e que Néusea sou eu” é algo que ay Mas 0 carter brusco e repent possivel vinculagdo a ctapas anteriores ordenadas tancia, que aparece agora, nada tem de encadeamento causal. © esvaziado de suas referencias, de e sujeito parece, pelo contrario, ter-se suas manciras habituais de identificar as coisas ¢ localizar-se no mun do. £ isso que Roquentin descreve quando diz que a descoberta da ”", Pensar na existéncia e, sobretu- existéncia o deixou “sem respiracae’ do, sentir-se existindo é algo como perder 0 chido, nao poder apolat= se em mais nada. E isso porque pensar a existéncia, anteriormente, era nio pensar em nada. spiracdo. Nunca, antes esses tltimos dias, eu tinha Figuei sem r pressentido o que queria dizer “existe”, Era como os outros, como OF aque passeiam & beira-mar nos seus Uajes de Primavera. Dizia, come les: “o mat é verde; aquele ponto branco, acolé, € uma gaivota"s mas aivota info sentia que essas coisas existiam, que a gaivota era uma * -se. Est presente & nossa as palavras sem falar existent”; geralmente a existéncia e volta, em nés, somos nés; nio se pode di zer du & Sante, La nasi, 1997, p. 280-1; ed por. opoldo e Silva dela, inal nao Ihe tocamos. Quando eu julgava pensar nel que nao pensava em nada, tinha a cabega v Palavra na cabega, a palavra SER. a, & de cree ‘azia, ou quando muito unig Pois o ser das coisas ~ e o do sujeito ~ era entéo uma garantia absoluta, a tal ponto que se podia até dispensar-se de pensar nisso, RO que era cada coisa € no que era o proprio sujeito. Sem duivida é essa uma figura da positividade, heranga classica da consisténcia ontol6gica que o racionalismo julgava encontrar no mundo. Heranca ainda da tradicdo da contemplaio: a sideracio do sujeito pelo objeto sendo, sempre, constantemente, essencialmente imutavel ¢ atraves- Sando 0 tempo com a seguranca da continuidade causal. No pensar na existéncia € ndo ocupar-se dela ou, em termos heideggerianos, nao Pre-ocuparse, Esses termos jé nos indicam a distancia da perspectiva contemplativa. © que Roquentin desejaria, na verdade, que sua vida abarecesse para ele como um objeto. Um objeto é aquilo queo sujetto constitui como uma oposigdo consenti da subjetividade que ganha uma rel: ida si préprio. E uma projesao lativa autonomia na medida em ue se contrapGe 2 mim ou me transcende no interior de uma ordem £m que os dois polos ocupam lugares fixos e efetivamente demarca. dos. E por isso que a pertinéncia da objetividade tedrica out cientifica leva tdo facilmente a ilusao da neutralidade, isto é, de ume relagao Puramente formal entre sujeito e objeto, Mas a existéncia faz que am- bos participem da contingéncia,e o modo de partcipacao da conscien. ia 6a pre-ocupacio, Nao posso me contemplar verdadeitamente como um objeto na operacao reflexiva porque a pertinéncia do sujeitoa si Proprio nunca seré objetiva. Sartre interpreta 0 ser-ai (Dasein) de Heldegger como indeterminacao, Sou: esse é 0 ponto de partida, zor Beminelutével de mim mesmo. 0 er éaquilo aquém do qual nfo posso (montar: Deveriaentdo dizer que se trata de uma determinacio? Ora, ser do homem sempre ser-aie envolve o fato de estar langado no este af configura a contingéncia que ‘mundo. £ primeiramente uma carac- teris tuag tabil eait tin algo sepa com so prov nas cont apro com do? repr nar ting, algo lente ando muito um; yuma garantia pensar nisso, Sem dtivide ¢ i consisténcia indo. Heranca 10 pelo objeto ivel e atraves- 11, Nao pensar gerianos, nio la perspectiva Sque sua vida que o sujeito uma projecéo a medida em 2 uma ordem ite demarca- uma relagao faz que am da conscién- mente como 9 sujeitoa si (asein) de artida, a ori- alnao pos: nnago? Ora, agéncia que uma carac: eritca ontoldgica; mas se manifesta sempre na contingéncia da si ao ser-ai. E esta vinculagao entre a inelu- acd em que se concreti tabilidade de ser ea contingéncia de ser-ai que configura a existéncia eaimpossibilidade de trati-la como objeto. Por isso, quando Roquen- tin conclui “a Nausea sou eu”, ele compreende que a ndusea nio ¢ algo que sente, mas o proprio modo de sentir-se existindo, Se niio posso m mesmo € porque ela me faz encontrar-me separar a néusea de m como existente, na instabilidade oposta ao ser E depois sucedeu aquilo: de repente, ali estava, era claro como a acxisténcia dera-se subitamente a conhecer. Perdera o seu aspecto sigua, inofensivo de categoria abstrata: era a prépria massa das coisas; aquela raiz estava amassada em existéncia. Ou antes, a raiz, o gradeamento do jardim, 0 banco, a relva rala do tabuleiro, tudo se tinha evaporado: a diversidade das coisas, a sua individualidade, ja no era mais do que te verniz. desret Se; vestavam. massas uma aparéncia, um verniz. Es monstruosas ¢ moles, em desordem: ~ nuas, duma medonha e obscena nudez.* Quando se derrete o verniz da necessidade, que inclui a separa- Gao objetiva entre 0 sujeito eo mundo, a indeterminacao existencial provoca uma promiscuidade em que o Eu fica ameagado de perder-se nas coisas. Nao deixa de ser singular o fato de que a descoberta da contingéncia nao seja um reforco da subjetividade, mas algo que a aproxima mais da sua dissolugao. Talvez porque a existéncia se dé como facticidade: qual a prerrogativa desse Eu que se descobre existin- 10 das coisas, a da constitui¢ao da do? Certamente nao a do sobre representacao que testemunharia a soberania da consciéncia. Eu sow na modalidade do ser-af significa: eu sou um fato; 0 Eu éum fato con- tingente entre outros fatos contingentes. Essa contingéncia possui uma concretude vio- algo como uma intensidade que faz da exist enta que resulta na promiscuidade que mencionamos. Franklin Leopoldo e Silva Todos aqueles objetos~ come di jado que existis me incomodavam; teria dese fem com menos intensidade, duma maneita mais seca, mais abstrata, com mais recato, O castanheiro metia-se-me pelos olhos adentto .. Eramos um montao de existentes incomodados, embarasa- dos com nés mesmos; no tinhamos a menor raz%o para estar ali, n ‘uns nem outros.” rem, Mais ainda, na medida em que hé a ameaca de dissolugio do Eu, hd também a do “desabamento do mundo”; um mundo constituido de objetos e relacdes subordinadas ao sujeito, fundamento queas sen. tava da arbitrariedade, Mas, ja vimos, essa prerrogativa do Eu desa- parecera ea existéncia veio a adquirir uma exuberancia desordenada, que Roquentin expressa dizendo que todas as coisas ~ e ele mesmo sto domais. Demais: essa era a tinica relagao que eu podia estabelecer entre aquelas grades, aqueles drvores, aquelas pedras. Em vao procurava contar 8 castanheiros, situ-los em relagio a Véleda, comparar-thes a altura ‘com a dos pltanos: cada um dleles fugia is relages em que eu procurava encerré-los, se isolava, transbordava."! Par ce ser essa a tinica maneira de entender o mundo, de situar as coisas ¢ de situar-se. Pois as coisas ja ndo obedecem mais as rela- Ses que 0 sujeito quer instituir entre elas, no se subordinam mais a esse regime de nec: sidade montado por via das situacSes reciprocas pelas quais consideramos as coisas elementos varidveis de um con junto relacional. Elas, na medida em que existem, recusam-se a entrar esse esquema. Mas é desesperador. Pois 0 que é 0 mundo senfo esse sistema de relagbes em que as coisas situam-se numa rede que me permite compreendé-las e a totalidade? Por isso, Roquentin teima em manter as relages para “adiar o desabamento do mundo humano” Se nao ha medidas, relacdes, quantidades, critérios, diregdes, entao 2 Ibidem,p.182-3;.d, por, p.218-9, 10 Ibidem, p.183, grifado no orginal: ed. por, p.219 88 0; teria dese a mais seca, Pelos olhos embaraga. ar ali, nem S80 do Eu, onstituido ueasisen. > Eu desa. ordenada, mesmo ~ ecer entre Fava contar esaaltura Procurava de situar 8 as rela- m mais a ciprocas um con- aentrar hdoesse que me simaem mano”. 3, entio Erica elteratura em Sartre tudo é arbitrério e 0 “mundo humano” pode desabar. B uma desor- em sentida, e Roquentin, sem compreendé-la, compreende que pode vir ‘asentir-se parte dessa desordem, algo que ele teme sobretudo. Mas é tarde para evitar “esse sentimento” que se aproxima “por tras de mim’, tarde para evitar que ele “me apanhe & traigéo, ¢ me levante como uma onda submarina” O que atemoriza Roquentin é que o Ego se perca num mundo que se vai tornando massa informe. Mas 0 risco de perder 0 seu Ego nao deveria ser necessariamente assumido por aquele que quis ver-se como objeto, na solidez do passado ou no constante reaparecer de instante a instante? Uma coisa, no entanto, é ver-se como que diante des tivo da subjetividade. Outra coisa é ver-se fora de si, escapando-se, sem pertinéncia possivel auuma ordem dada. Havia matadoo marqués, pela virtude do movimento reflexivo ~ espécie de controle obje~ para quem existia. Havia rompido com Anny, através de cuja consciéncia existia, Prepara-se para deixar Bouville, cidade em relagéo & qual exisia Vai para Paris, onde ainda ndo existe para ningném. Nessas condicées, 0 que significa: “Eu existo”? que significa “Eu”? A que me refiro quando digo “Eu”? Quando agora digo “eu”, parece-me essa palavra oca, J4 no chego 14 muito bem a sentit-me, a tal ponto me esqueceram. Tudo quanto resta de real em mim é existéncia que se sente existir. Bocejo devagar, demoradamente. Ninguém, Antoine Roquentin nfo existe para nin- guém. £ engragado, E que vem a ser isso, essa coisa chamada Antoine Roquentin? & algo de abstrato, Uma pallida recordaggozinha de mim vacila na minha consciéncia. Antoine Roguentin... E, de siibito, 0 Eu enfraquece, enfraquece e, zis!, apaga-se."” Lembremo-nos de La transcendance de l'Ego. © que Descartes en- controu, por via da consciéncia de segundo grau, reflexiva, cons: daconsciéncia, foi um constructo objetivo. Por isso, ele tinhaa solidez ncia 1 bidem, p.183; ed. port, 9.239, 2 Mbidem, p:239; ed. por, p.287 Franflin Leopoldo ¢ Silva do objeto. O nticleo duro da consciéncia, aquilo que confere necessida- ‘esos, eu exist, nem mesmo um deus enganador erteva, Mas, quando 0 constructo aparece como rade do fato, n&o da necessidade légiea. Por isso, 8 a, nfio foxniece a0 mes de ao enunciado: € pode destruir essa tal, ele rem a densid cexjsténcia, quando verdadeiramente descober Sartre mostrou, em La transcendance de Ego, ‘mo tempo suas raz6e que o Eu s6 aparece como o habiranre das profundezas da consciéncia em virtude de um truque: tomamos o que construimos frente e fora “he consciéncia ¢ 0 introduzimos “ta dentro”, pars ab nossas acées constante, firme, personalizacla Ealgode que -amento que unifiquee nossos estados. Mas esse ior, Quando © mundo se desestrutura, cle coisas. Por isso, Roquentin tem de coneluir: go de abstrato”, algo que nunca esteve MA tenham uma referencia necessitamos, wm fund: produto psiquico € exte desaparece junto com as s¢ isso sou att, entao “é al consciéneia, nunca a habitou: ida, im6vel, desert, a consciéncia encontrarse &ntF WS paredess pet petua-se, Ja ninguém a habits. Ha poues ainda alguém dizia eu, dizia vena conscéncn. Quer? .. Restam paredes ansnimas, 01% consciéncia smvgnima, Eis 0 que & paredes ¢,entze 2s paredess WN transparent inka viva e impessoul.” Por isso, 0 Ego participa do desabamento do mundo: uma vez exterioridade desarticulada, uma vezanulado qué das coisas, amber jando é possivel responder A pergunta pela pseudo-interior fidade: quem? explica-se agora a confusio de que Roquentin se dew conta ne momento da descoberta da contingencia: entre & passage co tempo «© 0s acontecimentos no tempo. Seria bor Pal ssid de estivesse presente em ambos 05 ca80s. ele que a mesma neces Por issoa musica O impres- corrente no romance. A misica € 0 CaSO em que# preenche essa passiset ecom siona tanto € é Fe« passagem do tempo e 0 aconteciment© que Foincidem, O tempo da maisica é o tempo em UE cela acomteces absoluta necessidade. TB thider, 7239; ed. por. p87. dura Jado tem; Roc Primein come i pode in amtisic Roguen mente podle-se Todos ciment na ulti cidade, Days. nao exi dis ela du re necessida- 1s enganador pparece como a, Por isso, a nnece a mes- tance de "Ego, aconsciéncia Afrente e fora nnossas acées Ealgode que dos. Masesse estrutura, ele nde conclu: rca esteve na as paredes; per- 1 dizia cu, dizia uma consciéneia t transparencia- ido: uma vez a coisas, também joridade: quem? + deu conta no agem do tempo asma necessida- disicao impres- caso em que a essa passagem acontece, € com Erica e literatura em Sartre Ha ainda ourra felicidad: fora de mim hé aquela faixa de aco, a duragao limitada da muisica que atravessa 0 nosso tempo de lado a lado, ¢ 0 recusa, ¢ o rasga com as suas partes secas e agudas: hé um tempo diferente." Roquentin se sente feliz, a néusea desaparece nesses momentos, Primeiro, 08 acordes iniciais; logo a cantora comecaré a cantar: “Pare- ce-me isso inevitével, to forte é a necessicade dessa miisica: nada pode interrompe-la, nada desse tempo em que o mundo se afundou; a musica cessaré por si prépria no momento preciso”.*' E assim que Roquentin gostaria que fosse a sua vida: curacao melédica, qualitativa- mente necessitia, previsivel e exata, Em cada momento dessa duraczo, odle-se esperar pelo que vai acontecer: a mtisica nao nos decepciona, Todos os instantes so necessariamente preenchicos; tempo e aconte- cimento regidos pela mesma necessidade. f interessante notar que, ra tiltima vez que Roquentin vai ao Café Mably, j4 prestes a deixar a cidade, a garconete poe para tocar o seu disco preferido: Some of these Days. Roquentin percebe melhor por que a mésica o deixava feliz. Ela nao existe. Nao é contingente. Simplesmente ¢. Ela ndo existe. E até irritante; se me levantasse, se arrancasse 0 disco do prato que o sustenta, e se 0 partisse em dois, no a atingiria a la, Ela esté para além - sempre para além de qualquer coisa, uma nota de violino."* duma voz, Logo mais ele confessard para si mesmo: “eeu também quis ser”. A vida como estrutura melédica, durago organizada: “expulsar a exis- t@ncia para fora de mim”, para tormar a vida to precisa e bem marcada como as notas do saxofone: “é preciso softer ao compasso”. Mas 0 mundo da contingéncia ndo se ordena ao compasso; “0 arrasta com carne demais”, sofrimento se 14 thidem, p41; ed port, p48 15 idem, p42; ed. por. pas. 16 Tbidem, p.245, grid no orginal et. por, p.295, sl Franklin Leopoldo e Silva ero dois mundos completamente separados? Talvez nfo, $= POT sarmos que, na otigem dessa duragio necesséria, estev® © tempo da hesitacdo, da intermiténcia: éespantoso que uma existfncia tenha dado origem aesse ser. Mas entao é possivel passar da contingénciaa neces- sidade, Roquentin vislumbra a salva¢ao. penso num americano excanlnoado, de espessos sobrelhos nesrO®, aque sufoca de calor no vigésimo andar de wrt prédio de Nova York. Por ma de Nova York o eéuarde,inflama-se ozul docéu, enorn® chamas rarelas vem lamber os cetos .. No quarto escuro do vvigésimo andar ati um calor de fornalha. © americano dos sobrolhos Pretos suspira, pfega e escorre-the osuor plas faces. Est sentado em mang decamisa Siente do piano; em um gosto de fumo na boca e, vagaments, Om fan- arama vento na cabega: some ofthese days... Ano imide agar © Lapis {que estava em cima do piano. Some ofthese dys ‘you'll miss me honey. ‘ot assim que essa misica nasceu. Foi o corpo gasto do ta judeu de gobrollhos de carvao que ela escolheu para nascer .~ F Por Ne no eu?” Foi a pura contingéncia que fez a mésica nascer num americano sutocado pelo verdo novaciorguino. Af esté.um mundo, 0 do tempo que se afunda. Existe um outro, em que cle est salvo, em que parti- cipa de alguma maneira do ser aque dev nascimnen’ Roguentin pensa nele com dogura. B isso que significa estar salvo? Bisso que significa justficaraexisténcia? Fazer alguma coisa que eve as pessoas a pensar fem quem a fez. Uma obra: um ser, “alguma coisa que nao existisse, ‘ease acima da existéncia”. Tal como Roquentin outrora dese- 1 uma historia de aventuras. Mas no que esti jara que tvesse sido a sua vid hhaveria agora confuséo entre temporalidade da existénciaeanarrati- vadas aventuras. Entre tempo.e acontecimento, Ble as seParae preci- idessem dizer: “Foi o Antoine Roquen= Pensariam samente para queas pessoas PU tin quem escreveu. Um sueito ruivo que vivia pelos cafés tele como ele pensa no americano que escreveu a canCo- ‘Abra 0 faria ser para os outros. A obra.o fara ser. isso talvez signifique es- 17 Toidem, p.247; 08. por. 296. capay posa conke dade ratur que: estat proc com neg dao cura sua outt filhe pod mac pon dee thos jam exis esti ouy Exi to, se pen- > tempo da tenha dado sia &neces- Ihos negros, va York. Por ‘mes chamas 10s suspira, asdecamisa rte, um fan igarra o lépis ve honey. tal judeu de une nao eu?” americano > do tempo a que parti- entin pensa ue significa pasa pensar o existisse, strora dese- as. Mas nio veanarrati- sraria, preci- ne Roquen- . Pensariam o. A obra o gnifique es- Eien e literatura em Sartre capat da existéncia contingente, Ele nada sabe do americano que com- és amiisica, nem mesmo se esté vivo, Masa misica é suficiente para conferir Aquele homem contingente uma permanéncia e uma necess dade que nao podem ser revertidas, Por isso, Roquentin pensa na lite- ratura ¢ se coloca a possibilidace de salvagao. O final do romance é ambiguo, Se, por um lado, é certo que aquilo que é posto em obra, por ser imaginario, nao existe, assim, adquire o estatuto de um resultado - uma posigao ~da consciéncia imaginante, produto especifico de uma certa modalidade de aco ou de trabalho com o vivido, que difere da vida contingente enquanto existéncia por negé-la, por outro seria preciso aprofundar a questdo do significado a obra para o autor, em termos de salvacio pessoal. Roquentin pro- cava, na arte, um sentido para.a existéncia ou um modo de escapar da sua contingéncia? Nao a obra, para ele, um modo de ser pata os outros? Talvez Roquentin no esteja se dando conta de que a obra, filha do imaginatio, nasce do poder de negacéo da consciéncia, um Poder que anula o mundo e, portant, separa a obra do autor. Ha uma mio trémula que apanha o lépis, rasa as notas e as palavras; até que Pontoisso importa? Dessa fragilicade circunstancial nasceu a densida- dle do ser, mas do ser que paradoxalmente no é. O americano de sobro- thos negros pode estat de alguma maneira presente num lugarem que Jamais supés que pudesse estar, junto de pessoas que jamais supés existirem: um café de uma cidade do interior da Franga, Mas ele li std indiretamente presente, através da consciéncia que aqueles que Ouvem a sua misica tém da mnisica, precisamente do que néo existe Existéncia e justificagao Levanto-me, mas fico um momento hesitante; negra cantar: Pela iltima vez. Bla canta. Bis dois que estdo salvos: o Judeu e a Negra. Salvos, Julgaram-se talvez perdidos de todo, afogaclos na existéncia.E, todavia, ninguém podia pensar em mim como penso neles, com esta docura, Ninguém, nem mesmo Anny. Eles so um pouco, para mim, como mor. gostava de ouvir a 93 Franklin Leopoldo e Silva ‘0s, um poueo como herdis de romance; lavaram-se do pecado de existir. [Nao completamente, bem entendido ~ mas tanto quanto pode fazé-lo um homem, Esta idéia revoluciona-me subitamente, porque jé nem isso esperava. Sinto qualquer coisa que timidamente roga por mim, © nao ouso mexer-me, porque tenho med de a afugentar. Qualquer coisa de que ja no me lembrava: uma espécie de alegria. “A hesitacio antes de atravessar pela tiltima vez as portas do Café Mably, talvez para nunca mais volear, parece Aigurar que Roquentin quer dar-se uma derradeira oportunidade, De qué? Ele nfo sabe 20 certo, mas pressente. Todas as vezes que ouviu a mtisica, a nausea se foi, ou deixou de aparecer: Ele jd sabe por qué. A descoberta da existén- Gia é também a descoberta da separacdo entre existire ser. Assim como pode ver que existia, pode, hd pouco, também ver que a miisica nio existe: ela é. Nao se submete & contingéncia, figura a absolua necessi- dade, até quando sofre, 0 faz em compasso. A mtisica nao é como ele, midsica nao é como os homens. E, no entanto, ele refletit: ha pouco, cela depende deles para existit. Como pode o necessério depender da contingéncia? Ela veio a ser contingentemente, mas agora é ej nin- guém a pode privar do seu ser. Eo homem contingente que a fez ser? Ea mulher que a faz ser por entre as ranhuras do velho disco? Eles indo desapareceram. © homem suado no apartamento escaldante de Nova York, que é feito da sua contingéncia, jé que ele esta ali, num café de uma cidade francesa da qual talvez nunca tenha ouvido falar. E Roquentin, que néo sabe sequer se ele est vivo ou morto, pensa nele com dogura, e sempre haverd alguém pensando nele quando ouvir ‘amtisica. Mas como pode? Eles existem, ou existiram. 0 judeu suado ea cantora negra de voz rouca. Existiam e, talvez como Roquentin, estavam afogados na existéncia, esmagados sob a contundéncia das coisas e da propria contingéncia. Mas, se Roquentin pensa neles, ento esto salvos. Roquentin desesperara-se de salvar-se quando percebeu Te Sartre, A néusca, 1964, .299-300; ed, fran. 1977, p.248-9, 4 q re pe ra ai nm di liv st n di te e de exist. de fazé-lo e jé nem or mim, € quer coise sdo Café oquentin 9 sabe 20 adusea se aexistén- sim como Gsica no anecessi- amoele, ha pouco, pender da ée ja nin- a fez ser? isco? Eles aldante de ali, num wwido falar. »rto, pensa ando oir sdeu suado Roquentin, idéncia das ieles, entéo lopercebew Erica ¢ literatura om Sartre que nao estava presente no pensamento de ninguém. Anny, 0 Auto data, a patroa, Madeleine, Bouville, tudo ia ficar para trds e ele iria retornarao nada, como o marques de Rollebon. Seria 0 passado dessas pessoas, ja era o passado de Anny. Nao era nada. Mas ojudeu eacanto- ra negra, existentes do passado, pareciam ser, tal como a misica, pois Roquentin pensava neles. Mortos ow herdis de romance: deixaram de existir para ser. Mesmo que ja tenham existido ¢ sejam s6 passado, ainda assim sio; “lavaram-se do pecadlo de existir”. E é enquanto pensa neles que a idéia surge para Roquentin, a revolucao siibita, que pode mudar a existéncia, nao simplesmente modificando-a, mas anulan- dlo-a para que em seu lugar venha o ser. E ele, Roquentin, venha a ser Ele nio esperava; nio ousa mover-se com medo de afugentar a possibi- lidade. Algo que o toca timidamente e que, no entanto, pode ser a sua salvagao, Ele compreende, entio, o que era isso que afugentava a ndusea quando ouvia a miisica: era “uma espécie de alegria”, que custa a reconhecer porque ¢ algo que pode torné-lo um ser. Algo que vive de forma estavel no pensamento das pessoas, com que elas tém conta- to, independentemente das circunstancias, Nova York ou Bowville, Paris, qualquer lugar e qualquer tempo. Ealgo tao novo que ele ainda hesita. “A negra canta. Pode-se entao justificara nossa existéncia? Mesmo que seja s6 um pouco?” Ele que existia sem razio, como o castanheiro ou o gradil do jardim, entrevé agora a oportunidade de existir justificadamente, isto é, com razo e necessidade. Como um ser, Sente-se timido ¢ inseguro, como algo que pode ser diante daquilo que ja é. E apenas uma esperanea, mas que 0 envolve, como os arrepios percorrem o corpo gelado quando se acaba de entrar num quarto aquecido, “O homem segurava molemente o lapis, ¢ dos seus dedos com anéis cafam gotas de suor sobre o papel. E por que nao eu?”® Fora esse pensamento que fizera surgir a idéia. O vero nova-iorquino, 0 19 idem, p.300; ed franc. p.249, 20 tbidem, p.298, ed. francs, p.247-8 95 Franklin Leopoldo e Silva suor, a cerveja morna ¢ imunda ~e, no entanto, “o milagre”. “Foi assim que essa miisica nasceu.” Pessoas ¢ coisas tio contingentes quanto tle, Roquentin, no Café Mably, diante de uma cervejamorna, ouvindo + coftimento sincopado do sax e arrastando o sofrimento pesado da sua carne. “Nao podria eu tentar..” Escrever um livro: nfo Histéria, que fala do que exist, mas um livro que falasse do que mune existiu. vrentar escrever sobre Rollebon jamais justificara a existencia de ak guém: “nunca um existente pode justificar a existencia de outro exis: tanta 2! Seria preciso escrever algo que “estivesse acima da existéncia. ‘Uma historia como nfo pode suceder, uma aventura”, As pessoas le- ram olivro e pensariam nele, “Escrevé-lo nfo me impediia de existin, nom de sentir que existo. Mas a chegatia o momento em que o ivro vetivesse escrito, ficasse atrds de mim, e acho que um pouco de sua claridade cairia sobre o meu passado.” £2 isso o que significa: justificar srexisténcia. Ter algo por tas, A descoberta da existénciaforaa desco- berta de que nada havia por tras das coisas e das pessous. O passado cra o nada, as coisas passadas recuavam para o nadia. Mas um livro poderiaconferirao passado a claridade do ser, daquilo que foi necessé- rio e que portanto é0 passado necessatio. Algo que se poss aceitar. ‘Talvez um dia, pensando precisamente nessa hora, nesta hora som- bria em que estou & espera, de costas curvadas, que sejam horas de altar para o trem, talvez sentisse bater-se mals depressa o coragio ¢ discesse para comigo: “Foi nesse da, a essa hora, que tudo comegau”. F assim chegaria a aceitar-me ~ no passado, apenas no passado.” Roguentin ndo se deseja assim como se encontrou: contingens®, gem razao de ser, gratuito e indefinido, sem passado.e sem causa, Sem nada por tris. Quer que o passado se integre e com 0 presente forme ‘um ser —ndoa massa amorfa que se sente agora, mas um Ser) ‘organiza- do, necessirio. Por isso, o futuro talvez possa modelar 0 pasado ~S¢ o futuro vier a ser, num outro e mais distante futuro, um pasado que "D1 Tider, p.300; ed. franc, 249. 22 thidem, p301: ed. franc. 250 ope deri: fatig sent sia mas bras em cag exis que Os¢ cad sent tin aoc isso mec emt “ur algc logi talv cia gun con pen obr que aver teti ‘oiassim s quanto ouvindo esado da Historia, aexistit. cia de al- stro exis- xisténci sssoas le- de existir, ue o livro. zo de sua justificar aadesco- ) passado um livro sinecessa- sa aceitat, thora som- n horas de > coragio € comecou”. sado.” atingente, causa, sem ante forme rorganiza- assado—se assado que Exon literatura em Sartre © permita aceitar-se na integtidade do ser. E essa integridade ele apo- deria construir, a partir dessa existéncia contingente, com suor e lage! mas, como 0 americano e a cantora, mas esse trabalho “aborrecido fatigante” produziria aluz, ea claridade do passado iluminaria o pre~ sente quando ele lembrasse de si, porque haveria como lembrar de si, 4 maneira como evocara havia pouco alguém que nem conhecia, mas que o fizera feliz pela mtisica. Seria a maneira de passar das som- bras a luz, de fazer que a “hora sombria” fosse o nascimento, a hora “em que tudo comegou", 0 inicio da claridade do passado e da justifi- cacao do presente. $6 o inexistente pode justificar a existéncia de um existente, Essa estranha conclusdo, implicita no vago projeto de Ro- quentin, coloca-nos diante do problema da consciéncia da irrealidade, Os elementos a serem analisados para elucidar o alcance e o signifi- cado dessa relagio que 0 heréi deseja estabelecer com 0 objeto au- sente (a obra) estao entre aqueles que comentamos até aqui: Roquen- tin dé-se conta de que a miisica expulsa a néusea; a alegria que sente 20 owvi-la contrasta com o sentimento do peso imitil da existéncia; isso deriva de que a propria musica contrasta com a existéncia, na ‘medida em que é o artista pode lavar-se do “pecado de existir”, muito emboraa elaboracao da obra se dé na existéncia; a obra pode justificar “um pouco” a existéncia se for da ordem do inexistente, jéque elaborar algo que inexiste é transcender a existéncia. Em suma, se 0 sujeito lograr absorver-se em algo como a consciéncia da auséncia, estara talvez perto daquilo que Roquentin parece almejar: desviar a conscién- cia da existéncia,livrar-se da existéncia. Equacionar novamente a per- gunta quem; com efeito, quem é 0 compositor da mtisica? Eo homem contingente que transpira em cima do piano, ou é este que habita o Pensamento de Roquentin quando o disco gira na vitrola? Este que a obra parece ter libertado da contingéncia? por esse caminho que Ro- quentin passa a cultivar a vaga esperanca de finalmente construir uma aventura, algo que, por nunca ter existido, estaria acima da existéncia. No capitulo de conclusio de Limaginaive [0 imagindrio], Sartre sin- tetiza as condicdes necessérias pata que uma consciéncia possa imager 97 Franklin Leopoldo e Silva [carregar de imagens”: essencialmente, é preciso que ela possa esta. belecer uma tese de irvealidade. Sem deixar de ser intencional, a cons. ciéncia pode estabelecer a tese de irrealidade ao pér objetos inexis. tentes, ou seja, afetados por “um certo caréter de nada em relacéo 4 totalidade do real”. Isto quer dizer que na imagem o real é negado: “o ato negativo € constitutivo da imagem”, Mas essa negac&o se dé jus tamente “em relacao & totalidade do real”. Como acontece? Suponha. mos que estou diante de uma tela, 0 retrato de Carlos VIII. Minha atengao se concentra na imagem de Carlos VITI que me é dada pelo seu retrato pintado na tela. Mas, quando se trata da imagem, nao consiclero o retrato na tela, isto 6, a coisa real, rodeada de condicées concretas e determinadas. Estou num museu, em decerminada cidade, num certo dia e numa certa hora; varias condigdes incidem na minha relacao fi sica com o quadro; as cores esto desbotadas, a iluminagéo nao é ade- quada; 0 quadro pode deteriorar-se ou arder num incéndio. Enfim, “sua natureza objetiva depende da realidade estabelecida como um conjunto espaco-temporal”.”* Nada disso diz verdadeiramente respei- to a imagem. Esse “objeto” que apreendo nao se submete a nenhuma das injungdes anteriores. Nao est sujeito as variagSes em relagao a0 mundo circundante. Se dirjjo uma lampada para a tela, nem por isso iluminarei mais a face de Carlos Vill: ela tem a claridade que o pintor Ihe deu de modo definitivo quando a criou. Se a tela arder num ineén- dio, a matéria queimard, nao o rosto de Carlos VIN. Se a configuracdo da sala e os objetos ao redor forem mudados, isso nao afetaré a ima- gem. Essa diferenga entre o quaciro ea imagem mostra que @ consciéncia, para produzit o objeto em imagem “Carlos VIII", deve poder negar a realidade do quadro e s6 poder negi-la tomando um recuo em relago & realidade vista na sua toralidade. Por uma imagem & constituir um objeto & margem da totalidade do real, é, portanto, manter o real & distancia, liberar-se cele, numa palavta, negé-lo, 23 Sartre, imagine, 1940, p.222. 24 Ibidem, 9.233, possa esta- nal, a cons- 2108 inexis- m relacéo & negado: “o ose di jus- ? Suponha- VIL Minha ida pelo seu ‘oconsidero concretas ¢ num certo arelaciofi- onioéade- idio. Enfim, la como um) vente respei- ‘anenhuma nirelacio ao em por isso queo pintor =num incén- configuracéo fetard a ima- que 9s VIII", deve tomando um uma imagem € ‘tanto, manter Etia etteratura om Sartre E importante notar o duplo procedimento ‘que nesse caso assume a intencionalidade: em primeiro lugar, a consciéneia sintética de uma situacdo mundane; em segundo, & negacfo desse mundo para que se Possa constituir, & margem dele, o objeto que surge dessa negacio ¢ que se sustenta por ela, Hé uma relagao entre esses dois modos de consciéncia porque a consciéncia imaginante se poe em relacio ao mundo real negado. E porque Carlos VIII nao existe no mundo que esse “objeto” ndo é afetado pelas circunstancias proprias das coisas reais. Note-se que posso visar ao quadro, isto & a coisa, e verificar, por exemplo, quais as suas condigdes de conservaco, em que lugar da sala ele ficaré mais bem iluminado. Mas, nesse caso, nao estarei vi- sando 4 imagem, mas o que Sartre chama de analogon material. O qua- dro est4 “no-meio-do-mundo", a imagem esté fora. Por isso, outra condicio de possibilidade para que a consciéncia possa imager é que ela também esteja fora do mundo. “Segue-se dai que toda criacdo imaginaria seria totalmente impossivel para uma consciéncia cuja natureza fosse precisamente ser ‘no-meio-do-mundo’.”®* O que Sartre quer dizer é que uma consciéncia totalmente determinada pelas con- digées concretas do mundo circundante nao poderia ser consciéncia de uma imagem, em sentido préprio. O importante é notar, ento, que “para que uma consciéncia possa imaginar, é preciso que ela escape do mundo pela sua prépria natureza, é preciso que ela possa tirar dela ‘mesma uma posigo de recuo em relaco ao mundo. Numa palavra, 6 preciso que ela sejalivre”.** 0 determinismo psicolégico nunca pode compreender a verdadeira natureza da imagem, sua especificidade, exatamente porque nunca concebeu que a consciéncia possa assumir a “posicio de recuo” ¢ assim “escapar” do mundo. Por isso, concebeu sempre a imagem como um tipo de realidade, alguma coisa na cons- cléncia, ainda que enfraquecida e distorcidaque em relacio ao seu ori- ginal. Mas a imagem nfo é percepeao enfraquecida, nem miscelénea de percepsdes. Ela tem uma natureza propria, que a psicologia cienti- 25 Tbidem, p.234, 26 lbidem, p.234, Franklin Leopoldo e Silva fica ndo poderia aprender porque nao coneebe na consciéncia senao coisas reais. A propriedade da imagem é precisamente a irrealidade. Eaconsciéncia da imagem é consciéncia de irrealidade, de objeto au- sente ou inexistente. E uma consciéncia liberada das determinagoes da percepgdo real. liberou-se, isto é, negou as determinagdes do real, porque é livre para faz8-lo. E nessa liberdade esté a chave para com- preender a intencionalidade especifica da consciéncia imaginant sendo livre “em relagdo a realidade”, ela o é sempre em relagdoa uma determinada situacdo de realidade, a partir da qual constitui o objeto “em imagem”, Pois uma imagem nao é 0 mundo negado pura e simplesmente, ela & sempre o mundo negado de wn certo ponto de vista, precisamente aquele que permite por a auséncia ou a inexisténcia de tal objeto, que se presentificaré “em imagem”.” ‘Sao célebresas andlises de Sartre a respeito da posigao da auséncia pela consciéncia, Para que Pedro seja dado a minha consciéncia como ausente, é preciso que o mundo seja estabelecido como um conjunto tal que Pedro nele nao esteja atualmente presente para mim. Em outras palavras, é preciso que eu ponha um mundo tal que me permita ter consciéncia da auséncia de Pedro. Mas, quando tenho consciéncia de tum mundo em que Pedro nao estd, tenho consciéncia de um mundo ‘em que nao hé Pedro, 0 que significa que transcendo 0 mundo em que os seres me io dados em presenga e atinjo um mundo vazio de um determinado ponto de vista, aquele relativo a Pedro. E como se fosse um mundo em que 0 irreal aparece. A experiéncia do luto ¢ @ experincia de um mundo vazio, é a apreensio afetiva de um mundo em que alguém morreu, e sua rrealidade me solicita, sinto com inten- sidacle que ele nao estd, ¢ essa intensidade supera a das outras presencas. Se olhoa sua foto, minha consciéncia no realiza a sua presenca; antes 27 (bide, p.234, gifido no origin. ac se de se iss de ot art iéncia senao Lirrealidade, Ye objeto au- rerminagdes ages doreal, ve para com- imaginante: elacioa uma titui o objeto plesmente, ela amente aquele abjeto, que se iodaauséncia sciéncia como um conjunto im, Emoutras ve permita ter consciéncia de ie um mundo ‘© mundo em undo vazio de ro. E como se ia do luto € a de um mundo nto com inten- tras presengas sresenca; antes Etica e literatura em Sartre a foto é um meio para que a consciéncia irrealize sua presenca no objeto em “imagem”, isto é, inexistente ou ausente. Assim também, quando dizemos que 0 bom ator é aquele que acredita na sua personagem, que @ “encarna”, certamente nao quere- mos dizer que 0 ator no palco acredita ser Hamlet. Pelo contratio, ele se empenha inteiramente em irrealizar Hamlet, em viver a irrealidade dessa inexisténcia denominada Hamlet. E nisso emprega todos os seus sentimentos, para viver Hamlet, intensamente e de modo irreal. E para isso choraré, rir, falard, realmente, as lagrimas, 0s risos e as palavras de Hamlet. E tanto mais inspirada sera a representagdo, quanto mais © ator se empenhar nessa itrealizacio. Poder-se-ia dizer que a argumentacao de Sartre nao se aplica as artes em que a matéria e a referéncia se confundem, como a mtisica, por exemplo, que remete apenas a si mesma, Pelo contrétio, é ai que ‘mais se acentua a diferenga entre realidade como suporte material e objeto “em imagem”, ou entre realidade e inrealidade. Poderiamos per- guntar 0 que queremos realmente dizer quando dizemos que vamos 0 concerto porque desejamos ouvir a Sétima sinfonia de Beethoven. HA varias condicbes que entendemos dever ser preenchidas para que esse nosso desejo seja realizado, Nao queremos ouvir a sinfonia exe- cutada por qualquer orquestra ou nao importa que regente. Verifica- mos se as condigGes actisticas da sala s4o adequadas etc. Julgamos poder discernir se o regente foi “fie!” a Beethoven ou se o desfigurou. Comparamos as execucSes e achamos algumas melhores que outras. ec. Isso significa que ha uma referéncia: precisamente a Sétima sinfo- wtia de Beethoven, nela mesma. Isso é que nos permite comparar as per- Sormances dos executantes, o que se denomina interpretagao: entende- ‘mos que a melhor interpretagio é aquela que presentificou da melhor forma a sinfonia ela mesma. Mas o que é este objeto, a Sétima sinfonia de Beethoven ela mesma? E algo que esta para além de todas as exe- Cugdes, de todas as condigdes materiais de presentificagao. Balgo que Propriamentendo existe. A orquestra, oregente, asala existemeamii- sica depende deles para se fazer presente. Mas, quando ela se faz pre- 101 Franklin Leopoldo e Sil gente, o restante jé nao importa. Importa o tempo inter da musica, Im cone objeto inexistente que adsorve toda a poss atensio Cada exe- cara um analgon, esabemos quel um objeto como {qual compara- ae exocugbes, mas esse objeto no fz parte do mundo em 306% execugses esto submetidasas injungoes da contingéncia, mesmoaque- be ras que ocorreram quando Beethoven 2 compos. Esse objeto tampouco de se situa num outro mundo, inteligivel ou essencial: ele é simplesmen- @ * Fedo: mundo, E assim nossa consciéncia imaginante 0 Vist Ora, oque ocorte a Roquentin quando ouve Some of these Days no ae Café Mbly em Bovville? Por queandusea desaparece esses MOTTE ta? Porque ele se sent feliz, aliviado da existencia? Sua consciéncia wo ceva daexisténca,nliliza cu nadifca~as icunstancias de Sh so concreta,e se absorve nesse objeto inexistente bem-ordenado, sn tempo proprio, com comeco € fim definidos. conscigncia vmraginante, como diz Sartre, pode se liberar do mundo existente. Requentin, que descobrit, malgrado ele mesmo, 52 liberdade, ali- mona entao a esperanca de salvar-se da existencia substituindo a raecitnvia eaizame aquela querealiza sua presen no CAL a5 Pe cone acerveja mora, aquilo de que ele parece nfo pode sab pela soe Fenvia heafzone, aquela que construira aventura nesses" e Oo Dever ter riscado 0 disco neste lugar, porque se ouve Ut barulho esqsito. E hi qualquer coisa que aperta 0 coragio: a0") melodia nao tated, nem de Teve, por esse pequeno rossicar da agua sobre 0 dis- co. A melodia esta tao Longe ~I4 to atts! Também isso e8 ccompreeendo: ‘ aa nm acon coco riscase egasta-se, a cantora jf morred flvezs ex vou PATE vou esa» comboio, Mas, por tris do existence que cal dur Presenis para outro, sem passado, sem futuro, por trés estes Sons We, diaadia, se dlecompéem, se desbagoam e resvalam para & MOF: melodia perma- jovem e firme, como uma testemuna ser piedade."* nece a mesma, 2g Savtre, Arsen, 1964, p.2 cds franc, 1997, p246-7 102 Etica tteratura em Sartye misica, Imaginagio, liberdade e compromisso radlacexes © que faz que Roquentin considere a possibilidade de salvacao ‘ompara- | pela arte, isto é, pelo imagindrio, deve-se ao fato de que ele nao estA mque as bem situado no mundo. Jé vimos os motivos pelos quais ele se sente apeate: desprotegido e perdido: a contingéncia e a liberdade desestruturam umpones, © mundo. A primeira, pela negacao da ordem objetiva em que o su- alesmen- Jeito estd inserido; a segunda, pelo horizonte indefinide de possibilida- = des que abre no que concerne aos modos de existir. E essa realidade, Days no agora existencialmente configurada, que precisa ser negada. Tall nega- ipeineae ‘sao estd implicada na elaboraco do nao-existente, possibil lidade que ssciencia atrai Roquentin como uma forma de escape da existéncia contingente. dasitua- Dealguma maneira, isso aparece como um modo de deftontar-se com tdenadly acontingéncia ede tesistir aquilo em que parece consistiro seu poder, isclencha A contingéncia negou todas as antigas determinacées, tudo aquilo que existente. poderia aparecer como garantia de insercao do sujeito no mundo. Uma dade, ali- Possivel reagao ser entao o sujeito negar, por sua vez, esse mundo tuindo a contingente, excessivamente aberto a qualquer transformacio ¢ a 6, as pes- qualquer acontecimento, Recuar perante esse mundo, negé-lo e par o par, pela objeto ausente ou inexistente aparece entzo como a maneira de sal- ‘xistente, var-se de um mundo demasiado livre e, portanto, imprevisivel. E preci. te. Oque SOnotar que, restituido a si pela descoberta de sua existéncia contin gente, Roquentin nao sente esse si-mesmo ao qual acaba de retornar pitarsihe como integro. Pelo contrario, o Eu ameaca dissolver-se com as coisas vlosiiendoy ou entre elas. Recuperar alguma integridade do Eu signifi sbre 0 dis- de alguma protegio. Nao estaria aquele que fez a musica ipreeendo: da contingéncia e do desaparecimento? E preciso reinstit partir, vou iéncia e reconstituir a sua relagdo com as coisas. sente para Nao se trata, no entanto, de reconstituir a rela¢do com as coisas jaa dia, se “reais”, fia perma- i . , : Bast A diferenca do ato de percepeio, no ambito do qual a consciéncia dados, ela postula no ato de ideagao seu préprio objeto, 103 se direciona, com o propdsito de apreensio, para objetos previamente € i880 significa Franklin Leopoldo e Silva “que a postulago nao se adiciona a idéta, mas que constitui sua estry. tra mais interna”, Desse modo, a consciéncia flutua para dentro ¢, idéia, torna-se consciéncia ideacional que, nesse ¢ ramente de uma consciéncia perceptiva.” 80, se distingue cla Jé vimos com que contundéncia os objetos da percepeao se apre- sentam @ Roquentin depois que ele passou a vé-los como contingen tes. J& no pode mais manter aquela espécie de apatia que caracteri. zavaa sua relacdo com eles quando os acreditava “previamente dados” ha constancia das determinagdes. O mundo contingente é inseparave) da inquietude e da incerteza. Por isso, o sujeito abre para si mesmo a Possibilidade de criar “seu préprio objeto”, ided-lo liberto da contin. gencia perceptiva. Deixard assim talvez de ser agressivamente solici tado pelas coisas que existem “demais” e sem recato. Esse outro modo de orientar a sua consciéncia permitiré talvez a reidentificacio de si mesmo por via de uma outra constituigao do mundo. Algo que pode- ria dar sentido a sua disponibilidade, que o faz sentir-se como supér- fuo e instil. A objetividade e a determinagio perdidas, ele poders entio produzi-las. Se a consciéncia depende do que ela visa, ela pode Pér-se como fora do mundo se visar objetos inexistentes, so visar a sua propria producio. Jé que é dificil lidar com 0 mundo percebido, osso inatualizé-lo ¢ instituir a avualidade da nao-existéncia, presen- tificar o nada. Essas observacées, que na verdade sio externas ao fluxo das re- flexGes de Roquentin, destinam-se a elucidar, em primeiro lugar, com © apelo a teoria sartriana do imaginatio, a possibilidade de presenti- ficar a auséncia, isto é, apontar a modalidade de consciéncia que se Pde a partir da intencionalidade imaginante; em segundo lugar, pro ramos tentar esclarecer sentido que confere o heréi de A ndusea 4 Possibilidade que se abre diante dele - 0 sentido salvacionista. Nao estard Roquentin buscando rearticular o seu comprometimento com mundo, agora descoberto como mundo existente? As coisas “previa- Perspctvas de wma m pr P lin lir sit to pr m pe da ge po ex te tr da no sua estrus dentro da ingue cla- > se apre- ontingen- caracteri- tedados” separdvel mesmoa la contin- ate solici- tro modo ago de si que pode- mo supér- ule poder 1, ela pode se visar a rercebido, ia, presen- wxo das re- lugar, com ¢ presenti- acia que se gar, procu- A ndusea 8 snista. Nao mento com sas “previa- 234, Evie literatura om Sartre ‘mente dadas” operavam como o pélo de uma relagao em que o com- prometimento do sujeito com o mundo podia comportar aquele dis- tanciamento em que de alguma forma Roquentin se comprazia: a or- dem que fazia que as coisas caminhassem por si. A necessidade torna © envolvimento com as coisas bem menos dristico do que a contin- géncia. Ter percebido essa diferenca é algo que est também na motiva- 20 salvacionista. Como se fosse preciso tomar uma atitude perante a realidade antes que a divisa “tudo pode acontecer” leve o heréi ao limite das possibilidades. E preciso tomar uma posigio antes que esse limite aconteca, pois 0 limite & a supressao da disponibilidade - é a situago em que nao se pode mais viver na melancolia, no adiamen- to. E preciso inatualizar as situag6es mundanas para que o sujeito se preserve de viver a situagao-limite, Mas inatualizar as possibilidades mundanas caracterizadas pela contingéncia é também suprimiro cam- po real de atuacio livre da consciéncia, pois, como ja se viu, a contin- géncia acarreta a liberdade. De um lado, portanto, assumir a posicao de negacao da realidade (nadificacao) s6 é possivel em razao da liber- dade da consciéncia; de outro, quando essa liberdade é usada para su- primir o mundo ¢ atualizar 0 objeto inexistente, isso representa tam- bém uma recusa do sujeito ao conjunto de opgdes que sao oferecidas pela realidade. Ja vimos que, no caso de Roquentin, tais opcdes apre- sentavam-se numa equivaléncia que as igualava numa massa amorfa, © que, por sta vez, deriva da absoluta falta de razZo para existir. No caso de Roquentin, nao se pode falar de situagdo-limite. Se esta é definida por Sartre como “o mais profundo conhecimento que ohomem pode ter de si mesmo”, haveremos de convir quea persona- gem nao somente nao atingiu esse ponto, como também esforca-se por escapar disso. O que falta a Roquentin é uma situagao histérica extremada em que ele tenha de viver 0 seu préprio limite. O que permi- te essa afirmacdo é a ligacao entre situacao-limite e compromisso his- ‘rico que nos é apresentada em O muro, precisamente no conto que da titulo a coletdinea. Em meio & guerra civil espanhola, trés republica- nos prisioneiros das tropas fascistas aguardam o fuzilamento. Na noite 105 Franklin Leopoldo e Silva que precede a execugio, Sartre nos apresenta as diferentes rea lados diante da perspectiva da morte. Ao amanhecer, dois deles sao fu oferecida a vida em troca da revelagao do esconde- eao outro, Ibbieta, rijo de outro membro, mais importante, do grupo. Ao contratio dos demais, Ibbieta nao se apega A vida desesperadamente. E a causa disso nao é que seja mais corajoso do que os outros. E que ndo vé sentido ‘em prolongar a sta vida no futuro porque duvida do sentido que cla tenha tido até entao. O que é preciso para que uma vida tenha real- mente sentido? Com que ansiedade tinha corrido atts da felicidade, atrds das mutheres, atras da liberdade... A troco de qué? Tinha querido libertar a Espanha, admirava Pi e Margall, aderira a0 movimento anarquista, dis cursava em comicios: levava tudo a sério, como se fosse imortal. Apesar do compromisso assumido com seriedade e ardor, apesar de ter posto a liberdade a servigo da justica histérica, a proximidade da morte relativiza tudo. Diante do que poderia ser aeternidade, qual- quer tempo perde o significado. Por isso, havia se comprometid forma tao intensa; havia agido como se fosse imortal, “havia passado © tempo todo a fazer castelos para a eternidade, nao compreendera .da”. Agora percebia o que deveria ter compreendido: “a morte row bara 0 encanto de tudo”. Nesse momento, Ibbieta sente-se como se estivesse transcendendo a si préprio. Treme e transpira, ou melhor seu corpo treme e transpira, mas ele esta calmo. No estado em que me achava, se viessem me avisar que eu poderia voltar trangiiilamente para casa, que a minha vida estava salva, ficaria indiferente; algumas horas ou alguns anos de espera dé na mesma quan- do se perdeu a ilusio de ser eterno, Nao tinha mais amarras, estava calmo. Era, porém, uma calma horrivel - por causa do corpo; enxergava com seus olhos, ouvia com seus ouvidos, mas no era mais eu; cle suava ¢ tremia sozinho € nfo o reconhecia.* tali Ar tin ter ve un as sit 35 reacdes »fuzilados desconde- trario dos ausa disso vé sentido do que cla cenha real- atrés das lolibertar a -quista, dis- dor, apesat oximidade dade, qual- ometido de ‘ia passado apreendera morte rou- se como se ou melhor, eeu poderia salva, ficaria yesma quan- armas, estava oj enxergava mais eu; cle 32 hide viene literatura em Sartre O que significa essa duplicidade? Se Ibbieta acteditasse na imor- talidade da alma, ele nao teria propriamente coragem, mas sim certeza. A morte apareceria como um horizonte de sentido e como uma con- tinuidade. Ela ndo afetaria subitamente de gratuidade todos os atos; pelo contrario, daria as agdes effmeras a significacgo eterna, Ele no teria vivido eternamente, mas teria vivido para a eternidade. Nao ha- vendo, no entanto, a expectativa ce eternidade, a morte aparece como ‘um final despropositado, incomensurdvel com as esperancas vividas, assim como o nada é incomensuravel ao todo. Por isso, esse despropd- sito afeta a vida jé vivida. A calmaea coragem de Ibbieta provém desse nfo-sentido €, por isso, ao contrario do mértir que acredita na vida eterna, ele esta eferivamente se defrontando com a morte. Dafa du- plicidade entre o tremor do seu corpo ¢ a serenidade dele, como se se tatasse do corpo de um outro. Ele pertence a estirpe daqueles que, segundo Sartre, encontram a coragem “do outro lado do desespero! Os fascistas prometem-Ihe a vide se revelar o esconderijo de Ramén Gris. Eles nao sabem que ele, Ibbieta, jé atravessou 0 desespero: do Jado em que se encontra, a promessa de vida ja nfo tem forca de apelo. Tampouco a lealdade: nao é por isso que calmamente prefere morrer a falar, Preferia morrer a denunciar Gris, Por qué? Nao gostava de Ramén Gris ... Eu o estimava, sem ditvida; era um sujeito duro. Mas nao cra or esta razo que eu ia morrer em seu lugar; sua vida nao tina mais valor do que a minha; nenhuma vida tinha valor, Encostavam um homem ‘pum muro, atiravam nele até que morresse—eu, ou Gris ou outro qual- quer era a mesma coisa, Sabia que ele era mais dtil que eu & causa da Espanha, mas a Espanha e a anarquia que levassem o diabo; nada mais tinha qualquer importincia. Entretanto eu estava ali, podia salvar a pele entregando Gris ¢ me recusava a fazé-lo. Achava tudo aquilo muito ‘comico; era pura obstinagio.* pare, Franken Leopoldo ¢ Silva | Manteré a sua fidelidade a Gris e& causa, mas faz isso sem motivo, sem que algum critério ou algum valor oriente sua conduta. Diante da morte, todos os critérios se anulam, como o provisério diante do definitivo. A verdade, a moral ¢ os valores, como quadros preestabele- cidos, nada disto existe, apenas ele existe na sua irremediavel finitude ‘A razio pela qual morrerd, nem ele mesmo a sabe; ndo € nada que min ultrapasse a finitude e a pequenez de sua prépria vida; nada de gran- Pod dioso. Nenhuma ago é grandiosa, nenhum homem é um heréi, tudo que! é apenas comico. E, diante dos fascistas que se levam muito a sério, mod vyem-lhe a idéia de pregar-Ihes uma peca, fazer uma tiltima piada, Sabe tand que Gris esté escondido na casa dos primos, mas diz 20s fascistas que aur vont ele estanno cemitério, e 4 por antecipacao ri dos soldados sérios corren- do por entre os ttimulos: tudo faz parte de uma mesma e grande piada. gada Esta é, no entanto, maior do que o proprio Ibbieta imagina, Gris efeti- aver vamente deixou o antigo esconderijo e foi para 0 cemitério. Os fas- men cistas o encontram e o matam; a vida de Ibbieta ¢ poupada. Ele acaba esta como uma vitima de si mesmo, da mais estranha das formas. excet Esse conto algumas vezes nfo foi bem compreendido. Com efei- tens to, cle se presta a mais de uma interpretagio, e, pelo menos numa deci delas, Sartre pode parecer inteiramente infiel & sua prdpria filosofia. fatos Maurice Cranston é um exemplo de intespretacio equivocada.” Ele Oc considera esse conto “o menos tipico” de Sartre porque nele o enredo vem estaria “bem arrumado”, tal como em Maupassant ou em outro repre- sio t sentante da literatura para consumo de burgueses. O final, na forma culag da “reviravolta’”, estaria bem de acordo com essa técnica, Além disso, omit e este argumento é mais importante, a idéia central do conto lagan ; . desse é logicamente ligada justamente Aquela filosofia determinista a que tery Sartre mais se ope, ou seja, a dos pessimistas ¢ historicistas do século XIX, que véem o homem como um ser com um destino implacavel que cant tortuosamente o engana e tapeia sempre que procura moldar seu futuro. sido ‘Acoincidéncia de Gris estar no cemitério local; 0 adiamento indesejado- sorde atribe 38 Cranston, Sart, 1966, ae am motivo, ata. Diante >diante do reestabele- ‘el finitude. é nada que da de gran- heréi, tudo sito a sério, piada. Sabe ascistas que rigs corren- ande piada, 1. Gris efeti- rio. Os fas- a. Ele acaba mas. >. Com efei- 1enos numa ria filosofia. ‘ocada." Ble cleoenredo outro repre- al, na forma Além disso, onto ninista a que stas do século nplacdvel que lar seu futuro. sro indesejado Erica e literatura em Sartre da execugao de Ibbieta ~tais artificios so por demais caracteristicos da imaginagao determinista para testemunhar em prol de uma filosofia que vigorosamente defende a liberdade humana.** Ora, se ha no texto alguma caracteristica marcantemente deter- ‘minista, deveria estar relacionada com Gris e néio com o protagonista. Podemos supor ~e isso ja seria de alguma maneira forgar o sentido — que Gris estava destinado a morrer e que isso aconteceria de qualquer ‘modo, tanto assim que seus esforgos para ocultar-se acabaram facil tando o trabalho de seus algozes. E bem verdade que isso se deu gracas @ um cruzamento entre sua deciséo de esconder-se no cemitério ea vontade de Ibbieta de que seu tiltimo ato em vida fosse uma peca pre- gada nos militares fascistas. Esse cruzamento, no entanto, nada tem aver com determinagao. Néo hé uma articulagao que determine fatal- mente o resultado, Do ponto de vista de Ibbieta, para quem tudo jé estd consumado, o que importa é nao revelar 0 local do esconderijo; exceto este, tanto faz referir-se a qualquer um. © fato de que Ibbieta tenha resolvido dizer que Gris estava no cemitério ¢ 0 fato de este ter decidido esconder-se no cemitério esto um para 0 outro como dois fatos contingentes. Nao h nenhuma forca superior que os articule. O cruzamento e a transformagio da ironia de Ibbieta em verdade de- vem ser considerados obra clo acaso. Ibbieta concluiu que as coisas S40 to desprovidas de sentido que o que sobra delas € de suas arti- culagdes € somente o cémico ¢ 0 irénico. Acha, por exemplo, que é cémico morrer por Gris, nao heréico, como se poderia supor. O entre- lacamento ocasional que resulta na morte de Gris é um prolongamento desse cardter comico até o limite, isto 6, até 0 trégico. O fato de Ibbieta ter provocado o contrério do que pretendia mostra a gratuidade ¢ a contingéncia do mundo e dos atos humanos. O fato de sua vida ter sido poupada ilustra igualmente a aleatoriedade de um mundo de- sordenado, pois o significado de ter ganho a vida é nulo: ele jé nao atribui a ela qualquer sentido. Nao se pode dizer, portanto, que o des- 34 Ibidem, 9.33. Franklin Leopoldo ¢ Silva tino, superando a liberdade humana, articulou as coisas de tal modo que o ato heréico se teria transformado objetivamente numa delacio, para mostrar que, quaisquer que sejam os projetos subjetivos, o desti- no sempre triunfa, Ibbieca vive num mundo em que herofsmo e dela- fo se equivalem; a vida e a morte de Gris se equivalem; sua propria vida ou sua morte também se equivalem, Essa indiferenga anula as atribuigdes de sentido. Por isso, Ibbieta nao vé qualquer herofsmo na deliberacio de mentir aos fascistas, simplesmente acha engragado. Sua morte ser precedida por uma piada que enfureceria os fascistas é vista por ele como algo que diminui a seriedade da vida e a gravidade da morte, como que desmistificando a ambas. Uma vida falhada e uma morte gratuita. Vive num mundo em que nao hé ordem estabelecida, separagdes estanques de significados. A contingéncia mistura as signi- ficagdes, até mesmo as da vida e da morte, o que est ilustrado pela mesela de riso e lagrimas de Ibbieta, quando fica sabendo do ocorrido: “tudo se pos 2 girar e me surpreendi deitado por terra ~ ria tio forte que as lagrimas me vieram aos olhos”.** (O que talvez impressione nesse entedo de circunstancias, a pont de provocar interpretagdes como as de Cranston, é que, nesse caso, a liberdade parece ndo servir para nada. De que vale ter perseguido a felicidade, ter se alistado para lutar ao lado dos republicanos na guerra civil, ter decidido que morreria por Gris? De que vale ter-se compro metido livremente com a prépria liberdade? Num mundo em queim- pera a contingéncia, podemos ser traidos até mesmo pela nossa pr pria liberdade, jé que, tal como a contingéncia, a liberdade tem um fundo de gratuidade, isto é, de imotivagao, como se proviesse do nada ¢ assim permanecesse sempre afetada por ele. Nunca esgotaremos completamente o sentido de um ato livre: compreendé-Io inteiramente nio seria tornd-lo determinado? & porque alliberdade esta fora da rede ordenada do em-si que as conseqiiéncias dela nos surpreendem ~ e nos assuistam. E por isso que as conseqiiéncias da coragem e da covat- 35 Sartre, O miro, 1965, p30. dia con nha por trar Seri bar pre pel eto nao pric alit esse og mer abst nae que por con do« exis dac sobi pars sart refe exis dac al modo delacao, ,odesti- woedela- a propria anula as ofsmo na gado. Sua sas é vista vidade da dae uma abelecida, as signi- rrado pela »ocorrido: ato forte 4s, aponto se caso, @ rseguido a snaguerra se compro- sm que im- nossa pro- de tem um sse do nada sgotaremnos weiramente foradarede eendem -e iedacovar- Erica o literatura om Serve dia podem se inverter, Se Ibbieta tivesse revelado —talvez sob tortura, como ele temia ~ que Gris estava na casa dos primos, como ele supu- nha, 0s fascistas nao 0 teriam encontrado e Ibbieta teria sido fuzilado por nao ter colaborado. Ou seja, a sua possivel covardia teria sido transformada em heroismo. O que nfo teria sido menos “comico”. Seria uma espécie de heréi gratuito de maneira semelhante como aca- ‘ara sendo um delator gratuito. Liberdade e contingéncia andam sem- pre juntas com gratuidade: mas se é assim, se podemos ser traidos pelos nassos atos livres, nao seria melhor se fOssemos determinados ¢ totalmente isentos de responsabilidade? ‘A questao nao se pée porque a escolha entre essas alternativas no se poe. © homem é metafisicamente livre e a liberdade é o pr6- prio modo de constituigao da consciéncia. Nao cabe ao sujeito escolher aliberdade, mas sim escolher e escolher-se a partir da liberdade. Seria esse algo como o dado fundamental presente em qualquer situagao, © que mostra que, para Sartre, a metafisica é algo que afeta intima- mente o sujeito: “nao é uma discussdo estéril a respeito de nogdes abstratas ... 6um esforco vivo para abragar de dentro a situagao huma- na em toda a sua inteireza".” E essa imediatez intima da metafisica que faz da liberdade o dado imediato da existéncia, Mas, exatamente por ser a liberdade a forma do ser-ai, o seu contexto é a complexidade concreta da existéncia. Isso significa que a situagao concreta é a base do exer io da liberdade. Estariamos entao dizendo que a situagao existencial limita 0 exercicio da liberdade, o que nos colocaria diante da questo de como podem as circunstancias atuar restritivamente sobre aquilo que constitui em dltima instancia o sujeito? Talvez 0 paradoxo desapareca se atentarmos mais uma vez para a concep¢o sartriana de metafisica: nao ¢ algo que paira sobre o sujeito como uma referéncia essencial, mas algo que diz respeito aquilo que o constitui existencialmente. E por isso que a metafisica nao pode ser separada da complexidade existencial concreta. Significa que a liberdade esta “36 Sartre apd Cranston, op. cit, 729-80. m1 Franklin Leopoldo e Silva sempre em confronto com as coisas e com outras liberdades: as d versas maneiras como isso acontece configuram as situagSes a partir das quais os sujeitos exercerdo a liberdade. A liberdade, portanto, nao se expande indefinidamente como no vazio: pensé-laassim é concebé- Ia como uma poténcia divina, A liberdade constitui 0 sujeito no inte- tior da sua finitude; esta compreende, entre outras limitacées, 0 con- fronto com uma espécie de hostilidade objetiva, das coisas ¢ dos ‘outros. Se o mundo fosse bem-ordenado, como numa harmonia pre- estabelecida, 0 confronto das liberdades se resolveria num sistema em que a contingéncia se compatibilizaria com a necessidade. Mas num mundo primordialmente contingent, a liberdade e 0 confronto das liberdades abrem um espaco de imprevisibilidade. As situagées- limite nos fazem viver coneretamente esse carter inacabado do mun- do humano em que se inserem as nossas acoes. ‘© que Roquentin parece principalmente recusar é esse carter dialético que afeta o compromisso num mundo contingente. Essa éa razZo de querer comprometer-se coma arte, isto é, com a necessidade do objeto inexistente. Sint

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