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CONFERENCIAS TENTANDO APRENDER UM POUQUINHO. Algumas reflexées sobre a ética na Histéria Oral Alessandro Portelli*® Responsabilidades Antes de ser convidado a participar de uma conferéncia sobre Historia Oral e Etica, jamais me ocorrera que havia principios éticos especificos relacionados A Historia Oral, além daqueles inerentes a condigdo de cidadao e de intelectual académico. A semelhanga de todos os pesquisadores, os historiadores orais tm a responsabilidade nao s6 de obedecer a normas confidveis, quando coligem informagées, como também de respei- ta-las, quando chegam a conclusées e fazem interpretagdes — correspondam ou nao a seus desejos e expectativas. Como somos agentes ativos da historia e participantes do processo de fazé-la, cabe-nos, por outro lado, situar a ética profissional e técnica no contexto de responsabilidades mais amplas, tanto individuais e civis como politicas. Em iiltima andlise, as diretrizes éticas e juridicas terio razio de ser apenas se const tuirem manifestagdes externas de uma consciéncia mais abrangente ¢ profunda do com- promisso pessoal ¢ politico com a verdade e a honestidade, na medida de nossas pos- sibilidades, Portanto, nesta parte do trabalho, em vez de tentar requintar ainda mais os cédigos de comportamento profissional, procurarei investigar a forma pela qual esses compromissos se sobrepdem aos procedimentos especfficos da Hist6ria Oral. A rigorosa obediéncia as diretrizes profissionais pode nao ser incompativel com formas mais profundas de manipulagdo e com estratégias mais sutis de deturpagao — nem se tornar, na verdade, uma justificativa para ambas. As diretrizes ¢ticas talvez represcntem, neste caso, ndo s6 uma protegdo de que dispdem os entrevistados contra * Professor de Literatura Americana da Universidade “La Sapienza” de Roma. Proj. Histéria, Sdo Paulo, (15), abr. 1997 13 a manipulacgdo, por parte do entrevistador, como também uma protego deste contra reivindicagées dos enuevistados — ou seja, depois de cumpridas as etapas predetermi- at-nos. Eu mesmo ja nadas, nossa liberdade € total, uma vez que néio podem proce me conscientizei de que tomo o maximo de cuidado no sentido de guardar autorizagées para publi ices ¢ citagdes quando minha posigao politica ¢ contraria & das pessoas que entrevistei, Nessas circunstancias, cu poderia usar co, bem como aprovagao das trans as informagOcs dadas por clas de manciras que talves as desagradassem (mais adiante, heste trabalho, apresentarei um cpisédio em que isso tenha ocorrido) Na maioria dos outros casos, conto com as garantias de que: a) as compensagées materiais de tudo aquilo que fago neste campo so tao irrisérias que dificilmente sus citar controversias sérias; b) tenho um compromisso comigo mesmo de nao usar o material da entrevista de formas que possam prejudicar a pessoa de quem o obtive, nem de a cla desagradar, Assim sendo, ¢ pouco provavel que cu receba quaisquer 1 clucidadas de boa-fé. Com base nessas duas atirmagoes, reclamag&es que nao possam s sei, por experitneia propria, que um acordo verbal — possivelmente gravado em fita — tem valor id@ntico ao de um contrato lavrado em cartério ¢ constitu garantia sufi ciente para ambas as partes, Reconhego que tal atitude pode nao ter fundamento no. igdo que adotei me impede de “as locante a questoes juridi ias (¢, por isso, a po: propor uma ¢tica normativa ¢ de expor prineipios morais sobre qualquer assunto — a ninguém recomendo essa postura). Ela decorre, em parte, das condigOes relativamente nao-estruturadas de meu proprio trabalho.’ A bem da verdade, muitas vezes tenho a impressiio de que requisitos cada ver mais complexos de ética profissional sao claborados para pessoas ou instiluigdes que disp6em_ de recursos, tempo e assisténcia necessarios para cumpri-los. Essas diretrizes fazem com que pesquisadores profissionais ou voluntarios se sintam muito culpados ¢ antiéti- cos, seja porque nao devolvem cépias de todas as fitas ¢ transcrigdes, seja porque niio mantém contato com os narradores, scja ainda porque deixam de tomar as devide as ta- precaugdes Iegais, etc. Embora devamos mostrar empenho no cumprimento dess jonalmente no campo da Histéria Oral (nem, se tipo de 1 Embora ctr seja intelectual académico, nao me situy prot na verdade, da Historia). As: trabalho que continus a ser, até certo ponto, voluntitiv, Nao sei muito bem se preferiria que tal situagio m, nao poss contar com unit estrutura planejada pat fosse diferente, Em vinte unos, consegui encontrar um arquivo onde guardar minhas filas e transcrigdes, fazer um indice talver conf vel delas ¢ torni-las acessiveis a outros pesquisadores 14 Proj. Historia, Sto Paulo, (15), abr. 1997 refas to bem quanto conseguimmos, nao podemos permitir que tornem burocritico nosso trabalho: apesar de isso nao assegurar um comportamento verdadeiramente Glico, traz, © risco de aniquilar muitas das forgas que tm mantido viva a Hist6ria Oral. Nesse contexto, compromisso com a honestidade significa, para mim, respeito pes- soal por aqueles com quem tabalhamos, bem como respeito intelectual pelo material que conseguimos: compromisso com a verdade, uma busca utépica ¢ a vontade de saber “como as coisas realmente sao”, equilibradas por uma atitude aberta dis muitas varidveis de “como as coisas podem ser”, Por um lado, o reconhecimento da existéncia de mul- tipfas narrativas nos protege da crenga farisaica ¢ totalitéiria de que a “cicncia” nos transforma em depositirios de verdades Gnicas ¢ incontestiveis. Por outro, a utépica busca da verdade protege-nos da premissa irresponsavel de que todas as histirias so . irtelevantes, O fato de possiveis eguividentes © intercambidveis e, em tltima andlis verdades serem ilimitadas nao significa que todas sao. verdadeiras no mesmo sentido, hem que inexistem manipulagdes. inexatiddes e erros. Individualidade, igualdade ¢ diferenca Ay pessoas em geral acreditam que as tinicas memériax dignas de serem Tidas ou lembradas sdo aquelas en que hd acontecimentos extraordindrios ow notdveis . Ponanto & confesso, bastante arriscade para wm individuo obscury — ¢, mais grave ainda, um estianho — assim pedir a complacente atengdo do piiblico, principalnente quando veonhego que ndo apresento, aqui, a historia de wn santo, de wm hevi, nem de wn tirano Olaudah Bquiano” A Historia Oral 6 uma ciéneia ¢ arte do individu. Embora diga respeito — assim como a sociologia ¢ a antropologia — a padres culturais, estruturas sociais ¢ processos ia, por meio de conversas com pessoas sobre hist6ricos, visa aprofundé-los, em essé a experiéneia © a memoria individuals © ainda por meio do impacto que estas tiveram na vida de cada uma, Portanto, apesar de o trabalho de campo ser importante para todas Ss citheias soviais. a Hist6ria Ora! €. por definigao impossivct sem ele, O significado 2 "The interesting narrative of the life of Olaudah Equiano, or Gustavus Vassa, the African, Written by Himself (1785)". In: Gates In, H. 1. The classic slave narratives, Nova York, Penguin, 1987, p. H Proj. Histéria, Sao Paulo, (15), abr: 1997 IS © a ética dos contatos humanos diretos, na experiéncia do trabalho de campo, sao im- prescindiveis ao significado ¢ & ética no exercicio de nossa profissao, A lientada pelo fato de a Historia Oral dizer respeito a versées do passado. ou seja, 2 meméria, Ainda que esta seja sempre moldada de encialidade do individuo diversas formas pelo meio social, cm diltima andlise, 0 ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoas. A memGria pode existir em elaboragées social- mente estruturadas, mas apenas os seres humanos sio capazes de guardar lembrangas. Se considerarmos a meméria um proceso, ¢ nao um depdsito de dados, poderemos a semelhanga da linguagem, a meméria € social, tormando-se concreta constatar que apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A memoria & um processo individual, que corre cm um meio social dindmico, valendo-se de instrumentos social- recordagées podem ser semelhantes, mente criados ¢ compartilhados. Em vista disso, a contraditérias ou sobrepostas. Porém, em hipstese alguma, as lembrangas de duas pes- soas siio — assim como as impressdes digitais, ou, a bem da verdade, como as vozes ~ exatamente iguais. E por esse motivo que eu, pessoalmente, prefiro evitar 0 termo “meméria coleti Embora estejamos trabalhando com o intuito de registrar lembrangas que possam ser coletivamente compartilhadas © aproveitadas, devemos ser cautelosos ao situd-la fora do individuo. Por diversos motivos (por exemplo, na sociedade contemporinea, cada pessoa retine fragmentos de muitas recordagées sociais diferentes em um todo incon- fundivelmente pessoal), ¢ © procedimento seria questiondvel, em termos ¢ticos, pois tenderia a fazer com que encarissemos os individuos como intercambidveis ¢ desinte ressados do préximo. Na verdade, quase nunca somos notificados sobre quem contou para 0 anropélogo a respcito de um determinado mito, gue narrador deu, a0 cstudioso, quais informagées referentes a que caracteristica da cultura. Desse modo, esta fica dis- tanciada daqueles que a criaram ¢ a vivenciaram, Conseqiientemente, enquanto as outzas ciéncias sociai: desempenham a indispen- sdvel tarefa de abstrair, da experiéncia ¢ memoria individuais. padrGes ¢ modelos de memoria que Wanscendem a pessoa, a Hist6ria Oral alia o esforgo de reconstruir padroes s individuais concretas. Assim, a Histéria ¢ modelos A atengao as variagd Oral tende a representar a realidade no tanto como um tabuleiro em que todos os os pedages $¢ Wransyressés quadrados so iguais, mas como um mosaico ou colcha de retalhos, em que dilerentes, porém, formam um todo coerente depois de reunidos — a menos que as difcrengas cntre clas sejam tao irreconciliave que talvez, cheguem a rasgar todo 0. 16 Proj. Historia, Sdo Paulo, (15), abr 1997 tecido. Em tltima andlise, essa também ¢ uma representagdo muito mais realista da sociedade, conforme a experimentamos Nesse sentido, a Histéria Oral nao deixa de se assemelhar a literatura. Embora a teoria ¢ a critica literdrias realmente se ocupem de conceitos tao transcendentes ao individuo, como género, estilo, periodo, escola ou influéncias literirias, no final, a con- ponsavel por fazer com que um trabalho literario produza impacto reside no fato de ele, de maneira inconfundivel, aglutinar, transgredir, cluséo é a de que o elemento r transcender ¢ transformar género, estilo, perfodo ¢ escola, De modo andlogo, exatamente por dizer respeito a pessoas “comuns”, a “individuos isolados ¢ obscuros”, que podem, “além disso, ser estranhos”, a Histéria Oral nao se concentra nas pessoas médias, mas. ndo raro considera mais representativas aquclas que so extraordinérias ou incompara- veis. Como sugiro cm outra parte deste trabalho’, 0 escravo que foi punido com cem chibatadas pode esclarecer mais a instituigao da escravatura do que aqueles que foram chicoteados 0,7 vezes por ano, O ntimcro extremamente reduzido de toxicémanos, em uma cidadezinha industrial, pode fornecer indicagGes inestimaveis sobre a experiéncia dos jovens como um todo, Além disso, um contador de histérias criativo ou um brilhante artista da palavra constituem fonte de conhecimento tio rica quanto qualquer conjunto de estalisticas. O respeito pelo valor € pela importincia de cada individuo 6, portanto, uma das primeiras ligdes de ética sobre a experiéncia com o trabalho de campo na Hist6ria Oral Nao sores, 08 artistas — que produzem impacto Cas pes io exclusivamente os santos, os herdis, 0s tiranos — ow as vitimas, 0s transgres- um amédlgama de grande , de s iminentes, contornados © por pouco evitados, Como historiadores orais, nossa nimero de histérias ent potencial, de possihilidades imaginadas © nao escolhidas pen arte de ouvir bascia-se na consciéneia de que praticamente todas as pessoas com quent conversamos enriquecem nossa experidneia, Cada um de meus cntrevistados — talver quinhentos —, ¢ na afirmago que se segue no ha nenhum cliché, representou une surpresa ¢ uma experiéncia de aprendizado, Cada entrevista é importante, por ser dife- outras. Por conseguinte, 0 que 6 trabalho nos ensina nao ¢ a importincia abstrata do in- rente de toda Jividuo, alardcada pelo capitalismo competitive e liberal, mas a importancia idéntica 3 Ver “Philosophy and the facts. Subjectivity and Narrative Form in Autobiography and Oral History”. In: ‘The Battle of Valle Giulia - Oral History and the Art of Dialogue. Madison, University of Wisconsin Press, 1997. Proj. Histéria, Sado Paulo, (15), abr. 1997 17 de todos os individuos. A bem da verdade. embora realmente cntrevistemos pessoas de elite, fomos motivados @ iniciar nosso trabalho, ¢ a cle damos continuidade, porque, em essén 68 trabalhadores, os pobres © os marginalizados, os homossexuais, os negros, as mu- Iheres, os colonizados. Em nos desejamos ouvir aqucles que nao foram ouvidos — as pessoas comuns a direa Ue atuagdo, a voz de todos esses individuos, isolados ¢ obscuros — c, sem excegdo, muito especiais —, 6 igualmente importante & necessitria. A Historia Oral como uma arte do individuo, portanto, leva ao reconhecimento nao. s6 da diferenga, como também da igualdade. A dilcrenga ¢ antes de mais nada. aque centre as Numcrosas pessoas com quem conversamos, porcm, Compreende, também, 0. elemento de serem diferentes de ndy — constituindo essa a razio primordial que nos moliva a procura-las. BE: orais muito diferirem entre si ¢ ainda para o fato de valorizarem ou seja, sua ndio-conformidade com as idéias predominantes em no sa diferenga, por sua vez, chama-nos a atengdo para a realidade de os historiadore: essas diferenga sociedade. Verificou-se uma das instigantes diferengas na conferéncia realizada cm Sao Paulo, Marshall Clark fez uma palestra sobre o fato de a Hist6ria quando, no tercciro dia, Ma Oral s ha meméria coletiva, Na antevéspera, cu abrira os trabalhos com a argumentagao sobre r clicamente importante porque se basvia na ética da coletividade ¢ est arraigada a Hist6ria Oral como arte do individuo, Ao ouvi-la, acreditei que estava coberta de razéo. Quando Ihe contei isso, observou que também cu estava certo: A parte 0 respeito que todos temos pelas idéias de outros colegas, terminamos por concordar que, embora todos nos trabalhemos com individuos e, parametros coletivos. colocamos em primciro plano diferentes aspectos de nosso traba- respectivas (ra- k insistiu no conceito de coletivo porque considera a Hist6ria Oral impres- ) mesmo tempo, com Iho, pois ambos desejavamos enfatizar as diferengas existentes entre a digdes. C cindivel para resuringir 0 clemento moral individualista ¢ competitive que tem preva- lecido no capitalismo liberal de livre empre aultci oO individuo, pois me conscicntizci de que a tradi a nos Estados Unidos. Em contrapartida, Jo marxista a que pertengo. deixou de reconhecer que as massas ¢ as classes so constituidas de pessoas diferentes enue si. Aquilo que ela ¢ cu tinhamos em comum era uma idé diferenga, como uma pritica inquestionavelmente antagonista ¢ contestadora. ia da Hist6ria Oral como: No persamento pés-estruturalista reeente, bem como em algumas correntes do fe- minismo, a diferenga tem sido postulada como o Gnico ideal a ser atingido, sendo contraria & igualdade ¢ incompativel com ela. Eu concordaria que sao os dois lados de 18 Proj. Historia, Sdo Paulo, (15), abr. 1997 uma mesma moeda, moeda cssa denominada “liberdade”. A liberdade significa a pos- colha s6 se toma vidvel sibilidade de escolhermos nossas proprias diferengas, mas essa e: em um estado igualitério. A diferenga se transformard cm hierarquia © em opressio, a menos que essa liberdade de escolha seja compartilhada por todos, nas mesmas pro- porgé & claro, se estivermos nos referindo apenas a “liberdade” individualista ¢ compctitiva as diferencas universais tém como base os direitos universais iguais (exceto, de fazer prevalecer a diferenga de um scr humano sobre os direitos de outros). Nao formos todos iguais, teremos condigdes de reivindicar nossas diferentes identidades, s ¢ tampouco conseguiremos procurar a diferenga por nds escolhida, se alguém tiver poder para nos impingir uma igualdade forgada (assimilagao) ou uma diferenga imposta (racismo ¢ sexismo). Na busca pela diferenga, nao podemos nos esquecer de que também acalentamos um sonho de compartilhar, de participar, de comunicarmo-nos ¢ de dialogar. E isso que implica © cardter dialégico da Hist6ria Oral, bem como seu trabalho de campo: a fim de sermos totalmente diferentes, precisamos ser verdadeiramente iguais © néo conseguiremos ser verdadeiramente iguais se ndo formos totalmente diferentes. Como j4 argumentei em outras ocasiées, 0 trabalho de campo ¢, por necessidade. um experimento em igualdade, bascado na diferenga’ E preciso “que que, depois de transposta, tome-se plena sempre cxista uma linha de diferen de significado, mas é necessario que cxista também uma “linha”, segundo a qual possamos comunicar o descjo de encontrar um terreno ¢ uma linguagem comuns, que possibilitem a troca — aquilo que, como nos lembra Tzvetan Todorov, 6 nossa natureza humana profundamente arraigada. Boas maneiras. A ética do trabalho de campo Nas socicdades esscncialmente desiguais em que vivemos ¢ wabalhamos, a maioria das entrevistas nao é feita com individuos que, de falo, esto em pé de igualdade conos 0 convErsaMOS CoM pessoas poderosas, que pertencem A clite; com maior 4 Portelli, A. “Research as an’ experiment in eyuality”. In: The death of Luigi Trastully and other stories. Form and meaning in Oral History, Albany, Nova York, State University of New York Press, 1991, pp. 29-44. 5 Portelli, A. “There's gonna always be a line. History-telling as a multivecal att” In: The Battle of Valle Giulia - Oral History and the Art of Dialogue, Madison, University of Wisconsin Press, 1997 Proj. Histévia, Sdo Paulo, (15), abr. 1997 19 freqiiéncia, somos nds as pessoas investidas de autoridade, dirigindo-nos a outras sem autoridade oficial. Na maioria dos casos, 0 poder, 0 status ¢ 0 prestigio — reais ou ima- gindrios — oferecidos por nossa profissao interferem no desempenho do trabalho. Portanto, se tivermos um compromisso com a “verdade”, como conseguiremos que nossas “fontes” nos déem sua versio daquilo que realmente acreditam ser verdadeiro? Nao o conseguiremos nunca, talvez (“Onde vocé estabelece 0 limite sobre 0 que falar?”, indaga Mildred Shackleford, poeta, ativista ¢ mineira de carvao, furtando-se a uma pergunta delicada).’ Devemos, ndo obstante, fazer um esforgo para criar um ambiente em que as pessoas tenham condigdes de estabelecer os prdprios limites e de tomar as proprias decisGes a esse respeito. Ndo 0 conseguiremos ignorando as diferengas que nos tornam desiguais, nem paternalistica (e desonestamente) simulando uma igualdade que inexiste. Em vez disso, devemos deitar por terra a diferenga, encaré-la menos como uma distorgao da comunicagio do que como a propria base desta ¢ situar a conversa no contexto da luta ¢ do trabalho, com 0 intuito de criar igualdade. Temos um interesse nao apenas ético, mas também profissional nesse processo. O trabalho cultural precisa criar as condi¢ées politicas para sua diferenga e exist¢ncia, como afirmou Gianni Bosio: A fim de preservar sua ndo-integtagao, 0 trabalho cultural & levado a criar as armas que asseguram sua propria sobrevivéncia, Q trabalho cultural toma-se, obrigatoriamente, luta politica: por necessitar de autodefesa e por ser a luta politica a mais elevada forma de trabalho cultural.* O que significa ir A casa de alguém ¢ pedir permissao para ligar 0 gravador (seria necessdrio sublinhar pedir permissdo!)? Na maioria dos casos, agimos espontancamente — porque, se nao agirmos assim, melhor sera nem scquer agir. Comportar-se correta- mente ndo é uma técnica a ser aprendida naqueles manuais em que nos sugerem fazer 6 Pata discussées anteriores sobre esse dilema, consulte Borzeix, A. ¢ Marzani, M., La duplicité incontour- nable du métier de sociologue e Chamberlain, M. Power and authority in the collection and presentation of Oral History material, ambos em V Colloguy Internacional d'Uistoria Oral. El Poder en la Sociedad Barcelona, 29 a 31 de margo de 1985, pp. 65-72 163-74), Os trabalhos de Borzeix © Marzani também foram reimpressos como La memoria come un objectivo de poder y Ia duplicidad insoslayable del oficio del socidlogo, em Vilanova, M. (ed.), El poder en la sociedad. Historia y fuente oral (Barcelona, Antoni Bosch, 1986, pp. 109-19). 7 Mildred Shackleford, nascida em 1950, Evarts (Harlan Co), Kentucky, entrevistada em 2 de novembro de 1990, em New Market, Tennesse. 8 Bosio, G. “Lettera a Giuseppe Morandi (1967)", In: L’intellettuale rovesciato, Mitéo, Edi 1985, p. 186. ni Bella Ciao, 20 Proj. Historia, Sao Paulo, (15), abr. 1997 com que 0 entrevistado se sinta a vontade, a oferecer-Ihe um cigarro... Quase todas as pessoas sio suficientemente perspicazes para discernir quando alguém esta tentando seduzi-las ou usé-las. Tentarei explicar 0 que is recorrendo a uma histéria. Antes de comegar © wabalho de campo no municipio de Harlan, cu havia sido advertido diversas vezes > signific: de que os habitantes do local haviam sido cultural e economicamente explorados, (em bom portugués: eram retrégrados ¢ pouco civilizados) a tal ponto que nutriam Jescon- fianga em relagao a todos os estranhos e antropdlogos. Em alguns casos, os intrusos haviam sido baleados.’ Quando, finalmente, senti-me preparado para minha primeira visita, telefonei a uma senhora que me fora indicada perguntei-lhe se podia ir a sua casa ¢ fazer uma entrevista. Ela aquiesceu de imediato. Seis anos depois, contou-me que consultara a irmé, por telefone, e que haviam concluido: “Se ele nao for daqueles muito metidos, a gente conversa com cle”. Em primeiro lugar, essa atitude levanta a questo de quem observa quem na entrevista. Entretanto, também € interessante a forma pela qual concluiram que eu nao era “daqueles muito metidos”. Essa senhora simples- mente se negava a realizar as tarefas domésticas, por uma série de motivos que, pos- teriormente, vim a apreciar ¢ a valorizar (entre eles, sua recusa em abrir mio do trabalho comunitério). Tendo duas filhas solteiras, trés netos e um marido incapacitado, sua casa estava — € nao corro o risco de exagerar — bastante descuidada. “S6 conversei com voce", explicou-me ela, quando j4 éramos amigos o suficiente para falar no assunto, porque “entrou ¢ sentou. Nao ficou procurando um lugar limpo onde botar 0 traseiro”. Isso significa que, quando fazemos uma cnirevista, invadimos a privacidade de outra pessoa € tomamos scu tempo. No inicio do projeto de Historia Oral com os universitérios, em Roma, meus colaboradores — os estudantes — pediram-me: “Ensi- ne-nos a fazer entrevistas”. Ninguém jamais me solicitara isso. Em dluima anlise, tudo aquilo que eu podia thes ensinar, ou seja, a Gnica técnica que me ocorreu foi: ajam com educagao. Ter boas maneiras nao significa apenas falar em um tom de voz agra- davel, dizer “muito obrigado”, sentar onde nos mandam sentar, tomar o café ou 0 vinho que nos oferecem (normalmente nao tomo vinho nem café com acuicar, mas aprendi a fazer as duas coisas, pelo menos nas ctapas iniciais do trabalho). Significa que, em vez 9 Trillin, C. A stranger with a camera, The New Yorker, 20 de abril de 1969; reimpresso em Walls, D. S. ‘e Stephensons, J, B. (eds.). Appalachia in the Sixties. Decade of Reawakening. Lexington. Ky, The University Press of Kentucky, 1972, pp. 193-201 Proj, Histéria, Sdo Paulo, (15), abr. 1997 21 de irmos a casa de alguém ¢ tomarmos scu tempo a the fazer perguntas, vamos a casa dessa pessoa ¢ iniciamos uma conversa, A arte essencial do historiador oral é a arte de ouvir, umbém neste caso, a abordagem Ctica ou cortés é cicntificamente compensadora: boas manciras ¢ respeito pessoal constituem um bom protocolo para trabalho de campo. Fui a casa de minha amiga em Harlan, pois de carvao, da década de 1930 até hoje. Ela, porém, queria me contar das dificuldades que encontrara — com 0 marido desempregado — para criar uma filha, em uma regiao se interessado — descjava saber sobre as lutas dos mineiros cultural © cconomicamente marginalizada, Mesmo que cu nao estivess © que nao era 6 caso —, haveria de ouvi-la, por mera questo de cortesia. E, se ouvirmos © mantivermos flexivel nossa paula de trabalho, a fim de incluir nao s6 aquilo que acreditamos querer ouvir, mas também o que a outra pessoa considera importante dizer, nossas descobertas sempre vao superar nossas expectativas. Quando a senhorita, Md giorina Mattioli, em Terni, insistia cm me contar © romance por cla vivid, em lugar 1, além de melhorar extraordinaria- das aventuras politicas do irméio, 0 fato de ouv mente 0 livro que escrevi sobre o local, causou radical mudanga em minhas idéias € deu-me outras, tanto sobre Hist6ria Oral como sobre a teoria da narrativa com que venho tabalhando desde aquele periodo, Obtemos resultados radicalmente opostos a esses quando seguimos os conselhos dos célebres manuais sobre trabalho de campo: invariavelmente aconselham a nos man- termos neutros ¢ distantes ¢ a nao interferir, Eu daria uma sugestio diferente: mostre-sc responda a perguntas (s¢ as fizerem...). No que me diz respeito, aberto, fale sobre voci no revelaria quase nada de importante sobre minha vida a alguém que, ao conversar comigo, assumisse uma atitude neutra, impessoal ¢ distante. Por que devo cu esperar » me mostro disposto a contar algo a respeito —a frase que o Rey. Cowan usava que outros me falem de sua vida se cu da minha’ para se aproximar das pessoas: “Voce pertence A Unizio dos Mineiros?”, ou a de An- As perguntas feitas por nossas “fontes” namaria di Marco, tentando reunir coragem para perguntar: “Ah, conte-nos como voce se tornou professor, vai!" — siio tio necessirias A chtrevista quanto aquelas que n6s mesmos formutamos, Contribuem para definir a hase da diferenga © da possibilidade de comparagio que contere significado a entrevista; 6 fato de cu ter crescido em uma oas que se vila industrial de propriedade particular facilitou a comunicagio com as pes 10 Consulte “There's always gon’ be a line. History-Telling as & multivocal art” ¢ “Intellectuals, alas! on multivocal and multilateral interviewing”, In: The Battle of Valle Giulia - Oral History and the Ant of Dialogue. Madison, University of Wisconsin Press, 1997, 22 Proj. Historia, Sdo Paulo, (15), abr. 1997 lembravam desses lugarejos; o fato de minha vila ser diferente ajudou-os a identificar as caracteristicas especificas © peculiares dos lugarejos de onde se originavam, stem cm dizer, © tempo todo, Por outro lado, boas manciras nem sempre consi interlocutor, que ele tem razio. A bem da verdade, no existe pior forma de paterna- las, ¢ também nas conversas bem-educadas, nao ha mal nenhum em fazer perguntas como: “Vocé tem certeza?”, “Nao sci muito bem se concorde com s diferentes desse cpisédio”. Com demasiada lismo, Nas entrevi “Outras pessoas ja me deram verso voct”, freqiitncia, sentimos que ¢ mais seguro nos atermos As normas universais de bom-senso nhecide, Uma contradigao polida, em uma en- irevista, pode dar margem a comentarios mais longos, a explicagdes de que. cm outras circunstancias, nao tomariamos conhecimento, ou — como muitas vezcs pereebi que acontece — fara com que nosso interlocutor sinta que nao ha nada de quando conversamos com algun des cerrado em expor pontos de vista menos convencionais. O fato de cu ter-me identificado como membro de uma minoria dissidente da Esquerda incentivou os entrevistados co- munistas em Temi, na década de 1970, tanto a expor com maior clogii@ncia ¢ profun- didade a linha do partido como a verbalizar suas perplexidades em relagao a cle. expectativas, descobri que a maioria das pessoas, em Ken- mostrou-se recepliva, aberta ¢ prestativa, Nao tardei a dar por mim conjccturand Contrariando todas é uel “onde foi que acertei? Icford, ¢ © resultado foi um gratificante misto de motivos objectives ¢ subjctivos, rela- . Incorporei ¢ssa pergunta 4 minha conversa com Mildred Shack- cionados ao poder, por um lado, ¢ a atitude, por outro. Portelli. Quando comecei a fazer essas cntrevistas, tive medo de que minha presenga. incomodasse as pe muito negativas. Acho que, basicamente, porque nao sabia muito © no estava em soas, porque sou de fora e venho da Itilia, Nao notei reagies condigdes de ensinar nada a ninguém. Shackleford. Vou te contar uma coisa que fez muita diferenga também, Vocé nao vem também njio vem de Nova York, nem de Chicago, sabe esses dos Estados Unidos, lugares, nem de Lexington nem de Knoxville. Portelli. Também pensci nisso. Nao sou de nenhum lugar de que vem o poder. nos Montes 1] Mildred Shackleford nao sabia (e, naquele momento, no me ocorters) que hit minas de earvai ¢ companhias de cnergia, com: sede em Roma, que as operam © Apalaches, que pertencem a imens: controlam seu funcionamento, © fato de eu fer nascido em Rom poderia ter sido signit Municipio de Martin, em Kentucky, assim como acontecet em ‘Terni Mivo no Proj. Historia, Sdo Paulo, (15), abr. 1997 23 Shackleford. Outra coisa que eu acho que ia ... sabe, se voce viesse do Pais de Gales aqui pro Municipio de Harlan ¢ se voc fosse mineiro de carvao, essas coisas, ¢ Proseasse com as pessoas sobre a mineragio de carvao, clas ndo iam se incomodar nao. Mas voce nfo ta tentando influenciar as pessoas, nem nada disso. Voce 36 ta tentando aprender um pouquinho ou descobrir alguma coisa, ou fazer com que as pessoas te contem histérias, e elas ndo se importam com isso néo. Existem duas estruturas de oposigdo nos comentarios de Shackleford. A primeira € entre 0 centro ¢ o segundo plano, ou seja, a diferenga hicrarquica e imposta, que se irradia dos centros de poder econdmico, responsaveis por dominar ¢ tornar estercotipa- dos a regio © scus habitantes. Shackleford identifica, como um incentivo a falar,” a diferenga nao-hierérquica de um visitante estrangciro, apreendido como inferior aos acionada a “contar” ¢ a ouvir. As pessoas com natives. A segunda oposigao esta re! certeza dardo ouvidos @ um minciro de carvao galés porque, por aliar diferengas na- cionais a igualdade de classes, cle nao reivindica mais status, porém dispdc de conhe- cimentos ¢ experincias que podem ser compartilhados e comparados (por exemplo, no locante as condigdes de seguranga nas minas). Por outro lado, as pessoas conversam comigo porque eu as ouco: como tenho pouco a dizer-Thes, no dou a impressio de estar procurando “influcncid-las”, mas sim de estar apenas “tentando aprender um pou- quinho” ¢ de conseguir algumas histéria Conclui aquele didlogo com a observagio de que meu trabalho, nos Montes Apa- laches, “foi uma fantdstica experiéncia de aprendizado”. As pessoas que vivem nessa regiaio esto de tal modo habituadas a ser estudadas,” civilizadas ¢ salvas por estranhos (“havia missiondrios saindo pelo lado”, afirma Shackleford, “para salvar a alma dos sclvagens”) que atingiram um ponto de saturagio. Quaisquer que tenham sido os resul- 12 Consulte Two 1 es talk to cach other: Htaly and Appalachian America, Appalachian Joumal, 12, 1 Outono de 1984, pp. 31-7. Meu conceito de periferia do império tem origem tanto em Evo. U. Dalla periferia dell'impero, Milo, Borpiani, 1975, quanto em Lewis, IL. M., Jobson, L. ¢ Askins, D. (eds) Colonialism in Modem America. Boone, N. C., Appalachian Consortium Press, 1978. phe juagio nos Montes Apalaches a parti de uma anedota agressivamente racista sobre vai para Kentucky © entrevista um jovem montankés. Acontece que tem como ta de bebidas alcoslieas e, como mite, uma prima cm. primeiro grau do proprio Harvard. “Bm Harvard?" © Jo estudando ele”, (A propdsito, essa mesma um antropélego «| pai um contraband marido, além de dois irmios: um na cadeia © outro © que ele ta estudando io ta estudando nada no; eles & que piada & contada nit Itilia, mas em outta verso: o irmao tena duas cabegas ¢ estuda na Escola Politéenica de Milo) 24 Proj. Histéria, Séo Paulo, (15). abr. 1997 tados positivos que consegui, provavelmente se resumem a uma f6rmula que cu j4 usara espontaneamente: Nao estava “estudando” os habitantes da regio (nem Thes fazendo. sermoes), mas “aprendendo” algo a seu respeito. A moral desta hist6ria nao é que fui politicamente correto, mas sim que nao estava ciente de ter adotado a atitude correta. Mais uma vez, agi espontaneamente. Embora possamos ser doutores cm qualquer matéria entrevistando analfabctos, na situagao de campo sao eles que t¢m os conhecimentos, ou seja, “o pouquinho” que estamos “ten- tando aprender”. Podemos ter status, mas sao cles que tém as informagées e, gentil- mente, compartilham-nas conosco. Manter cm mente esse fator significa lembrar que estamos falando, nado com “fontes” — nem que estamos por elas sendo ajudados —, mas com pessoas. A questao nao € que tipo de expressdcs ja consagradas pelo uso. empregamos em nossa abordagem; as boas maneiras sao meramente a manifestagao externa de respeito genuino, Caso contrario, poderemos repetit o verbo “aprender”, em. ver de “estudar”, © quanto quisermos, mas nossos interlocutores com certeza nao se deixardio enganar. Em busca do significado. A ética da interpretagao Depois de aprendermos um pouquinho, a questo seguinte 6: 0 que esse pouquinho significa? E neste ponto que se tora problematico 0 conceito de verdade. Nosso pro- blema nao se limita a aliar nosso compromisso como historiadores a objetividade daquilo jue realmente aconteccu” nem a nossa consciéncia pés-moderna de que, na realidade, jamais chegaremos realmente a descobri-lo. Também estamos cientes, a esta altura, de que muito aconteccu na mente das pessoas, cm termos de sentimentos, emogées, crengas, interpretagdes — e, por esse motivo, até mesmo erros, invengdes e mentiras constituem, a sua maneira, areas onde se encontra a verdade, No entanto, a constatacio de nao mais estarmos lidando com fatos concretos (¢ que falta nos fazem!), mas com elementos mutdveis, como subjetividade, memoria e narrativas de hist6rias, nao nos deveria causar a euforia pés-modema de decompor a materialidade do mundo externo entre as estonteantes possibilidades do discurso irre- levante. Da mesma maneira que trabalhamos com a interagio do social e do pessoal, trabalhamos com a interagéio da narrativa, da imaginagdo ¢ da subjetividade, por um lado e, por outro, com fatos razoavelmente comprovados. Nao reconheceremos a ima- ginagdo a menos que procuremos nos inteirar dos fatos. Durante os tiltimos vinte anos, Proj. Histéria, Séo Paulo, (15), abr. 1997 25 tenho repetido — a ponto de ja estar saturado — a historia de como a maioria dos narradores, cm Terni, situa a morte de Luigi Trastulli no contexto da rebelido urbana em 1953, ¢ nao (como de fato aconteceu) naquele de uma demonstragao politica, em 1949." Eu poderia, cm uma atitude positivista, ter rejeitado as narrativas como prova da falta de confiabilidade da meméria ou, no estilo pés-modemo, ter concluido que tanto faz — afinal, urata-se somente de outro conjunto de representagdes, Em vez disso. enearei com scriedade tanto as narrativas orais naio-conti ro accitavel do arquivo ¢ procurci encontrar sentido em ambos c. ainda. no espago entre um c outro. E foi assim que me tornei historiador oral Ora, 0 fato de as multiplas verdades com as quais estamos comprometidos incluirem os fatores mutdveis da subjetividade, da narrativa dialégica ¢ da memoria individual tem sido usado com 0 intuito de alegar que a Hist6ria Oral no é cientifica nem con- fidvel. Durante algum tempo, os historiadores orais reagiram com empenho profundo € louvavel, no sentido de climinar distorgdes ¢ interferéncias ¢ de valorizar a realidade de que — a parte as imperfeigdes — a Histéria Oral yerdadeiramente nos permite ca tanto, também estamos questionando o proprio significado da objetividade ¢ da verdade, acesso a uma grande quantidade de fatos passiveis de verificagaio. Aos poucos, entre- € transformando a pretensa interferéncia de um corpo estranho na identidade de nosso trabalho, A Hist6ria Oral nfo mais wata de fatos que transcendem a interferéncia da subjetividade; a Hist6ria Oral (rata da subjetividade, memoria, discurso © ditilogo Por um lado, esse desenvolvimento nos compromete com o reconhecimento do pluralismo, das madltiplas abordagens a verdade (sujcitas, na medida do possivel, a con- ceitos rigorosos. de responsabilidade de quem os usa); por outro, esta 6 a nés conferida no tocante a uscntarmos da. cena do discurs indesejavel. Essa objetividade consiste, ante abe aos intelectuais solha. A objetividade cientifica nao consiste em nos. o ¢ em simularmos uma neutralidade que & tanto impossivel quanto em assumir a tarcla da interpretagiio, que Em um crudito perisdico sobre histéria, na Italia, li algo que parecia ser a tans crigao muito objetiva ¢ cientifica de uma cntrevista com um operdrio de fabrica, A certa altura, as palavras do narrador foram intercaladas — em itdlico ¢ entre colchetes — por uma informagio [colpo di tose] (“losse”) ¢, ao ve-la, nao pude deixar de me perguntar scu significado: cstaria o narrador limpando a garganta? Seria sua tosse in- Tastulli: memory and the event”, In: The Death of Luigi Trastulli, op. cit., pp. 1-26. I4 “The death and Luigt 26 Proj. Histéria, Sao Paulo, (15). abr. 1997 ja tuberculoso’? E a toss ¢, Seria um sin- tencional ou irdnica? Teria ele engasgado? Ser toma ou um sinal? A postura “objetiva” do encarregado da transcrig&o impossibilitava 0 intelectual, em a inclusao dessa informagio, porque implicaria o risco de compree! ver da neutralidade da transcrig’o (Woricamente) “mecanica”. Na verdade, em lugar de um discurso objclivo sobre a fonte. o texto transformou-se em um discurso subjective nformagao tansmitida era que a cnuevista fora Wanscrita por um estudioso muito objetivo — que acredita ser cientifico dar nome aos dados. sobre 0 historiador: a unica dados sao. a, CSS segundo acred mas no se arris A responsabilidade pela interpretag: interpretagées, acesso completo ¢ exclusivo a verdade. Tem sido praxe, desde o ini a nos dizer 0 qui », € Sbvio, nao chega a reivindicar, para nossas io, na Hist6ria Oral, reproduzir as palavras textuais das fontes, com cmpenho muito maior storia documentaria cita do que cm outras disciplina scus documentos de arquivo com o mesmo zclo com que os historiadores orais citam entrevistas). Assim, s (nem mesmo a hi sejam quais forem as intengdes que tivermos, o wabalho que realizamos adquire uma dimensdo dialégica intrinseca, na qual nossas interpretagdes ¢ explicagées (expressa- mente claras) coexistem com as interpretagdes contidas nas palavras que reproduzimos. de nossas fontes ¢, ainda, com as interpretagdes que os Ieitores delas fazem. Por con- seguinte, aqueles que leram minha histéria sobre Terni descobriram possibilidad s de ligagdo enue as entrevistas citadas que haviam me passado despereebidas ¢ que, no entanto, nela estavam presentes. Conscqiientemente, aquilo que criamos @ um texto S vores ¢ miltiplas interpretagées: as muitas interpretagées dos dialégico de miltipl cntrevistados, nossas interpretagGes ¢ as interpret Ora, pode existir uma incompatibilidade entre diferentes interpretagées, Embora as es dos Ieitores. vertentes mais romanticas da toria multicultural contemporinca considerem dificil acci- tila, a diferenga nao é como um jantar de gala, a diferenga nio € como um pizza ou feijoada, em que aparentemente se coloca de tudo ¢, de alguma forma, o resultado € delicioso (na verdade, os ingredientes so escolhides ¢ medidos com muito cuidado). vdades desiguais, também & desacordo c conflito — A diferenga, em especial nas soci pode ser até guerra. Assim, embora tenhamos a obrigagéio de relatar com a maior fi- delidade possivel as palavras que os entrevistados realmente proferiram, a responsabi- lidade que temos em relagio a cles nao significa estamos sempre de acorde com o que dizem, As vezes. nossa ética como cidadaos, como individuos enyolvidos na luta pela democracia, igualdade. liberdade ¢ diferenga pode transcender a limitada ética de Ar a outra, mais ampla, humana e, em thtima anilis Nossa protissio, a fim de dar tu, Proj, Histéria, Sdo Paulo, (15), abr, 1997 27 politica. Em outras palavras: uma entrevista com alguém que tem poder sobre nés ow sobre outrem nao esta, necessariamente, sujeita ao mesmo conjunto de consideragdes éticas que vigoram para outras entrevistas — nao importa 0 que pensemos da pessoa. As vezes, pessoas pobres ou marginalizadas que entrevistamos desconfiam que po- nformantes da policia. Ocasionalmente, quando entrevistamos os ricos, 0s poderosos, os generais, pode ser altamente ético agit como espides no campo inimigo. demos ser Por um lado, ter uma atitude aberta sempre constitui a melhor politica: muitas vezes mostram-se to orgulhosos, demonstram uma boa-fé tio petulante que terminardo por nos contar o que desejamos saber e mais do que conseguimos imaginar. Porém, as vezes, principalmente quando nutrem suas proprias desconfiangas, podem mostrar-se mais cautelosos, Nesse caso, talvez se fizesse necesséria uma dose de “dissimulagao honesta”. Quando entrevistei 0 paroco da vizinhanga em que cresci, constatei que ele se lembrava de mim como uma crianca de classe média, que freqiientava a igreja com Gao. politica relativa assiduidade, ¢ também que partia do principio de que nossa pos seria idéntica. Como nada me perguntou, nada Ihe esclareci. Em vista disso, ele nao hesitou em me contar como examinava, com a maior cautela, todos os pedidos de emprego na fabrica local, a fim de que ninguém com tendéncias esquerdistas tivesse a mais remota chance de ali conseguir trabalho. Essa entrevista veio a ser a primeira prova documentéria concreta de algo que, indiretamente, sempre soubéramos: 0 papel desempenhado pela Igreja na discriminagao politica, naquele contexto especifico. E evi- dente que, por saber que 0 uso que eu faria do material iria de encontro as expectativas do clérigo, fui rigorosamente ético em termos profissionais. Dei-Ihe 9 manuscrito para ler, obtive sua aprovagdo por escrito das citagdes, antes de publica-las, ¢ assim por diante. Abstive-me de informad-lo sobre 0 contexto cm que situaria o material, bem. como a interpretagio que a cle daria. Este representa um bom exemplo, creio eu, de manipulagdo “ética” — neste caso, espero, por uma boa causa. Quando a pessoa que nos contou, cm primeira mio, a hist6ria do avidio e das cstrelas, na qual se bascia nosso livro sobre © movimento estudantil em Roma," infor- mou-nos de que discordava da interpretagao que haviamos dado a sua narrativa, nao optamos por descartar a nossa ¢ por adotar aquela mais “auténtica” do narrador, Em ver disso, tomamos duas providéncias, Como a Historia Oral é dialégica, insistimos 15 Arciditcono, M. et al. L’aeroplano e le stelle. Roms, Manifestolibri, 1995, capitulo 15. 28 Proj. Histéria, Sao Paulo, (15), abr. 1997 em comegar o livro com a histéria e a interpretagiio que dela fizemos. Para conclut-lo, inserimos a interpretagdio do narrador ¢, por fim, também nossa interpretagio da que ele fizera. Ao ler 0 livro, esse narrador provavelmente acrescentaré ainda outra. Tenho. a esperan¢a de que essa espiral de interpretagdes continue indefinidamente (seguida por aquelas dos leitores que possam vir a discordar tanto de nés como dele). Sinto-me feliz, no cntanto, por nao termos aberto mao daquela que, segundo acreditavamos, era a interpretagdo correta e proveitosa, simplesmente porque nao coincidia com a de nossa fonte. Tinhamos — assim nos parecia — a responsabilidade de documentar a existéncia de interpretagGes diversas da nossa, feitas com base em informagdes dadas por fontes bastante fidedignas. Em vez de passarmos despercebidos e de deixar de lado nossa percepcao do significado do material, concluimos que a existéncia dessa outra contun- dente versaéo obrigava-nos, basicamente, a verificar se nossa interpretagao de fato fazia sentido, se ela se enquadrava com o restante do material e se tinha alguma utilidade. Uma vez convencides de que preenchia todos esses requisitos, nds a defenderfamos como uma possibilidade empfrica, entre muitas outras. Apenas por nos mostrarmos fiéis 4 nossa tarefa de interpretar c por corrermos 0 risco de sermos interpretados é que contribuimos com a espiral sem fim que constitui a busca da verdade inatingivel, pela qual somos, em dltima analise, responsaveis. A ética da restituigdo. As vozes fora da comunidade A questao final é: 0 que fazemos com 0 pouco que aprendemos c com as inter- pretagdes experimentais que dele fazemos? O problema da restituigdo tem-se revelado muito importante nas discuss6es sobre a Hist6ria Oral como empreendimento politico © comunitario (neste trabalho, a palavra “comunidade” deve sempre ser lida como se estivesse entre aspas). Entretanto, antes de nos perguntarmos 0 que fazer com a Hist6ria Oral, creio que deverfamos indagar: para que a fazemos. Minha impressio é a de que a fazemos, antes de mais nada, para nés mesmos, motivados pelo desejo e pela neces- sidade de “tentar aprender um pouquinho” ¢ de “conseguir com que as pessoas [nos] contem hist6rias”. Na verdade, depois de ouvir atentamente centenas de histérias e pessoas — e de com elas conversar em profundidade —, adquiri uma percepgao muito diferente de mim mesmo, pela qual sou grato. Fazé-la para nés mesmos pode também significar que a Hist6ria Oral € uma ocu- pacdio, uma carreira —- ¢ nisso no ha nenbum problema (a bem da verdade, muitos Proj. Histéria, Sdo Paulo, (15), abr. 1997 29 dos historiadores orais desempregados © subempregados gostariam de que essa afirma- ) fosse sempre verdadcira), contanto que tcnhamos em mente o fato de que nao nos sairemos realmente bem nessa drca, se permitirmos que consideragdes de ascensiio pro- interesses de quem quer que csteja patrocinando nossos projetos, ou issional Ou Os sidade pessoal ¢ interior de aprender. pagando por cles, prevalegam sobre nossa nece Na Historia Oral especiticamente — por ser Uo diretamente ligada a contatos pessoais — a necessidade de aprender muitas vezes tem transcendido a paixao intelectual de académicos sérios, de modo a incluir um senso de dever, como cidadaos, de que nio siio apenas estudantes de Hist6ria, mas também agentes nela atuantes ¢ por cla responsaveis Nessas condig6es, muitos de nés sio motivados, ainda, por algo mais amplo do por uma comunidade, uma instituigao, um movimento, um lugar. E que n6s mesmo: neste ponto que entra o conceito de restituigéio, Recebemos tanto de pessoas ¢ comu- nidades que nao sentiremos nosso trabalho concluido, enquanto nao cntregarmos seus resultados aqueles que foram responsdveis por viabilizé-lo No entanto, precisamos nos lembrar de que a restituigdo de objetos — fitas, trans- crig&es, publicagdes — © sua disponibilidade em muscus ¢ arquivos nao constituem, ariamente, restituigdo & comunidade. Por um lado, muscus e arquivos nem sempre so acessiveis a usuarios que nao sejam profissionais, nem Ihes dispensam boa acolhida. nec Por outro, 6 que fazer com 0 valioso narrador que nao consegue ler a transcrigio, nem ver ou ouvir as filas, pois nao tem gravador nem videocassete? Além disso — c, na maioria dos casos, fato mais importante — estamos devolvendo a comunidade conhe- cimentos de que ja dispdc. Scus membros podem demonstrar satisfagdo por ficarem de posse das fi ‘star interesse por clas. Sentimo-nos muito mais gratif 5 Ou transcrigdcs, mas nem sempre chegam a mani ados ao devolvermos objetos a eles do gue cles por reeché-los (constatagio que novamente demonstra que © comportamento ético as vezes beneficia mais © pesquisador do que o cntrevistado). Nesse caso, portanto, aquilo que realmente restituimos ¢ uma oportunidade para as em seus conhecimentos com maior clareza: pessoas com quem conversamos organiz: afio para aumentarem sua consci — processo que come¢a com a entrevista ¢ continua, 4 medida que sc defrontam com um des Sneia, para estruturarem aquilo que j4 sabemos nossas conclusées. Esse processo, no cntanto, ocorre mais na mente das pessoas do que nos arquivos. Assim, nossa primeira responsabilidade no tocante A restituigao com nosso proprio desenvolvimento © aqucle das pessoas com quem encetamos um didlogo, O significa mais iniciando-se concomitantemcnte a cntrcvista, Por conseguinte, restituiga 30 Proj. Histéria, Séa Paulo, (15), abr. 1997 também se faz, necessdria, a fim de propor um discurso do que a devolugao de materia », uma gama de interpret experimental, uma possfvel organizag . As comunidades nao sao E por esse motivo que emprego a palavra “des idealmente homogéneas ¢ unidas —- sGo também palco de tensdes ¢ conflitos. Por isso, ‘idade, esses aspectos, de formas que podem agra- dar a alguns de scus membros ¢ a outros, nosso trabalho documenta, por ne 0. Além di 0, para segmentos das comu- nidades, ou para clas como um todo, talver. seja desagradavel 0 fato de nem sempre as encararmos como gostariam de yer-se ou de se verem representadas (alguns narra- dores de se média, em Terni, tomaram como uma afronta a cada um deles ¢ a toda a cidade a fiel reprodugao de sua forma de falar), Ao mesmo tempo cm que aceitamos criticas, precisamos assumir responsabilidade pelo fato de a restituigdo tomar-se varia de significado, a menos que mude a imagem que a comunidade ja tinha de si propria. 10 nao & neutra — sempre constitui uma intervengdo, uma interferéncia na A restitui historia cultural da comunidade. 6 apenas cm termos de devolver informagdes a Por outro lado, fala scu lugar de origem pressupde uma imagem limitada, espelhada ¢ narcisista da comu- separatistas ¢ essenciais da diferenga cultural, como de restituiga nidade, cocrente com as versdes se as comunidades estivessem interessadas apenas cm ouvir ¢ falar sobre si mesma © verdadeiro servigo que, acredito cu, prestamos a elas, a movimentos ¢ a individuos Ja para fora, em por fim 2 consiste em fazer com que sua voz seja ouvida, em lev sua sensagao de isolamento ¢ impoténcia, em conseguir que scu discurso chegue a Senti que realmente havia feito algo pelas p turevistadas em Terni nao quando thes dei exemplares do livro que sobre elas escrevi, pas Cn outras pessoas ¢ comunidad mas quando, para surpresa minha, 0 historiador Claudio Pavone incluiu, em sua historia ¢ interpretagao definitivas sobre a Resisténcia"’, techos significativos dos depoimentos colhidos ¢ registrados em meu livro. Encontrar suas palavras na obra de Pavone deu, ‘iam, a meus entrevistados, a sensagiio de que sua experiéncia ¢ sua versio da histéria hai entao, sido registradas nao s6 por um cntrevistador que os conhecia pessoalmente, mas também pela comunidade dos historiadores em geral © que ambas haviam exercido influéncia sobre a hist6ria, em nivel local ¢ nacional. Como Claudio Pavone teve acesso a cssas narrativas, por meio de meu livro, este possibilitou A comunidade falar a outros: que. caso contrario, nao tcriam ouvido sua voz. A bem da verdade, leva ia para fora i, 1992. 16 Pavone, C. Una guerra civile. Saggio sulla moralira nella Resistenza, Milo, Bollati Boringhi: Proj. Historia, Sao Paulo, (15), abr. 1997 3 an da comunidade representa a forma especitica Ue restituigao a nosso aleance, como aca- démicos que somos, pois, em nivel profissional, temos condigées de cnyar em contato com editoras € veiculos de comunicagao em geral. Em vez de nos limitarmos a restituir a comunidade conhecimentos de que ja dispOc, nds os restituimos ¢ os complementamos com conhecimentos nossos, compartithando-os com aquelas regides do mundo a que temos condigdes de chegar. Por fim, mais uma reflexio sobre Hist6ria Oral ¢ comunidades. Em 1964, Stokely Carmichael afirmou aos liberais de raga branca, participantes do movimento pelos di- reitos civis, que em vez de interfcrirem nos problemas da comunidade negra, deveriam voltar 4s proprias comunidades c organizé-las. Depois de ter aprendido tanto com os mineradores de carvao, em Kentucky, ¢ com os operdrios do setor sidenirgico, em Terni, comecei a me perguntar como podcria aproveitar os conhecimentos adquiridos nesses lugares cm minha propria comunidade, ¢ também organizé-la. Nao me refiro s6 a0 bairro em que moro, pois ¢ tio reacionario que, espero, continue desorganizado para sempre, mas também ao meu local de trabalho, 8 comunidade que, segundo acredito, € formada por meus colegas ¢ alunos na universidade. Esse 6 um dos motivos pelos quais — quando a universidade foi ocupada em 1990 — reuni um grupo de estudantes para que fizéssemos a Hist6ria Oral dessa mesma comunidade. Fiz, entdo, uma descoberta intrigante. Quase sempre, 0 sentimento de culpa do antropdlogo e a vontade de fazer algo no tocante a restituigao decorrem do fato de visitarmos uma comunidade distantc, de adquirimos conhecimentos, de escrevermos um livro sobre estes ¢ de voltarmos para casa — deixando a comunidade para trés. Entre- lanto, nesse caso, houve uma inversio de papéis: em primeiro lugar, entrevistei a co- munidade que, depois, se formou e foi embora e 0 “antrop6logo”, ou seja, eu mesmo, ali fiquei isolado, sem possibilidades de voltar para casa, pois nao havia altemativa. Essa pode ter sido uma situagao inusitada, porém, fez com eu me perguntasse: e quanto as outras comunidades com que trabalhei? Existiriam ainda? A Historia Oral € um Pprocesso muito longo (mcu projeto em Terni consumiu 13 anos; quanto ao trabalho realizado em Kentucky, estou entrando no décimo ano, Até mesmo 0 projeto com os alunos demorou cinco anos). Portanto, ao sentirmos que nosso trabalho foi encerrado, a comunidade com que o iniciamos pode ter deixado de existir. Em 1972, comecei a trabalhar com Hist6ria Oral, escrevendo a saga dos operdrios do setor sidertirgico de Terni, que estavam a caminho da revolugao proletéria. Terminei por escrever 0 clogio 4 desconstrugao da classe uabalhadora, causada pela desindus- trializagao no capitalismo pdés-moderno, No entanto, quando meu livro ficou pronto, 32 Proj. Hist6ria, Séo Paulo, (15), abr. 1997 a maioria das pessoas continuava na cidade, mas havia sé uma comunidade verdadci- rita de operrios & qual cu podia fazer uma restituigao. O piiblico ramente muito que hoje Ié Biografia di una cinta, em Temi, que dele constam, De modo andlogo, os novos alunos em Villa Mirafiori, que Iem Laeroplano ¢ le stelle podem ter a sensagaio de que no livro se enconua a hist6ria do lugar cm que estiio, porém, nao a de sua vida: nao guardam recordagdes da comunidade muito diferente do que Contou as hist6rias, que ali se constituiu por pouco tempo, durante a ocupagio, ‘nvolvimento, portanto, implica menos a A restituigdo a uma comunidade em des restiluigao da identidade do que a memoria da dif; mudanga, contudo, também resiste as mudangas que optamos por ndo fazer — 0 que nos remete novamente a Historia Oral como uma arte nao s6 daquilo que aconteccu, como também daquilo que deixou de acontecer, aquilo que poderia ou deveria ter acon- tecido."” Trata-se da memoria como altermativa. Quando anuncici que passaria um dia na praia de Copacabana, alguém afirmou: “nao fique muito tempo ao sol, pois & perigoso”. Enquanto cu admirava, pelas janclas da Fundagio Geuilio Vargas, a praia de Botafogo, meu anfitridio advertiu-me de que as enga, A meméria acompanha a ordo-me de uma époc Aguas estavam tio polufdas que cra impossfvel nadar. Ora, re em que 0s raios solares néo cram nocivos € as praias ndo cram sujas. Recuso-me a partir da premissa de que nao podemos nadar no mar, nem deitar ao sol, de que devemos temer a beleza de lugares como o Rio de Janeiro. Para meus filhos, esse é um fato da vida: os raios solares so perigosos ¢ o ar ¢ a Agua, sujos. E meu dever resistir a isso em minha meméria e contar-Ihcs aquilo de que me lembro, para que cles tenham con- digdes de resistir. 17 Consulte “Uchronic dreams: working-class memory and possible worlds”. In: The Death of Luigi Trastulli, pp. 99-116. Proj. Histéria, Séo Paulo, (15), abr. 1997 33 DEBATE ALESSANDRO PORTELLI P: Eu acho que uma caractet a questao da transparéncia. Uma caracteristica ¢ saber ouvir, vocé ja diss acho também que outa caracteristica muito importante da Histéria Oral ¢ a questo da transparéncia, j4 que 0 Encontro esti voltado para a questao ética. Eu queria saber se vocé toma ptiblicas as suas entrevistas, 0 scu trabalho, se voce dirige esse material para algum museu, para algum instituto, se voce da acesso As pessoas a esse material, ou nao, Tem mais coisa aqui. Ah, cu queria também saber, so “boring questions”, importantes, queria saber um pouco mais da Histéria Oral na Italia, que @ gente conhece muito pouco aqui. Por exemplo, como é que voces lidam ica fundamental de quem trabalha com Histéria Oral é ¢ isso, mas mas acho que s 0 com a questao do direito autoral, Afinal de contas, nds herdamos as Ivis de voces, cu queria saber como lidam com a questao do dirvito autoral, pode ser no scu tra- balho, por exemplo; ¢ também gostaria de saber um pouco se a Hist6ria Oral se tornou tio popular, assim, na Italia, como nos outros pafses, se cla é mais académica, ou nao, sc cla é mais multidisciplinar ou nio... AP: Muito bem, na verdade, é uma pergunta s6, em certo nivel. E, de fato, dei por mim pensando, hoje de manha, que existe um Muscu da Imagem ¢ do Som, cm Sao Paulo, outro no Rio, © nao hd nada parecido na Itilia, Nao sabemos onde guardar nossas fitas. Nos tltimos dez anos, tenho tentado doar as minhas ao Ar- quivo Publico em Terni, © nao 0 consegui, porque o Arquivo Ptblico nao sabe ma generalizado com os arquivos — como onde colocé-las — este um prob! indexd-las, ou como fazer o que bem entenderem com elas. Por isso, a questo 6 séria, Ha menos de uma semana, apenas, a noticia promissora era a de que o Instituto para a Historia do Movimento de Resisténcia, na Umbria, descjava incluir minhas fitas no Arquivo Publico. La, provavelmente estarao acessiveis ao puiblico. Isso, porém, nao ocorre s6 na Italia, porque também venho tentando dod-las ao Acervo Proj, Historia, Sao Paulo, (15), abr. 1997 35 36 de Hist6ria Oral, na Universidade de Kentucky, e eles dizem “Claro, Claro!”, mas até agora nao tomaram nenhuma providéncia nesse sentido. Portanto, nao se trata apenas de a Itlia ser um pais um tanto atrasado. Mesmo nos Estados Unidos isso ocorre, embora os norte-americanos sejam, sem dtivida, muito mais voltados para arquivos, e nds, muito mais para as pesquisas. Essa € uma questo a parte. Eu proprio jamais usei entrevistas feitas por outras pessoas — apenas ocasionalmente. Esta € minha abordagem pessoal, nao estou criticando ninguém, nem impondo regras; no entanto, sempre considerei de tamanha importdncia a experiéncia pessoal da entrevista que usar as fitas gravadas por outros era menos gratificante. Em vista disso, sempre tenho a sensagiio de que aqueles que usam minhas entrevistas também perdem muito, pois ficam muito fragmentadas; acima de tudo, séo metros e metros de fita sobre minha infancia. O outro fator sobre a acessibilidade — ¢ também 0 considero importante — é que um determinado depoimento foi prestado a vocé e nem sempre 0 entrevistado esta ciente de que sua narrativa poderd se tornar acessivel, em algum arquivo, a qualquer pessoa. Quanto a mim, portanto, a condig¢ao que imponho, a proposta que freqiien- temente fago — c¢ nfo sou a excegio, porque muitos adotam esse procedimento —, quando oferego minhas fitas a0 Acervo de Hist6ria Oral de Kentucky — e vou agir de forma idéntica em Perugia (Umbria) —, 6 que as fitas fiquem guardadas 14 e quem quiser poderd ouvi-las € ler as transcrigdes, mas, antes de publicd-las, deverao obter minha permissio. Preciso ter certeza de que as aproveitario sem violar meu acordo, meu pacto com o entrevistado. ‘Vou acrescentar, ainda, que essa questéo de tornar acessiveis as fitas, a questio dos arquivos, nfo se inclui entre os elementos basicos que tém sido, para nds, objeto de reflex4o, na Itdlia; trata-se de uma deficiéncia muito séria. H4 arquivos espalhados por toda parte; neles o trabalho esté comegando. Na verdade, houve algumas reunides importantes visando a criacdo de arquivos de Histéria Oral, po- rém, tudo est nos estdgios iniciais ¢ néo h4 arquivos especializados. Os tnicos de que tenho conhecimento sio os de Miisica Folclérica, da Academia de Santa Ce- cilia, na Discoteca Ptiblica, ¢ os do Instituto Ernesto de Martino, que é uma orga- nizagdo politica nova ¢ radical de extrema esquerda que, nos tltimos 35 anos, tem feito Historia Oral de Musica Folclérica e, nesse caso, 0 problema nao é a aci sibilidade, mas a sobrevivéncia, pois, para 0 Instituto, tem sido dificil manter-se em funcionamento. Proj. Histéria, Sao Paulo, (15), abr. 1997 No tocante a questo do direito autoral, lamento informa-los de que nao nos preo- cupamos muito com ela. Basicamente, 0 que fago — e nao actedito que seja su- ficiente —- é conseguir permissdo do entrevistado para publicar a entrevista ¢ para a. Desse modo, tenho um documento gravado, que me assegura 0 direito de utiliz4-la; seu valor juridico jamais foi questionado. Até hoje, ninguém contestou esse procedimento, mas sou obrigado a reconhecer que, quando entrevisto, por exemplo, executivos ou profissionais desse nivel, realmente pego algum tipo de permissao escrita, Como véem, é tudo muito informal, ¢ nao estou satisfeito com essa situagao. Por outro lado, as vezes, ¢ contraproducente fazer com que possiveis entrevistados assinem formuldrios e impor exigéncias do género. Na Itélia, a Hist6ria Oral constitui um paradoxo, porque nao é ensinada em ne- nhuma universidade. Ninguém, no pais, ¢ historiador oral por profissao, em perfodo integral. Para aqueles de nés que se dedicam a ela, € uma atividade paralela, ou até mesmo realizada contra a corrente, Estévamos conversando sobre isso, outro dia, e Historia Oral na Itdlia, basicamente, € composta de cinco pessoas. Sou capaz até de menciond-las pelo nome: eu mesmo — ¢ leciono Literatura Norte-Americana — Luisa Passerini, e ela nem sequer dé aulas em uma universidade italiana, mas leciona Histéria Contemporanea na Universidade Européia. Além disso, pratica- mente teve de eliminar 0 trabalho feito com Hist6ria Oral de seu curriculo, a fim de obter o cargo. E ha também Giovanni Contini, que trabalha no Arquivo Piblico em Florenga, porém desenvolve outras atividades, e mais dois: Cesare Bermani, que foi o criador da Histéria Oral na Itélia e est4 desempregado, n&io tem renda propria, néio tem trabalho; bem como Alfredo Martini, que trabalha como relagGes publicas em uma empresa de construgio civil e se dedica A Hist6ria Oral aos sAbados e domingos. E essa a situagio da Histéria Oral na Itdlia. Ha algumas instituigdes que realizam trabalho de campo, em nfvel local, princi- palmente os institutos para A Histdria do Movimento de Resisténcia, fundados depois da guerra, com © objetivo de manter viva a lembranga da militancia anti- fascista e, agora, stio — é interessante notar — institutos ativistas de hist6ria con- temporanea, fazem um pouco de Histéria Oral. O problema é a continuidade, por- que a Historia Oral nao é matéria dada em universidades, porque um evento como este seria quase inconcebivel na Itélia — é por esse motivo que nds, italianos, viajamos tanto — ninguém nos dé ouvidos em nosso pais. Nao existe teinamento para os interessados, é muito dificil prepard-los e, sempre que tomamos conheci- Proj. Histéria, Sado Paulo, (15), abr. 1997 37 P: mento de que uma pessoa recorreu a Histéria Oral, 6 raro cla ter consciéncia do trabalho intemacional que esta sendo realizado nesse campo. Todos comegam da estaca zero. Devo acrescentar, ainda, que existe um grupo muito importante de estudiosos, que tem como figura central Franco Ferrarotti no Departamento de Sociologia, em Roma, no qual as cntrevistas s4o0 muito aproveitadas. No entanto, na condigao de socidlogos, logicamente tém abordagem diferente, mas trabalham bastante com fon- tes orais. Isso & praticamente tudo. Eu queria propor, Portelli, que nés estamos buscando cada vez mais nos aproximar dos significados das diferentes narrativas, os interlocutores tentando aprofundar o significado das diferengas, tentando aprofundar as diferengas, ¢ talvez, voce explicite bem isso nos livros que escreve, fazendo observagées sobre 0 significado de uma narrativa ¢ de outra, mas para nés, aqui, ainda é um caminho que estamos tentando trilhar, no sentido de que fica facil quando damos explicagdes sobre 0 ato da entre- vista € os significados da interlocucdo. Mas, quando nos aventuramos nas transcri- gdes, e temos lidado com culturas bastante diferentes, como lidar um pouco melhor com essas diferengas? Fica um conflito grande entre propostas de uma transcriagdo do texto. Para nés, parece mais importante manter as narrativas dentro dos scus proprios significados, da sua linguagem original, para captar melhor essa cultura que estamos buscando entender. O que sua experiéncia tem mostrado sobre isso? AP: Nao o suficiente. Basicamente, minha primeira reagdo ... Ora, minha primeira rea- 38 ¢ao ¢ ... uma entrevista que ... Percecbem com que desenvoltura estou me expres- esté procurando expressar-se c, de alguma indo? ... qualquer pessoa, ao falar, io — 6 como um texto, com forma, aquilo que obtemos — e j4 fiz esta compara todos os rascunhos ¢ material preparat6rio nele inclufdos. Todos n6s, quando falamos, buscamos a expressao, 0 significado, procuramos a palavra cerla €, quando fazemos a transcrigao, cncontramos nao apenas 0 termo correto — se 6 que chegamos a tanto — como também todas as falhas, tod: Com fre- tentativas, todas as hesitagdes, todos os erros. E 0 que fazemos entio qiitncia, menciono arte, neste contexto, porque muitas das decisdes sAo intuitivas © ligadas a scu gosto, a sua sensibilidade, a scu instinto em relagio ao Proj. Histéria, Sao Paulo, (15), abr. 1997 significado que o entrevistado tinha em mente, por um lado. Por outro, dizem respeito, ainda, ao tipo de projeto que voct est realizando. Se estiver desenvolvendo um trabalho sobre, por exemplo, “A Ret6rica da Orali- dad as hesitagdcs. Pode ocorrer, tambGm, que seu projeto tenha um tema hist6rico, como por exemplo “O Desfecho da Greve de 1922”. Provavelmente desejaremos encontrar o resultado da busca de significado empreendida pelos entrevistados. Na maioria dos casos, temos em vista os dois. Queremos incluir, em nosso texto, tanto , como as informacées: “Em 17 de margo de 1949, saimos da fabrica e tomamos as ruas, para fazer um protesto contra a OTAN.” — estou citando as palavras textuais de uma entrevista. Desejamos obter essas informagdes. Em con- trapartida, precisamos Iembrar nossos leitores de que aquela foi uma exposigio oral, exatamente porque este é um status epistemoldgico das informagées que thes estamos dando: foram-nos fornecidas em didlogos, exigiram um certo esforgo, cons- tituiram uma apresentagao. torna-se sumamente importante incluir todo o material preparatério, todas as conclu: Em suma, fazemos cscolhas. De alguma forma, cm meu trabalho — e quasc nunca me dou por satisfeito com isso —, 0 que fago é tentar extrapolar o texto final dos entrevistados, quando efetivamente pertinente, ¢ procurar aqueles trechos em que a tentativa de criar um texto foi mais convincente, mais perceptivel c também mais objetiva. E preciso lembrar que qualquer transcrigéo torna-se, automaticamente, uma forma de manipulacdo. Simplesmente nio acredito na transcrigao perfeita, nao acredito sequer na fita perfeita. Ouvimos, ontem, que muitas das questées morais dependem do posicionamento do microfone, do mimero de microfones usados. Simplesmente nao existe nenhuma reprodugao neutra de qualquer evento. Em vista disso, creio que nao deveriamos nos empenhar tanto em conseguir a neutralidade, a reprodugio mas em deixar clara a manipulacdo e, por conseguinte, buscar menos do que a represcntagiio. S40, porém, coisas diferentes, Representar graficamente uma exposigao oral nfo significa transcrever todos os pigarros ¢ hesitagdes. Lembro-me de um periédico muito cientifico sobre historia, da transcrigéio muito cientifica de uma entrevista, em que transcrevem palavra por palavra e, entdo, entre parénteses: (0 entrevistado tosse). Ora, era esta minha per- gunta: seria uma tosse denotativa de ironia, estaria ele tendo um infarto? Qual a ssa losse? Isso nos faz retornar responsabilidade, A pessoa que tem a Tuma Uranscrigéo neutra esti fugindo a responsabilidade de nos fungao di pretensdo de f Proj. Histéria, Sado Paulo, (15), abr. 1997 39 40 contar 0 que aconteceu. Muito bem, conte-nos 0 que aconteceu, a tosse foi irénica, © entrevistado engasgou ¢, depois, recomegou a falar. No caso de um idoso, torna-se importante ter em mente que cada palavra dita por ele representa um esforgo. Nece: itamos da voz do historiador para interpretar tudo isso. Além do mais, sem diivida, em todas as transcri ponto-c-virgulas ... muito bem, isto tudo esta na-fita, isso tudo é fruto de nossa interpretacdo. E, enfim — fato de suma importancia.—, todas aquelas transcrigdes perfeitas, neutras e totalmente objetivas so ilegiveis. Ora, isso nada tem de obje- tividade, @ falso, € deturpagdo, ou seja, voct entrevista uma pessoa que lhe faz uma narrativa maravilhosa e transforma-a em uma transcrigéo horrorosa. E per- gunto: isso é fidelidade? Nao, é uma deturpagdo do documento. des, usam-se virgulas, pontos, Portanto, 0 que precisamos fazer? Mais uma vez, contrabalangar necessidades ou requisitos opostos — ou que essa pessoa realmente disse? O outro requisito consiste em como as palayras do entrevistado afetam aquelcs que as ouvem e, por conse: guinte, caso ele tenha feito uma narrativa maravilhosa, precisamos ter um maos um texto maravilhosamente bem escrito. Como consegui-lo? E certo que nao con- cordo com a idéia de transcriagao. Se res nto: “Isto foi reescrito por mim”. Minha tendéncia € evitar esse procedimento, porque gosto do modo de falar das pessoas. Tevo algo, acres Obedego apenas a uma regra e reconheco que nio é suficiente: jamais atribuo a alguém palavras que nao tenham proferido. Jamais. As vezes, insiro vocabulos entre parénteses, ou entio tomo todas as liberdades possiveis: corto € edito. Se alguém houver dito algo logo no inicio da entrevista e, duas horas depois, completar aquela afirmativa, talvez 0 texto se tome mais claro se essas duas meias sentengas forem unidas. E sinto-me culpado por fazé-lo; nao me dou ao trabalho de contar aos outros como agi. Limito-me a informar de antemao: “Veja, tomei todas essas liberdades” — e retornamos ao outro problema — “se vocé quiser saber 0 que realmente aconteceu, a fita e a transcrigao completa esto 4 sua disposigao”. Porém, a apresentago publica relaciona-se a outro requisito ético muito importante, ou seja: “As pessoas”, disse Benjamim Franklin, “néo se vestem para receber visitas da mesma maneira que se vestiriam para ir a um baile”. Muito bem, as pessoas falam de um determinado modo quando esto na cozinha de casa e, depois, veem suas palavras publicadas em um livro, e Ihes desagrada aparecer em ptiblico de formas diferentes daquelas que desejariam. Gostam de usar as melhores roupas que Proj. Histéria, Séo Paulo, (15), abr. 1997 tém. Isso nos leva de volta ao relacionamento individual entre entrevistador e entrevistado, Segundo minha experi¢ncia, por ndo ter verbas, no tenbo tempo para mandar de volta ao entrevistado, antes da publicacdo, partes da entrevista que constariio do livro ou do artigo na versio final. E peco-lhes que, se tiverem quaisquer comen- tdrios, que os fagam. Isso ndio é suficiente, eu deveria conseguir uma versio as: : “Eu nao falo desse jeito”. E segue-se a nada, mas ... a reagéo mais comum pergunta: “Qual minha relacdo politica com essa pessoa?”, “E amiga ou inimiga?”. ‘O que vocé quer dizer com Caso seja inimiga, envio-Ihe a fita de volta e indag: ‘nao falo desse jeito’?”. Se a pessoa insistir, é claro que aceitarei suas corregdes. Minha melhor experiéncia a esse respeito foi com um operério, que também fazia parte da CAmara de Vereadores de Terni, ¢ contou uma 6tima historia, basicamente em dialeto, de como, na infancia, ele e outras criangas apanhavam pedagos quei- mados de carvio do depésito de lixo da fabrica ¢ levavam-nos para casa, a fim de se aquecer. Foi uma excelente hist6ria, realmente, sobre uma fase do crescimento de uma crianga da classe operdria em Temi. E ele a contou — todos a contaram —, 0 no livro, mandei-lhe mas ninguém tao bem quanto ele. Portanto, incluf sua vers © rascunho, e ele me telefonou, afirmando: “De jeito nenhum you-me expor ao publico assim”. Respondi: “Ora, mas foi desse modo que voc’ falou”. “Foi, Mas foi com vocé que falei desse jeito, nao em ptiblico”. Concordei: “Tudo bem, entao vamos conversar a esse respcito”. E fui visité-lo. Recebeu-me, de terno ¢ gravata, em um daqueles grandes escritrios de vereadores. Eu estava de jeans, vestido como um intelectual, e ele, como exe- cutivo, Levei comigo 0 texto e sugeri: “Muito bem, vamos corrigi-lo; vamos relé-lo e fazer as corregdes” — e comecamos. Lembro-me de que, enquanto estdvamos envolvidos naquele processo, eu invariavelmente usava a forma mais pomposa a fim de mudar as palavras usadas por ele. E, quanto mais prossegufamos, mais constrangido cle ficava, pois em hipétese alguma fala daquela maneira, até que encontramos a expressio-chave: andavo a carbonella, que significa, “eu apanhava pedagos de carvio”. E, em dialeto, ele dizia andavo a carbonella. “Tudo bem”, concordei, “vocé provavelmente deseja substituir essa expressao”, ¢ sugeri —- como eu poderia explica-lo a vocés? — “Eu costumava passar pela fabrica ¢ pegar car- vao”. E, quando aquiesceu, perguntei, olhando-o; “Era isso o que vocés faziam? Proj. Histéria, Sdo Paulo, (15), abr. 1997 41 , “Deixe como esta” — € E respondeu, “Nao, andavo a carbonella.” E rea: assim ficou No entanto, esse cpisddio refere-se, na verdade, A questéo de reconhecer de que forma alguém deseja mostrar-se ao ptiblico. E, na maioria dos casos, consegui convencer os cntrevistados de que, ao se exporem cm ptiblico usando a linguagem e discurso cotidianos, tornariio visivel a dignidade desses dois elementos. Nao ha necessidade de se disfargarem para apresentar-se ao publico, podem fazé-lo da forma que realmente so. E, como muitas dessas pessoas sto bastante orgulhosas, a técnica funcionou, As piores reagdes, pela minha experiéneia, foram de integran- tes da classe média, ou de politicos. P: Gostaria de fazer uma colocagio para andlise sua. Sou assistente social ¢ cntrevisto pessoas ha 21 anos, pacientes, pessoas doentes. Entio, recentemente entrei na Hist6ria Oral semestre passado, com a Maria Ester Fernandes, fazendo mestrado, ¢, agora, idade da pes- Zuma reflexao este semestre, ouvi muito sobre transparéncia, o saber ouvir, a histori soa, pela Maria Liicia Martinelli, também assistente social. Entio, f da minha vida como entrevistadora ¢ também comecei a utilizar mais um recurso aram ¢ 0 achei muito bom — o poder da mesa, Essa mesa 4 qual voce que me pas esté, por exemplo, significa para nés que voc’ sabe mais do que nés, aqui, ni ic momento. Entio comecei a cntrevistar as pessoas do jeito que voc’ csté sentado, girando a minha cadeira ¢ a cadeira do paciente do lado, af A sua esquerda. E percebi que essa proximidade gerou a transparéncia de que se falou aqui, mencionada também pelas minhas professoras, ¢ 0 saber ouvir. Quarta-feira passada, uma pessoa conversou comigo uma hora © meia e ele tem problemas de memoria, de csquecimento, pois sofreu um acidente. Mas, no fim, disse-me: “Mas como cu consegui falar tanto tempo, ¢ sem me esquecer de nada. Entio, cu s6 quis fazer essa colocagiio para ver a importincia de o profissional estar proximo, cssa transparéncia que foi colocada aqui, o saber ouvir, a importancia disso. E dia 27 do més passado, fiz uma palestra sobre diabéticos para uma equipe inter- disciplinar de Bauru, onde trabalho. Falci sobre isso ¢ fui duramente criticada pelos médicos, por alguns deles, que nao accitaram de jeito nenhum © que cologuei: que essa mesa af significa poder. 42 do Paulo, (15), abr 1997 oj. Historia, AP:Basicamente, concordo na integra com vocé. Ha um artigo fantastico, escrito por William Labov, que é sociolingiiista ¢ cstuda a linguagem usada nos guetos de negros, em Nova York. E ele discorre sobre as teorias da chamada “caréncia cul- tural, psiquica ¢ lingiifstica das criangas dos guetos”. Essas teorias predominaram nos anos 60, nos Estados Unidos, ¢ foram aplicadas, na [télia, a algumas criangas de familias pobres. E, infelizmente, o problema parece estar chegando, aos poucos, ao Brasil. Foram elaboradas, em grande parte, com base na situacao de entrevista. Segundo 0 articulista, toda a teoria formulada sobre © ingi¢s falado pelos negros como uma linguagem cm que faltava expressiio, bascava-se no fato de os lingiiistas, ntarem-se do outro lado da mesa, exalamente como vocé descreveu. E o que fi ? Foi andar pelas ruas ¢ descobriu que rotuladas de “lingiiisticamente carentes”, que no haviam conseguido construir uma sentenga sequer nos estudos por ele reali- psiclogos, socilogos que entrevistaram as criangas ele’ s mesmas cI zados, eram poctas, cram criadoras, ou seja, cram artistas do “rap”, antes de este 2 difundir, ¢ as origens do “rap”. Portanto, 0 posicionamento da mesa 10 es: em uma situagdo de entrevista .. Bem, vou colocar a questo de outro modo. A palavra entrevista abrange uma série de coisas: as pessoas falam de entrevista para conseguir emprego. Nesse caso, voce se senta de um lado da mesa, com uma pessoa 0 olhando, € vocé provavelmente também a csté olhando ¢ pensando: “Sera que eu gostaria de trabalhar com ela?”, mas voct esta sendo observado e acredito que a fungao da mesa ¢ evidenciar que esta sendo observado. Nesta situagio, infclizmente acontece que eu estou sendo observado, E uma longa historia, Bem a palavra entrevista tem uma série de acep- ges. Abrange 0 exame, todos os tipos de exame sao denominados entrevistas ¢ sja, algo abrangem até mesmo aquelas que voce faz como assistente social, ou diyerso do que realiza como historiadora oral, ereio eu. Esté procurando coisas diferentes, tem cm mente um projeto diferente. Melhor dizendo, a palavra entrevista é genérica, no entanto, em uma grande diversidade de situagdes, tem 0 significado contrario, € uma perspcctiva unilateral, esta rclacionada a apenas uma perspectiva, nao a perspectiva de ambas as partes. Assim sendo, acredito que devemos comegar a discriminar situagdes de entrevistas. Acho que seu comentario foi muito proveitoso, porque ... bem, jamais me sentei do outro lado de uma mesa para entrevistar alguém, exceto quando, na condigao de professor, dou exame aos alunos, situagdo em que me sinto muito mal, porque Proj. Histéria. Séo Paulo, (15), abr. 1997 43 sei que mentem para mim, dizendo que minhas aulas sdo 6timas e estou consciente de que nao sio e de que eles concordam comigo, mas contam-me mentiras, pois ha uma mesa nos separando. Contudo, 0 posicionamento da cadeira, por exemplo, tem importancia simplesmente critica. Mas é a mesa da pessoa e nao a sua. Assim, na maioria das situacdes de entrevista de Histéria Oral, em outras palavras, vocé est4 no territério dos entrevistados; nao sao eles que est4o entrando em seu terri- t6rio. Acima de tudo, cabe a vocé ser bem-educado, eles é que estao sendo hos- pitaleiros, conseqiientemente, isso é muito relevante. Também neste aspecto, nada sei sobre proximidade ou distanciamento fisico; tra- ta-se, a meu ver, de algo subjetivo, porém, o olhar, por exemplo, é de grande relevancia, 0 contato visual, 0 entrevistador deve ficar sentado em uma posi¢ao tal que lhe permita olhar nos olhos do interlocutor. O posicionamento do microfone é de importancia critica. Ontem alguém estava falando a esse respeito, ¢ € fator simplesmente crucial. Sei, por experiéncia propria — sou pobre ¢ tenho apenas um microfone —, mas, bem no inicio de meu trabalho, eu entrevistava operdrios de fabricas e eram, em sua maioria, homens, E aconteceu de as esposas destes comecarem a falar, contando histérias das mais interessantes. Assim, logo aprendi a fazer com que sentassem na sala e a colocar 0 microfone pr6ximo da mulher. Sem pensar e sem sequer pedir licenga, 0 marido pegava 0 microfone, ¢ eu tentava tomd-lo de suas maos .., A mulher normalmente nada fazia, pois a luta era entre mim e ele para decidir a quem eu ouviria. Por esse motivo, © microfone, a cadeira, todos esses clementos séo, a meu ver, extremamente rele- vantes na criacdo dessa igualdade tempordria e ut6pica, ou pelo menos expressando © desejo comum de uma igualdade ainda inexistente — pois deveria existir. Quanto ao ambiente fisico, acredito que vocé esté coberta de razao. P: Vocé falou de objetos que interferem, de uma certa forma, na relacdo de entrevista. Eu queria perguntar sobre outras coisas que talvez interfiram. Por exemplo, fiz um trabalho sobre a andlise do processo produtivo de uma fabrica de tecidos, em Jacarei, c, basicamente, eram todas mulheres, as trabalhadoras. Entdo, por ser mulher também, a minha relagao inicial e 0 contato foram bastante facilitados. Depois, fiz outro trabalho sobre andlise do processo produtivo, também, de uma fabrica de pianos, onde quase todos os operdrios eram homens e todos mais velhos do que eu. Entio, percebi uma diferenga, uma dificuldade muito sutil em lidar com 44 Proj. Historia, Sao Paulo, (15), abr. 1997 a entrevista € com a situagao de entrevista, porque todos os indices eram praticamente os mesmos, mas 0 que mudava era minha relagdo, ou a minha condigdo diante dos entrevistados. Gostaria que vocé comentasse um pouco a esse respeito. AP: Bem, para mim, as interferéncias e os obstéculos que vocé enfrentou representam um obstaculo nao para a pesquisa, mas sim para o resultado desta. Em outras palavras, uma das conclusées a que parecemos ter chegado com esses projetos é que as atitudes de operdrias e operarios sao diferentes, e essa constitui uma des- coberta cultural de destaque, apesar de estarmos conscientes dela. Entretanto, quan- do analisamos 0 elemento respons4vel por dificultar, por diferenciar a entrevista que um homem faz com uma mulher, ¢ aquela que uma mulher faz com um homem, conseguimos importantes insights na cultura. E, como dizia Fidel Castro, “Vamos fazer da derrota uma vit6ria”, transformamos em vantagens 0s obstéculos, no tipo de trabalho que realizamos. Sempre que algo interfere ... considero maravilhosas as interferéncias. Sempre que algo se interpde ¢ muda a situagéio, muda o que fazemos, ou 0 que as pessoas dizem, nao ha problema, pois se trata de algo im- portante na cultura e, portanto, de algo que descobrimos, Todos os obstaculos constituem descobertas. Exemplificando: e quanto ao fato de as pessoas nao se lembrarem? Esse nao ¢ um problema, € 0 insight que consegui- mos, pois 6 memé6ria 0 que estamos aprendendo. E 0 fato de as pessoas mentirem? E o fato de as mulheres se recusarem a me contar determinadas coisas? Muito bem. Quais sio as coisas que as mulheres sc recusam a contar a um entrevistador? Tais coisas provavelmente sao definidas, na vida das mulheres, como medo, que nao é revelado a algum desconhecido, a um homem desconhecido. Por outro lado, quais sao as coisas que elas contam para mim, ¢ nao para os respectivos maridos? Isso acontece com freqiiéncia — as pessoas fazem, a um desconhecido, revelagdes que nao fariam nem mesmo a um vizinho. Na verdade, uma das vantagens que tive em Kentucky foi a de nao ser norte-ame- ricano, pois os habitantes locais contam, a alguém de um lugar exGtico na Europa, do qual nem sequer ouviram falar, fatos que nao confiariam a alguém de Chicago ou Nova York porque, nesses lugares, as pessoas sao estereotipadas — e, em Roma, isso nao acontece. Mais uma vez, portanto, quais sao os fatos revelados quando conversamos com um estranho, mas que representam tabu em nossa propria co- Proj. Historia, Sdo Paulo, (15), abr. 1997 45 munidade? Sobre que assuntos vocé pode falar, em seu circulo de amigos, mas nao menciona a um desconhecido? Acredito que devemos nos esquecer do mito de obter as informagées totalmente completas, ou de esgotarmos nosso assunto com os entrevistados. Sabemos que ninguém consegue obter todas as informagGes a nosso respeito, portanto, por que © farfamos com eles sabem, um fragmento daquilo que so. E acredito que deverfamos nos dar por Invariavelmente conseguiremos um fragmento daquilo que felizes em consegui-lo; precisamos empenhar-nos em obter mais informag e aceitar, Ouvir € uma palavra tio importante como aceitar, 0 que nao significa pensarmos que os entrevistados sempre tém razio. Aceitar o fato de que podem estar enga- nados, aceitar os siléncios, aprender com estes. Trata-se do relato deles, daquilo que nao sabemos. Os siléncios — ensinou-nos Luisa Passcrini, hd muito tempo — tém tanta importancia quanto as palavras, em todas as formas de comunicagao. Acabo de receber um livro maravilhoso sobre o significado ¢ a pedagogia do si- léncio. Assim, acho que aquilo que deverfamos fazer é ... quando me deparo com um muro ou encontro sélida resist@ncia, nao interfiro, é melhor deixar como esta, em minha opiniio. P: E 0 seguinte. Trabalho com imigrantes e — nao sci se vocé sabe que Sao Paulo reccbeu mais de setenta grupos de imigrantes — de diferentes nacionalidades c ctnias. E essas pessoas gcralmente, as vezes com mais de noventa, mais de ccm anos até, ainda mantém o sotaque forte, algumas palavras, o jeito de se expressar verbalmen como se quisessem, sinto as ve7es, manter sua memoria viva, certo? Entao, a questao da linguagem 6 um problema e, a0 mesmo tempo, umn desafio no meu trabalho. Eu queria saber como vocé lida com isso, na Itélia, onde existe essa questao dos dialetos: como € que voct resolve essa questo — vocé incentiva a pessoa a se expressar no seu dialeto original, ou nao? AP: Ora, depende do dialeto a que vocé se refere. Como moro ¢ trabalho na regidio central da Italia, 0 dialeto regional é praticamente o idioma nacional. Se trabalhar em Temi, Roma, ou na Umbria, encontrara uma continuidade da linguagem padrio e do dialeto ouvido nas ruas ¢ sao compreensiveis para ambas as partes. Portanto, no se trata stou em uma situag’o em que... bem, se vocé trabalha na Toscana, 416 Proj. Historia, Sao Paulo, (15), abr. 1997 de um problema concreto, no sentido de que, caso se expressem em dialeto romano, ou mesmo no dialeto de Temi — que ¢ famoso por ser feio —, as pessoas mesmo assim se entendcrio. Ha algumas palavras que sio diferentes ¢, nesse caso, voc’ pode inscrir uma nota de rodapé, ou pedir a pessoa, durante a entrevista, que explique o significado ¢, cntdo, incorporar a explicagao ao texto, Eu proprio, no entanto — c ja fui criticado eto, ou scja, dou aulas em inglés perfeilo, por isso —, falo basicamente em d quer dizer, em inglés razoavel ¢ ainda em italiano com sotaque cxtremamente re- gional, Na verdade, percebi que, quando lecionava na Toscana, meus alunos tinham dificuldades para entender 0 que cu dizia, Portanto, para mim, é natural expres- sar-me, recorrendo aquela varicdade de linguagem que nao é rigorosamente um dialeto, mas um ponto intermedifrio: dialeto, coloquial ¢ padrio. E, assim, pelo fato de cu cmpregar esse tipo de linguagem — e, acredito, nio 0 fago adotando emprego a linguagem do cotidiano, aquela que uma atitude paternalista, ou sej jando nesse idioma, Essa constatagao, portanto, autoriza usaria se, agora, estivesse fi qualquer pessoa que csteja conversando comigo a falar da maneira que bem en- tender. Bem, cometi um erro crasso quando citci os nomes de cinco pessoas que se dedicam & Historia Oral na Itélia, pois ha mais um profissional — ¢, provavelmente, € 0 io da regido ocidental dos Alpes, perto melhor de todos: Nuto Revelli — origina de Cunco, no Piemonte. Ele realiza um trabalho fantistico com os montanhescs da regifio, Ele faz as entrevistas em dialcto piemontés formado em parte por dialetos franceses e, em parte, por italianos; ¢ os habitantes de outras regides néio conseguem entendé-lo, Portanto, cle o traduz naturalmente para o italiano. Quase todos aqueles que tabalham com Luisa Passerini em Turim, onde ela en- trevista operarios ¢ outras pessoas, so obrigados a fazer 0 mesmo. As vezes, dei- xam no original determinadas palavras ou expressGes que nfo tm tadugao. Por “Eu nasci”, pois ne exemplo, em picmontés, ninguém diz: s palavras h4 uma conotagio muito sexual, mas: “Fui comprado, minha mae me comprou”. Nessas situagées, os historiadores incluem a tradug%o, mas conservam a expressao “Mia madre mi ha comprato”, ow se limitam a deix: no original. O resultado, em minha opiniio, nio G muito bom, porque faz a expressiio destoar do flux do Proj. Historia, Sao Paulo, (15), abr: 1997 47 48 discurso e, de alguma forma, nele cria uma ruptura. Por outro lado, acho que ¢ 0 uinico recurso de que podem se valer, caso desejem que seu trabalho seja lido a cerca de 30 quilémetros do local onde realizaram a enurevista — s6 lhes resta a opgdio de traduzir. Quanto aos imigrantes, a situagaéo € muito interessante porque, por um lado — mesmo tendo muito pouca experiéncia com italianos que emigram para outros pai- ses, acredito que, em grande mimero de casos —, a linguagem se tornou hibrida. Ontem 4 noite, eu estava na Cantina Posillipo ¢ havia, em um jornal italiano, um artigo fascinante escrito em italiano, cujo autor evidentemente escrevera pensando em portugues, usando palavras cm italiano. E era fascinante porque algumas das express6es italianas empregadas por ele j4 se haviam tornado obsoletas. O fato é que muitas vezes encontramos um processo de mudangas c inovagées na linguagem, a incorporagao de locugGes, de expressdes idiomaticas e de estruturas sintaticas do portugués. Por outro lado, paralelamente a essa notavel inovacao, verifica-se um marcante efeito conservador, pois as inovages que estio ocorrendo na Itilia ndo afetam o idioma que os italianos estéio falando no Brasil. Assim, percebemos que a linguagem mudou, mas que as diferengas no foram as mesmas, ¢ descobrimos que alguns aspectos sao mais anligos ¢ outros, mais forgados. No caso daqueles que emigram para a Italia — pois se tornou um pais para 0 qual as pessoas emigram — fiz diversas entrevistas, a bem da verdade, com escritores norte-africanos ¢, inclusive, com um imigrante brasileiro que escreveu um livro. , porém, € outra histéria. Bem, 0 que se verifica nesse es Bo esforgo de falar 0 italiano com a maior perfeigio possivel, a fim de eliminar, dessa decla- ragdo publica, qualquer vestigio da lingua materna. A meu ver, essa é uma fase em que ¢: buscando legitimidade, em que estao tentando provar que sabem falar o idioma tio bem quanto qualquer outra pessoa, ¢, por isso, falam um italiano simplesmente impecavel. Estudo literatura afro-am ricana, e os primeiros textos desta foram redigidos em perfeito inglés liter: Foram necessdrios um enorme esforgo ¢ uma grande autonomia para comegar a escrever 0 inglés auténtico dos negros. O processo demorou quase duzentos anos; espero que os afro-italianos que agora estéo se mudando para a Italia consigam escrever de forma idéntica 4 que falam, antes que dois séculos transcorram. En- tretanto, no estagio atual, 0 que conseguimos nas entrevistas € um italiano perfeito, 0 mais perfeito possivel. Durante a entrevista, 0 esforg¢o que fazem nao visa mostrar Proj. Histéria, Sdo Paulo, (15), abr. 1997 que ainda se lembram da lingua materna. Afinal, no caso da Itélia, todos emigraram ha apenas dois, us ou cinco anos ¢, em hipotese alguma, terio esquecido um dialeto africano, ou 0 drabe. Portanto, néo pretendem dar a impressiio de que es- queceram a lingua materna, mas de que passaram a dominar o idioma do pais para © qual emigraram. Parece-me que aqui a situagio ¢ de outro tipo, ha mais sincre- tismo, hibridismo e meméria retentiva. P: Para scu conhecimento, aqui, no Brasil, nao sci como falariam os professores de portugues, eu lido com pessoas do pais inteiro ¢ j4 percebi que nado gostam de que a gente imite 0 “ba!”, 0 “barbaridade, ché!”, 14 do Sul, nem o “oxente”’, do Nordeste. Entio, no gostam que a gente faca isso, mas que a gente fale normalmente, como E o que tenho sentido na minha pratica. voc’ disse. AP: Sim, € sumamente importante, como ja disse, no simular igualdade, de acordo com 0 que estava sendo discutido ontem, mas buscar igualdade; portanto, tentar falar 0 dialeto do entrevistado, quando o seu é diferente €, a meu ver, muito agr sivo, ou seja, voce esti se dirigindo a eles como se os rebaixasse. Se vocé falar espontancamente no proprio dialeto, se for uma atitude natural, entio provavel- mente ser a melhor alternativa. Caso se cxpresse com naturalidade em linguagem literaria, use-a. Para mim, o importante ¢ nao parecer superior em relagio a pessoa com que estamos conversando ¢ nao fingir algo que no somos, limite-se a agir com espontaneidade e, talvez, seu interlocutor proceda da mesma maneira. AP: Grazie! Proj. Histéria, Sdo Paulo, (15), abr. 1997 49

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