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Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna Aamericanizagao (perversa) da seguridade social no Brasil, Estratégias de bem-estar e politicas ptiblicas & @ Turens Universipane Canorpo Manpes-UCAM Editora Revan Copyright © 1998 by Maria Lucia Teieira Wemeck Vianna. ‘Todos os direitos reservados no Brasil pela Editors Revan Lida. Nenhuma parte desta publicagio poderé ser reproduzida, soja por meios mecinicos, letrGnicos tu via copia ‘xerogrifiea sem a auforizagio privia da editors, Reviszo Wendell Sevibal Roberto Tebxera Capa André Dorigo Lica Rubinstein Impreseto (Eonpope Ott Tigre apts paginacan lens, po Plating 10/2) Divisio Grafica da Editora Revan CIP-Brasi. Catalogagio ma-Fonte Sindicato Nacional dos Bditores de Livros, Rj. EE rere ae asd eee 716s Vianna, Maria Lucia Teixeira Wermeck ‘A americanizagio (perversa) da segaridade sosal no Brasil: Estatéglas de. bem-estar« politieas pablias: Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna Rio de Janeiro: Revan: UCAM, IUPERY, 1998, 34 edigSo, ectemvo de 2011, 288. neha} anexes e bibliografia ISBN 85-7106 -141-6 1, Providéncia social - Bras 2. Asisténcia social - Brasil . 3. Politica social. 1 Instituto Universtirio de Pesquisas do Rio de Janeiro, I. Titulo. 98-0566. DD 368.400981 DU 3684¢81) sg0498 200408 oos04s. (Covedigfo com o Instituto Univorstirio de Peaquisas do Rio de Janeiro - IUPER), da ‘Universidade Candido: Mendes-UCAM, Capitulo 4 O processo de americanizacio da protecao social para os brasileiros ‘A Constituigao Brasileira de 1988 consagrou a expresso Seguridade Social, até entdo oficialmente inexistente, para consignar uma padrao de protecio social que se queria abrangente e redistributivo, de certa forma coroando um ciclo de crticas e debates que desde fins dos anos70 se desen- volvera em torno da Previdéncia*. Na agenda da transicéo para a demo- cracia, as politicas sociais se revestiram de um carater salvacionistat ~ expresso no slogan adotado pelo primeiro governo da Nova Reptiblica 0 “tudo pelo social”, para elas convergindo 0 “impeto reformista” do mo- ‘mento?. O conceito de seguridade, a universalidade da coberturae do ater dimento, a uniformidade dos beneficios, ascletividade e a distributividade da protecio, a irredutibilidade dos valores pagos, a equidade na forma de participacao no custeio, a diversificagio da base de financiamento, 0 envolvimento da comunidade nas decisoes e o cardter democratica e des- centralizado da gestdo foram principios inscritos na Carta que, sem diivi- da, responderam aos anseios mudancistas manifestos por varios segmen- tos da sociedade. Pode-se afirmar, assim, que o Brasil fez a sua reforma a inglesa, elim nando os fundamentos bismarckianos de um sistema montado nos anos 30 com as caracteristicas segmentares do aleméo*. Contudo, a despeito das britinicas intengdes reformistas e da proposta beveridgeana sancionada constitucionalmente, 0 modelo brasileiro de protecéo social ver se tor- nando, na pratica, cada vez mais “americano"®. Pois, ainda que formal- mente universais ¢ imaginadas como indutoras de cidadania, as provisées piiblicas se resumem a parcos beneficios para os pobres, enquanto ao mer cado cabe a oferta de protecao Aqueles cuja situagéo permite a obtencio de planos ou seguros privadas. Este capitulo examina o movimento que levou & americanizagao da seguridade social brasileira, americanizagao perversa, no caso, nao s6 pelo ‘motivo dbvio do tamanho da pobreza como porque, ao contrario do que acontece nos EUA, no Brasil, o aparente nao-planejamento da evolugao do sistema resultou em total desregulagao das relagoes publico/privado. Pre- tende-se mostrar que a modernizacao realizada pelo autoritarismo im- plantado em 1964 pavimentou simultaneamente os caminhos da luniversalizacao e da seletividade; a ambos desvirtuou, todavia, estimu- Jando a légica particularista dos interesses num contexto de excluséo ¢ arbitrio, o que enviesou toda a politica ptiblica no pais. processo que aqui se entende sob a metafora da americanizacao & absolutamente nitido no Ambito da sauide e, por isso, a trajetoria das poli- ticas para esta drea sera analisada com maiores detalhes, a titulo de exem- plo, Naose trata, porém, de um estudo especifico sobre o tema. Ao contra- rio, 0 objetivo consiste em tracar as linhas gerais que marcaram a expan- so do sistema de protec3o como um todo ~embora se saiba que os setores que compéem apresentam diferencas* — para que se possa, enim, discu- tir 0 essencial: 0 “fracasso” das reformas operadas no pés-auloritarismo” as perspectivas da seguridade num pais onde se encontram ausentes os ‘elementos responsdveis pelo consenso a respeito da “concepgao europeia” de Welfare State. Convém ainda registrar a imprecisdo assumida (se bem que de modo algum inédita, como jé sugerido) no emprego da terminologia indicativa do objeto focalizado. Estado de bem-estar ~ expresso que muitos consideram_ descabida no quadro brasileiro —, sistema de protecéo social, seguridade, ¢ mesmo previdéncia social, so categorias usadas a0 longo do texto para designar o conjunto de politicas piiblicas destinadas a “corrigir” as distor- ‘gées sociais oriundas de uma estrutura produtiva voltada para o mercado. Esta fluidez conceitual, justificével pelo fim que se quer atingir, néo deve obliterat, porém, que a andlise esta centrada na questdo da seguridade’, em. particular no que concerne a satide e & previdéncia’. Assim, areas como habitagio e educagao, importantes na definicao de welfare em varios paises, nao serio contempladas, ainda que se insinue constantemente que se encon- tram longe da imunidade aos processos descritos" Da ditadura estadonovista ao autoritarismo militar: um resumo. da evolugao do sistema A literatura é quase unanime quando periodizaa historia da seguridade social brasileira: criada no primeiro governo Vargas (1930-1945), se expan- de fragmentadamente durante as décadas seguintes; uma nova fase se inau- ‘gura a partir de 1966 ~ com a unificagdo dos diversos Institutos que compu- ‘ham o sistema ~ quando, jé na ditadura militar, sofre uma série de mudan- 139 «a8 até que acrise, no inicio dos anos 80, aprofunda a necessidade da reforma que a Constituigao consolida"*. Os autores que analisam o desenvolvimento do sistema previdenciario no Brasil reconhecem o papel modernizador nele desempenhado pelos dois autoritarismas, ode Vargas eo dos militares. Nem sempre se acentuia com a mesma recorréncia, entretanto, 0 alcance da ruptu- ra efetuada pela modernizagao autoritéria pés-64, Uma breve reconstituigdo do modelo original ajuda a elucidar a questo. 5 Institutos de Aposentadorias e Pensdes, forma pela qual um siste- ma nacional de previdéncia gerido pelo Estado foi introduzido no pais, comegaram a ser organizados em 1933, com a criagio do IAPM (Instituto de Aposentadorias e Pensdes dos Maritimos)". Logo se seguiram 0 IAPC (Instituto de Aposentadorias e Pensées dos Comercidrios) ¢ 0 IAPB (Insti- tuto de Aposentadorias e Pensdes dos Bancérios), de 1934; 0 [APTC (Insti- tuto de Aposentadorias e PensGes dos Transportadores de Cargas), 0 JAPE (Instituto de Aposentadorias e Pensdes dos Estivadores), e0 LAPI (Instituto de Aposentadorias e Pensdes dos Industriarios) eo IPASE (Instituto de Pre- vidéncia ¢ Assisténcia dos Servidores do Estado), de 1938; e j& nos anos 50, © IAPFESP (Instituto de Aposentadorias e Pensdes dos Ferroviarios). que reuniu as Caixas de Aposentadorias e Pensdes remanescentes” . Filiando compulsoriamente todos 0s componentes de determinados segmentos do mercado de trabalho formal urbano, os LAPs foram constitu {dos como entidades autérquicas, vinculadas ao Estado via Ministério do ‘Trabalho; sob o regime de capitalizagfo, recolhiam fundos (contribuigdes de empregados e empregadores) e proviam beneficios para aqueles trabalha- dores'. De um ponto de vista global, representaram a agregagio de direitos sociais a0 conjunto de leis trabalhistas implementado por Vargas, como parte de seu projeto de reorganizagao do processo acumulativo, para enca- minhar preventivamente o confito entre capital ¢ trabalho. Em estreita ligagdo com a estrutura sindical corporativa montada no mesmo periodo", a Previdéncia tomou-se um instrumento de incorporagio controlada, defi- indo que direitos integravam o pacote da cidadania e quem a cle tinha acesso. Este arranjo, que induziu ao que se chamou a ordem da cidadania regulada (Santos, 1979), veio reforcar a estrutura de desigualdades sociais no pais: a cidadaos estratificados em categorias profissionais, beneficios desiguais. Consagrou, ademais, a excludente vinculagao entre acumulacao (a cota de contribuigao de cada categoria estava subordinada ao processo de crescimento econémiico e sinalizada pelo diferencial de salario) eequidade {a distribuigdo de beneficios era proporcional & contribuicéo pretérita). Pelo angulo dos direitos sociais, porém, mais grave do que a diferen- ciagao imposta pelo caréter atuarial da Previdéncia ~ comum a grande parte dos pafses que instauraram sistemas de protecio social nacionais por volta desta época e nos quais, seguindo as normas do regime de capita- lizagao, os beneficios concedicos correspondiam as contribuigSes efetuadas =, e do que a segmentacao corporativa institucionalizada pelos IAPS, foi a 140 acio discriminatéria exercida pelo Estado na identificagao dos cidadaos. Outorgava-se 0 estatuto da cidadania apenas a0 membros da comunida- de nacional localizados em ocupagdes regulamentadas pelos preceitos le- gais”, 0 que transformava em pré-cidadaos todos aqueles cujo trabalho a lei desconhecia: na época, além do mercado informal urbano, que continua praticamente “cesconhecido” até hoje, autOnomos, domésticas e trabalha- dotes rurais, ou seja, a maioria da populagéo™. A protecio previdenciéria, um privilégio dos incluidos, se configura vva, assim, como um mecanismo de discriminago dos “de baixo”. Por ou- tro lado, o leque variado de beneficios que cada Instituto oferecia a seus assegurados - veja-se 0 quadro 9 — robustecia 0 corporativismo no mundo sindical, pois as possibilidaces de dispor de hospital préprio, obter crédito subsidiado para compra de moradia ou conseguir melhores pensdes apa- reciam como “conquistas da categoria”. A assisténcia médica, por exem- plo, até 1945 permaneceu acessivel a poucos trabalhadores, entendida como “fim secunditio do Instituto” (no caso, oP, omais populoso dos IAPs, cujo contingente de filiados correspondia, em 1940, & metade do total de segura- dos de todas as Caixas e Institutos) e proporcionada quando houvesse dispo- ribilidade de recursos, mediante contribuigao suplementar'” . O quadro 10, embora nao leve em conta o niimero de beneficidrios cle cada Instituto, que diferia bastante, da ideia da disparidade dos respectivos gastos com satide. Em sintese, uma relagio direta e assimétrica entre o Estado (via Mi- nistério do Trabalho) e segmentos profissionais (via liderangas sindicais) presidiu a institucionalizagéo da Previdéncia Social. Concedida a prote- ‘0, a categoria ocupacional - reconhecida por tei e portanto organizada na estrutura sindical corporativa ~ recebia seu Instituto de Apasentadori- as e Pensdes, regido por regras préprias, administrado por sua propria burocracia, financiado por seus préprios recursos etc. Contudo, ainda que hierarquizadas e desiguais, as categorias legalmente existentes dispunham de capacidade reivindicatoria ¢ acesso as decisGes®. ‘Com isso, 0 poder de pressio exercido por cada um dos diferentes ‘grupos sociais paulatinamente “atendidos” se deu nao tanto para deman- dar beneficios, sendo para conseguir um esquema de protecéo melhor que ‘odos demais. Vale dizer, instalou-se a competigao entre as categorias pro fissionais com vistas a conquista de privilégios; competicio estimulada pelo Estado que efetivamente distribuia beneficios diferenciados, estratificando, sob seu controle, a clientela previdencidria. O resultado foi duplo: um conjunto confuso de normas operando padres desiguais de pro- tego e uma clientela hierarquizada, prisioneira das mediagdes corporativas inierpostas & barganha politica e incapaz de uma atuac&o reivindicatéria ‘mais consistente com o objetivo de alcancar melhorias no sistema" Tal situagio se manteve no interregno democrético que se estendeu da queda de Vargas, em 1945, ao golpe militar de 1964. O populismo entéo vigente agugou a competicao por prerrogativas entre os usuarios da Previ- déncia, na medida em que a expanso dos beneficios proporcionados por Mi re cada Instituto ocoria heterogeneamente, na estera de pressbes € acordos politicos particularizados pelo corporativismo sindicaF?. A inica mudan- Prrinfringida a esta arquitetura organizacional decor. da Lei Organica Si Previdéncia Social, promulgada em 1960, que: ‘uniformizou os beneficios | aaectidos a todos os contribuintes sem, contuido, mexer na estrulura ade ministrativa dos TAPs®. an atespeito de efetiva ampliagéo da protedscr, que implicon 0 abana fata. do ogime de capitalizacSo® eda conotacao mals abr gente adquirida pela discussio acerca da Previdénce Social, que incor- porava ecos da implementacio, na Europa, do Plane Beveridge, 0 sistema Porat n estutura segmentar com que fora coneebido. Sobrevudey 2 orporativismo estatizante condicionou esta expansso- impondo-the limi- tes desenhando suas caracteristicas:o sistema crescey incorporando ape- thas (¢ desigualmente) os segmentos situados acima de determinada linha dda pirdmide social; abaixo dela, manteve-se 2 exclusio”. A participagio inos colegiados decisores de seus Institutos sgarantia aos incorporados, ade- ‘mais, aqualidade dos servigas e os valores dos beneficios concedidos, o que ‘pudizava a divisao entre incuidos ¢ excluidos (© progressive ingresso destes excluidos ao universe da protegio previdenciaria se dard no contexto da centralizacao autoritéria do pos: FE Ao prego da eliminacio da influéncia popular, antes crescente, € do texpurgo des dispositivos de interagSo com 9 poder, dit permitiam 20 Corporativismo canalizar demandas reals dos trabalhadores, o sistema corp etlerniza e chega aos de baixo. Como se pode observar no cronologia Spresentada pelo quadro 1, anexo, apés 2 unificagio dos LAPs no INPS oes) — que, em principio, fliava & Previdencia toda @ mao de obra ur- does coh cartelra assinada, independentemente de suo colcgr ccupacional -, fornam-se também “cidadios” os ‘rabalhadores rurais, fempregados domésticos e autonomos>. Seats cy década de 70, portanto, quando os sinals a crise do F°8 ine politico se evidenciam, a Previdéncia se expande ‘massivamente e Feo jganiza sua estrutura administrativa. 4 ‘modernizagao levada a cabo por Erte segundo autorilarismo, no entanto, nao mals Se Tee pela logica da integragdo seletiva. A cobertura previdenciana s& ‘universatiza sob um ea aeie ato politico fechado, repressor das demandlas soa © aU: 30 roee de hierarquizar a cidadania, a nivela num estatuto inferior. Interesses e politicas piblicas sobrea segunda modernizagio ar toritéria do cabe aqui examinaro regime politico instaladono Bees! om 1964. [Algumas de suas caraceristcas gerais, porém precisa ‘mencionadas, porque ajudam a compor um quado de referencias Pass? ‘andlise do perfil 2 | assumido pelo sistema previdencidrio, na suposigéo de que condicionaram. as mudangas ~ profundas ~ entdo realizadas. [Nese sentido, o esvaziamento dos canais de expressao da sociedade, tipico das ditaduras, comegou cedo e se aprofundou gradativamente, ad- quirindo contornos préprios. Postos sob controle num dos primeiros atos do comando revolucionério, sindicatos e associagGes de classe ficaram ‘mercé de intervengao governamental. Uma reforma partidéria, em 1966, baniu do cenério politico as agremiagdes existentes — algumas das quais, vinham se identificando cada vez mais com causas populares ~ ¢ substi- tuiu-as por dois partidos incolores e desvertebrados. Eleigdes periddicas para 0 Congresso continuaram a ocorrer, conferindo fachada constitucio- nal aos governos de excegio; mas, destituidas de representatividade, dei- xaram de traduzir anseios sociais e se tornaram focos de corrupcio”. (Outra marca importante no contexto autoritario pos-64 consistiu na deturpacio da ideia federativa, com a centralizagio deciséria e a concen- tragdo de poder no ambito do Executivo. A desvalorizacao do Legislativo e das autoridades subnacionais significou nao s6 diminuigdo de atribuigdes e perda de fungdes (no caso do Parlamento, principalmente) como sensivel retracao de recursos nas esferas estaduais e municipais®. + Um terceiro trago que o autoritarismo imprimiu a sociedade brasilei- 1a foi a despolitizacdo das relagdes entre grupos, em particular daquelas virtualmente conflituosas. A tecnocracia transformou-se no agente de re- solugo antecipada de negociagées trabalhistas, por exemplo, através de ‘uma politica salarial que determinava indices e datas de reajustes*. Sob a justificativa da superioridade técnica dos experts, imimeras medidas - afetando milhées de pessoas, como nos casos das politicas educacionais, agricola etc. ~ foram tomadas arbitrariamente™. ‘Nao obstante, ¢ inegavel que 0 regime militar deslanchou também ‘um movimento de modernizacéo econdmica sem precedentes no pais, con- forme visto no capitulo anterior. Consolidou o capitalismo, expandiu 0 parque industrial, diversificou a estrutura ocupacional e deu certidao de nascimento a uma inédita multiplicidade de interesses. A associagao de tais caracteristicas produziu, por sua vez, determi- nadas consequéncias em termos de politicas publicas que atingiram forte- ‘mente. Previdéncia, Sem esgoté-as, a enumeracao a seguir sublinha aque- las que propiciaram a superacao definitiva do padrao de protegao social montado nos anos 30. ‘Deum angulo mais global, hé que destacar, desde logo, a cunha que se estabeleceu entre as formas de decidir a politica econdmica e a politica social. Foram agéncias de politica econdmica — formuladoras e/ou implementadoras de decisdes relacionadas com o proceso de acumulagao — aquelas, mencionadas acima, que se especializaram na intermediacao particularizada de interesses empresariais com 0 Estado, substituindo as arenas ¢ 0s canais legitimos para exercer influéncia, entao bloqueados. Nao custa repetir que no CIP (Conselho Interministerial de Pregos), no CDI (Co- 143 isso de Desenvolvimento Industrial), no CONSIDER (Conselho da In- diistria Sidenirgica), no CMN (Conselho Monetario Nacional) e em muitas utras instancias similares, segmentos empresariais se reuniam regular- ‘mente com técnicos e autoridades governamentais para deliberar sobre as, politicas de precos, industrial, siderirgica, monetétia etc. J& quanto & poli- tica social, sistemas centralizados, tecnocraticamente montados, se cons- tituiram como maquinas burocraticas (BNH, INPS) que, sem nenhuma participac3o dos interessados, fabricavam decisdes cujos efeitos alcanca- vam milhares de cidadaos®. Em poucas palavras, isto pode ser entendido como uma estatizacao deformada da politica publica, pois longe de publicizar o mecanismo decisério, 0 Estado, como decisor, confinow-se numa dimensdo estreita e particularista™. ‘A segunda consequéncia teve, talvez, mais visibilidade: a clientela da Previdéncia Social expandiu-se enormemente, nao s6 pela incorpora- ‘cdo de novas categorias, como referido acima, mas porque o crescimento econmico fez emergir grandes contingentes de assalariados dos mais diversos niveis, todos obrigados a filiagao (no quadro 12 pode-se compa- rar as décadas de 70 e 80 e verificar 0 quanto aumentou 0 néimero de beneficidrios da Previdéncia entre 1971 e 1979). Este aumento, aliado & dinimica centralizadora do autoritarismo ~ que desligou a questio previdencidria da organizacao corporativa do mercado de trabalho for~ ‘mal — propiciou, a despeito das formas e intengdes que dirigiram 0 pro- cesso, um deslocamento rumo a universalizacéo dos direitos sociais* Contudo, a disseminago de direitos nao corresponceu uma estrutura ‘capaz de assegurar 0 exercicio dos mesmos, 0 que tornou precaria a cida- dania que se universalizava. O testemunho de um técnico do INPS que vivenciou a mudanga ilustra 0 ponto: “Em 1967, 0 INPS tinha cerca de 7 milhdes de segurados, ou seja, uns 18 milhdes de beneficiarios com direito & assisténcia médica, mas ape- nas metade deles habituada a receber ou a contar com tais servigos de ‘modo regular. A outra metade provinha do IAPI, cujos beneficiarios ape- znas comecavam a tomar conhecimento dos servicos médicos da previdén- cia social quando o INPS foi criado. Estes, ao saberem que a partir de 1967 tinham direito a servigos ambulatoriais e hospitalares por conta do INPS, provocaram verdadeira avalanche de demanda sobre as unidades assistenciais que o INPS recebeu dos IAPs e do SAMDU. Estas, como erade ‘se esperar, foram incapazes de atender ao acréscimo de procura, gerando filas quilométricas que se formavam as suas portas desde a madrugada. Impossibilitada de organizar 0s servigos médicos téo rapidamente quanto a demanda o exigia, a diregao do INPS recorreu a varias medidas de expe- dientes (...) como o convénio com empresas." Fechamento dos canais de expresso partidos politicos minimizados, Parlamento enfraquecido, sindicatos controlados, movimento sociais sob suspeita ete. — e despolitizacdo das relagGes sociais foram, por outro lado, ingredientes fundamentais na metabolizagio de mais um aspecto negati- 144 vo da politica social brasileira sob o regime autoritério: sua “politizagio distorcida”. Mantida a aparéncia constitucional, com a realizagio de elei- 6es e cimaras legislativas em funcionamento, a politica social transfor- mou-se, através das imensas maquinas burocréticas que a operavam, dos cargos disponiveis e dos servigos prestaveis, no reino da politica clientelista, elettoreira e fisioldgica”. Finalmente, o efeito de maior repercussdo sobre os rumos da prote- fo social, detonado pelo tipo de modernizagio ucorrida no contexto auto- ritario pés-64, foi ter atrelado o sistema a uma légica privatizante. O al- cance € os desdobramentos desta logica merecem registro especial ¢, na confluéncia com os demais fatores referidos, sero examinados mais detalhadamente abaixo. Convém de antemao, no entanto, listar as diversas formas pelas quais a privatizacao atingiu a politica social. ‘Em primeiro lugar, pela irrestrita adogao dos critérios do mercado ou da eficiéncia empresarial na gestéo dos organismos piblicos criados para implantar programas sociais™. A “terceirizagao”, como sugerido na citagao de Bastos (1979) transcrita acima — contratagio de clinicas e hospitais parti- culares para ampliar a rede de atengio médica sem investimentos publicos =, constituiu uma segunda faceta da privatizago. Outra foi a reciclagem do dinheiro piiblico: fundos instituidos para financiar a protecao social (FGTS, FAS, PIS/PASEP) que acabaram sendo desviados para outros fins”. O es mulo ao abandono dos servigos piiblicos, via particularizagio dos progra- ‘mas (0s convénios-empresa, por exemplo)® e sobretudo pela insuticiéncia do alendimento®, atuou como fator adicional da dindmica privatizante. Forjando a saida: 0 exemplo das politicas de satide © autoritarismo militar rompeu com padrao de protecéo social construido nos anos 30. Antes de 64, a manipulagao dos beneficios ofereci- dos pelo Estado se restringia a uma clientela que, embora pequena ¢ estralificada, estava incorporada ao universo da cidadania, participando, politicamente inclusive, de decisSes importantes através de suas lideran- ‘2s, Tratava-se de um clientelismo de horizontes limitados movendo-se num leito de mao-dupla que, se dificultava 0 aumento do nuimero de cida- dios plenos®, vinha sendo aos poucos corrigido por novas demandas pro- piciadas pelo jogo democratico. A modernizacio iniciada com a criagio do INPS desmontou os mecanismos de integracao e inibiu a trajetéria alema do sistema previdenciario. Expandiu a populacio contribuinte (¢ beneficidria) mas desintegrou os esquemas associativos que Ihe assevera- ‘vam voz; e impondo a politica social ao mesmo tempo uma racionalidade privatizante ~ tecnicamente justificada® — e um papel de moeda de troca ‘no mercado politico, desencadeou a sua (perversa) americanizacao. 145 aS No campo da assisténcia médica, mais uma vez, este processo foi re: presentativo. A unificagio dos IAPs constituito primeiro passo no caminko da universalizacao, pulverizando a organizacao funcionalmente segments. da dos servicos. O resultado imediato, porém, foi uma queda da qualidade do atendimento prestado, sentida sobretudo pelas categorias profissionais mais bem remuneradas que dispunham anteriormente de um bom servigo pré- prio (como era o caso do assegurado do TAPB)*. Nas contingéncias de ampli- agio da clientela redefiniram-se as fronteiras entre os setores piblico e pri vado; duas estratégias convergentes serviram, entdo, como eixos para alavancar a intrincada engrenagem que receberia, em 1975, 0 pompaso nome de Sistema Nacional de Satide: a compra de servigos no mercado, pelo Esta- do, ea transferéncia da fungio provedora para a iniciativa privada®. ‘Comprar servicos privados, mediante formas de pagamento que se alteraram ao longo do tempo, tornou-se um dispositive crucial para a mo- dernizagéo autoritéria da medicina ptevidencidria. Contratagao de hosp tais e credenciamento de prestaciores passaram a ser as préticas dominan- tes do INPS, substitutivas do investimento nas unidades proprias (Donnangelo, 1975, mostra que j4 em 67 cerca de 80% dos hospitals em funcionamento no pais estavam controlados pelo INPS, embora a maioria eles pertencesse ao setor privado)*. Do que decorreu em grande parte a transformagao do setor privado existente, que deixou de ser predominan- ‘temente composto por instituigdes beneficentes (em 1945, cerca de 85% da rede particular de hospitais) e ingressou com impeto na economia capita- lista. Na tabela 19 verifica-se o declinio do percentual de estabelecimentos no-lucrativos (as chamadas “misericérdias’ e os estabelecimentos fila {trdpicos em geralj, paralelo ao incremento dos lucrativos”. a recorréncia a tais praticas acabou por se estabilizar, contudo, na ‘medida em que seus limites se revelaram® . De um lado, os custos crescen- {es dos servigos comprados e as tenses geradas em torno das formas de pagamento e dos valores pagos® ; de outro, a autonomizacio cada vez mak Ordo setor privado. Vianna (1987) mostra, por exemplo, que a dependéncia ddo segmenio hospitalar privado em relagio a previdéncia diminuiu a par tir de determinado momento® . © surto de descredenciamento, uma espé- cie de contracting-out a brasileira, no comego dos anos 80 e especialmente ‘apés 0 advento da Nova Reptiblica, embora tenha sido muito divulgado pela sua ligagao com as fraudes entio descobertas, configurou-se em mu tos casos como opsao dos prestadores privados. Finalmente, amobilizacio em torno da reforma sanitéria na década de 80 contribuiu para alimentar 1 rejeigo por aquela forma de interacio publico/privado™ ‘Vai, portanto de 1967 a 1975, aproximadamente, 0 periodo dureo da forma “compra de servigos de terceiros”™. Luz (1991) 0 caracteriza comoa fase do elogio da medicina, da generalizagao da demanda por consultas ‘médicas, da difusdo da pratica médica curativa de massas suplantando de vez a médicina preventiva®. Este periodo assistiu, certamente, & sedimen- taco de um padrio assistencialista no campo das politcas de satide™ no 146 fundamental, foi, porém, aquele em que o setor hospitalar privado conhe- «eu, de fato, condigées altamente favoraveis de crescimento. segundo movimento consistiu em delegar o papel de provedor a entidades do mundo privado, mediante algum tipo de barganha. A dife- renga, face ao anterior, estava na maior retragao da responsabilidade esta- tal jd que, em vez de pagar pelos servigos~e assim de certo modo controlé~ oso setor public simplesmente transferia fungGes. De inicio, a estraté- gia se materializou no estimulo aos convénios-empresa, aproveitando su- gestdo apresentada antes mesmo da unificagao por técnicos do LAPES como solugo para ciminuit 0 Gnus do Estado e “aliviar” o provimento pabli- co, Paulatinamente, mediante incentivos direlos e indiretos, decisdes nao-decisdes, esta estratégia assumiu novas formas e converteu-se num Poderoso mecanismo de saneamento s avessas do sistema puiblico, dele expulsando os assalariados menos pobre. O primeiro convénio-empresa homologado pela Previdéncia Social foi assinado em maio de 1964 com a Volkswagen. A pratica se institucionalizaria com as normas que regulamentaram a unificacao dos APs, elaboradas no interior do Plano de Aggo da Previdéncia Social”. Os secvigos préprios permaneceriam em caréter provisério, devendo preva- lecer a utilizagdo sistemética dos servigos de terceiros, observada, em prin- cipio, a seguinte ordem de prioridades: 1) servigos médicos das empresas mantidas pelos érgaos classistas; 2) servigos médicos privados sem finali- dacle lucrativa; 3) demais servigos médicos privados. A época, entretanto, o setor privado de saiide brasileiro era frégil, dotado de bases materiais e tecnoldgicas incipientes. A fragmentagao eo caréter restrito da clientela, ademais, no ajudavam o seu desenvolvi- mento. Isso explica por que o incremento dos convénios-empresa no se deu de imediato, O Estado privilegiou primeiro a compra de servigos de terceiros ~ uma medida intermedidria, justificada pelas contingéncias ~, convertendo o INPS no maior comprador de servigos médicos do pais, com ‘© que obrigou o setor privado a se tornar um fornecedor compelitivo. Em meados da década de 70, quando a capacidade de ampliagao desta modalidade da terceirizagao dava sinais de esgotamento (0 quadro 13 ilus- traesta tendéncia especialmente no que concerne as internacdes, que depen- dem de estruturas hospitalares adequadas; o incremento das consultas nos servigos contratados depois de 1974 pode ser entendido pelas facilidades oferecidas pela nova legislacio para o credenciamento de grupos médicos, questo que sera focalizada adiante), os convénios-empresa entraram em pauta. E embora nao tenham se difundido tanto quanto era de esperar, foram importantes porque legitimaram (e incentivaram) um novo forma- to de relacionamento entre os setores pablico e privado, tornando pratica- ‘mente irremediavel o proceso de americanizagéo do sistema. Pois jé en- to, outra consequéncia da modernizagdo autoritéria — subproduto da ca- pitalizacdo geral do setor privado mas decisiva, em sua especificidade, para o éxito deste movimento de desobrigagéo do setor puiblico - manifes- 147 Hl tava-se: 0 empresariamento des préprios médicos, enquanto profissionais individualizados®. Interesses diversos se cruzaram nos caminhos que levaram ao ‘empresariamento da medicina, O alento dado pelo INPS a hospitaise clinicas, ‘como se viu, pagando pelos servigos prestados aos usuirios da Previdénca, fez crescer o nuimero de estabelecimentos ¢ leitos privados, criando um seg- mento competitivo na area. Procurados pelo setor produtivo da economia, (que também se expandia) e legitimados pelo Estado, os grupos médicos exis- tentes se reestruturaram ~ e novos surgiram ~ com um perfil empresarial ‘mais sélido, fortalecendo a chamada medicina de grupo” . Por outro lado, as ‘cooperativas médicas, capitaneadas pela Associagao Médica Brasileira ~ que ‘se opurtha & medicina de grupo por consideraa demasiadamente mercan- ‘il -, passaram igualmente a disputar espago no mercado que se formava" J entio, muitas empresas adotavam a pritica de negociar com gru- pos médicos a prestagao de assisténcia médica para seus empregados, ara~ vvés de planos facilitados. A entrada do INPS como parceiro trazia vanta- ‘gens, pois participava do custeio® ¢ fiscalizava os servigos prestados* e, 20s usuarios, se abria a possibilidade de um atendimento de melhor quali- dade. © INPS passou a homologar tanto 0s convénios em vigor como os novos aderentes. Em 1972, cerca de 2,5 milhées de beneficidrios estavam ‘cobertos por convénios homologados pela Previdéncia, além de 1,5 milhio de segurados principais em convénios nio hamologados*. ‘O ciclo da privatizacao nao teria se completado, no entanto, sem as alte- rages ocorridas nas dimensées e no poder aquisitivo Ja populagao consumi- dora. A clientela potencial dos convénios-empresa e planos de satide— operé- tos qualificados, assalariaclos com rendas médias e altas, profissionals libe- rais etc.— crescera e se diversificara na esteira da modernizagao econémica®. Seres emergentes, que desconheciam as “vantagens” antes oferecidas pelo corporativismo estatizante dos IAPs, haviam entrado em cena. Assim, nos ‘anos 70 formara-se uma significativa demanda por servigos médicos ‘massificados de boa qualidade. Ou o Estado os fornecia ~e para isso faltava a vyoz que o autoritarismo calara — ou o mercado engendrava a saida. E comefeito, o mercado engendrou a saida. Mas nao sem concurso do Estado, como de praxe no Brasil. As duas estratégias descritas, ambas implementadas por deliberagdes governamentais, forjaram uma alternat- Valatraente e quase obrigatéria para determinados consumidores de aten- Gio médica. Quase obrigat6ria porque o sistema puiblico se deteriorava a Glhos vistos — entre 1950 e 1976 0 gasto puiblico com satide teve aumento irrisério, passando de 1% para 2,5% do PIB (MC Greevey, Piola & Vianna, +1986); a rede propria da Previdéncia, que em 1966 contava com 27 hospitais (cinco dos quais em construgio), sequer havia sido dobrada em 1985, quan- do 42 hospitais estavam em operacio ~, numa evidente demonstragao de ‘que 0 projeto de ampliagao da cidadania social no contemplava o coletivo. “Atraente porque, alem de todo o apelo direto representado por um melhor atendimento, um fator adicional veio a pesar: a possibilidade de deduzir 148. despesas com saticle do imposto de renda. Este dispositivo, pouco lembrado, ¢ implantou com as sucessivas reformas fiscais realizadas (o Cédigo Fiscal Nacional, de 1966, a Constituigéo de 67, 0 Decreto-Lei 200, os 11 decretos promulgados no rastro do Al-5) e contribuiu para consolidar a imagem do Cidadao como “pessoa fisica", vale dizer, como um contribuinte integrado a0 universo do consumo individualizado ~ inclusive, de servigos médicos. Nem Bismarck, nem Beveridge (e muito menos Robin Hood): a consolidago do sistema americano de protecao social O ano de 1974 constitui novo marco na trajatéria da segunda moder- nizagao autoritaria. Q contexto politico comeca a sofrer mudangas no sen- tido da distensdo lenta e gradual anunciada pelo general Geisel, o curso do “milagre econémico” se interrompe, as quest6es sociais ressurgem o presi- dente que entéo assume reforma o estilo decisério e administrativo de go- verno, no intuito de imprimir maior centralidade aos processos intraburocraticos*. Em relacdo 8s politicas sociais estas mudangas vao se traduzir no aceleramento da “universalizagio excludente”®, um processo que exprime as ambiguidades da “americanizagio pelo alto” ocorrida du- ante 0 autoritarismo militar e que, neste periodo, se tornam nitidas®. Seguindo ainda com o exemplo da satide, bastante esclarecedor do argu. ‘mento, pode-se verificar mais alguns passos percorridos. ‘Uma das primeiras medidas do recém-criado Ministério da Previdén- «ia e Assisténcia Social foi a implantago do Programa de Pronta Agfo. O PPA, como ja apontado, estipulava regras para a prestagao dos servigos mé-

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