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acao André Parente” Pensar em rede. Do livro as redes de comu' Entre os diversos aspectos sécio-culturais causados pelo processo de informatizagao da sociedade, temos a passagem de um “pensamento simbdli- co” a um “pensamento conexionista”. Cremos que o percurso histérico de uma realidade universal pré-literdria, do fazer fisico, em direcdo a uma realida- de do fazer simbélico, que se baseia numa educaco estratificada, literdria, se est4 a fechar sobre si préprio e a chegar ao seu termo. Com o cinema, a televisdo, as tecnologias multimidia ea realidade virtual, ingressamos na era de uma sociedade pés-simbélica. Para Henri-Jean Martin, um dos grandes especi- alistas da histéria do livro no Ocidente, “o livro nao exerce mais 0 poder que teve; ele nao é mais o mestre de nossos raciocinios ou de nossos sentimentos em face dos novos meios de informac&o de que agora dispomos”'. O que mudou na realidade? Pelo menos trés coisas. Por um lado, a leitura deixou de ser, como dizem os socidlogos, “um fato social total”. Por outro lado, com o cinema, a televisdo, as tecnologias multimidia a realida- de-vircual, ingressamos na era de uma sociedade “pés-simbélica’, ou seja, em uma era em que jé nao serdo necessdrias descricdes vinculadas pelos limites da linguagem nem jogos semanticos para comunicar pontos de vista pesso- ais, acontecimentos histéricos ou informagées técnicas. Prevalecem sobre- tudo demonstragées diretas - muitas vezes “virtuais” - e experiéncias interativas com os materiais “originais”. ‘o lugar, entramos na era do conexionismo generalizado, Em ter que nos leva a pensar o mundo como um rede de comunicagao. Vivemos a era do simultaneo, da justaposicao do préximo e do longinquo, da topologia eda interconexio generalizada, cujo paradigma é a rede de comunicagio. Vivemos hoje a emergéncia de um novo espago de producio da infor- maco, um espago em rede no qual a velocidade ¢ um dos vetores que engen- dram enormes complicagées, um espaco que ultrapassa a nossa capacidade “André Parente é Diretor da Escola de Comunicacéo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO ~ UFRJ), doutor em Comunicagao pela Universidade de Paris 8 (Franca). Especialista em audiovisual e multimidia, 6 autor — entre outros livros ~ de Yasujiro Ozu: 0 extraordindrio cineasta do cotidiano (1990), Imagem — mdquina: a era das tecnologias do virtual (1995) e O virtual e o hipertextual (1999). 1 Martin, Henri-Jean. Le message écrit: a réception, conferéncia feita na Academie des Sciences Morales et Politiques, Paris, 15 de marco de 1993. Vol. XXII, n® 1, janeiroyjunho de 2000 167 de imaginagio e que revela sentimentos antagénicos de éxtase e‘de temor, sentimentos que se complementam em uma espécie de sublime tecnoldgico. O conexionismo generalizado da sociedade das redes de computa- dores criou novas formas de espago e tempo, um espago e um tempo topoldgicos, complexos, flutuantes, indefinidos, rizomatico. Para pensar- mos a nova ordem do capital — informagao, a nova cultura do digital -, somos levados a pensar a partir de novos paradigmas comunicacionais que se integram em torno do conceito de hipertexto. Em ciéncia da informagao, o hipertexto é, antes de mais nada, um complexo sistema de estruturacdo e recuperacdo da informagao de forma multissensorial, dinamica e interativa. Dentro desta perspectiva, o hipertexto representa 0 Ultimo capitulo da historia da escrita¢ do livro, o livro interativo, audiovisual e multimidia.Ontem, o texto era escolar, hoje ele € a sociedade mesma. Ele tem forma urbanistica, industrial, comercial, televisiva ou hipertextual. A mutag4o que fez passar da arqueologia escolar a tecnocracia das midias nao foi responsdvel pela idéia da passividade do consumo, ela apenas a reforgou. O aperfeigoamento do sistema disciplinar, a racionaliza- ao da gesto ealégica da especializacdo produtivista também contribuiram para uma visdo de que a eficacia da produc4o implica a inércia do consumo. No entanto, era a hierarquiza¢4o social e nao a sequencialidade técnica do texto, que aprisionava a pratica da leitura, a alienava: o texto eraa reprodu- Gio das relages sociais no interior da instituicao cujos préssupostos fixavam o que devia ser lido. Com a inflechissement das instituigdes aparece entre 0 texto e seus leitores a reciprocidade que elas escondiam, como se, ao se retirar, ela deixasse ver a pluralidade indefinidas das “escritas” produzidas por seus leito- res. Este fendmeno, visivel depois da reforma, hoje se faz através dos dispositi- vos sociopoliticos do Estado e dos meios de comunicagao de massa. Deleuze ¢ Guatarri vieram a chamar de rizoma,* conceito que retine algumas das principais figuras de expresséo da cultura contemporinea e em particular do hipertexto e do ciberespaco: multiplicidade, heterogeneidade, acentramento, infinitude, metamorfose. Cabe lembrar que Pierre Lévy’ se serviu do rizoma para definir as metdforas da redé hipertextual. Interessa-nos retomar alguns princ{pios do rizoma hipertextual como imagem das redes. Na rede hipertextual, o hipertexto é fractal, ou 2 Deleuze, Gilles e Guattari. Mil Platés vol, 1. Séo Paulo: Ed. 34, 1997. 3 Ver Lévy, Pierre. As tecnologias da inteligéncia, Rio de Janeito: Ed 34, 1993. 168 Revista Brasileira de Ciéncias da Comunicagao seja, cada né da rede hipertextual ¢ apenas uma atualizaco possfvel entre outras, cada né é potencialmente uma outra rede, ao infinito. A rede nao possui unidade organica, ou seja, uma totalidade, nem centro, ela é acentrada. Na verdade, na rede abundam muitas redes que atuam sem que nenhuma delas se imponha as demais, e além disto nao hd princfpio, mas diversas vias de acesso, sem que nenhuma delas possa ser qualificada como principal. Vivemos na era das redes hipertextuais, em que o tempo se contrai € se expande. O tempo, hoje, é, paradoxalmente, um tempo de maxima con- centragao, pontual, e de méxima expansao, multitemporal. Ora 0 aqui agora € 0 instantaneo real, ora a multitemporalidade, ou seja, uma temporalidade complexa dos fluxos de comunicag4o que arruinam o aqui e agora. O conexionismo generalizado tende uma de suas faces para os pontos ounés da rede e uma outra face para as suas multiplas conexdes. A rede é algo que ha entre os nds e as conexdes. Pensemos em Proteu, que existe em algum lugar entre o ponto ea linha. Apreende-se 9 modo como, as novas tecnologias de comunicagao podem estar transformando a experién- cia do tempo e do espaco: o sentido da presenga, a definicao do préximo e do longinquo no espaco € no tempo, a distingao entre real e imagindrio — todas estas fronteiras esto sendo postas em questao pelas novas tecnologias. A rede fractal é proteiforme. Cada uma de suas multiplas dimen- soes é fractal, ou seja, uma dimensao intermedidria conexées possiveis que existem entre elas. Proteu é dgua, ¢ fogo, ¢ pantera. Mas quem é Proteu quando nao ¢ mais fogo ¢ nao é ainda pantera? Em “A nova refu- tagio do tempo”, Borges nos dé um principio de resposta: o tempo é a substancia mesma da qual sou feito: o tempo é 0 rio que me carrega, mas eu sou o fio; € 0 tigre que me rasga, mas eu sou o tigre; € o fogo que me consome, mas eu sou 0 fogo...”.4 Todo museu, toda biblioteca, toda mediateca, todo centro de infor- magao implica duas operagées essenciais: por um lado, ele transforma o mundo, os espacos periféricos representados, em informagées; por outro lado, ele ¢ o nd de uma vasta rede na qual estas informagées circulam de forma hipertextual. A produgio da informacao implica uma dupla operacio de redugao do mundo em informagao e de amplificago da informagio 4 Borges, J. L.. Nueva refutacién def tiempo. Obras Completas. Buenos Aires: Ed, Emécé. pp. 757-771, Vol. XXIII, n® 1, janeiro/junho de 2000 169 que se faz mundo. Uma informagao nao ¢ uma forma no sentido platéni- co/aristotélico, mas uma relagdo concreta que envolve uma rede sociotécnica que faz a relagao entre a periferia ¢ o centro de forma que aquela produza a informagao necessdria a sua amplificagao neste. _ A informag’o permite resolver de forma prdtica — através das opera- bes de selegdo, de extracao, de reduco — a contradi¢ao entre a presenca em um lugar ¢ a auséncia deste lugar. E impossivel compreender esta tensdo sem conhecermos as instituig6es e os vefculos materiais que intermediam a peri- feria e o centro. A biblioteca, o museu, a midiateca, séo como uma central telefSnica, um centro de comutago, que opera entre a reducdo ¢ a amplifica- 20 da informacio. Aqueles que pensam a intertextualidade como uma auto-referéncia em.que o signo remete ao signo — como na alegoria da Biblioteca de Babel, em que o império dos signos é uma fortaleza de intertextualidade -, é preci- so lembrar que os signos produzem efeitos sobre 0 mundo e circulam nas redes € nas instituigdes que nos ligam A situages concretas. Desconhecemos 0 cendrio de uma linguagem separada do mundo, € de um mundo separado da linguagem, pelo contrério, deparamo-nos sempre com relagées transversais, mais ou menos continuas, mais ou menos descontinuas, entre os centros de cdlculos e comutagdes ¢ as situacdes. Da mesma forma que os museus, que criam mapas ¢ articulagées que nos levam a comparar os animais espalhados pelo mundo, o enciclopedismo em geral é como um centro de comutacao topoldgico que nos permite visualizar aproximagées entre realidades até entAo estrangeiras, mas também ocontrdrio, nos permite separar aquilo que nos parecia compor uma mesma categoria, classe ou realidade de signos ou fenémenos. O computador, e sobretudo o ciberespaco, formado por centros de comuta¢ao de um grande dinamismo e plasticidade, nos permitem compre- ender este fenémeno da heterotopia’, pois com eles nao paramos de lidar com uma realidade complexa, dobrada e redobrada ao infinito. Consideremos a topologia especial das redes hipertextuais e de seus nés ou centros de comutag’o. Redes de transformagao fazem chegar aos centros de célculos, por uma série de deslocamentos, um numero exponencial deinscrigées (informagoes). Estas informagées circulam, mobilizando todaa 5 A respeito da questéo da heterotopia, cf, Foucault, Michel, Des espaces auttes. In: Dits ct derits. Patis: Gallimard, 1984. 170 Revista Brasileira de Ciéncias da Comunicagao rede sociotécnica dispontvel entre o centro ea periferia: esta éa tinica manei- rade garantir a fidelidade e a preciso dos dados. Quando seguimos os seus tacos, Nés atravessamos a disting’o usual entre as palavras ¢ as coisas: nao nayegamos apenas no mundo, mas também através de diversas matérias de expressao. A rede éa imobilidade necesséria para recolher o que deve nela transi- tar, A grande questao é: onde esto os fendmenos? Para os realistas eles estao na natureza, na extremidade das redes, ¢ podem apenas ser tocados com os dedos. Para os pés-modernos, os fendmenos estao cada vez mais nas redes, eles so os signos mesmos, auto-referentes. Como separar os signos do mun- do, ou melhor, o mundo dos signos? A sociedade humana se distingue da sociedade dos animais pelos ob- jetos que intermedeiam as nossas relagées com o mundo. Imposstvel enxer- garmos religido sem objeto sagrado, guerra sem arma ¢ comércio sem valor. Entretanto, o que seria do lago social sem religiao, guerra ou comércio? Ea ciéncia, nao seria ela um tipo especifico de lago social, ou seja, de rede? Nao teria ela também seu quase-objeto, nao implicaria ela também uma objetivago que nos produz tanto quanto ao seu objeto? O dominio cientifico e intelec- tual nao se exerce diretamente sobre as paisagens, as galixias ¢ a economia, mas sobre informag6es/inscrigées que circulam continuamente na rede de transformagées ~ laboratérios, instrumentos, expedigdes, colegdes, textos, etc. Religido, guerra, comércio e ciéncia: 0 objeto ¢ um quase-objeto, um hibrido a meio caminho entre nés e o mundo. Quando navegamos na rede, a meio caminho, no intersticio entre as imagens de Proteu, nés vivemos enquanto hibridos. ‘A compreensao da época em que vivemos apdia-se, cada dia mais, sobre o conceito de rede. A rede atravessa hoje todos os campos do saber — da biologia as ciéncias sociais, pasando pelas ciéncias exatas -, seja como conceito especifico, em cada um destes campos, seja como paradigma e imagem do mundo, ou ainda como rede sociotécnica necesséria a produgio do conhecimento. Cada um de nds se situa em redes, cada uma delas correspondendo a um tipo de comunicagio, de realidade fisica e simbélica, ou a um tipo de rede espectfica que nos atravessa ou nos constitui: redes topogrdficas, redes cognitivas, redes bioldgicas, redes sociais e redes tecnolgicas... Quando no futuro se fizer a elenco dos paradigmas que marcaram mais profundamente a nossa mentali- dade na segunda metade do século XX, teremos certamente a rede entre eles. Vol. XXII, n® 1, janeirojjunho de 2000 in Se o pensamento de hoje pode ser qualificado de integrativo (in- tuitivo, n3o analitico, holistico, nao-linear) por oposigao a um pensa- mento auto-afirmativo (racional, analitico, reducionista, linear), se os valores podem ser ditos integrativos (integragio, conservagio, coopera- 40, qualidade) por oposicao aos valores auto-afirmativos (dominacio, expans4o, esséncia, competicio, quantidade), tudo isto tem relagéo com arede, pois a rede é como que a condigao de possibilidade do movimento de uma espécie de interconectividade generalizada. Seja como for, a rede produz um deslocamento no modo de conhe- cermos as coisas. Por um lado a rede é um forma de solucionar os proble- mas causados pela grande especializacdo dos saberes: cada vez mais produz- se em grupo, em que cada um contribui com um pouco do que sabe. E de fato a rede tem contribuido enormemente para 0 trabalho em grupo. Por outro lado, como saber 0 que se faz hoje em um mundo cujas grandes descobertas sao anunciadas a cada minuto? Lembremos que, segun- do Einstein, trés grandes bombas haviam explodido em nosso século: a bomba atémica, a bomba demogréfica e a bomba da informagio. O dilivio da informagao é de fato um dado irreversivel. Ela nao é trocada, mas com parti- lhada. E ao ser compartilhada ela se reproduz exponencialmente. Em todo caso, pensar em rede é também afirmar um sistema aberto, rizomatico, anterior a todas as dicotomias que nos imobilizam — idéia e esséncia, pensamento e ser, sujeito e objeto, discursivo e extradiscursivo, significado e significance, lingiifstico e visual, material ¢ imaterial, homem e méquina — e que nos impedem de pensar e agir, mas também de ler e escre- ver. O rizoma como princ{pio paradigmatico da rede hipertextual ¢, portan- to, uma condicSo de possibilidade do atual, mas condi¢ao indeterminada, aberta, das formas de existéncia. Na verdade, o rizoma é 0 paradigma de um conhecimento hipertextual que rompe com dois dos maiores paradigmas que dominaram a ciéncia oci- dental. A divisao cartesiana entre sujeito e objeto dominou 0 ocidente nos trés tiltimos séculos. Hoje, a questo da realidade e do conhecimento se propde em fungao de uma nova matriz conceitual. As teorias cientfficas ¢ artisticas con- temporaneas nao pensam mais a realidade em grupos de diferentes objetos, separados de nés, mas em grupos de diferentes interagSes que incluem 0 obser- vador. Quando hoje se fala em interatividade (por ser sensdrio-motora) na multim(dia, trata-se do que chamamos de interatividade pobre, se comparada a esta que existe e que se estabelece como novo paradigma no campo do 172 Revista Brasileira de Ciencias da Comunicagao conhecimento. Como conhecer sem levar em convaa interago que se estabele- ce com o objeto do conhecimento? Ou melhor, como conhecer sem levar em conta as redes de interconexées infinitesimais dos fenémenos? Mas 0 conceito de rede tem gerado frutos muito importantes no cam- po da histdria e antropologia da ciéncia, com Isabelle Stengers, Bruno Latour € Michel Callon, entre outros. Pela primeira vez na histéria do ocidente estamos comegando a abandonar o platonismo. Segundo Latour, quando medimos as informagées em bits e bauds, quando somos assinantes de um banco de dados, quando, para agir e pensar, nos conectamos a uma rede de comuni- cagdo, é mais dificil continuar vendo o pensamento como um espirito flu- tuando sobre a 4guas. Hoje a razo se assemelha muito mais a uma rede de comunicagio, uma rede de telemdtica, do que as idéias platénicas® : Seguindo esta perspectiva, a ciéncia é produzida coletivamente e sua produco estd longe de ser apenas uma atualizagao das idéias e intuigdes de seus cientistas. Esta é uma imagem da ciéncia que herdamos de Platio, e que nos tem custado muito caro. A modernizagéo de uma sociedade, hoje, estd ligada 4 entrada no mercado mundial ¢ o desenvolvimento cientifico e tecnolégico. Para abordar estes temas existem dois modelos’: um, chamado de modelo de difusao, no qual os atores se encontram paralisados pela falta de espago de mano- bra: ou nos adaptamos as imposigées ou bem desaparecemos, € outro, 0 modelo de rede, no qual, ao contrario, os atores dispdem de uma mar- gem de manobra e de capacidade de iniciativa. ‘Tomemos como exemplo a questao da ciéncia. Para o primeiro mode- lo, a ciéncia remete a um mito fundador, compartilhado pelas histérias da ciéncia: a ciéncia é antes de mais nada as idéias de alguns homens bem dotados. A idéia e a teoria sfo tudo. A ciéncia € 0 produto de teorias de especialistas que, com o tempo, e por milagre, se transformam em aplicagdes que vao beneficiar a sociedade. Que a ciéncia seja produzida apenas por uns poucos, em alguns poucos centros mundiais como New York ou Paris, que ela seja exterior ao mundo social ¢ econdmico, nada disso incomoda. E pegar ou largar. A esta visao tradicional e romantica, para nao dizer platénica e elitista, 6 Reportar-se a Latour, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. 7 Sobre estes dois modelos, cf. Callon, Michel. “Lévolution du rapport de Vhomme a la connaissance”, Texto inédito. Vol. XXII), n® 1, janeiro/junho de 2000 173 é preciso sobrepor uma outra, alimentada por uma possibilidade de acao estratégica. O modelo da rede se apdia sobre uma observagao banal: nos laboratérios de pesquisa nao se produzem teorias abstratas. Produzem-se, claro, textos, enunciados, imagens, grdficos e artigos. Mas 0 que se produz mais freqiientemente s40 procedimentos e experiéncias. Os pesquisadores, mesmo os mais experientes, os mais fundamentalistas, organizam provas € testes, inventam técnicas e instrumentos de medigao. As teorias sio apenas a pequena parte que emerge do grande iceberg. A parte mais importante sao as prdticas e a enorme rede sociotécnica mobilizada. Estatisticas mostram que a ciéncia fundamental é a combinagao de 90% de savoir-faire que mobiliza uma rede enorme e 10% de intuicao e teoria. Uma idéia, um enunciado ¢ um artigo que escapam das mos de seu autor s6 podem circular e produzir frutos se encontrarem atores competen- tes e equipados, mas também se conseguirem despertar o interesse e mobili- zat as redes e instituigées cientificas. Se a ciéncia dependesse apenas das idéias para se fazer ela no se faria apenas em alguns centros. O que se produz e se reproduz cientificamente sao as redes sociotécnicas, que envolvem infraestruturas e competéncias incorporadas complexas. Ou seja, a ciéncia, para circular, depende de verdadeiras redes logisticas bem equipadas ¢ instrumentalizadas. Um enunciado cientifico é como um Boeing 747, que nao pode nem decolar, nem pousar sem a infraestrutura dos aeroportos. Os saberes podem. ser universais, masa 4gua néo ferve a 100% sendo em frageis redes, construidas passo a passo e mobilizando um grande investimento. Na verdade, a ciéncia ndo se aplica, ela se replica através de investimentos enormes, e ao se replicar elase transforma e se adapta as configuragées locais. No modelo da rede, nao existem atores capazes ¢ atores incapazes, mas apenas atores bem ou mal formados. A abertura a ciéncia é uma questao infraestrutural que nado tem nada a ver com 0 atavismo do espirito da cultura. 174 Revista Brasiteira de Ciéncias da Comunicagao

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