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A dupla face da cultura ea discussio da industria cultural » contém inevitavelmente face a todas as insttuigaes ¢ a (Adorno) Provavelmente a teoria critica da Escola de Frankfurt tornou-se mais conhecida no mundo inteiro iy 6 BARBARA FREITAG pela sua critica a cultura’ de'massa que pelos seus de- mais trabalhos em outros campos do saber, como a fi losofia, a sociologia, a critica literaria, a teoria do co. nhecimento, ete, O conceito de “industria cultural”, dix Adorno e Horkheimer em A Dialética do Heron mento (1947), jé faz parte integrante do conceitual das ciéncias sociais e da. eomunica¢ao, onde tem encontra- do ampla aplicacao. Como no caso do primeiro eixo tematico, 0 tema da cultura aflora no inicio dos trabalhos do grape, ain. da na fase de seu funcionamento em Frankfurt, ¢ a. companha a reflexdo dos seus maiores expoentes, até a sua morte, J4 no primeiro ntimero da Zeitschrift A- domo publica um importante artigo sobre a musica ("Sobre a situagao social da mésica", 1932) no qual Teconhece que a miisica é um produto especifico das relagdes de producao capitalista, mas ressalta também oseu carater contestatério, enquanto critica dessas re- lagées. Benjamin, por sua vez, lan¢a no sexto nimero da revista (1936) seu artigo polémico sobre a “Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (a pri meira versio em francés data de 1935). E de 1037 o conhecido ensaio de Marcuse sobre o ““Cardter afirme. tivo da cultura”, e de 1941 0 ensaio de Horkheimer so. bre a “Arte e a cultura de massa’ , onde pela primeira vez 6 empregado 0 conceito de “indistria cultural”. Estes e outros artigos de menor importancia an. tecederam, pois, as reflexdes de Adorno e Horkheimer magistralmente sintetizadas no ensaio “Indistria cul tural, Tuminismo como sedugao das massas” (1947), que integra sua coletanea de ensaios A Dialética do Esclarecimento, Segundo revelagoes feitas a Haber. mas pela vitiva de Adorno, 0 ensaio sobre a indistria cultural pode ser atribufdo quase que na integra a A. ATTEORIA CRITICA: ONTEM E HOE 6 dorno. A obra posterior de Adorno, especialmente a- quela publicada na Alemanha a partir de sua volta dos Estados Unidos (Noten zur Literatur, Minima Mora- ia, Negativa Dialektik e Aesthetische Teorie), pode, em grande parte, ser vista e interpretada como sendo um desdobramento das teses esbocadas nesse artigo, ainda escrito na California. Na discussiio que aqui se segue sera dada maior énfase ao ensaio sobre a indistria cultural, no qual sao discutidos os conceitos de cultura popular e.de massa, indistria cultural, obra de arte, etc. A referéncia a o- bra posterior de Adorno seré feita a titulo de extrapo- lado, ressaltando*se sua tendéncia crescente em dire- do a um pessimismo cultural que 0 conduziria a um beco sem saida. Como no tratamento do tema anterior, impbe-se uma diferenciagao entre os diferentes autores que compdem o niicleo dos pensadores criticos, ndo se se- guindo uma ordem cronolégica dos trabalhos. O tra- tamento do tema seguira, na medida do possivel, 2 16- gica de desdobramento intrinseca aos conceitos desen- volvidos pelos autores, partindo do conceito de cultu- ra, da obra de arte, sua reprodutibilidade técnica, seu consumo pelas massas, o seu desvirtuamento (‘‘a per- da da aura”, na visio benjaminiana) e a preservacao da misica e outras formas de arte (como tinica mani- festacao de protesto e critica contra a ordem estabele- cida, na visto de Adorno). ‘Comentadores de Adorno (Text tind Kritik, 1967) sio undnimes em afirmar que a partir do momento em que assumiu a cogestao e finalmente a diregao do Ins- tituto, o autor da Dialética Negativa restringiu 0 cam- po semAntico e a abrangéncia da teoria critica de ou- trora, abandonando as andlises mais concretas das re- laces de produgao e da repressio das classes inerente 68 BARBARA FREITAG & moderna sociedade de massas, objeto original das investigagdes do Instituto, para enclausurar-se cada vez mais no campo da milsica, onde sua critica e seu Protesto somente seriam compreendidos por uma pe- quena minoria. Seré interessante seguir essa trajetéria do pensa- mento, em especial, o caminho da critica da cultura a teoria estética que sesconcebe como interpretacao do Protesto contido nas manifestacdes artisticas. Cultura e indiistria cultural Ao tratarem do tema da cultura, Marcuse, Ador- no e Horkheimer lembram a velha distingdo feita e até hoje difundida na Alemanha entre “cultura” e “civili- zacao", isto é, entre mundo das idéias e dos sentimen- tos elevados de um lado, e mundo da reprodugao ma- terial, do outro, Em seu artigo, “Carater afirmativo da Cultura” (1937), Marcuse analisa as condigdes hist6ricas — a e- mergéncia da burguesia na Europa — em que essa se- Paracao foi consumada e Perpetuada. Enquanto o mundo do trabalho seguia a logica da necessidade, im- Pondo sofrimento e abstencao aos homens que nele se moviam, 0 mundo cultural permitira postular a liber- dade. a felicidade, a realizagao espiritual, se nao rea- lizadas no presente, pelo menos prometidas para 6 fu- turo. A oposigao trabalho-lazer, necessidade-liber- dade, matéria-espirito, associou-se 0 par exteriori- dade-interioridade, central para a filosofia da cultura do perfodo burgués (século XIX). A énfase dada a di- mensio subjetiva, a interioridade dos sentimentos, aos valores espirituais, & dignidade da pobreza, etc., cons- A TEORIA CRITICA: ONTEME HOIE, 6 titufa uma forma de seduzir os membros da sociedade Para se contentarem com promessas ou expectativas de felicidade no mundo espiritual, sem reivindicé-las ou estendé-las também as suas condigdes materiais de vida. Essas condigSes s6 eram favordveis para uma pe- quena minoria, detentora dos meios de produg’o. A grande maioria da populacdo estava excluida tanto do usufruto dos bens materiais e portanto do bem-estar € do conforto individual quanto do acesso ao consumo de bens culturais como a pintura, escultura, misica e outras manifestacdes da cultura. A separagao da sociedade burguesa em dois mun- dos — 0 da reprodusao material da vida (civilizagao) e o mundo espiritual das idéias, da arte, dos sentimen- tos, etc. (cultura) — permitiu’a essa sociedade justifi- car a exploracdo e alienagio que a grande maioria so- fria nas linhas de montagem e de produc&o, na admi nistragdo burocratizada, e no cotidiano miseravel. Em contrapartida. essa mesma sociedade acena através dos seus bens culturais com um mundo melhor no qual se concretizariam a felicidade, liberdade, 0 a- more a humanidade. Esses ideais sio tematizados em obras de arte, na produgdo cultural, simbolizando a promessa de felicidade. Marcuse acredita, por isso, que a obra de arte, alienada de uma realidade material de exploragZo, assume uma fungdo alienante na medi- da em que faz com que os homens se ajustem e se ade- quem as formas desumanas de organizagao da socie- dade, reméterido para 0 futuro'os’seus desejos dé feli- cidade ¢ realizacao. Ao mesmo tempo que a obra de arte € a cultura em geral se fechavam ao consumo da classe trabalhadora, por serem considerados bens de consumo reservados a uma elite, representavam em sua propria estrutura um protesto contra a injustica, mas esta sé poderia ser superada no futuro. ” BARBARA FREITAG. ~-No decorrer do tempo, esse modelo foi se tornan- do — segundo a andlise de Marcuse — cada vez mais frégil e incapaz de contribuir para a manutengao do sistema de reprodugao material, sobretudo na fase de ascensdo da burguesia. Para manter os trabalhadores ¢ assalariados em geral inseridos no processo produti- vo, tornavam-se necessiirias novas formas de repressao e exploracao, exigirtdo do Estado e da empresa inter- vengdes mais radicais e eficientes. A separaco entre a produgio material (civiliza- 40) ¢ a produgao de bens espirituais (cultura) nao era a forma mais adequada para dissimular as estruturas do novo sistema de produgao. A fim de tornar os tra- balhadores déceis e submissos, nao bastava recorrer & dicotomia entre civilizagio e cultura, entre escassez material externa e riqueza espiritual interna. Tornou- se imperioso mudar os padroes de organizago da pro- ducdo cultural que foi sendo gradativamente cooptada pela esfera da civilizagao, isto é, sendo absorvida pelo sistema da produg&o de bens materiais que reestru- turou inteiramente as formas de circulagao ¢ consumo da cultura. Inicialmente Marcuse acreditava que a dis- solugdo da obra de arte em conseqiiéncia de uma or- ganizacao geral da produgio material de bens em mol- des socialistas anunciaria a materializacio da felicida- de no mundo do trabalho, dispensando a longo prazo a produgio artistica. Esta somente seria necessdria em um mundo alienado, marcado pela divisio do trabalho pela propriedade privada e pela dominacao. Erradica- dos esses males, a obra de arte poderia eventualmente perder sua razio de ser. Mas nao foi assim que se de- ram as coisas, e Marcuse se vera forcado a reformular, mais tarde, a sua concepeio de cultura e arte. Os bens culturais, concretizados em obras literé- ‘A TEORIA CRITICA: ONTEM E HOJE n rias, sistemas filosdficos e obras de arte sio derruba- dos dos seus pedestais, deixam de ser bens de consumo de luxo, destinados a uma elite burguesa, para se con- verterem em bens de consumo de massa. Esse proceso de dissolucao da obra de arte e da cultura é viabilizado pela revolugdo tecnolégica-industrial, que permitiu promover a reproducao em série da obra de arte ou de sua cOpia (imprensa, fotografia, cinema, disco, casse- te, video, etc.). A obra de arte, na era de sua reprodu- tibilidade técnica (Benjamin) revoluciona o estatuto da cultura, dissolve o conceito burgués de arte, transforma. acultura de elite em cultura de massa. Mas como a jun- &o do processo material de produgao com o proceso ‘de produgiio de bens ideais e culturais nao se deu na perspectiva idealizada por Marcuse, a “democratiza- do” dos bens culturais foi uma falsa “democratiza- cao”. A dissolucao da obra de arte no ocorreu porque © sistema de producao de mercadorias havia sido su- primido e sim porque ela foi transformada em merca- doria (Adorno, Horkheimer), assimilando-a & produ- 40 capitalista de bens. Em conseqiiéncia, a aparente reconciliagao da cultura com a civilizacao foi uma fal- sa reconciliagao, que traiu o ideal de felicidade, huma- nidade e justica contido na esfera da cultura. O produ- to cultural integrado a légica do mercado e das rela- ges de troca deixa de ser “cultura” para tornar-se va~ lor de troca. A falsa reconciliagao entre produgéo ma- terial e ideal de benis recede o nome de “indhistria cul-. tural’. Horkheimer e Adorno criaram esse termo para evitar termos mais familiares, mas também mais am- biguos, com “cultura de massa”, “cultura popular” ou sua contrapartida, “cultura de elite”, “alta cultu- ra", para caracterizarem melhor o fendmeno que ana- lisam: cultura produzida para o consumo de massa, a- tendendo as necessidades de valor de troca (do seu pro- i i n BARBARA FREITAG. dutor)¢ deValor de uso(do seu consumidor). A cultura, transformada em mercadoria, perde sua caracteristica de cultura, para ser meramente um valor de troca. Mas a que necessidades atende esse valor criado para 0 con- sumo? Ele permite, como ainda serd necessario de- monstrar, reproduzir ad infinitum o sistema, atenden- do assim as necessidades de acumulagio do sistema. Assim pode-sé dizer'que a “indistria cultural” é a forma sui generis pela qual a produgo artistica e cul- tural é organizada no contexto das relagdes capitalistas de produgo, langada no mereado e por este consu- mida. Numa sociedade em que todas as relagdes so- ciais so mediatizadas pela mercadoria, também a obra de arte, idéias, valores espirituais se transformam em mercadoria, relacionando entre si artistas, pensa- dores, moralistas através do valor de troca do produto. Este deixa de ter o carter tnico, singular, deixa de ser a expresso da genialidade, do sofrimento, da angiis- tia de um produtor (artista, poeta, escritor) para ser um bem de consumo coletivo, destinado, desde o ini- cio, a venda, sendo avaliado segundo sua lucratividade ou aceitagao de mercado e nao pelo seu valor estético, filos6fico, literario intrinseco. A indistria cultural nao 6, pois, simplesmente mais um ramo da produgao na diversificada producio capitalista, ela foi concebida e reorganizada para pre- encher fungdes sociais especificas, antes preenchidas pela cultura burguesa, alienada de sua base material. A-nova produgao cultural tem a fungao de ocupar 0 espaco do lazer que resta ao operario ¢ ao trabalhador assalariado depois de um longo dia de trabalho, a fim de recompor suas forcas para voltar a trabalhar no dia seguinte, sem lhe dar trégua para pensar sobre a rea- lidade miserdyel em que vive. A indistria cultural, além disso, cria ilusio de que a felicidade nao precisa ATEORIA CRITICA: ONTEME HOE a ser adiada para o futuro, por j4 estar concretizada no presente — basta lembrar o caso da telenovela brasi- leira. E, finalmente, ela elimina a dimensio critica ainda presente na cultura burguesa, fazendo as mas- sas que consomem 0 novo produto da indiistria cultu- ralesquecerem sua realidade alienada. Com a dissolu- cio da obra de arte e da cultura no cotidiano, extin- guem-se-a remessa para o futuro e a promessa de feli- cidade, inerentes a obra de arte burguesa. Preenchidas essas fungSes, a reprodugdo das rela- ges sociais como um todo est4 novamente assegurada, JA que os individuos nao tém mais oportunidade de se conscientizarem das relagdes de exploracao em que vi- vem. Foi-lhes tomado o tempo para pensarem, e foi- thes tirada a esperanca preservada outrora em obras, culturais de que o presente poderia ser melhor. Sto sugestionados, ainda, para consumirem incessante- mente, pois o consumo é apresentado como o caminho para a realizagao pessoal. A cultura fornecida pelos meios de comunicacao de massa nfo permite que as classes assalariadas assumam posigio critica face a sua realidade, j4 que ela mistura os planos da realidade material com as suas formas de representagao ¢ pro- gressivamente anulam os mecanismos da reflexéo critica para acionarem a percepgao e os sentidos (visio eaudicio), No lugar do amor roméntico sonhado pelo poeta se intercala a telenovela, no lugar do sexo vivido se vé 0 filme porn6,,em lugar de liberdade auténtica se vive a liberdade de escolha entre produtos langados no mercado. | ‘A indistria cultural, que se caracteriza por sua dimensao anti ou acultural (dissolugdo da obra de arte, produgo e reproduc&o de mercadorias ditas “‘cultu- rais”), por sua vineulag4o com a moderna técnica (ré- dio, tevé, cinema, fotografia, imprensa, ete.) ¢ seu — % BARBARA FREITAG. consumo de massas e seu cardter de mercadoria, cons- titui a formula moderna que a sociedade burguesa en- controu para autoperpetuar-se. Se antigamente a se- Parac&o entre cultura e civilizagao preenchia satisfato- tiamente as fungdes de reprodugao e ideologizacao da classe operéria, as condigées modernas da produgao criaram, com auxilio da ciéncia e da técnica, assimi- Jando, pois, a cultura a civilizagao, uma nova formula para consolidar e perpetuar a produgao capitalista: a inddstria cultural. Essa passa a ser fundamental para a sobrevivéncia do sistema. Aobra de arte, a “aura"e a perda da aura Um dos trechos mais difundidos sobre a obra de arte, seu conceito e suas fungdes 6 0 ensaio de Ben- jamin (do qual se conhecem duas versées em alemaoe uma francesa), "A obra de arte na era de sua repro- dutibilidade técnica” (1935-1936). Nesse ensaio, cuja primeira variante alema acaba de ser publicada no Brasil (Brasiliense, 1985), Benjamin esboca um hist6- rico da obra de arte e do seu relacionamento com 0 Produtor ¢ 0 consumidor desde a Idade Média até os nossos dias. Para melhor estabelecer a Telag&o entre Produtor e consumidor propde duas novas categorias de anélise: o valor de culto ¢ 0 valor de-exposicao de uma obra (Benjamin, 1935-1936, p. 173). No culto religioso medieval,-o valor de ‘exposi¢ao’ da obra de arte é praticamente inexistente, sendo en- fatizado quase que exclusivamente seu valor de culto. A obra de arte se mantém escondida, inacessivel a0 olhar do espectador. Basta pensar nas esculturas goticas de santos, embutidas nas colunas das cate- drais, escondidas em nichos, confundindo-se com a A TERIA CRITICA: ONTEM E HOJE 1 estrutura arquitetnica como um todo. Na medida em que o mundo se dessacraliza, a obra de arte vai sendo liberada para o olhar do espectador. Mas o valor de culto nao desaparece. Ele sobrevive nas formas secu- ares da arte como culto do belo. A idealizagao extrema da arte mostra claramente sua origem religiosa, por mais profanas que sejam suas manifestacées. O valor de exposi¢ao aumenta, sem que se perca o elemento cultural, que continua presente na“‘aura”” da obra de arte. O objeto auratico é caracterizado pela unicidade (Einmaligkeit) e distancia (Entfernung). O espectador permanece fascinado pela “aura”. A “aura” é uma espécie de invélucro que envolve a obra de arte, con- tendo “elementos espaciais e temporais: a aparicio Gnica de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”” (Benjamin, 1935-1936, p. 170). Se a passagem do periodo feudal para o burgués se caracterizou pela secularizacao da obra de arte, ‘sem que se extinguisse a sua aura, a passagem do perfodo burgués para a sociedade de massa est caracterizada pela perda da aura. A perda da aura ocorre em con- seaiiéncia de dois fatores basicos: a tecnificacao cres- cente do mundo e a reprodutibilidade técnica da obra de arte, que leva a uma massificac&o do consumo dos bens artisticos. Ambos os fatores decorrem da moder- nizag&o da sociedade burguesa do século XIX. ‘A perda da aura nao tem para Benjamin as con- seqiiéncias negativas que Horkheimer, Adorno ¢ o “il- timo, Marcuse, atribuem & dissolucao da obra de arte. E verdade que, também para Benjamin, com a perda da aura se destréi a unicidade e a singularidade da obra de arte, mas ao perder seu valor de culto seu valor de exposicAo se intensifica. A obra adquire uma nova qualidade: ela se torna acessivel a todos, seu consumo generalizado se torna %6 BARBARA FREITAG possivel, ela adquire por assim dizer um novo valor: um “valor de consumo”. Ao contrario do que afirmava Adorno, a reprodugao de um quadro da Mona Lisa como cartaz, de um romance de Balzac em paper-back ou de uma sinfonia de Beethoven em disco no desvir- tua a obra de arte. Apenas ela abandona os gabinetes € sales para ser divulgada e apreciada por todos. A re- produtibilidade técffica nao somente assegura 0 con- sumo generalizado como transforma o cardter, a natu- reza intrinseca da obra de arte, modificando ainda a propria percepcao do consumidor. Benjamin vé na foto € no filme exemplos privilegiados dessa mudanga ra- dical na concepgao e percepgao da obra de arte desau- tatizada. Por isso mesmo Benjamin nao faz a mesma leitura que Adorno do processo de massificagio e de- mocratizacao do consumo. Enquanto para este a re- produtibilidade técnica significa o “desvirtuamento” da obra, sua “dissolugao” na realidade banal, através da industria cultural, e portanto a destruic&o do valor de negatividade inerente a arte e a despolitizago do seu destinatério, Benjamin pelo contrario associa a idéia da “desauratizacao” a de politizacio. Termina seu ensaio sobre a reprodutibilidade técnica da obra de arte denunciando a “estetizagao” da politica como a forma fascista de utilizar a dimensfo artistica, a0 que © comunismo respondia com a “politizagao” da arte. A moderna obra de arte, como a fotografia e o cinema (hoje acrescentariamos a televistio, o video, e 0 lazer), ao provocaremi mudangas na percep¢ao e nas atitudes dos consumidores, estariam modificando esses mesmos consumidores. Por isso mesmo a obra de arte pode servir como instrumento de politizagao (Benja- min estava, na época, fortemente influenciado por Bertholt Brecht), mas também de instrumento de redu- Sao de tensdes que, sem essa “valvula de escape”, pos- ATEORIA CRITICA: ONTEME HOE, ” sivelmente teriam condigées de dinamizar a sociedade. Benjamin lembra nesse contexto os filmes de Chaplin. Diante do exposto, fica evidente que os frankfur- tianos, longe de constituirem um bloco teérico mono- litico, defendem posigdes diferenciadas, por vezes di- vergentes, mas que em certas dimensées apresentam convergéncias e até mesmo sobreposicdes fundamen- tais. © Marcuse, Horkheimer e Adorno, bem como Ben- jamin, séo unAnimes em atribuir a cultura em geral, e 4 obra de arte em especial, uma dupla fungo, a de representar e consolidar a ordem existente e ao mesmo tempo a de criticd-la, denuncid-la como imperfeita e contraditéria. Essa dupla funcao decorre do carater ambiguo da prépria cultura de ser ao mesmo tempo a depositiria das experiéncias passadas de repressio e das expectativas de melhoria, de aperfeigoamento: ela critica o presente e remete ao futuro. A dimensdo con- servadora e emancipatéria da cultura e da obra de arte encontram-se, pois, de maos dadas. . Benjamin, contudo, diverge dos seus companhei- ros quanto & avaliagdo do processo de desauratizagto da obra de arte, sua democratizacao e massificagao. Para Adorno e Horkheimer esse proceso implicava a dissolugao da obra de arte e com ela perda da dimen- sao critica da arte. Isso significa para eles, em outras palavras, o fim da dialética e o congelamento do pro- cesso histérico. A~obra de arte “aurdtica” preservava a consciéncia de que a realidade poderia ser melhor, contendo uma promesse de bonheur no futuro. Sua dissolugo coincide com a unidimensionalizagio do mundo, com 0 contentamento com o presente. Benja- min admite a possibilidade da politizagao das massas através da obra de arte desauratizada, no entanto, com certo ceticismo. % BARBARA FREITAG “Na época de Homero, a humanidade oferecia-se em espetaculo aos deuses olimpicos; agora, ela se transforma em espetaculo para si mesma. Sua auto- alienagao atingiu 0 ponto que the permite viver sua prépria destruigéo como um prazer estético de pri- meira ordem. Eis a estetizagao da politica, como apra- tica o fascismo. O comunismo responde com a Politi- zag&o da arte." (Benfamiri, 1935, p. 196). Marcuse que advogara, como vimos, a dessubli- magao da arte, defendendo sua superagao pela equa- lizagdo das desigualdades estruturais da base econd- mica, assume como autor maduro as posigdes defen- didas por seus amigos frankfurtianos, Horkheimer e Adorno. Em um diélogo travado com Habermas em Starnberg, pouco antes de sua morte, defende a pre- servagdo da obra de arte com sua aura como tnica forma de impedir sua unidimensionalizacao, ou seja, sua cooptacao pelo sistema capitalista de producdo (cf. Habermas € Marcuse, 1978, pp. 44 ¢ segs.; ver também Marcuse, 1965, p. 183). Ao comentar as posicées dos seus antecessores, Habermas est mais proximo de Benjamin que dos de- mais. Critica Marcuse, Adorno e Horkheimer Por te- rem adotado uma posicao tradicional, limitada e idea- lista em relacao obra de arte e 4 cultura: tradicional, Porque continuam vendo na obra de arte somente uma promessa de felicidade; limitada, por se basearem em um conceito burgués de arte, no qual fendmenos artis- tices como-o jazz, 0- surrealismo; ‘o' filme contempo-- raneo, happenings, etc., nao tém lugar, e, finalmente, idealista, por nao admitirem a alterac4o interna da es. trutura e fungao da arte e cultura que acompanha © desenvolvimento do capitalismo tardio. Justamente as alteracdes ocorridas na base material do sistema de produgo permitiriam que a obra-de arte e a cul- ‘A TEORIA CRITICA: ONTEM E HOIE ” tura assumissem um novo carter e outra funciona- lidade. Essa possibilidade nao é vistumbrada nem na Dialética do Esclarecimento nem em A Ideologia da Sociedade Industrial (One Dimensional Man). Da teoria critica 4 teoria estética Adorno teve seu periodo de maior produtividade depois da volta a Frankfurt em 1950, ocasiéio em que assumiu, juntamente com Horkheimer, a direcdo do Instituto. oo. A Dialética do Esclarecimento havia afirmado a autodestruicdo da razdo: a razo que saira para com- bater o mito e se transformara, no decorrer do per- curso, ela propria em mito. Em vez de promover a emancipagao, ela assume o controle téenico da natu- reza e dos homens. Negava assim sua dimensao critica e emancipatéria, presentes no inicio do percurso. O pessimismo radical de Adorno e Horkheimer nessa coletanea de ensaios talvez tivesse sido influen- ciado pelas circunstincias histéricas especificas em que fora escrito: 0 holocausto provocado pelo nazismo na velha Europa, 0 maccartismo e a experiéncia ame- ricana dos anos 40, bem como o surgimento do socia- lismo stalinista na Unido Soviética e posteriormente na Europa do lesté, ocupada pelo exército vermielho. Nos trabalhos subseqiientes de Adorno, entre os quais se destacam Minima Moralia (1951), a Dialética Negativa (1966) e a Teoria Estética (1970), o autor prope uma nova versao da teoria critica. Se nos anos de fundacao do Instituto a reflexao critica se havia fi- xado mais nos textos de Marx, nao tendo sido, até en- 80 BARBARA FREITAG Go, abandonado o paradigma da luta de classes como possivel formula para a superacdo do sistema capita, lista, nos anos 60 evapora-se toda e qualquer espe- tanga de que a classe operdria pudesse efetivamente reverter o processo de consolidacao e Perpetuacao do sistema vigente. A desativacao da historia, a naturali. zacdo dos processos de produg&o, o congelamento das condi¢des de exploraco, de.alienagao e de dominagao seja nas chamadas sociedades socialistas, seja nas so. ciedades do capitalismo avangado, ndo deixavam dt. vidas de que a salvagio da humanidade nao Poderia Ser esperada das massas dos oprimidos. Estes jA nao se limitavam mais a classe trabalhadora; abranglam to. dos os assalariados e pequenos produtores esmagados ela légica totalitaria dos sistemas produtivos do Leste ¢ do Oeste. Esses grandes batalhaes de trabalhadores nao tinham condigdes de reconhecer 0 desespero de sua situagao material, contentando-se com as metho. tas salariais, em detrimento da perda da autonomia ¢ da consciéncia de sua exploracao e alienacao objetiva, Em conseqiiéncia dessa ‘andlise, Horkheimer ¢ Adorno vao deslocando a énfase da classe operdria Para as camadas oprimidas em geral e dessas para a esfera superestrutural. Depois da critica da razio ¢ da ciéncia, mergulham integralmente no tema da cultura € indéstria cultural, identificadas como a forma da manipulagao das consciéncias, O passo decisivo da teoria critica para a teoria estética € dado por Adorno. Em seus trabalhos sente. se claraniente 0 recuo de uma andlise mais materia. lista e sociolégica para uma énfase crescente na esté. tica, em especial a musica, no interior da qual se espe. Ihariam de forma privilegiada as tend@ncias e contra. Goes da época, possibilitando a partir delas uma teo- rizacao critica da realidade (teoria estética). ATEORIA CRITICA: ONTEME HOJE a1 Ao contrério do que se poderia crer A primeira vista, a teoria estética desenvolvida por Adorno nao constitui uma ruptura com a teoria critica dos frank- furtianos nem com seus trabalhos anteriores, mas sim a exploragio, até as tiltimas conseqiiéncias, da dimen- so critica no ambito de uma sociedade totalmente alienada, A teoria estética é para Adorno a unica for- ma consistente de negar ¢ criticar as condices mate- riais e sociais de vida social. O horror gerado pelo re- gime nazista, a paralisagao imposta pelas sociedades industriais massificadas, a estupidez da vida humana inserida em relacSes de trabalho e dominagdo que a transforma em acess6rio da m4quina produtiva e do aparelho de dominacéo — tudo isso sé pode ser cap- tado hoje no campo da estética. E aqui, na obra de arte e em especial na composicio musical, que se pre- serva uma pequena area de verdade, ainda no de todo destruida pelo inevitavel avanco do sistema, que pro- cura subordinar tudo e todos ao seu ditame implaca- velmente totalitério. Aqui a critica ainda é possivel, e € aqui que ela precisa ser feita. Depois que a cultura se transformou gradativamente em industria cultural, depois que a arte perdeu sua aura, dissolvida no con- sumo de massa, ¢ depois que a filosofia e a ciéncia se reduziram ao positivismo, em que sua pobreza so- mente permite a reflexao afirmativa do existente, res- tam poucas alternativas A sociedade moderna de asse- gurar sua auto-reflexdo e critica. Uma delas seria.a estética, & mais especificamente a misica, que preser- va ainda, segundo Adorno, a utopia de um mundo me- thor, implicando, assim, um potencial critico do pas- sado e do presente. E a teoria estética que consegue perceber, sistematizar e conscientizar essa mensagem contida na musica e em outras formas artisticas como a literatura, pintura, escultura, etc. Verdade é que 2 BARBARA FREITAG tampouco a miisica escapa ao processo de vulgarizacio banalizacao circunscrito pelos termos de “perda da aura”, “dissolugéo da obra de arte” ou seu “avilta- mento’. A musica, como as outras formas de manifes- tagdo artistica, esta igualmente sujeita — na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte — a trans- formagao em mercadoria. Esse fendmeno foi brilhan- temente analisado por Adorno em seu ensaio sobre a Tegressao da capacidade auditiva (Ueber den Fetisch- charakter in der Musik und die Regression des Hoe- rens, 1938). Especialmente a miisica chamada “‘leve” é nesse sentido a mais vulnerdvel. Mas sua transforma- ¢4o em mercadoria somente se tornou possivel com a divulgagZo e 0 consumo em massa do radio, da ele- trola, do cassete, do disco. Em seu primeiro ensaio sobre o tema, Adorno havia sido ainda mais radical. Aqui a fungao social de toda miisica é definida como sendo a de realizar sua forma de mercadoria, isto é, deixar de ser valor de uso para transformar-se em valor de troca (cf. Sobre a situagao social da miisica, 1932, p. 3). Toda musica hoje produzida j4 prevé o circuito da mercadoria, postulando-se desde 0 inicio como tal. Adorno admite, no entanto, que certas formas da mi- sica erudita de avant garde nao sao tao acessiveis compreensiveis as massas, preservando-se por isso mesmo da desauratizaco, sem entrar no circuito da mercadoria através da inddstria cultural. Adorno re- fere-se explicitamente 4 mtisica dodecafénica introdu- zida por Schoenberg e-desenvolvida por Berg, seu mes: tre em Viena, e posteriormente acatada por Hindemith outros compositores. Também essa forma musical, como todas as manifestagdes culturais auténticas, é uma codificagao das condigdes reais e materiais de vida. Ela tem o mesmo poder de representagao, inter- Pretacdo e critica da realidade que qualquer texto cien- ‘ATEORIACRITICA: ONTEM E HOIE 3 tifico, Mas justamente essas formas de representacao da realidade expressas na misica erudita de vanguar- da se prestam menos A reprodugao e ao consumo que certas formas da miisica popular como os sucessos da hit parade, estando menos sujeitas ao desgaste. A perplexidade com o real, os horrores do nosso tempo, o fracionamento da vida cotidiana podem ser magistralmente expressos nessa forma estética: a ma- sica erudita de vanguarda. Mas a misica meramente incorpora de forma enigmatica e codificada um texto que precisa ser decifrado, interpretado, revelado. Esse papel cabe.a teoria estética que em sua “leitura” da representagao musical do real decodifica e traz 4 tona os elementos criticos e contestadores nela contida, per- mitindo, assim, uma anilise e uma critica das formas materiais de organizacao da sociedade. Nesse sentido, a teoria estética se revela superior a teoria critica que bem ou mal permanecia vinculada a um conceito de razdo cuja integridade j4 tinha sido questionada na Dialética do Esclarecimento e na Dialética Negativa. Nessas obras Adorno havia expressado sua profunda desconfianga em relacgio ao proprio ato do pensa- mento. “‘A necessidade no pensamento quer, no en- tanto, que se pense. Exige sua negagio através do pen- samento, precisa desaparecer no pensamento, se qui- ser efetivamente satisfazer-se, ¢ nessa negag&o per- dura, representando no recanto mais intimo do pensa- mento, o que nao é.igual a ele."". (Adorno, 1966,.p..- 398) O fato de que a arte nao reificada se fecha a toda e qualquer conceituacdo 6 a garantia de sua preserva- gio como forma de representar criticamente a reali- dade alienada. Por isso a teoria estética no pode pro- ceder como a filosofia e a ciéncia afirmativas, cujo tinico interesse consiste em conceituar os fatos e classi- 8 BARBARA FREITAG. ficd-los, ‘para asim domin4-los, como o fizeram em relacdo & natureza e aos homens. A teoria estética pro- cura desvendar na obra de arte sua esséncia, seu ver- dadeiro caréter de negadora do real estabelecido, sem submeté-la a sistemas conceituais coerentes ou ao pro cesso de produgio e reprodug&o da mercadoria. Pro- cura, quase que intuitivamente, afinar-se e sincroni- zar-se com ela para compreender sua mensagem nega- dora e contestadora. A teoria estética assume assim a Posi¢ao de her- deira da teoria critica, propondo-se como unica forma possivel de opor-se, tedrica e praticamente, ao presen- te instituido. Somente através da teoria estética seria Possivel, no parecer de Adorno, evitar a unidimensio- nalizagao e a dissolucao da arte no cotidiano. A teoria estética consegue deduzir da arte os momentos criticos € a negatividade que ela representa, iluminando a obra de arte e compreendendo-a como Tepresentacao do real em suas miiltiplas dimensées contraditérias. Reco- nhece que a arte 6 0 tiltimo reduto, a “reserva ecolé- gica” da sociedade, em quea mensagem da “‘promessa de felicidade” permanece, contendo assim um con- tetido utépico que transcende a Tepresentacdo do real. Por isso mesmo a teoria estética Passa a ser a tinica e iltima forma de resisténcia possivel ao fechamento ge- ral das estruturas materiais e societérias. Ao desenyol- ver a teoria estética Adorno esta, pois, teorizando so- bre a arte, mas ao mesmo tempo lutando com a arma de sua nova teoria contra ostatus quo alienador.” Habermas acredita que, com as Propostas desen- volvidas a partir da Dialética do Esclarecimento até a Teoria Estética, Adorno levou a exaustao a filosofia da consciéncia subjetiva, A razio critica, em sua fideli- dade a0 negativo, precisa negar a sua propria compe- téncia para pensar o mundo. Assim sendo, ela chega a ‘ATTEORIA CRITICA: ONTEME HOJE, 85 um ponto final de sua trajetéria, deparando-se com um beco sem saida. Segundo Habermas o impasse criado por Adorno nao pode ser superado pela propria dialética negativa, ou pela nova teoria estética. Pre- cisa haver, no parecer do autor da Teoria da A¢ado Co- municativa (1981), uma mudanga radical de para- igma..Nesse sentido Habermas inclui Adorno, Hor- Kheimer e Marcuse no malogro teérico de um Weber, com sua tese do desencantamento e a racionalizacao do mundo, ou de um Luk&cs, com sua diagnose da alienagao geral. A saida, no parecer de Habermas, deve ser buscada nao na salvagao da raziio subjetiva e sim numa razdo comunicativa, intersubjetiva, apli- cada em situagGes dialdgicas nas quais os interlocuto- res buscam através da argumentagiio fundada o con- senso possivel. A razdo ¢ a critica emergeriam assim em situagGes dialégicas livres de repressio, deixando de ser subjektzentriert (centradas em um sujeito do co- nhecimento). A questo doSEstado e a dominagiio tecnocrati A mesma tendéngia j4 observada n6 tratamento das duas outras linhas i€ ser confirmada também no caso da quest tecnocratica: a teoria critic forschung se encohitra be gumentacao marxista dial. O tema do Bsfado é desenvolvido petes frankfur- tianos em tS momentos distintos: no primeiro, a questao Estado faz parte de uma discussao ampj@@ue procura conceituar as mudangas estrut rais que ocorrem na base econdmica da sociedade ca-

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