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Todos os artigos sao redigidos segundo o portugués escrito em Portugal e no adoptam o novo Acordo Ortogréfico. PUB (PUBLICIDADE) EXTREMO OCIDENTAL OS ULTIMOS CAMPISTAS PAULO MOURA (texto) @ NUNO FERREIRA SANTOS (fotografia) De Caminha a Sagres, é possivel viajar quase sempre 4 beira-mar. Durante cerca de 800 quilémetros, percorremos a costa ocidental portuguesa, com uma moto, uma tenda e um bloco de notas. Esta é a ultima paragem. Rudolph levanta-se cedo. Nao por o sol atingir a tenda em cheio, como um raio laser, a partir das 8 da manha, mas por disciplina. Engole um sumo, bolachas com tomate cru e um chd. Ajusta a prancha ea vela no tejadilho do seu Golf vermelho de 1998 e conduz pela estrada nua e plana até a praia do Martinhal. Ao fim da manhi, depois de quatro horas va pua de windsurf, vai a Sagres comer o prato do dia, sempre no mesmo restaurante, volta 4 praia para mais cinco horas agarrado ao vento, com a sua vela triangular verde e branca. O jantar é uma sandes e mais cha. Deita-se cedo, quando nao vai a um dos bares beber uma ou duas cervejas com os amigos de varias nacionalidades que j4 aqui fez. A maior parte do tempo passa-o sozinho. Tem 44 anos, nao tem filhos e deixou a namorada na Alemanha. Estes dez dias so sé para ele. Diz. que tem convivio renter suficiente durante o ano, na consultora juridica onde trabalha, em Diisseldorf. “A nossa vida é feita na artificialidade”, Sse explica ele. “O trabalho e até os habitos de nv : ¥ in d &, relacionamento com os outros sio baseados em convenes e artificios, materiais e mentais. Mas o ser humano precisa também do contacto com o mundo, com a natureza nao humana. (nttp:/imagens.publico.uol.com.br/imagens.¢ Sentir a temperatura e as suas mudangas, —!9=UtH&db=IMAGENS) o sol, o vento, a humidade, os mosquitos 4 noite. Nao podemos ter medo dessas coisas, fugir delas. Faz-nos bem mergulhar no mundo natural, interagir com ele, como se féssemos um dos seus elementos. Dormir numa tenda significa uma entrega muito profunda. E estarmos na natureza sem defesas, no nosso momento mais vulnerdvel, quando nao teriamos capacidade de reagir a qualquer agressio. £ uma espécie de pacto de confianga com anatureza”. Nao hé muitas tendas no parque de campismo de Sagres. Nem no de Odeceixe, nem no do Pessegueiro, em Porto Covo, nem em nenhum dos que vi, de Caminha a Sagres. Muitos parques esto cheios, mas nao de campistas. As pessoas tém, ou alugam, os chamados “alvéolos”, que siio uma degeneragao do conceito de bungalow, transformado numa espécie de propriedade imével constitufda por uma caravana com avancado, algumas paredes de lona grossa, madeira ou chapa, pavimentos de madeira, cimento ou tijoleira, electrodomésticos, jardim e outras provas concludentes de habitacdio permanente ou sazonal. Nalguns casos, vim a confirmar, escavaram-se secretamente caves ou andares subterraneos sob o perimetro dos “alvéolos”, para usar como adegas ou quartos de héspedes. Este tipo de “campismo” garante ha décadas as férias de milhares de fam(lias portuguesas. Para os que compraram, ou, de alguma forma menos clara, tomaram posse de um destes “alvéolos” num dos muitos parques instalados ao longo da costa, isto significa ter uma casa de praia, numa zona vigiada, com seguranga, restaurante, café e supermercado, instalagées sanitarias, corrente eléctrica, WiFi, piscina, zona de lavagem de vefculos. A distancia entre “alvéolos” é de pouco mais de um metro, ou menos de um metro, em certos casos, mas permite, a custo acessivel, dormir a poucos minutos da praia, em zonas de dunas ou pinhal, onde uma verdadeira casa custaria centenas de milhares de euros. A generalidade os parques de campismo, municipais ou privados, reserva hoje mais de 90% do seu espago a esta dibia 4a um canto, quase sempre ao sol, ou nas éreas mais ventosas, podem montar-se as tendas, que so cada vez actividade. menos. Carlos ¢ Filomena foram a uma loja de Porto Covo comprar remendos para o colchao insuflavel. Acampam hé muitos anos no parque do Pessegueiro. “Dantes, toda aquela zona era de tendas”, diz Carlos, de calgées e T-shirt branca, a chegar do seu jogging matinal. “Depois aumentaram a zona dos bungalows e agora aumentaram o parque, com toda esta zona para tendas. Mas hé muito poucas.” A nova area encontra-se quase vazia, mas j4 no hé lugares nas centenas de “bungalows”. Nao tardar4 muito, portanto, até que a zona de tendas seja invadida pelos “alvéolos”. Sagres arlos Jorge Guedes Pinto tem 54 anos e é motorista de amides. Filomena Maria Santos Pereira Lages, 55 anos, é costureira. Vivem na Madalena, perto do Porto, ela trabalha na Mai ia, ele nas estradas do Norte. Acampam ha 30 anos. “Este colchio ja é muito velho. E como deve ter ficado mal dobrado, e com humidade, furou”, explicam. No primeiro dia compraram remendos de camara de ar de bi cleta. Carlos aplicou a cola nas zonas com fissuras e depois os remendos, deixando secar. Enquanto dormiam, porém, a soltaram-se. “A cola nao aderiu.” Ea cama comegou a s emendas esvaziar, lentamente. Acordaram no chao. Agora conseguiram um kit proprio para colchées de praia. “Se nao funcionar, juro que vou dormir para o carro”, diz Filomena. Mas acabaria por resultar. 0 colchio vai esvaziando, mas devagar. De madrugada, ougo-os, na tenda ao lado, a encher 0 colchio, com a bomba. A tenda também ja tem décadas. Correu muitos parques pelo pais todo e tem-se aguentado. Desde o tempo em que Carlos e Filomena levavam os filhos para o campismo, até hoje, quando cles ja se emanciparam. Uma filha esté a trabalhar na Sufga, o que os tem levado 4, numa parte das férias. Sio os “inicos periodos em que, no tempo de lazer, no estiio a acampar. Carlos, que trabalha ha muitos anos na mesma empresa, niio gosta de férias repartidas. “Alguns colegas meus fazem isso. Esto sempre a meter dias, até parece que tém mais tempo. Mas eu nao gosto. Quero tudo seguido, que agora jé no é um més, so sé trés semanas. Mesmo assim, gosto de fazer as minhas férias de uma vez.” Como Filomena tem horarios mais flexiveis, conseguem reservar o perfodo para uma viagem. O carro, a velha tenda e ovelho colchao, equipamento de praia e de corrida, la vio eles, quase sempre para os mesmos parques, durante anos seguidos até Ihes apetecer conhecer outro. Isso permite-lhes, como sio socidveis, conhecer pessoas, de varios pontos do pais, que reencontram nos anos seguintes, nos mesmos parques, nas mesmas praias. Todas as manhis, Carlos sai para correr, pelo menos uma hora. Mas jé praticou outros desportos. Experimentou surf e skate. Acha importante manter-se em forma. O campismo faz parte dessa atitude de vida saudavel e proximidade com a natureza, “N6s preferimos acampar a ficar fechados num hotel ou pensio”, diz Filomena. “Ha parques muito bons. 0 da Figueira da Foz, por exemplo, gostamos muito. Limpo, organizado.” Na vida de Carlos ¢ Filomena, tudo parece ser limpo ¢ organizado, e suceder com uma raziio ¢ um sentido. Nao se queixam, nao se lamentam das dificuldades da vida. Fazem criticas pontuais, sem grandes ressentimentos ou rancores. Parecem ter capacidade de saborear todos os momentos, mesmo quando 0 colchiio se esvazia duas noites seguidas. Nao estavam sequer mal-dispostos quando me mostraram os remendos de bicicleta descolados. Logo pela manha, Filomena passava em frente da minha tenda e dizia: “Bom dia, vizinho.” E fazem campismo porque gostam e aprenderam a amar essa ideia de que a vida ao livre faz bem ao corpo e A alma. Sé uma vez safram de um parque zangados. Carlos estava a lavar os dentes no tanque reservado a lavagem de roupa, quando um dos residentes dos “alvéolos” se insurgiu, indignado. Chamou-lhe porco e queixou-se a um funcionario do parque. Carlos disse: “Eu nfo estou a sujar nada. Porque o incomoda que eu esteja a lavar os dentes onde vocé lava as cuecas ¢ as petigas? Qual é 0 problema?” 0 funcionario do parque admoestou-o ¢ mandou-o embora do tanque, ¢ Carlos, com Filomena, foram-se embora do parque na manha seguinte, ofendidos. “Foi a tinica vez.” Instalaram-se noutro lugar e esqueceram 0 caso. Por isso partiram, aliés. Para nfo perderem tempo com o que nao é importante. “Ainda pensei deixar-Ihe um saco com porcaria A porta da tenda, mas pensei: para qué? Fomos para sul, até ao Algarve, conhecemos lugares muito bons.” Simples e estranho. Uma vez, encontramo-nos na praia nudista. Carlos, nu, orgulhoso do seu fisico de maratonista, conversava com os seus amigos naturistas 4 beira da agua. “Todos os anos vimos a esta praia algumas vezes. J conhego aqui muita gente.” Conversémos muito, nos dois dias em que fomos vizinhos. Nao de literatura ou cinema iraniano, mas nunca me aborreci. Quando parti, despedimo-nos como se féssemos amigos. E somos. Maria Evangelista, 38 anos, também esta acampada no mesmo parque, embora cu sé 0 venha a saber mais tarde. Uma vez, quando foi aos balneérios, ouviu uma mulher dos “alvéolos” queixar-se de que tinha ali deixado uma toalha estendida e que lha tinham roubado. “De certeza que foi essa malta nova lé das tendas”, disse alto, para todos ouvirem. Maria viveu nos dois mundos. Em crianca, e durante toda a adolescéncia, vinha para aqui com os pais, para uma dessas caravanas com avangado, que esto instaladas o ano inteiro. “£ curioso que até quando as pessoas viio de férias levam todos os preconceitos e ideias de estratos sociais”, conta Maria. “Havia uma parte do parque a que chamavam a ‘rua dos ricos’, porque as caravanas eram mais bonitas. Ou porque faziam uns ‘jardins’ relvados mais engr: caravanas, que esto 4 permanentemente e pagam uma taxa anual. Aquilo funciona como uma micro-sociedade.” dos em frente as Maria Evangelista, que hoje é terapeuta holistica, bailarina, professora de Reiki e tardloga, com o nome de Hazel Claridade, faz. agora verdadeiro campismo, no mesmo parque. “Eu nunca ali tinha feito campismo em tenda. Hé uns anos havia muito mais tendas. Os meus pais faziam um campismo que inclufa ventoinhas, aquecedor (no Inverno), microondas, io, antena de televisao, fritadeira eléctrica, televis tostadeira. Maria, que esteve dentro desse mundo, compreende o que ele significa para aquelas pessoas, que viviam em apartamentos, nos subtirbios das cidades. “Havia quem dissesse que aquele pedacinho de terra em frente caravana, onde plantavam arbustos e flores, era o ‘quintal que no tinham’.” Porto Covo as nesta espécie de cidade alternativa, os campistas j@eram vistos como intrusos, marginais, ainda que se estivesse num parque de campismo. “Os das tendas eram sempre olhados de esguelha pelos das caravanas. Eram vistos como 0s ‘hippies’, os de ‘pé descalgo’.” Quando Maria Evangelista leu na Revista 2, no domingo passado, a reportagem da série Extremo Ocidental [de Norte para Sul: Um casino na aldeia http: //www.publico.pt/portugal/noticia/um-casino-na- aldeia-1703020); Quem desviou o Senhor dos Benguiados? http://www publico.pt/portugal/noticia/quem-desviou-o- senhor-dos-benguiados-1703651); Edificio em ruinas junto ao mar, com porteiro http://www publico.pt/portugal/noticia/edificio-em- ruinas-junto-ao-mar-com-porteiro- as ; Aiiltima noite do Living Opera (h ultima-noite-do-living-opera-1704951) e Na praia, sem nada http://www publico.pt/portugal/noticia/na-praia-sem- nada-1705552), a que Maria Envangelista se refere] lembrou- se de que me tinha visto no parque. Conversamos depois de me ter procurado no Facebook e escrito uma mensagem: “Quando passei por si, estava sentado na tenda e pareceu-me um eremita. Perguntei-me o que faria alguém tio profundamente solitario e sem bagagem ali. Imaginei um Lone Ranger, que virou as costas a sociedade, zangado com as injustigas.” sua A viagem entre Porto Covo ¢ Sagres é uma experiéncia de exaltacdo ¢ liberdade. Vila Nova de Mil Fontes ja entrou para o capitulo das praias classicas. O seu desenho, com o rio Mira a entrar no mar num gesto largo de rochedos ¢ dunas, esté Mas quando se avanca para sul todas as imagens platénicas se desvanecem. A Zambujeira do Mar e Odeceixe j4 parecem recantos exéticos e imprevisiveis, e as praias da costa de Aljezur siio restritas a zonas oniricas, provocam tonturas, desfasamento e nogées distorcidas do espago. Carreagem é chegar a um planeta perfeito para recomecar a vida humana e Monte Clérigo faz-nos perguntar porque nao esté toda a gente aqui. £ daqueles lugares com um toque de absoluto, onde decidimos purificar a nossa vida e juramos voltar todos os anos, todos os meses, para sentir de novo esta euforia viciante como uma droga. Azona de Aljezur seria o proximo Algarve, dizi 1990, e houve quem comprasse terrenos a sonhar com um El Dorado de hotéis e aldeamentos de luxo, numa das zonas -se Nos anos mais belas da Europa. Mas isso no aconteceu. A protecciio do Parque Natural do Sudoeste Alentejano funcionou, nenhum horrendo complexo turistico foi construfdo, os especuladores perderam muito dinheiro, mas este mundo intacto é todo nosso, simultaneamente familiar e estranho, livre e preso no nosso olhar. Odeceixe 4 no Algarve, depois da fronteira de Odeceixe, a estrada da serra até Sagres, a Nacional 268, cria a ilusio de viajarmos em zonas inexploradas, mergulhando cada vez mais fundo num pais secreto, fragrante e bravio. Ea chegada ao fim proposto da viagem é sentida realmente como o término de qualquer coisa, um ponto para além do qual nao hé nada. Finisterra. Entre Vila do Bispo, o Cabo de Sao Vicente e a Ponta de Sagres, é como estar numa bolha de vacuo, uma zona de horizontes extensos e planura, vento e mar por todo 0 lado. Parece nao ter safda, nao ter continuidade, embora nao seja hostil. & um lugar bom para se estar, para ficar. Por alguma io apetece seguir viagem. A nao ser que seja uma grande viagem. razio, Frederike e Albert estacionaram a autocaravana perto do cabo de Sio Vicente, e falam como quem vive aqui desde sempre. “Percorremos toda a Europa, milhares de quilémetros, dormindo em lugares diferentes todas as noites, até que chegdmos aqui. E decidimos ficar cé até ao fim das férias. Ha aqui uma paz que no encontramos em mais nenhum lugar da Europa.” ‘A autocaravana parece ser a verstio moderna da tenda. Tornou-se muito mais popular nos tiltimos anos. Vemo-las as centenas por toda a costa atlantica, paradas junto ao mar, is jovens, idosos, familias e viajantes solitarios. com ¢ Ralph, um holandés de 37 anos, disc jockey de profissio, veio numa espécie de jipe equipado para atravessar uma zona de guerra. £ um Mitsubishi preto, de vidros fumados, com pneus todo-o-terreno e tract quatro rodas, para-choques de ago, dois pares de faréis de nevoeiro especiais. No interior, tem cama, fogio para cozinhar, frigorifico, depésitos de 4gua e de combustfvel, computadores, aparelhagem musical de grande poténcia. “Posso viver aqui um ano, sem precisar de ajuda”, diz Ralph. “Viajo durante semanas sem falar com ninguém. Vou onde quero, com a minha misica, os meus lugares preferidos, as minhas paisagens. Sou totalmente independente e aut6nomo.” Ralph conta que se separou da namorada, se zangou com os pais, perdeu o emprego. Pegou no dinheiro que tinha e partiu sozinho. Nao tem data para o regresso. Nem sabe se vai regressar. “Alguma coisa hé-de surgir. Hei-de encontrar qualquer coisa que me faga querer regressar & vida ‘normal’.” Para ja esta em Sagres. No parque de campismo de “alvéolos” e a empresa Orbitur tem despedido pessoal todos os anos, o director tem visto o néimero de campistas diminuir, Verdio apés Verdo. “As pessoas jé nfio gostam de acampar”, disse Joéo Gomes. “Tornaram-se comodistas, preferem uma casa, ou um hotel. Tém menos dinheiro, mas mesmo assim. 10 Jacinto, onde nao ha nao querem ir para uma tenda. 0 campismo morreu.” ‘A autocaravana talvez seja o sucessor da tenda, numa sociedade em que jé ninguém tem tolerdncia para o desconforto. E um hibrido de casa e tenda, ou apenas o veiculo de uma triste transig&io para um mundo em que as pessoas deixardo de sair de casa. “Na autocaravana temos mais conforto, temos seguranga e podemos trazer sempre connosco todos os objectos de que precisamos”, diz Frederika. Tem, na traseira do vefculo, duas bicicletas que ela e o marido usam para explorar as zonas, onde estacionam. Mas ha quem traga atrelados com motos e até carros pequenos, para os pequenos percursos locais. Sagres v1 Zo faco ideia se isto representa o futuro”, diz Ralph, “Sei que nunca ficaria numa tenda. Sentir-me-ia muito vulneravel. Aqui no meu camiao posso ser eu proprio. Nao tenho nunca de dar explicagdes a ninguém, sobre nada.”

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