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Dados Internacionais de Cataloyagao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livo, SP, Bra Age inho, Santo, Bispo de Hipana, 364-430. ‘A Trindade / Sante Agestinno : fraducio do origina latino @ intraducaa ‘Agustino Belmonte; revis20 e notas complerentares Nair de Assis Olveiral. — S80 Paulo : Paulus, 1984 — (Pattistica} Biblogratia. ISBN 25-949-0908-1 1. Tealogia dogmatica — Histria — Igreja primitive, ca, 60-600 2, Trindade | Titulo I. Série. 92-2000 ©pp-231,044 Indices para catélogo sistemiltice: 1. Teologia trnitria : Teologia cogmética erst 281.044 2. Trindage : Teologia dogmética eristé 251,044 Coleco PATRISTICA + Padres Apostoticos + Peres Apologistas + Justina de Roma sTreneu de Liéo + Sarto Agostinho, A Trindade SANTO AGOSTINHO A TRINDADE er pprrocid® nj og Bo “4 —exanoa ~ 8? pauls Titulo original Be Trintate CO texto laine de base ¢ o da Ediqio Maurina, conforme BA.G.,t. V. A revietio da tradugao foi cotejada com edigaes em francés e espantl Tradugtio do original latino ¢ Introdugo Frei Agustin Belmonte, OAR. Revisto @ notas complementares Ir, Neur de Assis Olvera, CSA, Raevisfio HH, Datbosco Ditego editorial Pe, Manoel Quinta "PAULUS - 1995, Rua Francisco Cruz, 223 4117-091 Sao Paulo (Brasil) Fax (011) 875-7403, Tel (O11) 572-2062 ISBN 85-349.0098-1 APRESENTACAO Surgit, pelos anos 40, na Europa, especialmente na Franca, um movimento de interesse voltado para os anti- gos escritores cristaos e suas obras conhecidos, tradicio- nalmente, como “Padres da Igreja’, ou “santos Padres”. Esse movimento, liderado por Henri de Lubac e Jean Dani¢lou, deu origem % colegdo “Sources Chrétiennes”, hoje com mais de 300 titulos, alguns dos quais com vérias edigaes. Com o Concitio Vaticano I, ativou-se em toda a Igreja odesejoea necessidade de renovacao da liturgia, da exegese,da espiritualidadee da teologia a partir das fontes primitivas, Surgiu a necessidade de “voltar as fontes” do cristianismo. No Brasil, em termos de publicagdo das obras destes autores antigos, pouco se fez. Paulus Editora procura, agora, preencher este vazio existente em lingua portugue- sa. Nunca é tarde ou fora de época para se rever as fortes da fé crista, os fundamentos da doutrina da Igreja, espe- cialmente no sentido de buscar nelasainspiragdoatuante, transformadora do presente. Nao se propée uma volta ao passado através da leitura e estudo dos textos primitivos como remédio ao saudosismo. Ao contrario, procura-se ofere- cer agquilo que constitui as “fontes” do cristianismo para que 0 leitor as examine, as avalie e colha ¢ essencial, o espirito que as produziu. Cabe ao leitor, portanto, a tarefa do discernimento. Paulus Editora quer, assim, oferecer ao piiblico de lingua portuguesa, leigos, clérigos, religiosos, aos estudiosos do cristianismo primevo, uma série de titulos, ndo exaustiva, cuidadosamente traduzidos e pre- parados, dessa vasta literatura crista do periodo patristico. APRESENTAGAO 6 Para néo sobrecarregar o texto e retardar a leitura, procurou-se evitar anotagées excessivas, cs longas intro- dugées estabelecendo paralelismos de versdes diferentes, com referéncias aos empréstimos da literatura paga, filo- sofica, religiosa, juridica, as infindas controvérsias sobre determinados textos e sua autenticidade. Procurou-se fa- zer com que o resultado desta pesquisa original se tradu- zisse numa edigéo despojada, porém, séria. Cada autor e cada obra teréo uma introducdo breve com os dados biograficos essenciais do autor e um comen- tdrio sucinto dos aspectos literdrios e do contetédo da obra suficientes para uma boa compreensao do texto. O que interessa é colocar 0 leitor diretamente em contato com o texto. O leitor deverd ter em mente as enormes diferencas de géneros literdrios, de estilos em que estas obras foram redigidas: cartas, sermées, comentarios biblicos, pardfra- ses, exortacées, disputas com os heréticos, tratados teoli gicos vazados em esquemas e categorias filoséficas de tendéncias diversas, hinos litirgicos. Tudo isso inclui, necessariamente, uma disparidade de tratamento e de esforco de compreensdo a um mesmo tema. As constantes, e por vezes longas, citagdes biblicas ou simples transcri- des de textos escrituristicos, devem-se ao fato de que os Padres escreviam suas reflexdes sempre com a Biblia numa das méos. Julgamos necessério um esclarecimento a respeito dos termos patrologia, patristica e padres ow pais da Igreja. O termo patrologia designa, propriamente, o estu- do sobre a vida, as obras e a doutrina dos pais da Igreja. Ela se interessa mais pela histéria antiga incluindo tam- bém obras de escritores leigos. Por patristica se entende 0 estudo da doutrina, as origens dessa doutrina, suas de- pendéncias ¢ empréstimos do meio cultural, filoséfico e pela evolugéo do pensamento teoldgico dos pais da Igreja. Foi no século XVII que se criou a expressao “teologia 7 APRESENTACAO patristica” para indicar a doutrina dos Padres da Igreja distinguindo-a da “teologia biblica”, da “teologia escoldstica”, da “teologia simbélica” ¢ da “teologia especulativa”, Finalmente, “Padre ow Pai da Igreja” se refere a escritor leigo, sacerdote ou bispo, da antiguidade cristd, considerado pela tradigao posterior como testemu- nho particularmente autorizado da fé. Na tentativa de climinar as ambigitidades em torno desta expresso, os estudiosos convencionaram em receber como “Pat da Igre- Ja” quem tivesse estas qualificagdes: ortodoxia de doutr na, santidade de vida, aprovagao eclesidstica ¢ antiguida- de. Mas, os préprios conceitos de ortodoxia, santidade e antiguidade séo ambtguos. Nao se espere encontrar neles doutrinas acabadas, buriladas, irrefutdveis. Tudo estava ainda em ebuligtio, fermentando. O conceito de ortodoxia é portanto, bastante largo. O mesmo vale para o conceit de santidade. Para o conceito de antiguidade, podemos admitir, sem. prejutzo para a compreensdo, a opinido de muitos especialistas que estabelece, para o Ocidente, Igre- ja latina, o pertodo que, a partir da geragéo apostélica, se estende até Isidoro de Sevilha (560-636). Para o Oriente, Igreja grega, a antiguidade se estende um pouco mais até a morte de s. -Jodo Damasceno (675-749). Os “Pais da Igreja” stio, portanto, aqueles que, ao longo dos sete primeiros séculos, foram forjando, cons- truindoedefendendoa fé, aliturgia, a disciplina, os costu- 08 dogmas cristéos, decidindo, assim, os rumos da Igreja. Seus textos se tornaram fontes de discussées, de inspiragées, de referencias obrigatérias ao longo de toda tradigao posterior, O valor dessas obras que agora Paulus Editora oférece ao piiblico pode ser avaliado neste texto: “Além de sua importancia no ambiente eclesidstico, os Padres da Igreja ocupam lugar proeminente na literatura e, particularmente, na literatura greco-romana. Sto eles os ditimos representantes da Antiguidade, cuja arte literd me: APRESENTACAO, 8 ria, no raras vezes, brilha nitidamente em suas obras, tendo influenciado todas as literaturas posteriores. For- mados pelos melhores mestres da Antiguidade cldssica, poem suas palavras e seus escritos a servico do pensamen- to cristéo. Se excetuarmos algumas obras retéricas de cardter apologetico, oratério ou apuradamente epistolar, os Padres, por certo, nao queriam ser, em primeira linha, literatos, e sim, arautos da doutrinae moral cristas. Aarte adquirida, nao obstante, vem a ser para eles meio para aleangar este fim. (...) Ha de se lhes aproximaro leitor com 0 coracéo aberto, cheio de boa vontade e bem disposto i verdade crista. As obras dos Padres se the reverterao, assim, em fonte de luz, alegria e edificagdo espiritual” (B. Altaner; A. Stuiber, Patrologia, Paulus, S. Paulo, 1988, pp. 21-22), A Editora INTRODUGAO" O tempo decorrido do ano 400 a 416, periodo dedicado a elabogaio deste monument teoldgico e filoséfico, que é 0 tratado De Trinitate, revela, por um lado, a profundidade do tema e, por outro, a seriedade com que o bispo de Hipona encarou seu projeto. E verdade que nao foram dezesseis anos? dedicados apenas & construgao deste mo- numento, pois, além de seus afazeres pastorais, sua pena incansavel estava a servico da {6 catdlica, em sua defesa e ensino, mediante outros escritos.* Aobraestampao retrato de homem pertinaz em suas investigacdes, mestre do bem escrever, fiel & Revelacdo e a Tradigao, eximio escafandrista nas 4guas dos textos escrituristicos, esgrimista versatil nas refutagdes dos erros. Revelando-se, porém, nao apenas como tratadista de Deus, mas também alma de profunda piedade e de ardente caridade, as dissertagdes esto salpicadas de reflexdes piedosas, de veementes protestos de fidelidade & ortodoxia catélica, de amorosos, embora enérgicos, in- centivos ao abandono do erro, aos que persistiam em suas opinides demolidoras da unidade no mistério trinitario. O enfoque de varios aspectos do mistério traduz sua época, pois, os estudos de hoje talvez dispensassem dis- cursos t&o prolixos. Tenha-se em conta, porém, os recur- sos de que se valiam os ensinamentos heréticos para impor seus principios e enredar na trama de seus sofis- mas os fiéis despreparados e, portanto, ameacados na pureza de sua fé. syTRopuGAO 10 Vivia-se ainda a transigao do paganisimo para o cristianismo, cujos dogmas estavam muito distantes das crengas vigentes sobre a divindade. A fé catdlica em Deus uno e trino, impossivel de ser vislumbrado por inteligén- cias carentes de fé, adquiria foros de maiorincompreensio perante o mistério da encarnacao, tio intimamente asso- ciado ao mistério trinitario. E no seio da propria Igreja, a revolta ou a fé vacilante levou muitos batizados a envere- darem pelos caminhos da heresia, opugnando erengas j4 arraigadas no espirito dos erentes. O leque de doutrinas heréticas apresentava as varie- dades mais diversas, algumas partindo diretamente do mistério trinitério e outras considerando a pessoa de Cristo em suas relagdes com 0 mesmo mistério. No séeulo II, erguendo 0 lema de Monarchiam tenemus (Temos monarquia), surgiu a doutrina da existéncia de um 56 Deus com exclusao das diferentes pessoas. Para uma faccdo dos manarquinianistas, Cristo era um simples homem, e representava apenas o dinanismo de Deus (dinamistas), para outra, era to sé filho de Deus pela graca (adopcionistas). Os monarquianos modalistas asse- guravam a divindade de Cristo, mas somente como um rosto diferente de Deus; os patripassistas nao viam dife- renga entre o Pai eo Filho e receberam essa denominagao pela doutrina que defendiam, ou seja, atribuiam ao Pai os sofrimentos de Cristo. O sabelianismo se insurgiu contra a fé em trés pessoas, as quais seriam apenas denomina- des diferentes para uma esséncia divina. 0 adopcionismo considerava 0 Verbo encarnado como filho natural de Deus na natureza divina, e filho adotivo na natureza humana. Negando a primeira parte da heresia anterior, © arianismo exeluia o Filho da esfera da divindade e o considerava apenas como filho adotivo de Deus, Com relaco a pessoa divina do Espirito Santo, levantaram-se principalmente os pneumatics que Ihe negavam a divin- ul INTRODUGAO dade e, conseqtientemente, apregoavam sua inferiorida- de com relagao ao Pai e a0 Filho. As vozes dos defensores da ortodoxia levantaram-se em todos os momentos em favor da autenticidade da fé com base nas préprias Escrituras e também com argu- mentos de razao. Santo Ireneu notabilizou-se nesse cam- pocom sua obra “Adversus Haereses” (Contra os hereges). Tertuliano, no século IJ ainda, colocou seu talento princi palmente contra os modalistas com a obra “Adversus Praxeas” (Contra Praxéias). Clemente de Alexandria, Origenes, Basflio foram também propugnadores imper- térritos da fé, sem esquecer Dionisio de Alexandria, no seu empenho em refutar a argumentacao dos sabelianos; eNovaciano, notavel pelo métodoe elegaincia na exposigaio. do simbolo da fé, assim como santo Ambrésio. Na luta contra os arianos destacaram-se santo Atandsio e Santo Hildrio, O primeiro, no século IIT, bispo de Alexandria, foi ohomem enviado por Deus para fazer frente aos impetos da heresia, a qual enfrentou com energia mediante seus escritos apologéticos sobre a Trindade. O segundo, cha- mado o Atanasio do Ocidente, celebrizou-se também nes- sa luta com sua obra “De Trinitate” — uma exposigao ortodoxa da fé no mistério trinitario, em estilo elegante e com firmeza de argumentagao. Essa luta, que se travava ha séculos, reclamava da Igreja uma proclamagao oficial que viesse por ponto final nas discussdes que se alongavam, tumultuavam o am- biente e confundiam os espiritos. Nada mais convincente do que a realizacao de um concilio universal, onde os pastores do rebanho de Cristo, dispersos nas diversas partes do mundo, se reunissem para expressar sua comu- nhao e a unidade da fé, A grande assembléia realizou-se em Nicéia, em 325, coma presenca de 318 bispos catélicos e 22 arianos. No final, foi apresentado o simbolo da fé, onde a profissao de f no mistério da Trindade confessa a INTRODUCAO 2 existéncia de um sé Deus em trés pessoas: Pai, Filho e Espirito Santo. Devido a uma doutrina errénea sobre 0 Espirito Santo, 0 segundo concilio ecuménico de Cons- tantinopla em 381 esclareceu o pensamento catdlico como acréscimo de expressdes que elucidavam a questdo, O simbolo da fé, elaborado no primeiro concilio e completado no segundo 6, por isso, denominado niceno-constantino- politano. As definigSes conciliares nao foram suficientes para a extingao dos movimentos heréticos. Eis porque Agosti- nho langou-se a elaboragao de sua obra, contando certa- mente com a ajuda de muitos escritos ortodoxos anterio- res a seu tempo ou contemporaneos, e com as definigées dos concilios. Mas como ele préprio afirma na obra, a maioria desses tratados estavam redigidos em grego — obras, portanto, fora do aleance da Igreja do Ocidente e dele préprio, que nao era muito versado nesse idioma. Havia assim uma ansia geral pelo aparecimento de um tratado que iluminasse mesmo de longe, os arcanos da verdade sobre 0 mistério do Deus uno e trino, explicasse 0s conceitos, mostrasse a concordancia dos textos escrituristicos, apesar de aparente contradic&o, langasse luz sobre 0 mistério com argumentos de razio, mais acomodados & mentalidade humana, e refutasse, com a Biblia na mao, as proposigées heréticas apresentadas com subtileza para ocultar a falsidade.* Na investigagdo da verdade, ao mesmo tempo que alga vos altanciros em exposigées brilhantes, curva-se perante 0 mistério insondavel quando percebe os limites da pesquisa humana e, longe de se arvorar em mestre infalivel, incita os leitores a procura de outros esclareci- mentos, dispondo-se a corrigir o resultadode suas buseas, se descobrirem que ele nao atingiu a verdade. 18 mvTRODUCAO Estrutura da obra O tratado agostiniano sobre a Trindade consta de quinze livros, duzentos e trés capitulos, quantro prélogos e trezentos e sessenta e trés itens ou ntimeros. A carta 174, por decisao do préprio Agostinho, antecede 0 inicio do tratado, Transcrevemos na integra essa carta, mais adiante. Nos primeiros capitulos do I livro, 0 autor assenta o fundamento da construgao que pretende erguer: a f6 catélica no mistério trinitario, a qual assegura, conforme testemunho das Escrituras e da Tradigdo: “que 0 Pai, o Filho e o Espirito Santo perfazem uma unidade divina pela insepardvel igualdade de uma e mesma substancia”. ‘Desenvolve, em seguida, as conseqiiéncias dessas afirma- ‘des argumentando sobre a consubstancialidade do Filho e do Espirito Santo em relagio ao Pai, assim como a inseparabilidade de operagées e a igual imortalidade. As implicancias do mistério do Verbo encarnado com o m: tério da Trindade nAo contradizem o fundamento da fé catélica, pois as aparentes divergéncias sao explicadas pelas duas naturezas de Cristo (I Livro). No segundo e no terceiro livros, aborda as missoes divinas, estabelecendo antes as regras da hermenéutica, ou seja: por um lado, textos escrituristicos atestam a unidade ¢ igualdade de esséncia do Pai e do Filho; por outro lado, outros textos falam do Filho na forma assumi- da de criatura. Sao investigadas entao as aparigdes a Addo, a Abrado, a Lot, a Moisés e a Daniel e as manifes- tagdes mediante a nuvem e a coluna de fogo no deserto. Conclui sempre que essas visdes se verificaram mediante uma criatura corpérea. Para esclarecimento da verdade sobre as referidas aparigdes, Agostinho disserta sobre a causalidade das coisas, concluindo ser a vontade de Deus a lei superior de todas as coisas e ser a esséncia divina INTRODUGAO “4 invisivel. As teofanias acontecem por meio de anjos a servico do Criador (II e III Livros ). Disserta, depois, especificamente sobre a missao do Filho, cuja tinica morte remédio para a dupla morte do homem; e sobre a mediacao de Cristo para a vida. Apesar de enviados, o Filho e 0 Espirito Santo sao iguais ao Pai (IV Livro ). Apés apresentar os conceitos filoséficos de substn- cia e acidente, o santo lembra que, embora sobre Deus nada se possa afirmar quanto aos acidentes — pois nele nao existem, contudo, pode-se admitir nele a categoria de relagio. Com essa distingao, refuta o argumento dos arianos baseados nos conceitos de ingénito e gerado. Como conseqiéncia, reafirma a igualdadena Trindade, a consubstancialidade do Espirito Santo como Pai eo Filho, e conclui pela existéncia de um s6 Deus e nao de trés deuses (V e VI Livros ) A afirmacao do apéstolo Paulo: “Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus”, dé ensejo para dissertar sobre atese da unicidade da sabedoria na Trindade, assim como de unicidade de esséncia, Preocupa-o, em seguida, a pergunta: “O que sao 0s trés?” E apresenta duas respos- tas: os trés sfio uma esséncia e trés substancias, para os gregos; e uma esséncia e trés pessoas, para os latinos. Embora dé preferéncia ao modo de se expressar dos latinos, conclui que se trata de recursos da linguagem humana a qual é inadequada para exprimir 0 que nao foi revelado (Livros VI e VID). Depois de acentuar mais uma vez a igualdade das trés pessoas, agora, por meio de um argumento de raz&o, o santo estabelece que, para a compreensao de Deus, deve-se deixar de lado qualquer imagem corpérea, mas que se pode entender algo da natureza de Deus pela inteleceaio da verdade, pelo conhecimento do Sumo Bem e pelo amor a justiga. O caminho mais breve, porém, é a 15 inTRODUCAO vivéncia do amor, no qual se percebe certo vestigio de Deus (VIII Livro). Lanea-se entao a procura de uma imagem de Deus até encontré-la na mente do homem, onde se depara com a trindade: inteligéncia, conhecimento e amor, com o qual ‘ama o seu proprio conhecimento. Aprofundando a pesqui sa, descobre na mente uma trindade mais importante: a meméria, o entendimento e a vontade (IX e X Livros) Como que dando um passo atrés, mas justificando seu procedimento pela necessidade de exercitar a inteli- géncia dos leitores, investiga depois a existéncia de uma imagem de Deus no homem exterior. E encontra a primei- ra, na visdo exterior das coisas, constituida pela visao do objeto, a imagem dele formada no olhar do vidente, e a intengao da vontade como elemento de ligacdo. As trés realidades, porém, nao sao da mesma substancia. Encontra a segunda imagem, cujos elementos sao da mesma substancia, constituida pela imagem do corpo retida na meméria, pela informacao obtida pelo olhar do pensamento, e pela intengao da vontade como terceiro elemento (XI Livro) Prossegue a investigagio sobre a imagem de Deus no homem. Depois deestabelecer a diferenca entre sabedoria ¢ ciéncia, surge a descoberta de uma imagem, ainda inferior, na ciéneia, embora prépria do homem interior. E enfoca 0 asstinto da ciéncia relacionando-o com a fé, que 6 comum e una em todos os crentes, e necesséria para a felicidade do homem. A felicidade verdadeira tem a nota da imortalidade, a qual o homem pode almejar a aleangar pelos méritos da vida, morte e ressurreicao do Verbo encarnado (XII e XIII Livros). Chegando ao fim da pesquisa, encontra a imagem de Deus no homem segundo a mente, que se renova no conhecimento de Deus conforme a irnagem daquele que o criow a sua imagem. Com a mente, o homem percebe a inTRODUGAO 16 sabedoria, contemplagao do eterno. Contudo, a Trindade, nesta vida, o homem a vé t4o-somente em espelho e em enigma, pois essa visio acontece por meio da imagem de Deus, que 6 0 proprio homem — semelhanca obscura e dificil de se discernir. Hssa descoberta permite explicar de algum modo a gerac&o do Verbo divino, ou seja, mediante a geracao da palavra em nossa mente. As tltimas roflexdes versam sobre a procedéncia do Espirito Santo, a qual é explicada como sendo o amor entre 0 Pai e 0 Filho (XIV e XV Livros).5 A obra nas “Retratagées” No ano de 427, Agostinho esereveu a obra “Re- tractationes” (Retratacées), em dois livros, em que revé afirmagies contidas em obras suas jé publicadas, e sobre as quais julga necessario apresentar esclarecimentos ou até corregées. Com relacao a “De Trinitate” faz referéncia trés vezes. Bi-las: 1) “No livro XI (eap. 5 n. 9), quando tratava do corpo visivel, disse: Portanto, amé-lo, isso é loucura. Referi-me ao amor com que se ama algo, a ponto de o amante por sua felicidade na sua fruicdo. Pois nao é sinal de loucura amar a formosura corporal para louvor do Criador.” 2)“Nomesmo livro (cap. 10 1n. 17), quando disse: “Nao me recordo de uma ave quadripede, porque nunca a vi. Mas posso contemplar com facilidade esse ser ficticio, pois, como ja vioutras aves, acrescentando outros dois pés semelhantes aos que j4 observei", ao dizé-lo, nao me Jembrei das aves quadriipes mencionadas na Lei (Lv 11- 20). A Lei nao considera como pés, as duss patas poste- lores que permitem o salto aos gafanhotos, tidos como animais puros. Distingue-os dos volateis que nao saltam Ww INTRODUGAO com 0 auxilio dessas patas, como os esearavelhos. Todos esses volateis s8o denominados quadriipedes na Lei”. 3) “No livro XII (cap. 1 n. 15), 0 comentério das palavras do Apéstolo: “Todo outro pecado que o homem cometa, é exterior ao seu corpo” (Cor 6,18), nao me agrada. Eas palavras:“Aquele queseentregar &fornicagio, peca contra 0 préprio corpo” (1Cor 6,18), ndo se hio de entender no sentido de que aquele que comete esse peca- do, comete-o para ter as sensagdes que 0 corpo percebe, de tal modo que nelas ponha seu tiltimo fim. Isso abrange muitos outros pecados além da fornicacdo perpetrada mediante uniao ilicita, da qual o Apéstolo fez referéncia ao dizer isso.” (Retra cf. II 15,23) Essa obra, excetuando-se a carta que a encabeca, comeca assim: Quem se entregar & leitura do que escrevemos sobre a Trindade... (Lecturus haec quae de Trinitate disserimus). CARTA PROLOGO Carta 174 De Agostinho, ao beatissimo, muito amado e veneraval papa Aurélio santo irmaoecolega no sacerdécio, saudagao no Senhor.” Sendo ainda muito jovem, iniciei a elaboragao destes meus livros sobre a Trindade, que 6 0 Deus sumo e verdadeiro. Agora, entrado em anos, trago-os a ptiblico.* Interrompi esta obra, apés ter constatado que mos ha- viam tirado As escondidas ou mesmo furtado, antes de os haver terminado e revisto, como era o meu desejo. Propu- sera-me publied-los nao em livros separados, masemuma obra completa, pois assuntos subseqtientes ligam-se aos precedentes no transcurso da pesquisa. Como nao me foi possivel executar esses planos (pois, contrariamente a minha vontade, os volumes chegaram is maos de alguns), interrompi o ditado dos livros, pensando lamentar 0 fato em outros escritos, ¢ assim fosse tomado conhecimento, 0 quanto possfvel, de que os referides livros me foram furtados antes que os julgasse dignos de virem & luz. Atendendb, porém, aos insistentes pedidos de muitos irmdos e principalmente, obrigado pela tua ordem, deter- minei terminar com a ajuda de Deus tao penoso empreen- dimento, Pelas mios denosso carissimo filhoeco-diécono, faco-os chegar as twas mios jA corrigidos — nao tao bem. como o desejava, mas de acordo com minhas possibilida- CARTA 174 20 des —, para assim no se diferenciarem tanto dos que, levados por alguém, escaparam-me das maos. E dou autorizagao a todos os que queiram escuté-los, copié-los ou lé-los, Se tivesse podido realizar meu desejo, conser- vando o mesmo contetido, a minha exposigio teria sido mais explicita e clara, isso na medida que as dificuldades, que envolvem a explanagao de assuntos tao profundos ea nossa propria capacidade o tivesse permitido. Ha pessoas que tém consigo os quatro ou, talvez, 0 cineo primeiro livros sem os devidos prélogoseo duodéeimo livro sem uma parte final consideravel. Se esta presente ediao chegar-Lhes as mos, poderdo fazer as corregaes, se oquiserem ou puderem. Solicito, como medida de prudén- cia, que mandes transcrever esta carta A parte, antes do inicio de todos os livros. Adeus! Reza por mim! Loiam-se também as Notas complementares & Introdugio: 1. 9: Origer do emprego da “Trindade” 1 10: A famosa Jenda do Anjo na praia. 1. 11: Contribute trazido A doutrina trinitaria da Tgreja “Vés a Trindade, se vés a Caridade”. {Vides Trinitatemt, si charitatem vides) (VIL, 8,12)- “Lembre-me eu de ti» conhega-te a tis ame-te a ti- Faze-me cresce™ reforma-me por inteiro”- (Meminerim tui, intelligam te, diligam te- Auge in me ista, donee me reformes ad integrum) (XV, 28,51)- | | LIVRO I —— Unidade e igualdade da Trindade nas Escrituras — Refutacao dos erros contra a igualdade do Filho CAPITULO 1 Precaucao contra os hereges. A verdadeira imortalida- de. A fé ea compreensao das coisas divinas 1. Quem se entregar A leitura do que escrevemos sobre a ‘Trindade, deve terem conta, primeiramente, que nossa pena esta atenta para repelir as faisas afirmacies daqueles que, desprezando os prinefpios da f6, deixam-se enganar por um imaturo e desordenado amor pela razo, Alguns petendem aplicar as coisas incopéreas e espirituais as nogdes adquiri- das sobre coisas corpéreas, mediante os sentidos, ou gracas a forca da raza humana eA potencialidade da investigagao; ou ainda com a ajuda de alguma arte, pretendendo medir as coisas espirituais pelas corporais e conjeturar sobre aquelas como fazem com estas. Ha outros que pensam sobre Deus —se é que pensam alguma coisa —, apoiados na natureza da alma humana ou em seus sentimentos, Desse erro sio levados a fixar regras falsas e falazes em suas doutrinas, quando discor- rem sobre Deus. Ha ainda uma terceira espécie de indivi- duos que se esforcam por transceder as coisas criadas, certamente mutéveis, para se aplicarem & substancia imutavel, que é Deus. Onerados, porém, pelo peso da mortalidade, querem fingir saber 0 que ndo sabem; mas como nfo siio capazes de conhecer 0 que almejam, afir- mam com todo atrevimento suas opinides hipotéticas, LivRot 24 fecham a simesmos os caminhos da inteligéncia, preferin- do nao se corrigirem de suas falsas afirmagées, a modifi- carem o que defendem.' Esse 6 0 mal dos trés grupos de individuos aos quais me referi ou seja: 05 que enfocam o tema ce Deus como uma substancia corpérea; og que 0 abordam conforme os seres espirituais, como a alma; e os que nfo obedecem a nenhum dos dois critérios ¢ emitem opinides falsas a respeito de Deus. Esto eles tanto mais longe da verdade quanto mais seus conhecimentos n&o apéiam, nos senti dos corporais nem no espirito criado; nem no préprio Criador. Quem julga, por exemplo, que Deus é branco ou louro, engana-se, ainda que de qualquer maneira encon- tremos esses acidentes no corpo. Quem considera que Deus agora se esquece e depois se lembra, ou tém outras opinides semelhantes, est totalmente em erro, ainda que de qualquer forma, essas faculdades se encontrem na alma. Quem, porém, pensa que Deus é dotado de tal forca que tenha gerado a si mesmo, incorre em maior erro ainda, jd que Deus niio somente nao é assim, e tampouco 6 uma criatura espiritual ou corporal. Nao hé criatura alguma que seja capaz de gerar a si mesma para existir. 2. Com a finalidade de purificar o espirito humano de semelhantes erros a santa Escritura, acomcdando-se aos pequenos, nao evitou expresses designando esse genero de coisas temporais, mediante as quais nosso entendi- mento, como que alimentado, pudesse ascender por de- graus, as coisas divinas e sublimes. Por isso, empregou palavras tomadas das coisas corporais ao falar de Deus como, por exemplo, quando diz: Protege-me a sombra de tuas asas (S| 16,8). E apropriou-se também de muitas expressoes referentes ao espirito para significar aquilo que, embora nao seja desse modo, era preciso que fosse dito assim, como: Eu sou um Deus ciumento (Ex 20,5), € 25 123 também: Pesa-me de ter feito 0 homem (Gn 6,7). Em se tratando de coisas inexistentes, a Escritura nao registrou expressio alguma que envolvesse locugées figurativas ou encerrasse enigmas. Dai, que se perdem em afirmacoes vise perniciosas os que se afastam da verdade, abragando aquela terceira espécie de erro. Conjeturam a respeito de Deus elementos que nao se encontram nele mesmo, nem em criatura algumas. Com elementos proprios das criaturas, a Escritura divina costuma compor como que jogos infantis, com a intencdo de que os sentimentos dos simples sejam estimu- lados, como que passo a passo, & procura das coisas superiores, no abandono das inferiores.? O que, porém, 6 dito com propriedade somente a respeito de Deus e que nao se encontra nas criaturas, a divina Escritura rara- mente registra, como o que foi dito a Moisés: Eu sou o que sou, e também: Aquele que é, enviou-me a vds (Ex 3,14). Ainda que o verbo “ser” seja empregado também em. relacdo ao corpo e a alma, a Escritura nao o empregaria, se n&o quisesse dar a essas palavras um sentido todo especial, ao se referir a Deus. Do mesmo modo quando 0 ‘Apéstolo diz: O unico que possui a imortalidade, 0 senhor dos Senhores (1Tm 6,16). Visto que se diz a alma ser imortal, como de fato é, a Escritura nao diria: “O tinico”, se a verdadeira imortalidade nao fosse a imutavel, da qual nenhuma criatura é dotada, j4 que esta imortalidade per- tence somente ao Criador. O mesmo dé entender apés- tolo Tiago: Todo dom precioso ¢ toda dddiva perfeita ver doalto, descendo do Pai das luzes, no qual nao hd mudan- ga nem sombra de variagao (Tg 1,17). Hatambémoque diz Davi: E como uma vestidura, tu as mudas e ficam muda- das; tu, porém, és sempre o mesmo (SI 101,27-28). 3. Desse modo torna-se dificil intuir e conhecer plena- mente a substancia de Deus,* que faz as coisas mutaveis LIVROL 26, sem mudanga em si mesmo, ecria as coisas temporais sem qualquer relacao com o tempo. Faz-se mister, por isso, purificar nossa mente para podermos contemplar inefa- velmente 0 inefavel. Ao nao conseguirmes ainda essa purificacao, alimentamo-nos da fé, somos conduzidos por caminhos mais praticaveis a fim de sermos capazes de chegar a compreender a Deus.‘ Nesse sentido, afirmou o Apéstolo que todos os tesouros da sabedoria e da ciéncia estdo escondidos em Cristo (Cl 2,3), mas apresentou-0 aos que, embora renascidos pela graca, sio ainda carnais e animais, e portanto tais criancas. Assim, apresenta 0 Cristo ndo com o poder divino pelo qual é igual ao Pai, mas na fraqueza humana na qual foi crucificado. Diz textual- mente: Pois eu nao quis saber outra coisa entre vés a nao ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado. E, prosseguin- do: Estive entre vés cheio de fraqueza, receio e temor (1Cor 2,2-3). E mais adiante: Quanto a mim, irméos, nao vos pude falar como a homens espirituais, mas téo-somen: te como @ homens carnais, como a criangas em Cristo. Dei-vos a beber Leite, n&o alimento sdlido, pois néo 0 podicis suportar. Mas nem mesmo agora 0 podeis (1Cor 3,12). Quando se fala tudo isso a certas pessoas, elas so tomadas de furor e consideram-no um insulto, Preferem acreditar nao terem o que dizer os que isso dizem, antes de se considerarem a si mesmos incapazes de compreen- der o que lhes ¢ dito. As vezes, Ihes apresentamos certa argumentago, nao justamente o que pedem quando in- vestigam sobre Deus, pois eles nao tém capacidade de compreendé-lo — nem nés talvez tenhamos para com- preendé-lo e explicd-lo. Somente expomos alguns argu- mentos que demonstram a sua incompeténcia e inido- neidade para entenderem 0 que exigem. Essas pessoas como nao ouvem aquilo que desejam — ou pensam que agimos com astiicia para ocultar nossa incapacidade, ou 27 24 talvez que agimos com maldade, por lhes invejarmos a competéncia —, indignadas e confusas, afastam-se de nés. CAPITULO 2 O procedimento neste estudo sobre a Trindade 4, Considerando precedente, com a ajuda de nosso Deus e Senhor e conforme nossa capacidade, empreende- remos a tarefa que nos pedem, e assim demonstraremos que a Trindade 6 um s6 e verdadeiro Deus, e quao retamente se diz, se cré e se entende que o Pai, o Filho e o Espirito Santo possuem uma s6 e mesma substancia ou esséncia.? Assim nao poderao afirmar, por assim dizer, que enganamos os adversarios com nossas pretensdes. Mas que se convengam pela propria experiéncia de que existe aquele sumo Bem, s6 visivel &s mentes muito puras. E se eles nao podem compreender, é porque 0 limitado olhar da inteligéncia humana nao é capaz de se fixar nessa luz sublime, se nao for alimentado pela justica fortalecida pela fé. Primeiramente, porém, é preciso demonstrar pela autoridade das santas Escrituras, a certeza de nossa fé. Em seguida, se Deus assim quiser e ajudar, atenderemos a esses garrulos raciocinadores® — mais cheios de si do que capazes, vitimas de um mal deveras perigoso—, a fim de que encontrem uma doutrina da qual nao possam. duvidar. Se nao quiserem se convencer, queixem-se antes da debilidade de suas mentes do que da verdade, ou mesmo da nossa argumentacao, Se neles ainda restar algum amor ou temor a Deus, retornem aos principios e & ordem da fé, ¢ assim experimentem a sauddvel medicina LIVROT 28 dos fiéis, existente na Igreja, de modo que uma piedade auténtica cure a mente doentia incapaz de perceber a verdade imutavel, ¢ leve a evitar que a temeridade desre- grada os faca emitir opinies maldosamente falsas. Nao mecansarei de procurar, se tiver alguma diivida;e naome envergonharei de aprender, se cair em algum erro." caPiTuLos Pacto do autor com os leitores 5. Todo aquele que ler estas explanacées, quando tiver certeza do que afirmo, caminhe lado a lado comigo; quan- do duvidar como eu, investigue comigo; quando reconhe- cer que foi seu o erro, venha ter comigo; se o erro for meu, chame minha atengao.* Assim haveremos de palmilhar juntos o caminho da caridade em direcao aquele de quem esté dito: Buscai sempre a sua face (Sl 10¢,4). Fago este pacto piedosoe segurona presenga do Senhor nosso Deus, com todos aqueles que lerem nao somente este tratado, mas todas as minhas outras obras, principalmente no tocante 4 unidade da Trindade, que é 0 Pai, 0 Filho e 0 Espirito Santo.® Por certo nenhuma outra questo existe que oferega mais risco de erros, mais trabalho na investi- gacio e mais fruto na descoberta."° Aquele portanto, que aoler, disser: “Isto nao esta bem explicado, pois nao entendo”, cullpe o meu modo de expres- sar, no porém, a minha fé, Poder-se-ia com efeito dizer algumas coisas com mais clareza; contudo, ninguém ja- mais falou a ponto de todos o compreenderem, em tudo o que diz, Quem nao estiver de acordo com o que digo, procure examinar outros autores mais versados nesses assuntos, j que nao compreende a minha explicagio. Se 29 35 isso acontecer, feche meu livro ou, se achar melhor, ponha-o de lado, e dedique seu tempo e esforco na leitura daqueles escritores que lhe sao mais compreensiveis. Nem por isso, contudo, julgue ele que eu deva me calar por nao conseguir explicar to expedita e claramen- te como os autores que compreende. Nem tudo o que est escrito, chega a circular nas maos de todos. Pode aconte- cer que algumas dessas pessoas venham a ter em maos pelo menos estes nossos livros, e que tenham capacidade para entendé-los, sem ter podido dispor de outros mais claros. Por isso, é vantajoso que diversos, assim como os mesmos assuntos sejam tratados por varios autores em diferente estilo, n&o, contudo, com fé diferente. Desse modo, chegarao ao conhecimento de muitos leitores a uns de um modo; a outros, diferentemente. E se alguém se queixar de ndo compreender minha explicacio, porque nunca foi capaz de entender acerca desses assuntos, embora tratados diligente e profundamente, faca votos no seu intimo e dedique-se mais ao estudo para tirar algum proveito em vez de pretender me fazer calar com suas lamentagées e censuras. ‘Aquele leitor que disser: “Estou compreendendo 0 que se diz, mas nao esta bem exato”, apresente a sua explicagao, se o quiser, e impugne a minha, se puder. Caso, motivado pela caridade e a verdade, o levar ao meu. conhecimento — se ainda estiver eu vivo — estarei co- Ihendo frutos copiosos deste meu trabalho, Se nao lhe for possivel trazer ao meu conhecimento, dar-mne-ia alegria e prazer se fizer a observacdo aos que puderem me corrigir. De minha parte, medito na lei doSenhor, senao dia e noite (S1 1,2), pelo menos em todos os momentos em que me & possivel. Para que nao venha a esquecer minhas eonside- ragées, confio-as & pena esperando da divina misericérdia a perseveranca em todas as verdades que eu considerar LIVROL 30 como eertas. Se, porém, cair em erro, ele me esclarecera (13,15), seja mediante inspiragdes e admoestagées inti- mas, seja por meio de sua palavra manifesta, seja ainda através de coléquios com os irmios. Isto pego, e esta determinagio e este desejo confio-os ao seu poder, pois ele 6o1inico capaz de guardar o que me deu ede cumpriroque prometeu.! 6. Penso com razio, que alguns mais tardos de inteli- géncia vao opinar, em certas passagens de meus livros, que eu disse aquilo que nao disse; ou que nao disse o que disse. Quem ignora que 0 erro alheio nao nos deve ser atribuido? Esses tais pareciam seguir-me, mas ndo me tendo compreendido, desviaram-se para alguma falsida- de, enquanto eu me via obrigado a caminhar por densos ¢ obseuros caminhos."? De modo semelhante ninguém teré o desearo de atribuir aos santos autores dos Livros sagra- dos os muitos e variados erros dos hereges, que se empe- nham em defender suas falsas e enganadoras opinides com a autoridade das mesmas Escrituras. Alei de Cristo, com delicadissima autoridade, isto 6, a caridade, admoesta-me e ordena-me que, quando os homens julgam que em meus livros defendi algum erro que nao defendi, se 0 suposto erro desagradar a este agradar aquele, que eu prefira ser repreendido pelo cen- sor da suposta falsidade a ser louvado por um adulador."® Pois, embora seja criticado pelo primeiro sem raziio, oerro é censurado; no entanto, nem eu serei louvedo com razao pelo adulador — pois me atribui uma opiniao contréria & verdade —, nem a propria afirmacao ser elogiada com razio, pois ofende a verdade. Em nome doSenhor, pois, demos inicio 8 obra que nos propusemos empreender. 31 36-47 CAPITULO 4 Doutrina da fé catélica sobre a Trindade 7. Todos os comentadores catdlicos dos Livros divinos do Antigoe do NovoTestamento, que tive oportunidade de ler e que me precederam com seus escritos sobre a Trin- dade, que é Deus," expuseram sua doutrina conforme as Escrituras nestes termos: 0 Pai, o Filho eo Espirito Santo perfazem ma unidade divina pela insepardvel igualdade de uma tinica e mesma substancia. Nao sao, portanto, trés, deuses, mas um sé Deus, embora o Pai tenha gerado 0 Filho, e assim, o Filho naoéo que é0 Pai. O Filho foi gerado pelo Pai, e assim, o Pai nao é 0 que o Filho é. E 0 Espirito Santo nao 6 o Pai nem 0 Filho, mas somente o Espirito do Pai e do Filho, igual ao Pai e ao Filho e pertencente & unidade da Trindade. Contudo, a Trindade nao nasceu da Virgem Maria, nem foi crucificada sob Péncio Pilatos, nem ressuscitou ao terceiro dia, nem subiu aos céus; mas somente o Filho. A. Trindade nao desceu sob a forma de pomba sobre Jesus batizado (Mt 8,16), nem no dia de Pentecostes depois da ascensao do Senhor, vindo do céu como um ruido seme- Ihante ao soprar de impetuoso vendaval e, em linguas de fogo, que vieram pousar sobre cada um deles; mas somen- te o Espirito Santo (At2,2-4). A Trindade nao fez ouvir do céu: Tu és meu Filho (Me 1,11), quando Cristo foi batizado por Joao e no monte quando com ele estavam trés discipu- Jos (Mt 17,5); nem quando soou a voz que dizia: Eu oglori- fiquei eo glorificarei novamente (Jo 12,28); mas somente avoz do Pai foi dirigida ao Filho, se bem que 0 Paieo Filho e o Espirito Santo, como so inseparaveis em si, so também insepardveis em suas operacées.!® Esta 6 minha fé, pois esta é a fé catélica, LIVROT 32 CAPITULO 5 Questionamentos sobre a unidade na Trindade ¢ as operagées insepardveis 8. Algumas pessoas ficam confusas quando ouvem falar que Deus Pai, Deus Filho e Deus Espirito Santo, ou seja, a Trindade, nao sao trés deuses, mas um s6 Deus. E procuram entender comoisto seja possivel, principalmen- te quando se diz que a Trindade atua inseparavelmente em tudo 0 que Deus faz. No entanto, a voz do Pai, que se ouviu, nao é a voz do Filho; somente o Filho nasceu, padeceu e ressuscitou e subiu ao céus; e somente o Espi- rito Santo apareceu em forma de pomba. Querem com- preender como aquela voz somente do Pai, pode ser operagao da Trindade; como aquela carne, na qual somen- teo Filho nasceu, a mesma Trindade a cricu; como aquela forma de pomba, na qual somente o Espirito Santo apare- ceu, tenha sido operacdo da Trindade. Caso as operagées nao fossem inseparaveis, mas 0 Pai fizesse uma coisa, o Filho outra, e o Espirito Santo outra; ou se operassem algumas vezes em conjunto, ou- tras vezes em particular cada uma; nao se poderia afirmar a inseparabilidade da Trindade. Preocupa-os também o fato de que o Espirito Santo esteja na Trindade e nao foi gerado nem pelo Pai nem pelo Filho, mas é 0 Espirito do Pai e do Filho. Essas pessoas levam-nos ao cansago com suas pergurtas. Se nossa fraqueza receber ajuda do dom de Deus, daremos explica- ges, como pudermos, nao caminharemos porém, com aquele que se corréi de inveja (Sh 6,28). Se afirmarmos que tais questées ndo soem preocu- par-nos, estarnos mentido. Reconhecemos, porém, que ocupam nossos pensamentos, pois somos arrebatatos pelo aff de investigar a verdade,™ e os amigos suplicam, pelo direito da caridade, que lhes comuniquemos o que puder- 33, 58-69 mos descobrir. Nao quero dizer que jé tenha aleancado a meta ou seja perfeito, pois, se o apéstolo Paulo diz néo a ter alcangado, muito menos eu que estou longe delee como que sob seus pés. Discorrerei, noentanto, conformeminha cadénciae, se me esquego do que disse atras e volto ao que 4 disse, prossigo conforme meu propésito a fim de obter oprémioda vocagao do alto. Aqueles a quem acaridade me obriga a servir, desejam que hes manifeste quanto tenha andado neste caminho, aonde pretendo chegar eo que me resta de caminho até o fim. E mister, porém, e Deus me concedera que, servindo aos leitores, eu mesmo faga progressos e, ao responder aos que perguntam, eu mesmo encontre o que procuro, Assu- mieste trabalho, por ordem ecom a ajuda do Senhor nosso Deus, nao tanto para dissertar com autoridade sobre assuntos que conhego, mas para os conhecer eu mesmo, mediante uma piedosa dissertacgao.1” CAPITULO 6 Consubstancialidade do Pai e do Filho. Imortalidade da Trindade. O Filho é também criador. A deidade do Espirito Santo e a igualdade com 0 Pai eo Filho 9. Aqueles que afirmaram que nosso Senhor Jesus Cristo nao é Deus, ou que nao é verdadeiro Deus, ou que nao é um s6 Deus com o Pai, ou que nao é imortal por ser mutavel!® sejam convencidos de seu erro pelo clarissimo testemunho e pela afirmagio unanime dos Livros santos, dos quais sao estas palavras: No princtpio era o Verbo, ¢ o Verbo estava.em Deus, eo Verbo era Deus. Esta claro que nés reconhecemos o Verbo de Deus como 0 Filho tinico do Pai, do qual se diz depois: E 0 Verbo se fez carne e habitou 2A Tease, LIVROT 34 entre nds (Jo 1,1-14), em referéneia ao nascimento pela sua encarnago, ocorrida no tempo, tendo a Virgem como mae. Nessa passagem, o evangelista declara que o Verbo nao é somente Deus, mas consubstancial ao Pai, pois, apés dizer: E 0 Verbo era Deus, acrescenta: No principio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito do que existe (Jo 1,2-3). Diz. tudo, de modo a ineluir tudo o que foi criado, ou seja, todas as cristuras. Consta ai claramente que ndo foi criado aquele por quem tudo foi criado, E se nao foi criado, nao é criatura, e se nao é criatura, 6 consubstancial ao Pai, Toda substancia que nao é Deus, écriatura, ea que nao é criatura, é Deus. Ese o Filho no é consubstancial ao Pai, 6 uma substancia criada; e se é uma substancia criada, todas as coisas nao foram feitas por ele. Ora, est escrito: Tudo foi feito por ele; portanto, é consubstancial ao Pai. Assim, nao é so- mente Deus, mas verdadeiro Deus, 10. O mesmo afirma com elareza o apéstolo Joao na sua carta: Nos sabemos que veio o Filho de Deus e nos deu a inteligéncia para conhecermos o verdadeiro Deus. E nds estamos no verdadeiro Deus, no sew Filho dTesus Cristo. Este é 0 Deus verdadeiro e a vida eterna (1 Jo 5,20). Podemos também tirar a conclusdo de que nao se refere somente ao Pai aquelas palavras do Apéstolo: O unico que possui a imortalidade (1'Tm 6,16), mas a um s6 Deus, que € a propria Trindade. Jamais a vida eterna pode ser mortal com alguma mutabilidade; por isso, 0 Filho de Deus, porque é Vida eterna, esta incluido também com 0 Pai, na citagao acima: O tinico que possui a imorta- lidade, Nés, participantes de sua vida eterna, tornamo- nos imortais, conforme nossa condicao. Mas uma coisa 6 a vida eterna da qual fomos feitos participantes, outra coisa somos nds que viveremos para sempre por forca dessa participacao. Se, pois, o Apéstolo tivesse dito: “O 35 610-11 Pai, (em vez de: Jesus Cristo) 0 Bendito e tinico Sobera- no, Rei dos reis e Senhor dos senhores, 0 tinico que possui a imortalidade, mostrard nos tempos estabelecidos...”, nem assim se poderia concluir que o Filho esta excluido. 0 Filho também nao se separou do Pai ao falar pela voz da Sabedoria (pois é a Sabedoria de Deus): Eu sozinho fiz todo o giro do mundo (Eclo 24,8), Com mais razio, portanto, nao é licito que se entenda sé do Pai, excluindo 0 Filho, quando se disse: O tinico que possui a imortalida- de, ja que a afirmagao é esta: Guarda 0 mandamento imaculado, irrepreensivel, até a aparigao de nosso Senhor Jesus Cristo, que mostraré nos tempos estabelecidos, 0 hendito e tinico Soberano, 0 Rei dos reis e Senkor dos senhores, 0 tinico que possui a imortalidade, que habita uma luz inacessivel, que nenhum homem viu, nem pode ver. A ele, honra e poder eterno! Amém (1T'm 6, 14-16). Nessas palavras, nao hé mengao propriamente dita do Pai nem do Filho nem do Espirito Santo, mas do bendito e tinico Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, 0 que corresponde ao tinico e verdadeiro Deus, a propria Trindade. 11. Ando ser que as palavras seguintes pudessem torcer ainterpretagaio dada, pois disse: Que nenhum homemviu, nem pode wer, porque poderiam ser entendidas como referentes a Cristo na sua divindade, a qual osjudeus nao viram, embora tenham visto 0 seu corpo e o tenham crucificado, Mas a divindade nao pode ser vista de modo algum por olhos humanos; pode, porém, ser vista com aqueles olhos de quem j& nao sao homens, mas super- homens. Portanto, com toda razio deve-se entender 0 préprio Deus-Trindade quando est dito: 0 benditoe tinico Soberano, referindo-se & aparigao de nosso Senhor Jesus Cristo nos tempos estabelecidos. Quando 0 Apéstolo disse: O tinico que possui a imortalidade, era como se dissesse: O tinico que faz maravilhas (SI 71,18). LIVROI 36 Desejaria saber a quem os adversdrios atribuem as referidas palavras: pois se apenas ao Pai, como pode ser verdade o que o proprio Filho diz: Tudo aquilo que o Pai faz, 0 Filho 0 faz igualmente? (Jo 5,19). Qual é 0 prodigio entre os prodigios, sendo ressuscitar e dar a vida aos mortos? Pois, o mesmo Filho diz: Como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho dé a vida a quem quer (Jo5,21). Como dizer que somente o Pai faz prodigios, se essas palavras nao dao lugar a que se entenda que é somente 0 Pai ou apenas o Filho, mas 0 Deus tinico e verdadeiro, ou seja, 0 Pai, o Filho e o Espirito Santo? 12. Além disso, quando o Apéstolo diz; Para nds, contudo, existe um s6 Deus, o Pai, dequem tudo procedeeparaquem nds somos; e um 86 Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e por quem nds somos (1Cor 8,6), quem hé que duvide de ele falar de todas as coisas criadas, do mesmo modo que Joao: Todas as coisas foram feitas por ele? (Jo 1,3). Pergunto também: a quem se refere quando diz em outro lugar: Porque tudo é dele, por elee nele; a ele agloria pelos séculos! Amém (Rm 11,36), Se essas palavras fazem referéncia ao Pai, ao Filho e ao Espirito Santo de modo a atribuir a cada Pessoa uma das expressdes: Dele a0 Pai, por ele ao Filho, nele ao Espirito Santo, fica claro que o Pai 0 Filho eo Espirito Santo é um s6 Deus, pois 0 Apéstolo acrescenta no singular: A ele a gloria pelos séculos. Por onde se vé que usou esse sentido, também ao dizer: Oh abismo da riqueza, da sabedoria e da ciéncia; nao do Pai, do Filho e do Espirito Santo; mas, da riqueza, da sabedo- ria eda ciéncia de Deus. Como séo insonddveis seus juizos e impenetrdveis seus caminkos! Quem, com efeito, conke- ceu 0 pensamento do Senhor? Ou quem se tornou seu conselheiro? Ou quem primeiro lhe fez dom para receber em troca? Porque tudo é dele, por ele e nele. A ele a gloria pelos séculos dos séculos! Amém (Rm 11,33-36). 37 61213 Se, portanto, os adversarios querem entender essas palavras como referentes somente ao Pai, como entender que todas as coisas foram feitas pelo Pai, como é dito aqui e que tudo foi feito pelo Filho, como ¢ dito na carta aos Corintios: Hum 86 Senhor Jesus Cristo por quem sao todas as coisas; e como se 1é no evangelho de Joao: Tudo foi feito por meiodele? Se umas coisas foram feitas pelo Pai, outras pelo Filho, conclui-se que nem tudo foi feito pelo Pai, tampouco tudo pelo Filho. Se tudo, porém, foi feito pelo Pai e tudo pelo Filho, as mesmas coisas feitas pelo Pai foram feitas pelo Filho. Portanto, o Filho é igual ao Pai, e a atuagao do Pai e do Filho é inseparavel. Com efeito, se 0 Paicriou o Filho, que nao foi feito pelo proprio Filho, nem tudo foi criado pelo Filho; mas a verdade é que tudo foi feito pelo Filho. Entao concluimos que o Filho nao foi criado, mas que com 0 Pai fez tudo o que foi feito. Tanto que o Apéstolo nao omitiu 0 Verbo ao dizer de modo bem claro: Ele tinha a condigao divina e néo considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente(F12,6); e chamando ao Pai, de Deus, como vemos nesta outra passagem: A cabeca de Cristo é Deus (1Cor 11,3). 13. Sobre o Espirito Santo, recolheram-se também teste- munhos abundantes dos quais fizeram uso todos os auto- res que antes de nds esereveram acerca destas matérias, nos quais se prova que o Espirito Santo é Deus e nao criatura. E se nao é criatura, é nao somente Deus — pois os homens foram também chamados deuses (SI 81,6) — mas Deus verdadeiro. E, portanto, igual em tudo ao Pai e ao Filho, consubstancial e coeterno na unidade da Trindade. Accitagao, onde aparece com maior clareza 0 Espirito Santo nao ser criatura, é aquela onde nos é dadoo preceito de nao servirmos a criatura, mas ao Criador (Rm 1,25). Quanto ao modo de servi-lo, difere porém, do revelado no LIVRO1 38 preceito de servimos uns aos outros pela caridade (GI 5,13), que em grego se designa com 0 verbo douleuein, enquanto 0 servico a Deus est expresso pelo verbo latredein. Dai denominarem-se idélatras os que prestam aos simulacros dos deuses o culto devido somente a Deus. 0 culte a Deus é proclamado nas palavras: Adorards 0 Senhor teu Deus, somente a ele servirds (Dt 6,13). Ao empregar o termo latretiseis, o texto grego é mais explicito.”* Se esse culto a criatura nos é proibido, pois esta escrito: Adorards 0 Senhor teu Deus, ¢ somente a ele servirds, e 0 Apéstolo maldiz os que cultuam a criatura e aservem, e no ao Criador, conelui-se queo Espirito Santo nao écriatura. Ele,ac qual todos os santosprestam aquele culto, no dizer do Apéstolo: Os verdadeiros circuncidados somos nés, que servimos ao Espirito de Deus (F13,3). Bem grego estao designados pelo termo/atrevontes. Em muitos exemplares mesmo nos latinos assim se 1é: Que servimos ao Espirito de Deus; e assim se encontra também na maioria ou quase em todos os eddices gregos. Em algumas cépias latinas, porém, o texto nao é: Servimos ao Espirito de Deus, mas: Servimos a Deus, no espirito, Osque erram a esse respeitoe se recusam ase dobrar perante o peso da autoridade, sera que encontram, por acaso, versoes diferentes nos eédices com relacao as pala~ vras: Ou ndo sabeis que o vosso corpo ¢ templo do Espirito Santo, que estd em vds e que recebestes de Deus? (1Cor 6,19) Que maior insensatez e sacrilégio do que alguém ousar dizer que os membros de Cristo sao, conforme dizem, templos de uma criatura inferior a Cristo? Em outra passagem 0 Apéstolo diz: Vossos corpos sao mem- bros de Cristo (1Cor 6,15). Se, porém, os membros de Cristo sao templos do Espirito Santo, o Espirito Santo nao 6 uma criatura, pois, aquele de quem nossos corpos sio templos é mister que devamos a adoragao devida somente 39 nM a Deus, que em grego é designada com o termo/atreia. Por isso acrescenta: Glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo (1 Cor 6,20). CAPITULO 7 Sentido da afirmacao: 0 Filho € inferior ao Paie a si mesmo 14, Com esses e semelhantes testemunhos das divinas Escrituras, com os quais como disse antes, os autores que nos precedem rebateram copiosamente as caltinias e os erros dos hereges, comprova-se a unidade e a igualdade professada pela nossa fé.2° Mas devidoa encarnacao do Verbo de Deus, realizada para a conquista de nossa salvaciio e para que Cristo Jesus se tornasse o mediador de Deus ¢ dos homens (1m. 2,5), muitas passagens dos Livros santos insinuam e mesmo abertamente declaram, que o Pai é maior que o Filho. Daf os homens errarem pela descuidada investiga- do e pela falta de consulta a todo o conjunto das Escritu- ras. E por isso, transferirem essas afirmacdes acerca de Cristo Jesus como homem, aplicando-as 4 sua substancia, que era sempiterna, antes da encarnagio — e que é sempre sempiterna. Dizem que o Filho é inferior ao Pai, porque esta escrito e o disse o préprio Senhor: O Pai é maior do que eu (Jo 14,28). A verdade, porém, mostra que neste sentido o Filho ¢ inferior a si mesmo. Como nao ha de ser inferior a si mesmo aquele que “esvaziou-se de si mesmo, eassumiu a condigao de servo? (12,7). Recebendo a forma de servo, n4o perdeu a forma de Deus, na qual era igual ao Pai. Portanto, revestido da forma de servo, nao ficou privado LIVROI 40 da forma de Deus, pois, tanto na forma de servo, comona forma de Deus, ele é o Filho Unigénito de Deus Pai, igual ao Pai na forma de Deus, e mediador de Deus e dos homens, o homem Cristo Jesus, na forma de servo. Nesses termos, quem ha que nao compreenda que na forma de Deus, ele € superior a si mesmo e, na forma de servo, é também inferior a si mesmo? Porisso, a Escritura afirma, ndo sem razio, ambas as coisas, ou seja, que o Filho é igual ao Pai e o Pai é maior que o Filho. Nao ha, pois, lugar a confusao: é igual ao Pai pela forma de Deus, é inferior ao Pai pela forma de servo.* Esta regra, para resolver o assunto em pauta, com base em todos os Livros sagrados, é tomada de um capitu- Jo da carta de Paulo, onde essa distinco aparece com toda clareza. Diz assim: Ele tinka a condigdo divina, e néo considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se de si mesmo, e assumiu a condicao de servo, tomando a semelhanga humana, tido pelo aspecto como homem (F\ 2,6-7). O Filho de Deus é, portanto, igual ao Pai pela natureza, inferior pela condi gio exterior. Na forma de servo de que se revestiu, inferior ao Pai; na forma de Deus que ja possuia antes de assumir nossa condigao, é igual ao Pai. Na forma de Deus, 60 Verbo pelo qual todas as coisas foram feitas (Jo 1,3); na forma de servo, “nasceu de mulher, sob o império da Lei, para remir os que estavam sob a Lei” (Gl 4,4-5). Conse- qiientemente, na forma de Deus criou o homem, na forma de servo fez-se homem. Pois, se somente o Pai, semo Filho, tivesse criado 0 homem, ndo estaria escrito: Facamos 0 homem a nossa imagem e semelhanga (Gn 1,20). Desse modo, pelo fato de a forma de Deus receber a forma de servo, ele é ao mesmo tempo Deus e Homem, E ao mesmo tempo Deus, porque era Deus quem a recebeu; ao mesmo tempo homem, porque recebeu a condicio humana. No fato de assumir nao ha converséo ou mudanca de condi- 41 8,15 cdo: nem a divindade modifica-se ao tornar-se criatura, nem a criatura tornou-se divindade, deixando de ser criatura.> CAPITULO Sujeigdo do Filho ao Pai. A entrega do Reino ao Pai. A contemplagdo prometida. O Espirito Santo e a nossa felicidade 15. Asentenca do Apéstolo: E quando todas as coisas the tiverem sido submetidas, entao o proprio Filho se subme- terd aquele que tudo lhe submeteu (1Cor 15,28), foi escrita, segundo a opiniao de alguns, para que ninguém julgasse que 0 aspecto exterior de Cristo, recebido da criatura humana, se haveria de transformar depois na propria divindade, ou expressando-me melhor, na deidade,?* que ndo é criatura, mas a unidade incorpérea da Trindade, incomunicavel, consubstancial a si mesma e coeterna. Outros contrapdem afirmando que as palavras: E 0 proprio Filho se submeteré uquele que tudo the subme- teu, devem ser entendidas como a mudanga ¢ conver- so futuras da criatura na propria substancia ou esséncia do Criador, ou seja, que a substancia que féra da criatura se transformaré na substancia do Criador. Pode-se acei- tar essa interpretacdo com a condigao de que tal trans- formagao nao se tenha verificado no tempo em que o Senhor dizia: O Pai é maior do que eu, palavras que ele pronunciou nao somente antes da sua ascensdo ao céu, mas também antes de padecer e ressuscitar dentre os mortos. Os que opinam que a substancia natural hé de se transformarem substancia da deidade, julgam que isso se LIVROL 42 dard depois do jutzo, quando ele entregaro Reino a Deus Pai (1Cor 15,24), apoiados nas palavras: Entdo o préprio Filho se submeterd aquele que tudo Ihe submeteu, como se dissesse: entao 0 prdprio Filho do homem e a natureza humana recebida pelo Verbo de Deus se transformara na natureza daquele que lhe submeteu todas as coisas. E por isso também, de acordo com a referida opiniao, 0 Pai é maior do que a forma de servo recebida da Virge Maria. E se alguns afirmam que o homem Cristo Jesus. se transformou na substancia de Deus, nao podem negar que permanecia ainda a natureza de homem, quando dizia antes da paixao: Porque o Pai é maior do queeu. Dai, que ninguém duvida que, conforme 0 que foi dito, o Pai é maior que o Filho na forma de servo, mas o Filho é igual ao Pai na forma de Deus. A vista das palavras do Apéstolo: Quando ele disser: “Tudo esta submetido”, evidentemente excluir-se-d aquele que tudo the submeteu (1Cor 15,27), ninguém pense que se ha de interpretar como seo Pai submetesse todas as coisas. a0 Filho, de modo que seja o préprio Filho que tenha submetido tudo a si mesmo. O Apéstolo, escrevendo aos filipenses, esclarece seu pensamento, ao dizer: Mas a nossa cidade estd nos céus, de onde também esperamos ansiosamente como Salvador 0 Senhor Jesus Cristo, que transfigurard 0 nosso corpo humilhado, conformando-o a0 seu corpo glorioso, pela operacdo que the dé poder de submeter asi todas as coisas (Fl 3,20-21). A atuagao do Pai e do Filho ¢, pois, inseparavel. Alids, nao foi o Pai que submeteu a si todas as coisas, mas foi o Filho que as submeteu a ele e ao lhe entregar o reino, anularé todo principado, toda potestade e todo dominio. Com efeito refere-se ao Filho a sentenca: Quando ele entregar o reino a Deus Pai, depois de ter destrutdo todo Principado, toda Autoridade, todo Poder (1Cor 15,24). 0 que entrega é aquele que destréi. 43 8,16 16. Naodevemos aceitar que Cristo ao entregar o reino a Deus Pai, dele ficaré privado. Assim acreditaram certos tagarelas. Quando se diz: Entregard o Reino a Deus Pai, Cristo nao se excluiu a si mesmo, pois é Deus com o Pai, Leitores superficiais ¢ inclinados a divergir de tudo so traidos pelo termo ai empregado: até. Pois, em seguida esta escrito: E preciso que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo de seus pés (LCor 15,25), como se depois de colocar os pés, deixasse de reinar. Nao entendem essas palavras, que tém idéntico sentido a estas: Inalterdvel estd 0 seu coragdo, nao temerd, até que veja os seus adversdrios confundidos (Sl 111,8). Nao se conclua, pois, que se encherd de temor, depois de ver confundidos seus adversarios. O que, entio, significa: Quando entregar 0 Reino a Deus Pai? Acaso Deus Pai nao tem Reino? A razao dessa expresso ¢ indicar que todos os justos, nos quais o mediador de Deus e dos homens, Cristo Jesus, reina pela £6, serdio levados & contemplacao que o Apéstolo descreve como face a face, quando disse: Quando entregar o Reino a Deus Pai, ou seja, quando conduzir os crentes A contem- plagao de Deus Pai. Pois, assim diz.o Senhor: Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho, sendo o Pai, e ninguém conhece o Pai, sendo o Filho e aquele a quem o Filho 0 quiser revelar (Mt 11,27). O Pai sera revelado pelo Filho depois de ter destrutdo todo Principa- do, toda Autoridade, todo Poder (1Cor 15,24), isto 6, depois que nao mais for necessdrio governar esas coisas por seus semelhantes, isto é, pelos principados, autorida- des e poderes angélicos. Com nao pouca propriedade podem-se-lhes aplicar as palavras dirigidas 4 esposa: Nés te faremos umas cadeias de ouro, marchetadas de prata, estando o rei no seu diva (Ct 1.10-11, na versao da LXX), ou seja, enquanto Cristo permanece em seu segredo, pois, vossa vida esté escondida com Cristo em Deus; quando

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