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a da Silva Telles , nos capitulos ‘0, duas gran- necessidade de deslo- camento das formas mais comuns da dis- 40 sobre cidadania enfrentamento da tra- social brasileira, no avesso de nalizagao: e en- como uma expe- sombria, presa nas esferas privadas da vida humana. Ml Poa DIREITOS Niele FU) EVAL emt LT se trata? DIREITOS SOCIAIS Afinal do que se trata? Vera da Silva Telles Belo Horizonte Editora UFMG 1999 Copyright © 1999 by Vera da Silva Telles Este livro ou parte dele no pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizagio escrta do Editor 1. Sociologia Bras 1. Ttvlo oo. 301 cou: 316681) Catalogacao na publicacao: Divisio de i Ealtora@bu.utg.br Planejamento e Divulgagio da Biblioteca MtP=/*wweditorss.com/ufing Universiira/UFMG ISBN: 85.7041-182.0 Projeto Grafico Gléria Campos - ‘Manga ‘Capa Marcelo Belico sobre detalhe de Ze Ghasseur(1933), de Oscar dltoragio de Texto Ana Maria de Damasceno| Moraes Romeu Cardoso Guimaraes, ‘Formatagao Ramon Alves Moure UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS RReltor Francisco César de $4 Barreto ‘Vice-Reltora Ana Lika Almeida Souza, Reinaldo Mantniano Gazzola Marques SUMARIO Apresentagho___7 Politica e espago pablico na cconstituiglo do "Mundo Comum": notas sobre o pensamento de Hannah Arendt____27 Pobreza ¢ cidadania: figuragdes da questio social no Brasil moderno 77 Histria versus natureza:o higarda ‘pobreza na sociedade brasileira _ 105 pobre ou ocidaddo: as figuras da questdosocial «128 Sociedade espagos ablicos 10s (incertos) da cidadania no Brasil atual__ 735 Direitos sociais: afinal do que sewata? 169 APRESENTACAO Os artigos que compéem esta coletinea foram escritos entre 1990 ¢ 1998. Nao é tarefa facil fazer a apresentacdo de textos escritos em momentos € circunstancias to diferentes, além de distantes no tempo. £ certo que direitos e cidadania s4o temas tratados em todos eles. Porém, cada qual remete a feixes singulares de questdes € inquietagdes, e também de polémicas, préprios do tempo em que foram escritos. E sendo assim, ha sempre 0 tisco de, em uma visada retrospectiva, sugerit certezas no que entio existia como interrogacao sobre as possibilidades de uma cidadania ampliada neste pais. Ou entio sugerir uma articulagao l6gica, temitica ou teérica, que neutraliza os diferentes modos como essa interrogagao foi formulada como questo que deu movimento & escri- tura de cada um deles. Talvez o mais interessante seja entao dizer algo dos percursos intelectuais que configuram um horizonte de inquietagdes que, este sim, articula os diferentes textos aqui reunidos. Cidadania e pobreza: esse é 0 tema com o qual traba- Iho e venho trabalhando j4 ha algum tempo. Antes de delimitar um campo empitico de investigagio, circunscreve um problema. Circunscreve, poderia dizer, um terreno a partir do qual (alguns) dilemas brasileiros so problemati- zados. E isso significa dizer, de partida, que a questio proposta nao se detém nas evidéncias que os dois termos dessa relaco, cidadania e pobreza, sugerem: a privacgo de direitos e a tragédia social brasileira. Se assim fosse, nao teria muito mais a fazer do que confirmar o j sabido, que as pesquisas demonstram e que décadas de investigagdes € debates académicos nos ensinaram (e continuam ensinando) sobre tragédia social brasileira, sobre suas causal determinagées. A questo tem na verdade o sentido de uma inquietacao que nao é s6 minha, que vem sendo formulada de formas diversas por tantos quantos se debrugam sobre a realidade brasileira e pela qual o drama brasileiro se abre & pergunta sobre as possibilidades deste pais alcangar patamares minimos de ci padrées societirios. Nos meus préprios termos: a pergunta diz respeito as possibilidades da cidadania se enraizar nas lade em seus urrossocis 8 priticas sociais, como parametro a reger as relagdes sociais, como regra de civilidade e medida das reciprocidades que se espera na vida em sociedade. Essa é uma maneira de propor a cidadania, pelo Angulo das praticas sociais e das formas de sociabilidade, que nao é ingénua, esta carregada de pressupostos e implicagdes. E uma formulagao que carrega uma trajet6ria de indagagées ¢ investigagdes, teGricas e empiricas, que esto presentes, de formas dife- rentes e com énfases distintas, nos artigos aqui reunidos. Por ora vale dizer que a pergunta sobre os futuros possiveis deste pais € regida pela nogio de cidadania, referéncia de valor e idéia reguladora, e pela qual podemos ao menos nomear o drama brasileiro, buscando nele as linhas de fora que prometem outros futuros possiveis. Mas ainda ser preciso aqui, neste ponto, (tentar) melhorar um pouco a minha propria questo. Ou melhor: © lugar a partir do qual essa questo, as possibilidades da cidadania, se explicita. Pois € pelo avesso da cidadania, a pobreza desmesurada que acompanha a hist6ria deste pais, que a questo se desdobra como problema que (ainda) exige um trabalho de decifragio. Se foram meus estudos sobre a pobreza brasileira, desenvolvidos desde meados dos anos 80, que me permitiram formular, nos meus préprios termos, 0 “dilema brasileiro”, é porque ela me projetou no centro mesmo dos dualismos e disparates da realidade brasileira. Ou melhor, a pobreza, tal como é figurada no cendrio pablico do Brasil, mais do que demonstrada pelos indicadores econémicos e sociais, me parece consti desse “senso dos contrastes e mesmo dos contririos” que 9 Antonio Candido, ao comentar o Raizes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda,’ diz fazer parte, no pensamento latino- americano, da reflexio sobre a realidade social. Nao se trata apenas da confirmacao dos contrastes entre riqueza e pobreza tao largamente demonstrada por intimeras pesquisas que mostram as desigualdades de renda, as disparidades sociais ¢ as diferencas regionais, Para além do que os indi- cadores mostram e por tris da soberana objetividade dos dados estatisticos, a pobreza me aparecia (e continua me aparecendo) no registro da desmedida. Nao apenas porque a tragédia social é grande demais. Ou melhor: € 0 tamanho mesmo dessa tragédia que causa estranheza por conta do modo como é figurada no cenario publico deste pais - € como se as evidéncias tangiveis da miséria nacional tivessem um muito peculiar efeito. de neutralizar o problema da igualdade e da justica social que, ao menos tal como veio se constituindo desde os infcios dos “tempos modernos”, a questdo social propde, como aporia e questo dilematica, € sempre polémica, em uma sociedade di mente e fraturada por suas prOprias contradicées. Pois, neste pais, as distancias sociais so to grandes e 0 fosso social to imenso que parece nao ser plausivel uma medida comum que permita que a questio da justica e da igualdade se coloque como problema e critério de relagdes sociais, de tal modo que a trama € inigitidade é como que neutralizada, fixando diferengas € assimetrias (de classe, de género, de idade, de raca, de origem) em modos de ser nao apenas distintos, mas incomensuraveis porque ancorados na ordem natural das Derressocuss 10 coisas ~ ou melhor, fixadas no mundo irrefletido das “evidéncias naturais” construidas na trama das hierarquias que parecem no mais do que emanar da ordem natural das coisas. Estou aqui falando de uma figuragao publica da ‘questio social de um horizonte simbélico que projeta a pobreza em uma espécie de paisagem que incomoda a todos, mas que, tal como a natureza, se estrutura fora e por fora da trama das relagdes sociais. f um modo de encenar a pobreza como algo extemo a um mundo propria- mente social, enquanto mundo no qual sao construidas as regras das reciprocidades das quais depende a vida em sociedade — um mundo sem autores e sem responsabil dades, que parece transcorrer ao largo de um espago propriamente politico no qual os dramas da existéncia sao ou podem ser figurados como questdes que dizem respeito as regras da vida em sociedade e exigem, por isso mesmo, 0 julgamento ético, a deliberagao politica ea ago responséi E é nisso, assim me parecia e continua me parecendo, ita o buraco negro que parece sorver, tragar, as esperangas de uma cidadania ampliada. A pobreza € 0 tempo todo notada, registrada e documentada, é tema do debate piblico e alvo mas nas formas de sua figuragao € desrealizada como problema que diz respeito aos parametros que regem as relagdes sociais. Transformada em paisagem, a pobreza € trivializada e banalizada, dado com o qual se convive - com um certo desconforto, é verdade -, mas que nao interpela responsabilidades individuais e coletivas. Como W Apresentagao se sabe, a trivializacdo é sinal de uma incapacidade de discemimento ¢ julgamento ~ 6 a isso que Hannah Arendt se refere quando fala da banalidade do mal. Se estou aqui antecipando argumentos que serdo apresentados no segundo artigo desta coletiinea, é porque essa questo continua operante nos modos como venho Propondo essa relagao (em nlegativo) entre pobreza e cidadania. Mas também porque € neste modo de propor a questo que se evidenciam algumas de minhas fontes de inspiragdo. A referéncia nas linhas acima a Hannah Arendt nao € por acaso. Longe de ser apenas uma escolha te6rica para desenvolver argumentos em certos contextos discur- sivos, é uma influéncia que vem sendo tecida ja h4 algum tempo, desde os tempos de meu mestrado (1984) quando nto, como tantos outros na época, me via imbuida do que Parecia ser a novidade dos movimentos sociais que surgiram € se multiplicaram no comego dos anos 80. Talvez mesmo pelo fato de minhas pesquisas, na época, terem se voltado para os assim chamados “anos de chumbo" do inicio da década de 70, as primeiras articulages populares e operirias que entao surgiam, timida e fragmentariamente, € que depois desaguaram nas grandes e multifacetadas mobilizagdes na virada da década, me pareciam os registros tangiveis da construcao (ou invengao) de espacos ptiblicos nos quais a ac&o aparecia ou podia aparecer, por entre a trama que construfa a sua visibilidade, na sua capacidade de “interromper o ciclo da natureza” e “dar inicio a um novo comego”. E portanto uma referéncia importante, que presidiu grandemente o modo como armei € continuo rmerOssocis 12 ‘as préprias questdes. Mas também € preciso dizer que mais do que uma referéncia te6rica que fornece um corpo sistematico de conceitos, é a questio mesma que move 0 empreendimento arendtiano que me ajudou a formular inquietagdes e perplexidades suscitadas por este Pais t€o disparatado e to desconcertante na sua historia e nas suas formas de estruturagao. Pois € a propria tragédia social brasileira que evoca Hannah Arendt cuja obra, escrita toda ela sob o signo de “tempos sombrios”, pode ser lida como um empreendimento persistente em compre- ender as possibilidades da convivéncia humana em um mundo que se estrutura na frdgil fronteira entre a civilizacao ea barbarie. E € nesse fio da navalha que a experiéncia de sociedade parece, o tempo todo, transcorrer, Mas se essa € uma questo que se apresenta “desde sempre”, ganha ou vem ganhando, € preciso dizer, uma outra configuragao neste final de década. Nesses tempos de mudanga e futuro incerto, a pobreza brasileira est no centro de nossas inquietagoes e perplexidades diante dos rumos da modernizacao brasileira no cenario de um mundo globalizado, Se durante décadas a pobreza foi figurada com sinal de um atraso que haveria, quem sabe, algum dia, de ser superada pelas forcas do Progresso, agora parece se fixar como realidade inescapavel, dado incontornavel posto pelos imperatives do mercado em tempos de aceleracao econémica e revolugio tecno- logica. A atual modernizagio por que passa a sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que dramatiza enormemente nossa velha e persistente questo social, vem erodindo as 13 Apresentarao referéncias pelas quais nos acostumamos a pensar ~ ou imaginar— as possibilidades deste pais conquistar regras de civilidade em seus padrées societirios. E aqui, neste ponto, niio resisto & tentago de lembrar Roberto Schwarz quando discute, em artigo no qual comenta o livro entiio recém- publicado de Robert Kurz. (O Colapso da Modernizacao, 1992), o quanto o “mito da convergéncia providencial entre progresso-e sociedade brasileira ja no convence”, jé que a norma civilizada na qual, desde sempre, o pats se espelhou, apenas nos promete, nesses tempos de capitalismo globa- lizado, uma modernizacao que nao cria o emprego-e a cidadania prometidos, mas que engendra o seu avesso na logica devastadora de um mercado que desqualifica~ e descarta - povos e populagdes que nao tém como se adaptar a velocidade das mudangas e as atuais exigéncias da competitividade econémica.? As ambivaléncias e contra- digdes de uma modernidade pretendida como projeto, a “comédia do progresso”, nao é questo nova, sabemos disso ~ a visada cética e demolidora em relagdo a essa norma ciyilizada que contém, no seu interior, a barbarie de todos os dias, é a operaco narrativa que Schwarz identifica ‘em Machado de Assis, nos mostrando com isso nfo apenas a genialidade do autor, mas a sua contemporaneidade. A novidade, hoje, vem no entanto da desestabilizagao do quadro de referéncias pela qual essa modemidade foi, para bem ou para o mal, pensada no apenas como possivel, mas como ponto certo e seguro de chegada, vencidos os obstéculos interpostos pela “mé-formacio brasileira”. Mas ento, (Ea questo que Schwarz nos propée) como pensar perros soca 4 © pais se “o aspecto da modernizag4o que nos coube, assim como a outros, for o desmanche ora em curso, fora e dentro de nés?” Diria que esta € uma questo que nos interpela dire- tamente no centro de nossas questées quando fazemos (ainda?) a aposta em uma cidadania ampliada, para retomar a questo do inicio desta apresentacio. Pois o desmanche ora em curso, para usar os'termos de Schwarz, nao diz respeito a demolicao de direitos que, aqui em terras brasi- leiras, nunca chegaram a se consolidar como referéncia de uma “norma civilizada” nas relagdes sociais. Mas € 0 desmanche de um horizonte de futuro e de um conjunto de referéncias a partir dos quais a cidadania era (e € ainda) formulada como uma aposta politica possivel. O fato € que as transformagSes em curso no mundo contemporlineo nos projetam em um novo diagrama de questdes que desafiam os modos pelos quais nomeamos e formulamos © problema politico da cidadania. Certamente a nogio de direitos e cidadania so referéncias de valor pelas quais a barbarie dos tempos atuais pode ser nomeada, descrita e denunciada. Mas também é certo que direitos e cidadania significam um modo de nomear (e imaginar) as formas pelas quais as relagdes sociais podem ser reguladas construidas regras civilizadas de sociabilidade — e 6 exata- mente por esse Angulo que estamos sendo desafiados no nticleo mesmo de nossas questdes. E nesse caso é importante também dizer que € no registro renovado € reformulado do desconcerto ~ e da desmedida - que a questao da pobreza vem sendo, em minhas investigacdes 15 Apresensacao mais recentes, recolocada no contexto de um didlogo constante com colegas e pesquisadores que integram o Niicleo de Estudos dos Direitos da Cidadani géncia de pesquisas ¢ indagacdes que tentam dilemas brasileiros nessa encruzilhada de altemativas incertas nas quais, neste final da década de 90, os destinos deste pais esto sendo tecidos. E esse horizonte de inquietagdes que articula os quatro textos aqui reunidos. Cidadania e direitos so temas tratados em todos eles. Antes, porém, de serem apresentados como modelos te6ricos ou paradigmas politicos, esas nogdes comparecem sobretudo como referéncia pela qual proble- matizar o drama brasileiro e interrogar as possibilidades de futuro deste pais. Circunscrevem portanto um campo de indagagdes a partir do qual a reflexao sobre a tragédia social brasileira abre-se ou pode abrir-se a uma interrogacio sobre as possibilidades de um “mundo comum” em uma sociedade to desigual e to excludente em seus padrées societitios. E é sob essa perspectiva que faz sentido esta coletnea ser aberta com um artigo que trata da nogio de espaco ptiblico em Hannah Arendt. Escrito em 1990, no teve a intencdo de propor uma leitura exaustiva e muito menos dar conta das polémicas e debates suscitados pelo pensamento da autora. No momento em que foi escrito correspondeu & tentativa de formulacao de uma questo —0 sentido politico de espagos ptiblicos democriticos e as possibilidades de um “mundo comum”= que entio me parecia (como continua me parecendo) importante para prsrossocis 16 ‘ao menos nomear os dilemas que a experiéncia brasileira nos apresenta. De alguma maneira, e sob formas diferentes € diferentes modos de configurar o tema (e desafio) da cidadania na sociedade brasileira, esse esforgo de elaboracao desdobrou-se nos textos escritos posteriormente. O segundo artigo, “Pobreza e Cidadania: Figuragoes da Questiio Social no Brasil Modemo’, foi escrito originalmente como um capitulo de minha tese de doutorado (1992). ‘Tem como ponto de partida as perplexidades do inicio da década de 90. Naqueles anos, a pobreza estava no centro dos aspectos talvez os mais desconcertantes do Brasil atual. Nos anos 80, 0s movimentos sociais se organizaram, os sindicatos se fortaleceram e as aspiragdes por uma socie- dade mais justa e igualitéria ganharam forma na reivindicagao de direitos, projetaram-se no cenrio publico, deixaram suas marcas em conquistas importantes na Constituigo de 1988 e se traduziram na construgao de espacos plurais de representagao de atores coletivos reconhecidos como interlocutores validos no cenario pol década, vivida sob o signo da esperanga democritica, encerrou-se, no entanto, com o espetculo de uma pobreza talvez jamais vista em nossa hist6ria republicana, O fato € que entravamos nos anos 90 vivendo 0 paradoxo de uma democracia consolidada, aberta ao reconhecimento formal de direitos sociais, garantias civis e prerrogativas cidadas reivindicados, mas que convivia (como continua convivendo) cotidianamente com a violéncia, a violagao dos direitos 0 nacional. Essa cendrio de minhas inquietagdes, € preciso ainda dizer que 17 Apresentagac| esse artigo traduzia também um certo desconforto com os modos pelos quais a questio da pobreza vinha sendo tematizada e debatida naqueles anos. Nos termos como o debate vinha sendo conduzido, a pobreza aparecia, sempre, como uma perspectiva por onde a sociedade brasileira era escrita em negativo: uma sociedade em que as classes trabalhadoras ndo sao reconhecidas como sujeitos de interesses e direitos legitimos, uma sociedade em que os interesses populares ndo conseguem se fazer representar no plano do Estado, uma sociedade em que as maiorias noo sao e nunca foram levadas em conta na elaboracioe execugo de politicas econdmicas, em que os mecanismos formais de representagao politica ndo foram capazes-de dissolver o clientelismo, patrimonialismo e prebendalismo que descaracterizam e desvirtuam politicas sociais. Tudo isso € verdade e diz muito dos dilemas politicos legados por uma pesada tradic&o autoritaria. Diz muito de nossa modernidade truncada, incapaz de incorporar amplas maiorias nas regras formais da cidadania. No entanto, a0 se fixar nesse plano geral de explicago havia 6 risco, assim me parecia, de ficarmos a meio caminho. Seria circunscrever a questao pelo registro em negativo — pelo déficit de modernidade da sociedade brasileira, e dar por explicado 0 que ainda nao passava da enunciagio de um problema. ‘© que ento me parecia problematico € 0 fato de que, ao apresentar a pobreza como o espelho invertido de uma modernidade pretendida como projeto, perdia-se de vista os termos pelos quais essa pobreza comparecia pinzrossocuss 18 (e comparece) no cenario ptblico brasileiro - como paisagem, algo que vem da natureza das coisas, por fora €. margem do jogo dos conflitos e das responsabilidades envolvidas. Essa figuraclo da pobreza me parecia conter uma chave que poderia elucidar algo desse descompasso, suge- rido linhas atrés, entre as promessas igualitérias acenadas no mundo piblico das leis e da politica e a reposigaio das incivilidades no mundo social. Enveredei-me por um caminho que poderia reativar, em novos termos, a nossa velha e conhecida disjuncio entre o Brasil legal ¢ o Brasil real. No entanto, ao tentar compreender as matrizes hist6- ricas pelas quais se deu a construgio da cidadania social no Brasil, a questo que aparecia como algo que exigia uma reflexiio mais aprofundada era 0 fato de que, ao contriirio do que essa disjungao sugere, a reposigao das exclusdes € discriminagBes no solo social tem a ver com o modo mesmo como direitos, leis e justica social montaram os termos da cidadania brasileira e teceram as figuras do Brasil modemo. E foi sob esta perspectiva que esse artigo apresenta uma certa leitura dos direitos sociais tal como foram configurados na histéria brasileira, e as suas relagdes com uma dinamica politica (e também societéria) que bloqueia os principios de uma universalizacdo possivel dos direitos na trama das relagdes sociais. E por referéncia a essa hist6ria e a essa tradicao qu. tentei, por outro lado, avaliar a importancia dos al sociais que agitaram toda a década de 80 e desdobraram-se no inicio dos anos 90 em experiéncias democraticas importantes em varias regides do pais. Compreender 0 19 Apresentagao sentido politico dessa movimentagio e, sobretudo, tentar decifrar o horizonte — possibilidades que ento se descorti- navam no futuro dla sociedacle brasileira ~ € questo tataca no terceiro artigo desta coletinea, “Sociedade Civil ¢ Espacos Publicos: os Caminhos (Incertos) da Cidadania no Brasil Atual”. Escrito entre 1993 e 1994, é um artigo que se inscreve em um campo de debate, dentro e fora da academia, que colocava em pauta as promessas demo- craticas que eram identificadas no que ento aparecia como acontecimentos e experiéncias inéditos na hist6ria brasi- leira. Nao se tratava (como nao se trata) de postular uma elaborou e se difundiu uma “consciéncia do direito a ter direitos” (Lefort), conformando os termos de uma experi- éncia inédita na historia brasileira, em que a cidadania € buscada como luta e conquista, e a reivindicagio de direitos interpela a sociedade enquanto exigéncia de uma nego- ciagdo possivel, aberta ao reconhecimento dos interesses ¢ das razdes que dao plausibilidade as aspiragdes por um trabalho mais digno, por uma vida mais decente, por padrdes de civilidade nas relagoes sociais. Era portanto pelo Angulo de uma sociedade civil ‘emergente que se entrevia horizontes possiveis para uma utopia democratica. Mas era também por esse Angulo que a questi da cidadania se definia (como continua se definindo) como problema ~ problema teérico, problema politico— que escapa a formulas predefinidas, pois ancorada presressocuss 20 em um terreno sujeito ao imprevisto dos acontecimentos e que € construido em um solo historico no qual convergem, em uma combinagio nem sempre muito discernivel, o pesado legado de uma longa tradigao autoritéria e exclu- dente, € 0s novos dilemas postos pelas transformacdes em curso no mundo contemporaneo. E foi com essa perspectiva que esse artigo trata de algumas experiéncias ‘que marcaram 0 inicio da década de 90 e tiveram desdobra- mentos nos anos que se seguiram. Nos féruns de repre- sentagao e negociag&o que vinham se constituindo tanto no mundo do trabalho, como no terreno dos movimentos sociais e suas relages com poderes locais, identificavam-se as. idades de uma regulaciio democritica das relagdes sociais capaz de firmar os direitos como medida no jogo conflituoso dos interesses e como parimetro em um reordenamento possivel de economia e sociedade. Se esse texto foi escrito sob o signo da promessa democritica acenada por essas e outras experiéncias que entio marcavam ‘© cenario politico brasileiro, e se nos anos que se seguiram muita coisa mudou neste pais, a questo que aquelas ‘experiéncias suscitavam e continuam suscitando ainda nos interpela na pergunta que hoje fazemos sobre as possibi- lidades dos direitos se universalizarem em uma sociedade desigual, mas também muito diferenciada e multifacetada na ordem de suas contradigdes. Bessa a questo que abre o tiltimo artigo desta coletinea, “Direitos Sociais: Afinal do que se Trata?” No momento em que foi escrito, em 1998, a pergunta sobre as possibilidades de uma sociedade mais justa e mais igualitaria ganha no 21 Apresemiacao entanto uma outra configuragao em tempos de capitalismo globalizado e revolucao tecnol6gica. Pois o que inquieta nos tempos que correm é a erosio da propria nogao de direitos por conta desse espantoso deslizamento, em ‘operagao no mundo inteiro, do campo semantico no qual as nogdes de direitos e cidadania foram formuladas como promessas da modernidade, aparecendo agora como seu avesso, como figuras de atrasos e anacronismos, privilégios © corporativismos que obstam.a poténcia modernizadora do mercado. E preciso dizer desde logo que 0 leitor nao encontraré nesse texto uma discussao sobre pobreza e exclusio social, e muito menos sobre reestruturagao produtiva, globalizacao e neoliberalismo. Na verdade, a questo que me provocava um esforgo de elaboragao era © esvaziamento, no cenério atual, do préprio sentido dos direitos e a eroso, para usar os termos de Hannah Arendt, da medida de um mundo comum cuja construgao, entre nés, nunca chegou a se estabelecer, mas que se enunciava ide na dinamica dos acontecimentos polf- ticos dos tiltimos anos e dos quais tratei, em parte, no terceiro artigo desta coletanea. Mas € exatamente esse horizonte de possiveis que parece estar em causa nos dias que correm e ainda ser4 preciso melhor compreender as formas pelas quais vem se dando 0 encolhimento ou mesmo a demoligao desse horizonte de possibilidades. A questo importa porque se trata, assim me parece, da erosdo das referéncias cognitivas e valorativas pelas quais os dramas de cada um podem ser dessingularizados e traduzidos nao apenas como experiéncias compartilhadas, mas como prossocuss 22 problemas pertinentes as regras da vida em sociedade. de dis das possibilidades de sua enunciacao. Qu ainda: trata-se da demoligao das referéncias e também da medida (ou das medidas, no plural) sem a qual (ou as quais) os direitos nao existem, ou s6 existem como retérica sem efeitos de real nesta operacao simbélica que consiste em colocar em perspectiva o jogo das relagdes humanas, permitindo, por isso mesmo, o julgamento daquilo que ocorre no mundo social. A tentativa foi entao reativar, na 6tica dos sujeitos que 0s pronunciam como exigéncia de cidadania, 0 sentido ico dos direitos ¢ a sua dimensio transgressora que, a0 revés dessa espécie de aprisionamento da aco e do Pensamento em um presente tramado pela légica perce- bida como inescapavel do mercado, acena para mundos possiveis, mundos que valham a pena ser E por esse Angulo que serd possivel decifrar as possibili de futuro descortinadas no horizonte das experiéncias e experimentos democriticos que, nesses tempos incertos, continuam a acontecer em varias regides do pais. E se isso importa é porque a abertura de um horizonte de possiveis depende, hoje, grandemente da re-fundagao da politica e da propria nogao de direitos e cidadania, porém nos termos que o mundo contemporineo esta a exigir. Nao por acaso esse artigo, que dé 0 titulo desta coletdnea, comega com uma pergunta ~ “direitos sociais, afinal do que se trata?” Longe de ser mero artificio de estilo, é uma interrogagiio 23 Apresentasao suscitada elas incertezas dos tempos que correm, e que também sugere a exigéncia de se buscar os termos pelos quais aprender os dilemas atuais, para além da constatagio da tragédia social brasileira. Mas, se é com essa interrogacao que esta colet&nea termina, é porque assume-se aqui que os textos ora apresentados esto longe de dar conta dos impasses atuais — é uma questo para a qual nao existem respostas prontas e que hé de exigir um esfor¢o compartilhado de pensamento e decifragao da nossa propria atualidade. Ush tiltimo esclarecimento sobre os textos que compoem esta coletanea. Com excegio do segundo capitulo, todos 08 outros textos jé foram publicados. Em relago As vers6es ‘iginais, ha algumas poucas diferengas por conta de uma revis3o que se ateve, sem alterar contetidos e a trama argumentativa de cada um deles, a ajustes formais e, em alguns casos (principalmente o terceiro capitulo) a expli- citar melhor algumas questées que estavam em pauta no momento em que foram escritos e que, por isso mesmo, naquele momento, nao exigiam um esforgo maior de esclarecimento. Vera da Silva Telles Maio de 1999 merrossocis 24 de Kurz. Novos Estudos, 2.37, p.137, ov. 1993. 25 > ARANTES, Paulo Eduardo. Sentimento dea dialetica na experiéncta intelectual brasileira. Dialticae dalidade segundo ‘Antonio Candido e Roberto Schwarz Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. SCHWARZ, Roberto. Duas meninas. Sao Paulo: Companhia das Letra, 1997. Apresentagao POLITICA E ESPACO PUBLICO NA CONSTITUICAO DO “MUNDO COMUM”: NOTAS SOBRE O PENSAMENTO. DE HANNAH ARENDT A obra de Hannah Arendt, escrita toda ela sob o signo de “tempos sombrios”, pode ser lida como um empreendimento persistente em compreender as possibilidades da convivéncia humana em um mundo que se estrutura nas frageis fronteiras que separam a civili- zagao da barbarie. Por isso mesmo, suas reflexdes sobre os acontecimentos que envolveram a Segunda Guerra Mundial (0 terror nazista e o genocidio de seis milhdes de judeus) so perturbadoras por aquilo que ela conta, pelas questoes que sua narrag’o suscita e pela interpretagdo que propée para sua elucidagao. Hannah Arendt coloca em cena uma experigncia na qual os critérios que permitiam aos homens distinguir no mundo a verdade da mentira e 0 bem do mal, foram subvertidos. E no limite, aniquilados. E se essa questio importa € porque explicita o que ela chama de “fragilidade dos negécios humanos’ — fragilidade inerente & condicao humana, mas que ganhou significacao politica a partir do século XIX. Esse é 0 ponto de partida para as notas que se seguem. [A fragilidade dos neg6cios humanos explicita a expe- ri€ncia de uma sociedade que fez sua entrada na moderni- dade. £ uma sociedade na qual os homens so obrigados a enfrentar os problemas da convivéncia humana sem as garantias que, antes, a religiio e a tradi¢Zo podiam oferecer. ‘Se ambas perderam sua credibilidade no mundo modemo, isso acarretou ao mesmo tempo, diz Hannah Arendt, a perda da autoridade que o passado tinha para os homens na qual estes se apoiaram, sempre, para se guiar entre as coisas inevitavelmente instaveis e mutantes do mundo. E por isso que, no mundo moderno, os homens terao que se confrontar com os problemas elementares da convi- véncia humana “sem a confianga religiosa em um comego sagrado e sem prote¢ao de padroes de conduta tradicionais €, portanto, auto-evidentes’,! Mas se isso constitui um problema é porque, frente ao inusitado dos acontecimentos que rompem os automatismos da vida cotidiana, os homens encontram-se sem critérios seguros para sua compreensio, erossocias 30 compreensio que ela entende como “capacidade de tornar mundo familiar’. Da mesma forma como encontram-se sem critérios seguros para o seu julgamento, entendido este como capacidade de “discernimento entre qualidades E isto significa dizer que os homens encontram-se sem garantias para “se orientar no mundo”. Nesta perspectiva, a perda da religiao, das tradigdes e da autoridade do passado “é equivalente a perda do fundamento do mundo”, mundo que comegou a mudar de tal maneira que “todas as coisas, ‘a qualquer momento, podem se tomar praticamente qualquer outra coisa”.? Se esses critérios perderam seus pontos de apoio tradicionais, passam a depender inteiramente da contingéncia da convivéncia humana. E, sobretudo, da capacidade dos homens construirem, na e através dessa convivéncia, as referéncias partilhadas de um senso comum. Mas € precisamente isto ~ este senso comum — que parece ter sido posto em questao. No século XIX, diz ela, se ainda havia uma capacidade de compreensao e julgamento, esta “era j4 inapta para dar razio de suas categorias e critérios, quando estes eram seriamente postos em questao”.* Para Hannah Arendt, entre os elementos que definem esta capacidade de orientacao no mundo — vinculada a compreensio.e ao julgamento — esta a faculdade de discernimento entre a verdade ¢ a mentira e, também, entre o bem € o mal. Isto significa dizer que estas nao sao categorias que possam derivar do conhecimento teérico € especulativo — nao se trata, portanto, das chamadas 31 Politica e Espace Public, verdades da razio. Tampouco podem ser derivadas de valores supremos dados pela cultura, pela tradig&o ou pela religiio € nos quais se tentou tradicionalmente fundar toda moralidade — nao se trata portanto de valores situados fora da contingéncia das interagdes humanas, Sio critérios construidos na experiéncia que os homens fazem da realidade do mundo. E dependem do senso comum, que ela define como um “sexto sentido”, que permite a cada um comu- nicar-se com todos os demais e fazer a experiéncia da pluralidade humana, a partir da qual opiniao e julgamento se.constituem. Dai 0 aspecto perturbador de suas refle- x0es sobre a Segunda Guerra. Pois o que ela nos propée é uma indagag3o acerca da experiéncia de uma época que foi capaz de produzir o fendmeno total sociedade que foi de alguma forma conivente ou, no minimo, indiferente & perseguicao e morte de seis milhées de judeus. Afinal, o totalitarismo nao nasceu do nada e “a experiéncia basica sobre a qual descansa deve ser humana conhecida dos homens”, quando menos porque o corpo politico no qual se configurou “foi concebido por homens ¢ de alguma forma responde as necessidades dos homens” 4 Esta é uma reflexio inscrita no relato que faz do julga- mento de Eichmann em Israel em 1961. Mas as quest6es aqui no sio derivadas de uma anilise da realidade hist6ri- co-social da sociedade alema. A radical vai se desenhando na forma como apresenta a natureza do crime cometido e pelo qual Eichmann foi julgado e condenado. Na sua descrigdo, 0 que se explicita €.a prsressocis 32 io ¢ de uma impoténcia das categorias tradicionais de pensamento diante de um acontecimento que abalava as referéncias nas quais esse pensamento sempre se ancorou para avaliar |gar as coisas do mundo. Dai a dificuldade até mesmo de tipificar juridicamente o crime cometido. Pois nao se tratava de um delito passivel de ser qualificado por referéncia ao Estado, & lei ou a alguma norma consensual estabelecida. Eichmann atuava rigorosamente de acordo com a legalidade ~ 6 verdade que uma insélita e inusitada legalidade, apoiada na palavra e na vontade de Fitbrer— ‘mas que nem por isso poderia ser desconsiderada enquanto tal, na medida em que fundava uma ordem a qual se exi- gia obediéncia e que encontrava ressonncia no que se convencionou chamar de opiniao publica. Nesse caso, 0 que ficava questionada era a identificagao, prépria do positivismo juridico, entre a legalidade e a justica. Mas se 0 fatos que estavam sendo julgados abalavam a conviceao de que o Estado poderia ser a sede segura de uma racio- nalidade capaz de garantir um sentido de justiga no mundo, também se desmoronava a convicgao de que este sentido poderia se ancorar na forga da consciéncia de cada homem, E estava nisto 0 lado mais aterrador da historia. Pois Eichmann tinha clara consciéncia do que fazia, nao apresentou, em momento algum, divida ou hesitagao na realizagao de sua tarefa. Nao havia sequer a sombra de algum sentimento de culpa, e arrependimento era algo inteiramente ausente de seus depoimentos ~ “s6 as criangas se arrependem do que fazem’”, disse ele em algum momento. Aqui, o que se 33 Politica e space Pablo. volatilizava era a crenca crist de que, no fundo da alma de todos os homens, ha de residir um sentimento universal de humanidade. E se isto soava aterrador, era porque estava em concordancia com 0 que a pritica juridica convencionou definit como “bom senso”. Como diz Hannah Arendt, “a boa sociedade alema havia sucumbido a Hitler ea maxima da religitio ~ nao mataris — que guia as consciéncias, havia desaparecido” > Mas € na descri¢ao da figura sinistra de Eichmann que toda a radicalidade da questo se explicita. Pois nao era ‘uma figura sinistra porque fosse movido por algum impulso Perverso ou porque fosse portador de uma personalidade cindida por alguma patologia psicolégica. Nem-mésmo havia sinais de fanatismo ou de convicgdes ideolégicas SOlidas. Era, portanto, uma figura sinistra na sua dimensio absolutamente comum: “os atos eram monstruosos, mas 0 responsivel era comum, como todo mundo, nem demo- nfaco, nem monstruoso”. Ea isso que Hannah Arendt se refere quando fala da banalidade do mal. Um mal que nao tem nem profundidade, nem dimensao demoniaca. £ um mal que “pode invadir e destruir todo o mundo precisa- mente porque se propaga como um fungo na superficie” § E se seu poder de destruigao € tao grande, é porque esta vinculado ao que Hannah Arendt ira definir como “incapacidade de pensamento”, enquanto incapacidade de lidar, vivenciar e enfrentar os fatos € acontecimentos do mundo, encontrando nessa experiéncia os principios de discernimento de que depende 0 julgamento.’ Daerrossocass 34 E essa incapacidade que parece ter tomado conta da sociedade alema da época. Uma sociedade que acreditara em Hitler e na propaganda nazista, e que estava convencida de serem os judeus inimigos que deveriam ser eliminados para que a Alemanha pudesse realizar seu destino enquanto nagdo. Portanto, além da questo do discernimento entre obem e o mal, havia também a questo da capacidade de discernimento entre a verdade e a mentira. O problema, diz Hannah Arendt, nao € tanto que alguém ou um grupo de pessoas possa se empenhar na mentira organizada. © problema é quando as pessoas passam a acreditar na mentira. E isso € grave porque é sinal de “um processo de destruigao do sentido pelo qual nos orientamos no mundo real”# Ao longo de sua argumentagio, a autora desenha o retrato de uma época em que todos os valores foram subvertidos. Ea idéia de uma ruptura com a tradigio é um dos fios articuladores de seu pensamento. E nesse retrato que se explicita 0 significado da “fragilidade dos negécios humanos” num mundo em que “as coisas podem se trans- formar em qualquer outra coisa” e em que as fronteiras que separam a civilizagao da barbarie mostram-se fréi incertas e sem garantias. A questo que Hannah Arendt propde € a de saber em que, num mundo inteiramente secularizado e desencantado, como diria Weber, pode se apoiar essa capacidade de discernimento da qual depende uma vida civilizada. Se € verdade que a questao surge de forma radical nos anos da guerra, em que “a corrente 35 Politica e Esparo Piiblico, subterranea da histéria ocidental chegou finalmente & superficie e usurpou a dignidade de nossa tradi¢40”, , a rigor, constitutiva de nossa propria modernidade. E é Precisamente isto que coloca a exigéncia de se pensar os dilemas da convivéncia humana a partir de seus proprios termos. Essa é uma perspectiva possfvel para a leitura de seu pensamento, Apesar da clareza de sua exposicao e do modo siste- mético como constréi suas gategorias, as questées que dio movimento ao pensamento de Hannah Arendt nem sempre aparecem de modo evidente. E isso, talvez, seja responsivel Por uma certa dificuldade que sua reflex4o apresenta, A comegar pelo lugar que nela ocupa a referéncia & experi- éncia grega, questo que tem levado seus criticos a acusar, em seu pensamento, uma utopia politica que nao se sustenta politicamente, teoricamente, filosoficamente. Mas € pela sua intengdo de pensamento que sua obra se esclarece. E se esclarece na sua dimensao propriamente politica. Como diz Lefort, “a obra de Hannah Arendt esta ligada, em grande parte, a sua experiéncia e & sua inter- Pretac’o do fenémeno totalitério”, Dessa forma, a polis ‘rega, to discutida por ela, teria que ser vista nao como a nostalgia de um modelo de mundo moderno eliminou, mas como referéncia a partir da qual sua concepcio de politica se determina como esforco, diz Lefort, para inverter a imagem do totalitatismo."” A referéncia aqui experiéncia do totalitarismo no € um recurso exterior a0 movimento de seu pensamento. E asrrossocnss 36 ela mesma quem enfatiza a relagdo entre pensamento e experiéncia: “o pensamento nasce da experiéncia” e deve permanecer a ela ligado como 0 circulo ao seu centro. E isto significa enfrentar-se como os acontecimentos que irrompem no presente, sem procurar uma verdade fora dos significados que se armam no tempo de seu proprio aparecimento e, sobretudo, sem dissolvé-lo num principio de causalidade ou determinagao que anularia o impacto de sua novidade." © pensamento depende da compre- ensio, esta capacidade especificamente humana de se reconciliar com o mundo, encontrando um sentido para aquilo que acontece, sem que isto queira dizer sua aceitacio passiva, tampouco a tentativa de domesticagao do acon- tecimento, reduzindo-o ao jé familiar e desde sempre conhecido. Ao contrario, compreender um acontecimento supde um atento enfrentamento da realidade, sem 0 recurso a idéias preconcebidas. A compreensio “significa, antes de mais nada, examinar e suportar conscientemente © fardo que nosso século colocou sobre nés - e no negar sua existéncia, nem se submeter mansamente a seu peso”? Daf Lefort dizer que “ninguém melhor descobriu no desconhecido, no inesperado, naquilo que faz irrupeao em nossas crencas, no universo que partilhamos com nossos préximos, o lugar mesmo do nascimento do pensamento ...", sendo “toda sua atitude orientada no sentido de fazer face ao desconhecido”.? Por isso, € dificil entender os conceitos que nos apre- senta sem elucidar as questdes que esto inscritas em sua 37 Politica e Bspapo Pablice. formulagao. Dessa forma, parece plausivel tentar uma aproximagao de seu pensamento a partir de trés registros que, a meu ver, nucleiam sua interpretacao do fendmeno totalitério. Trés registros que, na verdade, equivalem a trés dimens6es implicadas na experiéncia da sociedade moderna € por onde Hannah Arendt tematiza questées especificas que se articulam em toro de uma nogio de espago ptiblico ‘como espago no qual a ago eo discurso de cada um podem ganhar efetividade na construgao de um “mundo comum”. A historia do mundo moderno, diz ela, poderia ser descrita como a hist6ria da dissolucao do espaco puiblico, Por onde poderia se expressar “um sentido cidadio de Participagdo” e através do qual os homens poderiam se reconhecer compartilhando de um destino comum. Hannah Arendt tematiza a sociedade modema, construindo as figuras de uma sociedade despolitizada, marcada pela indiferenca em relagao As questées ptiblicas, pelo in Mo € atomiza¢ao, pela competi¢io e por uma instrumentalizagao de tudo o que diz respeito ao mundo, de tal forma que nele nada permanece como valor e limi para uma ago que transforma tudo em meros fins para seus objetivos. Nao se trata, no entanto, de postular uma continuidade necessiria ¢ inelutavel entre 0 advento do mundo moderno e a aventura totalitéria. As questoes ~ fodas as questées ~ precisam ser qualificadas e diferenciadas, © que significa dizer, repensadas a partir de seus pr6prios termos, tentando através delas elucidar as experiéncias vinculadas aos acontecimentos de nosso tempo. dual asrrossociss 38 ~ Antes de mais nada, a dissolugio desse espaco piiblico significa a perda de um “mundo comum’” que articula os homens numa trama feita por fatos e eventos tangiveis em seu acontecimento, construindo as referéncias cognitivas € valorativas de um horizonte comum e uma interlocuga0 possivel. E uma trama construida pela interagao entre os homens e na experiéncia da pluralidade humana através da qual as opiniGes se formam e os julgamentos se constituem. Nesse caso, a dissolucao do espaco ptiblico significa a perda de um espaco comum entre os homens, comprometendo esta capacidade de discernimento que a compreensio € 0 julgamento exigem, enquanto “maneira especificamente humana” de se fazer a experiéncia da realidade. A figura hist6rica que sintetiza essa perda, explicitando 20 mesmo tempo seu sentido politico, sio as massas que acreditaram e se deixaram mobilizar pela propaganda totalitaria, Seu exemplo extremo ~ e patético - é a figura de Eichmann que, expressando-se 0 tempo todo por clichés, esterestipos, tautologias e frases feitas, revelava uma incapacidade de pensamento que traduzia essa incapacidade de fazer a experiéncia do mundo, como realidade e valor. Um segundo registro se da na esfera da experiéncia social e diz respeito ao isolamento, enquanto forma de existéncia izada. Neste caso, a perda do espaco pertinéncia a partir do qual a existéncia de cada um pode ser reconhecida como algo dotado de sentido e relevancia para os demais. Suas figuras hist6ricas so, primeiro, os 39 © Espace Pabitco ' judeus, como pirias da sotiedade, e, depois, além deles, todos os que viveram o jugo do “anel de ferro” que os regimes totalitarios construiram em tomo de suas vidas. Finalmente, a perda do espaco publico significa, agora num registro explicitamente politico, a perda de um espaco icamente organizado. Suas figuras hist6ricas sao os apitridas e todos os que perderam, nos anos da guerra e do pés-guerra, os direitos de cidadania, Ea partir desses trés registros que uma nogao de espaco pubblico se determina. Em primeiro lugar, o espaco puiblico € 0 espaco do aparecimento e da visibilidade ~ “tudo 0 que vem a publico pode ser visto e ouvido por todos” ~ e, constr6i a realidade. Nas palavras de Hannah Arendt, Para n6s, a aparéncia ~ aquilo que 6 visto e ouvido pelos outros © por nds mesmos~ constitui a realidade. Em comparagéo com 4 realidade que decorre do fato de que algo é visto e escutado, até mesmo as maiores forcas da vida intima ~ as patxées do coragao, os pensamentos da mente, os deleites dos sentidos = vivem uma espécie de vida incerta e obscura, ando ser que, inerossocis 40 41 até que, sejam transformadas, desprivatizadas e desindividua- lizadas, por assim dizer, de modo a tomar-se adequadas & aparigdo piiblica.'* Gd) a realidade da esfera piblica conta com a presenga simul- Hdinea de intimeros aspectos ¢ perspectivas nos quais 0 mundo comum se apresenta @ para os quais nenbuma medida ou deno- ‘minador comum pode jamais ser inventado. (..) Ser visio e ouvido ‘Por outros é importante pelo fato de que todos vem e ouvem de Angulos diferentes. E este 0 sig- nificado da vida piiblica, em comparacéio com a qual até mes- ‘mo a mais fecunda esatisfatoria vida familiar pode oferecer so- mente o protongamento ou a multiplicagao de cada individuo, ‘com sous respectivos aspectos ¢ perspectivas. A subjetividade da privacidade pode prolongar-se ‘e multiplicar-se na familia; pode ‘até mesmo tornar-se tao forte ‘que 0 seu peso é sentido na es- fera piiblica; mas esse ‘mundo” ‘familiar jamais pode substituir Politica e Bspago Pablico. 4 realidade resultante da soma total de aspectos apresentados Por um objeto a uma multidao de espectadores.!# Essa realidade, construfda nas formas de seu apareci- mento, € 0 que constitui um mundo comum que articula 0s individuos em torno daquilo que para eles se configura como interesses comuns. Esse mundo comum, portanto, nao se refere a uma esfera cultural dada ou ao mundo da vida definido pela fenomenologia. Tampouco € um sistema de instituigdes, valores, regras e normas que a sociologia tradicional chama de realidade objetiva, as quais 0 individuo se integra pelas vias da socializagao. Esse mundo comum € uma construgo ~ um “artefato humano”, diz Hannah Arendt ~ que depende dessa forma especifica de sociabi- lidade que s6 0 espaco piblico pode instituir. Forma de sociabilidade que € regida pela pluralidade humana, essa mesma pluralidade da qual depende a existéncia da propria realidade. Como diz Hannah Arendt, a realidade do mundo 86 pode se manifestar “de maneira real e fidedigna” quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas, numa varie- dade de aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que 0s que estio a sua volta sabem que véem a mesma coisa, na mais completa diversidade. Portanto, nao existe uma verdade fora daquilo que aparece enquanto visibilidade e aparéncia: “ser e aparecer coincidem”, diz ela, e isto signi- fica reconhecer que “nada do que existe, na medida em que esta coisa aparece, pode existir no singular’."* Dafa recusa de uma verdade transcendente e daf também a sua asressocuis 42 critica as verdades racionais da ciéncia que sempre busca a unidade oculta por tras do espeticulo da diversidade pela qual a realidade se apresenta aos homens. Na perspectiva daqueles que fazem a experiéncia da sociedade, é a pluralidade dos pontos de vista que confere certeza ao que existe, sem que essa certeza se desdobre numa identidade que anularia as diferengas sob o signo de uma tinica opinido. Essa pluralidade, portanto, faz apelo a0 senso comum e constréi as referéncias e as evidéncias a partir das quais as experiéncias pessoais e subjetivas podem ser confirmadas na sua validade, retirando-as dessa “vida incerta e obscura” que o encapsulamento numa vida exclusivamente privada acarreta: © sinico atributo do mundo que nos permite avaliar sua reali- dade 6 0 fato de ser comum a todos nés; se 0 senso comum tem osteo 140 alta na blerarquia das qualidades politicas, & que 60 tinico fator que ajusta a realidade global os nossos cinco sentidos esiritamente individu- ais ¢ os dados rigorosamente articulares que eles registram, Gragas ao senso comum, é possivel saber que as outras ercepgées sensortais mostram @ realidade e ndo sdo mera 43 Politica e Expago Publico, nem sensagdes de reagdo de © didlogo (ao contrario das ‘nosso corpo. Em qualquer com- conversagaes intimas nas quais nidade, portanto, o declinio ‘almas individuats falam de st perceptivel do senso comum e ‘mesmas) ..refere-se ao mundo © visivel recrudescimento da comum que permanece inu- supersti¢do e da credulidade ‘mano num sentido muito literal, constiuem sinais inconfundiveis enquanto os bomens ndo fazem de alienagdo em relacao ao dele um objeto permanente de mundo.” debate. Pois 0 mundo nao bumano por ter sido feito pelos bomens e tampouco se torna bumano porque a voz humana E, portanto, apenas na experiéncia da pluralidade, que exige um espaco para que possa emergir, que o mundo pode se constituir como medida que transcende a vida nel ressoa, mas somente quan- pessoal de cada um. E € isso que exige o que para Kant do se torna objeto de didlogo. € definido como capacidade de julgamento-e que, na | Por mais intensamente que as interpretagao de Hannah Arendt, constitui uma faculdade as My especificamente politica, pois, na medida em que implica aes meee a.capacidade de ver as coisas no apenas do préprio ponto cr estimular, $6 se tornam buma- de vista, permite aos homens se orientar no dominio nas para nés quando podemos pUblico. Ao mesmo tempo, é o que exige essa forma debaté-las com nossos seme- peculiar de comunicagao humana que € a opiniio, que Ibantes:° tem um critério de validade heterogéneo as chamadas Enfim, se 0 espaco ptiblico constréi um mundo comum ' “verdades da raz4o”, pois depende da persuasio, vale dizer, entre os homens, este mundo tem que ser pensado nao. de um acordo e consentimento publico, para ser reco- apenas como aquilo que € comum, mas como aquilo que| nhecida na sua verdade, Como diz ela, “a verdade, desde € comunicavel e que, pértanto, se diferencia das experi- que enunciada, é imediatamente transformada em uma Encias estritamente subjetivas e pessoais que podem ter opiniao entre outras, contestada, reformulada, reduzida validade na dimensio privada da vida social, mas que “nao a nfo ser mais que um objeto de conversacao entre - so adequadas para ingressar em praca publica e perdem outros". E é nessa interagao entre os homens que um toda validade no dominio publico”. Nao se trata, no mundo plenamente humano pode se constituir: entanto, de uma comunicabilidade geral e genética. E isso merossocas 44 45 Polttea e Bspaco Pablice, que nos sugere Hannah Arendt quando diz que a “esfera plblica 6 tolera o que é tido como relevante, digno de ser visto ou ouvido, de sorte que o irrelevante torna-se automaticamente assunto privad ', © que nao quer dizer que rio seja importante, indicando “tao somente formas distintas de existéncia social”. Portanto, a esfera do comu- nicvel traz em si inscrito um principio de discriminagao quanto aos critérios de relevancia, importancia e pertinéncia. Principio que constréi as fronteiras de um “piblico universal”, I6cus de “todas as opinides Possiveis” e que é constituido Por aqueles que sio capazes de julgamento. ‘Trama intersubjetiva ancorada no senso comum, a cons- trugao do mundo comum tem, portanto, uma dimerisio cognitiva e valorativa, inscrita nos critérios através dos quais~ se torna possivel discernir o relevante do irrelevante, 0 legitimo do ilegitimo, o justo do injusto, assim como a verdade da mentira, 0 fato da ficgao. Enquanto critérios de discemnimento, sao referéncias a partir dos quais os homens podem se orientar num mundo caracterizado pela plurali- dade dos agentes, pela contingéncia dos acontecimentos € pela imprevisibilidade dos efeitos da ago que cada qual realiza. E € isso que se esvai 4 medida que o espaco puiblico se dissolve. A perda do espago publico significara a perda dessa relagio objetiva com os outros homens e, cot iss0; a perda mesma de uma nogao de realidade. E isso tem conseqiiéncias. Com a perda do senso comum que permite aos homens fazerem a experiéncia da realidade, é a propria capacidade de pensamento que Daerrossocuss 46 fica comprometida, Sem a referéncia a uma realidade que se poe como evidencia e critério de objetividade, o pensa- mento tender4 a se reduzir a uma operagao légica, em que cada coisa pode ser deduzida da outra a partir de alguma premissa que “pode se prevalecer de uma fiabi- lidade independente do mundo e do outro”.# Sendo uma forma de pensamento que prescinde de toda experiéncia, desdobra-se em truismos e tautologias que encontram plau- sibilidade apenas na légica em que as idéias se articulam. Esso é grave pelos riscos politicos que contém, pois “nesse nivel as diferencas reais nao so mais levadas em conta, nem mesmo a diferenga qualitativa entre as esséncias divinas e humanas”.® E nisso que se aloja a “banalidade do mal”, Por outro lado, petante uma experiéncia que se torna incerta porque privada dessa confirmac&o que apenas a pluralidade pode garantir, os homens, diré Hannah Arendt, 86 poderao fiar-se na sua propria subjetividade, sempre “instavel e traicoeira”, e tendero a fazer de seus interesses e sentimentos privados a medida de todas as coisas. Aqui € preciso dizer que, para Hannah Arendt, a vida privada niio tem necessariamente um sentido negativo. Equivale a ter um lugar no mundo, “lugar tangivel possuido na terra por uma pessoa” e no qual cada um pode se proteger “contra a luz da publicidade”, Sua discussio nao é travada no sentido de desqualificar a vida privada, mas de estabe- lecer o seu lugar e definir as fronteiras entre duas formas distintas de existéncia social, duas formas diferentes, pode- riamos dizer, de se fazer a experiéncia da sociedade. Si0 a Politica ¢ Espace Pablo. essas fronteiras que se diluiram no mundo modemo. E isso significa a perda dos critérios de diferenciago entre aquilo que tem como medida a vida de cada um e aquilo que tem o mundo como medida. Nesse caso, os homens tenderdio a tomar sua prépria subjetividade como referéncia exclusiva de verdade e julgamento. Aqui, 0 ponto em questio para Hannah Arendt é a {identificagao dos riscos politicos envolvidos na experiéncia moderna do mundo. A perda do mundo comum constréi a figura do individuo desinteressado e desprovido de respon- sabilidade perante 0 mundo. Para esse individuo, 0 outro Pouco importa e pouco conta, sua existéncia ou nio exis- téncia nao faz. a menor diferenga. Equivale & experiéncia de individuos que se tornaram supérfluos fio mundo. E foi Hannah Arendt localiza o perigo de uma projego na esfera ica de critérios que s6 podem ter validade na experi- éncia privada. Nesse caso, 0 risco € o de comprometimento do juizo publico, pois é a propria veracidade e objetividade dos fatos que se encontra comprometida por uma subje- tivagao que dissolve a diferenca entre 0 ptiblico e Privado, j4 que a sociedade passa a existir apenas em suas manifestagées interiores.* Por se tratar da projecao de critérios que nao fazem referéncia a uma esfera compar- tilhada de valores e significagdes, os homens tenderio, para impé-los no mundo, a fazer uso da violéncia. Isto ocorre quando necessidades, interesses e vivéncias privadas s40 Darressocus 48 percebidos como um absoluto que, tal como o antigo Principio da verdade revelada, aparece como fonte exclu- siva e soberana de todo poder, de toda autoridade e de todo saber. Nesse caso, transformam-se em virtude e qualificagao politica que reivindicam um, ase impor na sociedade, direito que nao faz referencia a uma esfera publica de pertencimento, mas a um principio auto-evi- dente de legitimidade. Esta é a légica da vi interagio humana.* Sea perda do espago piblico signi senso comum, tem também conseqiiéncias radicais do ponto de vista da experiéncia que as pessoas fazem da vida em sociedade. Isolamento € 0 termo que explicita essa perda de um espago que articula os homens num mundo compartilhado de significados. Reduzidos a di- mensio privada da vida social, esta agora se qualifica rigo- rosamente como privacao. Os homens tornam-se seres inteiramente privados do ser visto e ouvido. Tornam-se, por isso mesmo, “prisioneiros da subjetividade de sua propria existé: gular”, fragmentada e sem signifi- cago para o mundo dos homens. Com a perda da esfera publica, .0s homens tornam-se seres in- teiramente privados, isto é, pri- vados de ver e ouvir os outros e privados de ser vistos e ouvidos or eles. Sao todos pristoneiros da subjetividade de sua propria 49 Politica e Bspage Public, existoncia singular, que continua a ser singular ainda que a mes- ma experiéncia seja multipli- cada intimeras vezes.. O mundo comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e sé Ibe permite uma perspectiva. Cod A privacdo da privatividade re- side na auséncia dos outros; ‘Para estes, o bomem privado ndo se dé a conbecer @, portanto, 6 como se ele ndo existisse. O que quer que ele faga permanece sem importancia’ou conseqiténcia ‘paras outros €0 que tem impor- tancia para ele & desprovido de interesse para os outros?* Nessa formulagao, 0 que se esclarece € o segundo registro pelo qual a nogao de espago pul Arendt se esclarece. Enquanto lugar da aparecimento, € 0 espago no qual a singularidade de cada um é reconhecivel e pode ser reconhecida - “o mundo é aquilo que surge entre os homens, onde o que cada um traz por nascimento pode se tornar audivel e visivel”.” Mas trata-se de uma singularidade que nao é a mera projecao das diferencas particulares que existem na esfera privada. Trata-se de uma singularidade construida através da agao € do discurso ~ é através da aco e da palavra, diz Hannah Arendt, que os homens se deixam ver e reconhecer na ETOSSoCis 50 sua individualidade. Aqui se chega em termos conceituais a0 niicleo mesmo da nogao de espaco ptiblico de Hannah Arendt. Pois, para ela, o que € definidor do espago pablico €0 fato de ser um espago que s6 pode ser construido pela ago e pelo discurso. Ago e discurso que esto vinculados a pluralidade humana — “se nao fossem diferentes, se cada ser humano nao diferisse de todos os que existiram, existem ou virdo a existir, os homens nao precisariam do discurso e da agio para se fazerem entender”, bastando “simples sinais e sons” para comunicar “suas necessidades imediatas e idénticas”. E pela ago que cada homem confirma sua singularidade, pois na sua “capacidade de realizar 0 infinitamente vavel”, a ago significa, antes de tudo, “dar ihicio a um novo comego”. Mas a aco exige um espago de apareci- mento para que se torne tangivel na sua capacidade de produzir fatos e eventos. Precisa, portanto, do testemunho dos outros para que ganhe significado na construgio de um mundo plenamente humano ~ “o espago pubblico é 0 lugar que preserva a agio do esquecimento”, diz ela. E é por isso que a aco exige a palavra para que sua obra se complete no mundo. A palavra se determina como discurso através do qual eventos, fatos e acontecimentos podem ser registrados, narrados, transmitidos e, por essa via, trans- formados em.uma hist6ria comum — “todas as coisas nio comunicadas e incomunicaveis, que nao foram nunca confiadas a ninguém”, deixam de existir, pois “nao ha para elas um lugar permanente na realidade”.* Sem essa espécie de acabamento que a palavra realiza e sem a st Politica e Espace Public. aco realizada pela meméria, simplesmente nao existiria nenhuma hist6ria a ser contada. E esse acabamento dado pela palavra que funda uma tradigAo que nfo é, portanto, simplesmente a continuidade do passado no Presente, mas a criagio — sempre instavel na medida mesma em que depende da contingéncia da convivéncia humana ~ dos signos, registros, sinais, através dos quais uma historia pode ser contada como hist6ria comum.” Por aise poderia entender a importancia que Hannah Arendt confere 4 narrago que, para ela, est vinculada a meméria. A narracao significa uma espécie de reificagao através da qual os acontecimentos ganham significado e, por essa via, 0 estatuto de “uma coisa entre as coisas do-mundo existente”.” Por outro lado, essa reificago por que passa tudo o que pode ser contado, narrado e transmitido, equivale a construgo de um principio de permanéncia e durabil dade do mundo, aquilo que transcende a vida individual de cada um e 0 tempo de existéncia de uma geragao. E nisso, nessa dimensao de permanéncia e durabilidade, constréi as fronteiras ¢ os limites além dos quais a ago, na sua capacidade de realizagao, nao pode prosseguir sem ameagar a integridade desse artefato humano que ela chama de mundo comum. E isso que nos permite qualificar os riscos que Hannah Arendt identifica no mundo modemo, palco de experiéncias ameagadas de ficarem mudas na auséncia de referéncias e pardmetros através dos quais possam ser elaboradas como experiéncias significativas. Em outros termos, a dissolucao idade de uma tradicdo ser criada ou refundada. E, se isso € grave € porque sem uma tradigio o pensamento fica sem balizas para pensar o prOprio acontecimento — sem esse acaba- mento dado pela palavra e pela mem6ria, 0 acontecimento se fragmenta e se volatiliza num tempo continuo, homo- ‘géneo, sem significagao propriamente humana. Mas, com isso, € o proprio mundo dos homens que € dissolvido nessa dimensio de permanéncia e durabilidade de que os homens necessitam “por serem mortais”. Mundo que € transfigurado em cenfrio plenamente objetivado de uma ago que, sem a referéncia ao outro e sem o “artefato humano” como medida e valor, s6 pode ser regida pela légica da raciona- lidade instrumental. Do ponto de vista desta, nao existem fronteiras ou limites. © “tudo 6 possivel” proprio da pritica ¢ ideologia totalitarias encontra ai um de seus fundamentos. Enquanto lugar em que a’aco se torna reconhecivel na sua capacidade de “iniciar um novo comego” e enquanto lugar que “preserva a ago do esquecimento” e funda uma tradig&o, € que 0 espago piiblico deixa revelar sua dimensio propriamente politica. Dimensio politica que, para Hannah Arendt, esta vinculada de uma potencialidade intrinseca A agio e ao discurso — potencialidade que exis- te pelo fato dos homens agirem em conjunto. £ isso o que ela chama de poder e que depende “do acordo fragil e temporirio de muitas vontades e intengdes” 2! Nesse caso, © espago piiblico € 0 espago de efetivacao desse poder e, por isso mesmo, s6 pode existir enquanto potencialidade, pois depende da acio e do discurso para sobreviver existir: 53 Politica e Espace Pablo. Sem a acdo para por em movt- ‘mento no mundo 0 novo co- ego de que cada bomem é ca- Paz por haver naseido, “ndo ba-nada que seja novo debat- x0 do sol’; sem 0 discurso para ‘materializar e celebrar, ainda que provisoriamente, as coisas novas que surgem e resplan- decom, ‘nado ba meméria’; sem @ permanéncia duradoura do arificio bumano, *ndo bave- 1A recordagdo das coisas que tém de suceder depots de nds”. E sem 0 poder, 0 espaco da aparéncia produzido pela cdo e pelo discurso desapare- cord 1do rapidamente quanto © ato e a palavra viva2® Sea virtualidade prépria da aco € 0 estabelecimento de relagdes entre os homens, o poder que por essa via se constitui nao pode, portanto, prescindir da palavra e do didlogo entre homens que buscam se pér de acordo em tomo das questées que dizem respeito a todos. Para sermos mais rigorosos, hd uma isomorfia entre a palavra e 0 poder. Na sua realizacao enquanto didlogo, é ela que revela as questées puiblicas aos olhos de todos. Como enfatiza Enegren, a linguagem constitui o essencial da interag3o politica, no apenas por ser‘discurso e comunicagiio eficaz, mas sobretudo porque apenas o logos € capaz de trazer 2 nerossocass 54 t luz, 20 mesmo tempo, o mundo e © ator para o qual a palavra significa também assumir uma identidade.® Por isso mesmo, na interpretaco de Hannah Arendt, o poder nao € exterior & aco e ao discurso. Surge da associacao entre os homens e da troca de opiniées. E uma forma de interagao. E sua expressio € a interlocugao publica. Neste registro, 0 espaco ptiblico se qualifica como espaco da deliberagao conjunta, através da qual os homens, na medida em que capazes de aco e opinio, tornam-se interessados € responsfveis pelas questées que dizem respeito a um destino comum* Dai a dimensao politica inscrita na experiéncia da privatizagao a que se fez referéncia anteriormente. A perda de um mundo comum no qual a ago ea palavra de cada um podem aparecer como algo que importa para a conducao dos negécios humanos, é acompanhada pela experiéncia da impoténcia. Traduz especificamente a perda de um espaco no qual a ado ea palavra podem se manifestar enquanto poder. Impoténcia que é ainda acompanhada da incapacidade de elaboragao de uma historia comum. E sera nesse duplo registro que a priva- tizago se desdobraré numa forma de existéncia que parece inteiramente submetida aos automatismos da vida cotidiana. E que, portanto, s6 pode ser vivida sob o signo do destino e da fatalidade. Nesse caso, a experiéncia da impoténcia equivale & perda da prépria nog de liberdade. Na interpretacao de Hannah Arendt, liberdade é um atributo definidor da ago, enquanto capacidade 55 Politica e Espace Pablo. de “interromper os automatismos dos processos vitais”. Por isso, a liberdade se contrapde A necessidade e € esta diferenga que se dissolveu na experiéncia moderna do mundo ~ “j4 nao se percebe a diferenga objetiva e tangivel entre ser livre e ser forgado péla necessidade”.** Da mesma forma, perde-se a nogio da diferenga entre a tirania politica e a liberdade piiblica, pois do ponto de vista da seguranga privada, dos assuntos domésticos e da estabilidade da vida familiar, essa diferenga deixa de ser importante. A liberdade, portanto, nao se confunde como que se convencionou chamar de liberdade interior, a qual nao tem manifestagdes exteriores, no depende da aco e é, por isso mesmo, antipolitica. £ essa dimensio politica da liberdade que se perdeu no mundo moderno. Nesse caso, a moderna identificagao da liberdade com a interio- ridade é evidéncia de um estranhamento do mundo e de um retraimento das experiéncias mundanas para um espago intimo ao qual ninguém tem acesso. “O campo em que a liberdade sempre foi conhecida”, diz Hannah Arendt, “nao como problema, mas como fato da vida cotidiana, é o ambito da politica’. A liberdade, portanto, expressa a dimehnsdo propriamente politica da acdo. Por isso, ela exige um espaco politicamente organi- zado para aparecer como “algo tangivel em palavras que podemos escutar, em feitos que podem ser vistos e em eventos que podem ser comentados, relembradose transformados em est6rias antes de serem incorporados, por fim, ao grande livro da hist6ria humana” ®” Em outras pmerressocias 56 palavras, a liberdade s6 pode se efetivar quando se manifesta na sua visibilidade, como uma realidade concreta e tangfvel. E isso depende da ago (e do discurso) “criar seu proprio espago concreto onde possa, por assim dizer, sair de seu esconderijo e fazer sua apari¢ao”. Sem esse espaco, a liberdade permanece como capacidade oculta, como uma virtualidade, que apenas atesta a qualidade especificamente humana de interromper os processos automiticos da vida. Onde os homens convivem, mas ndo constituem um organismo politico ~ como por exemplo, nas sociedades tribais ou na inti- midade do lar 0 fator que rege suas ages e sua conduta nao é 4 liberdade, mas as necessidades da vida e a preocupagdo com sua preservagdo, Além disso, sempre que 0 mundo artificial ndo se torna paleo para a ado € 0 discurso— como ocorre com comunidades organtzadas des- ‘poticamente que os banem para estreiteza dos lares, impedindo assim 0 ascenso de uma esfera pilblica — a liberdade nao pos- ‘sui realidade concreta. Sem um Ambito puiblico politicamente assegurado, falta & liberdade 0 espago concreto onde aparecer. Fla pode, certamente, babitar 57 Politica e Espace Pablo ainda nos coragdes dos bomens como desejo, vontade, esperanca ow anelo; mas 0 corago buma- ‘0, como todos 0 sabemos, & um lugar muito sombrio, e qualquer coisa que vd para sua obscuri- dade nao pode ser chamada adequadamente de um fato demonstravel. A liberdade como fato demonstravel e a politica coincidem e estdo relacionadas uma @ outra como dois lados da mesma matéria.® E aqui, portanto, que se tem um terceiro registro pelo qual a nogio de espago piiblico se determina como “comuni-_ dade politicamente organizada”. Enquanto tal, faz referéncia Hannah Arendt apresenta uma nogao muito peculiar acerca do marco legal. A lei, para ela, nao tem o sentido de prescrig&o ou mandamento. Tampouco é pensada como regulamentacao publica de interesses privados. As leis, cexistem, diz ela, para “erigir fronteiras e estabelecer canais de comunicacao entre os homens”. E essas fronteiras “sao para a existéncia politica do homem 0 que a meméria é para a existéncia hist6rica; garantem a preexisténcia de um mundo comum, a realidade de uma continuidade que transcende o espago da vida individual de cada geracao .." A lei, portanto, nao se confunde com o poder, pois este 86 existe na associagao entre os homens através da agao e da opiniao. Tampouco € sede de autoridade que, na amerossocis 58 interpretagao de Hannah Arendt, depende de uma tradigo rememorada e reatualizada a cada momento como nticleo de significagao. Fronteira para a ago, a lei delimita o espago no qual a interagio politica se da e pode se realizar. E estabelece as referéncias a partir das quais cada um pode “reconhecer 0 outro como seu semelhante”, sem que para isso se tenha que apelar para uma nogao genérica de ser humano ou a alguma nogio crista de humanidade. E ¢ isso que, para Hannah Arendt, constr6i as condigdes da i dade, entendida como isonomia e que se qualifica no direito comum a ago € a opiniao, ou seja, no reconheci- mento do direito de cada um e de todos & participacao na vida publica, Daj a peculiar nogao de direitos que Hannah Arendt elabora. Nao diz respeito as necessidades, interesses ou iduais. Faz referéncia, antes de tudo, a uma se explicitou, em negativo, com o surgimento dos apatridas © que ficava patente, diz ela, com a situago insdlita vivida por eles, era a inviabilidade da existéncia de direitos individuais independentemente de um corpo politico constituido como espaco de existéncia cidada.”” O pro- blema, diz Hannah Arendt, nao esté na garantia do trabalho, da residéncia ou mesmo da vida, pois tudo isso pode ser obtido pela caridade de uns, pela solidariedade de outros ou mesmo pela condescendéncia dos poderes estabelecidos, © problema é ter condigdes para reivindicar esses direitos 59 Politica e space Public, € escapar, portanto, da contingéncia de circunstancias que “thes sobrevém como acidentes sem nenhuma relacdo com © que fazem, fizeram ou venham a fazer’. © problema, tampouco, diz respeito a liberdade de pensamento, pois sem um espago que tore significativas as opinides de cada um, essa liberdade € equivalent a ‘liberdade do louco, porque nada do que pense pode importar a alguém”. No caso dos apatridas: a privacdo fundamental dos di- reitos bumanos se manifesta primeiro e sobretudo na priva- ¢40 de um lugar no mundo que torne significativas as épi- niges e efetivas as agées (...)- Tormam-se privados, no do di- reito a Hberdade, mas do direito 4 a¢ao; nao do direito a pensar (© que quetram, mas do diretto. A opinido, O privilégio em alguns casos, as injusticas na maioria deles, os acontectmentos favo- réveis ¢ desfavordveis, bes so- brevém como acidentes sem nenbuma relagdo com 0 que fazem, fizeram ou venbam a fazer? Ter direitos significa, portanto, no dizer de Hannah Arendt, pertencer a uma comunidade politica na qual as ages e opinides de cada um encontram lugar na conducao dos negécios humanos. £ isso o que ela quer dizer quando pierressocus 60 afirma a exigéncia de um espago no qual cada um pode ser julgado por suas agdes e opinides, nao pelo que so, enquanto classe, origem ou raga. “Ter direitos a ter direitos” € a expressiio que sintetiza a questio proposta por Hannah Arendt. Para ela, a perda do espago piblico significa a perda dessa condigao de igualdade que apenas a liberdade puiblica pode construir. Excluidos e privados desse espaco, os homens ficam fixados nas suas diferengas, aqui Ihes foi outorgado pela natureza. E 0 risco, nisso, esté na conversio dessa diferenga em critério politico e norma legal. E nessa conversio que so construidas as figuras do “estrangeiro” ou “barbaro” que, por sua diferenca radical, 6 excluido da vida civilizada e que, por ameagar a “polis”, deve ser mantido a distancia e, no limite, eliminado. £ isso ‘© que acontece quando a esfera publica é dissolvida ou entio invadida pelos critérios que regem a esfera privada. Nesse caso, as pessoas sero vistas e julgadas nao por suas ages e opinides, mas pelo que so em fungdo dos azares da vida, tal como atributos definidores de seu lugar no mundo. E£ 0 que ocorreu com os judeus nas sociedades européias. Ou entéo com os negros, na América. Em grande parte, € 0 que aconteceu com aqueles que, perdendo seu acesso a cidadania, perderam “todas as qualidades politicas distintivas e se converteram em seres humanos e nada mais que seres humanos” ~ “passam a pertencer A raca humana da mesma maneira como os animais pertencem a uma determinada espécie animal”: o1 Politica e Espace Publico. 62 Toda essa exfera do simplesmente outorgado, relegada & vida pri- vada na sociedade ctvilizada, constitui uma ameaga perma- nente para a esfera piiblica, ‘porque a esfera pitblica estd 1d0 conststentemente baseada na let de igualdade, como a esfera privada esd baseada na let da diferenga e da diferenciagao universais. A igualdade, ao contrario de tudo o-que estd implicado na simples existéncia, ndo nos é outorgada;-mai'é 0 resultado da organizacao bu- mana, porquanto 6 orlentada pelo principio da justiga. Nao nascemos iguais, nos tomamos fguais, como membros de um ‘grupo, por forga de nossa dectsdo de nos concedermos mutua- mente direitos iguats:? Od © grande perigo que advém da existéncia de pessoas obrigadas @ viver @ margem do mundo comum é que, em meio a civili- -zagao, sto devolvidas ao que lbes foi outorgado pela natureza, & ‘sua mera diferenciagéo. Carecem dessa tremenda equalizagao de diferengas que advém do fato de serem cidadaos de uma comu- nidade , como ja nao se thes permite participar do artificio bumano, passam a pertencer & raga bumana da mesma manei- ra como os animais pertencem uma determinada espécie ani- ‘mal. © paradoxo implicado na . perda dos direitos bumanos é que essa perda coincide com 0 instante em que uma pessoa se converte em ser bumano em geral — sem uma profissiio, sem uma nacionalidade, sem uma opinido, sem um fato pelo qual ‘possa identificar-se — e diferente em geral, representando sua expressdo dentro de um mundo comum, e de acdo sobre este, perde todo o seu significado. Igualdade e diferenga, eis ai um par dicotémico que esclarece o pensamento de Hannah Arendt nos seus pres- supostos e fundamentos. Tem, para ela, uma dimensao ontolégica e esta associado a todas as dicotomias que tanto caracterizam seu pensamento: agio e trabalho, poder ¢ violé: ico € econdmico, liberdade e necessidade, pluralidade e uniformidade. Todos esses pares encontram sua tradugao na diferenca entre 0 ptiblico e o privado, 63 enquanto lugares necessarios de sua manifestagao, sendo que, em todos eles, o segundo termo sempre faz referéncia as necessidades da vida e!aos constrangimentos que esta nos impde. Como enfatiza Enegren, a idéia de vida é “o outro nome, para Arendt, do inexorével que de todas as partes o perimetro do agit”, submetendo os homens as forgas imperativas da natureza.“ E nesse terreno que Hannah Arendt aloja 0 “trabalho” e 0 “labor” que, ao lado da “agio”, referida sempre ao primeiro pélo, constituem o que ela chama de “atividades da vida ativa”. E nisso preci- samente que se explicita uma antropologia pela qual o pensamento de Hannah Arendt deixa revelar uma forma de ontologia. : Aco, trabalho e labor so, para Hannah Arendt, dimen- sbes transcendentais da condicio humana. O privilégio dado 2. aco nao significa, portanto, negar as duas outras qualquer relevancia e pertinéncia. Mas isso supde que cada uma dessas atividades se realize no lugar que lhe € proprio no mundo para que possa, cada qual no seu limite e em sua propria esfera, convergir na construgao do mundo dos homens. © problema, diz ela, é que esses lugares se embaralharam, as fronteiras se dissolveram, as hierar-_ quias que deveriam articular seus espacos foram subver- tidas € € isso 0 que especifica o problema das sociedades modernas. © modemo primado do trabalho significa que os imperativos da necessidade invadiram a esfera publica de tal forma que esta terminou por se desfigurar, transfor- mando-se numa vasta administracao técnica e burocratica pimerossociss 64 que existe apenas em fungao da economia. E a isso que ela se refere quando discute o que define como “ascensio do social”, responsavel pela uniformidade e conformismo que caracterizam as sociedades de massa. Trata-se de uma sociedade na qual todos os seus membros consideram tudo ‘© que fazem “primordialmente como modo de garantir a vida". O problema é que, do ponto de vista das neces- sidades, os homens nao sao iguais, mas rigorosamente idénticos. E as atividades que em tomo delas so realizadas prescindem dessa sociabilidade especificamente politica dada pela ago e pelo discurso. Sao atividades que apenas relacionam 0 homem consigo mesmo nessa espécie de metabolismo com a natureza, por onde a sobrevivéncia se realiza como consumo (labor) e por conta de uma instru- mentalizagio de tudo como meios para se atingir objetivos que tém como medida exclusiva as necessidades de cada um (trabalho). E nesse ponto que o pensamento de Hannah Arendt recebe as criticas mais contundentes. Se no terreno da filo- sofia se acusa 0 tributo que paga A metafisica classica ao definir a condigéo humana por referéncia a qualidades essenciais ¢ universais, é em tomo de sua nogio de politica que as criticas se concentram. Mais especificamente, em tomo da nogiio de uma politica automatizada por uma ago € por um discurso desvinculados dos interesses ¢ dos conflitos. Uma ago e um discurso que teriam, por definicio, uma vocacio igualitéria que exclui a dominacao, a violencia ea desigualdade de poderes. De fato, no pensamento de 65 Politica e Bxpago Pablice, Hannah Arendt, interesses ¢ luta por interesses, violéncia, dominagao e subordinagio, na medida em que fazem referéncia aos imperativos da sobrevivéncia que, para ela, sao definidores da economia, nao tém e nem poderiam ter lugar na construgao desse mundo comum que articula os homens e que é sindnimo de vida civilizada, Neste ponto, as criticas sfio precisas. Ao enfatizar o equivoco de ‘uma interpretacdo da experiéncia modema (mas nao apenas moderna) que nega todas as evidéncias da inviabilidade de uma tal separagao entre 0 econémico € 0 politico, o que se critica, sobretudo, é a sua recusa em conferir sentido politico aos interesses que movem os homens em suas vidas privadas, a sua recusa em reconhecer na “pélis” a existéncia do conflito como uma dimensao constitutiva e, ainda, a sua recusa em reconhecer no trabalho um poten- cial de sociabilidade capaz de gerar uma esfera interativa entre os homens.** No entanto, se for possivel interpretar Hannah Arendt para além dela, desvencilhando-se dessa ontologia que atravessa seu pensamento, nao ha como nao reconhecer que esas dicotomias dao o que pensar. Se € verdade que a separacdo entre economia e politica nao se sustenta, também é verdade que Hannah Arendt nos ajuda.a pensar. que ha, nessa relacdo, uma questo a ser elucidada, desde que se recuse a idéia da transparéncia de uma a outra, de que uma seria a expresso da outra, caindo na armadilha que ela tanto denuncia de uma funcionalizagao de todos 08 conceitos, de tal forma que as questdes neles inscritas pirrossocis 66 se diluiriam e se perderiam de uma vez por todas. Na verdade, Hannah Arendt subverte os termos tais como foram colocados pela teoria politica classica, ao afirmar a inviabilidade de se constituir uma esfera publica a partir dos interesses privados, Nada mais distante de seu pensa- mento do que a idéia de um contrato social. E nada mais avesso as suas preocupagdes teéricas e politicas do que a identificagao do ptiblico com o Estado, por referéncia a0 qual os interesses privados encontrariam os limites e as referéncias para 0 seu agenciamento na esfera da economia, Seria possivel argumentar que, a rigor, nao se trata de uma subversdo, mas talvez apenas de uma inversio dos termos classicos, na medida em que ela se fixa no econé- mico € no politico, no privado e no pubblico, como instan- cias positivamente definidas e delimitadas. De toda forma, € por aquilo mesmo que faz sua originalidade que essas questdes poderiam ser repensadas. Originalidade que diz respeito & possibilidade de se pensar a politica como algo que nao se define exclusivamente por referéncia ao Estado, que se qualifica como forma de sociabilidade e que, por isso mesmo, depende da forma como a sociedade se institui enquanto espaco que cria suas proprias regras e seus proprios critérios, pelos quais os acontecimentos ¢ os constrangimentos da vida em sociedade podem se fazer visiveis e inteligiveis para os que dela participam. E 0 que-ela sugere quando enfatiza a questo da permanéncia em que a palavra, a memoria e a tradicao se articulam na construgdo de um mundo comum. Na verdade, o termo 67 Politica e Espago Piblico, que parece fazer falta na elaboracao de Hannah Arendt € ode representacao, por onde se poderia pensar a dimensao simbélica implicada na construgo do “mundo comum” Questo que Hannah Arendt nos sugere na medida mesma em que enfatiza, o tempo todo, o poder da palavra e do discurso, mas que ela parece recusar ao se fixar numa nogaio que contém em si mesma de quando aleanga essa visibilidade, sem mediacdes, que ela identifica no espago piiblico. F dificil imaginar uma agao politica que nao esteja vincu- lada a interesses. E é imaginas uma interacao politica que nao dependa do jogo dos conflitos e oposigdes que atravessam 0 espaco social. Mas se isso pode aparecer como algo diferente da simples defesa corporativa de interesses, ou ainda, se pode aparecer como algo diferente de uma fragmentacdo da vida social, depende da articulagao de uma-linguagem através da qual interesses e razdes privadas podem ser, para usar uma expressao de Hannah Arendt, desprivatizadas e formuladas por referéncia a critérios publics de pertinéncia ¢ relevancia. Talvez nisto se possa identificar a eficécia propriamente simbélica dos direitos. E Lefort, sobretudo, quem enfatiza esta dimensao. de Hannah Arendt, formula em outro registro-a. questo do “direito a ter direitos" e sua inscrigao em espacos publicos democriticos. E é a leitura de seus textos que nos leva a pensar 0 direitos como linguagem politica que articula priticas individuais e coletivas num espago comum de pertencimento. pimerrossocis 68 Mais ou menos explicitada, formalizada ou codificada, €nna linguagem dos direitos que a defesa de interesses se faz audivel e reconhecivel na dimensio publica da vida social. E, neste sentido, é através dela que as diferengas sio elaboradas e interpretadas. Pois 0 modo como direitos sio atribuidos ou negados, reconhecidos ou recusados traz inscritos, ao menos tacitamente formulados, os critérios pelos quais sio discriminadas as diferengas e defini ‘equivaléncias possiveis, montando as regras simbélicas das reciprocidades esperadas. Regras simbélicas que contém um principio de discernimento entre 0 justo € 0 injusto, 0 legitimo ¢ o ilegitimo, num modo de dizer e nomear a ordem do mundo que é sempre solidério com um conjunto de categorias através das quais se faz a distin¢do entre a ordem e a desordem, a razo e a desrazo, 0 possivel e 0 impossivel, o permitido e 0 interdito. Categorias muitas vezes implicitas, mas presentes nas formas de percep¢o, nas convicgdes, nos cédigos de comunicagio, nos valores morais € tradig6es culturais.” Isso sigt sociedade. Determinam-se nesse ponto di entre a legalidade e a cultura, a norma e as tradigdes, a experiéncia e 0 imagindrio, circunscrevendo o modo como os dramas da existéncia sto apreendidos, problematizados e julgados nas suas exigéncias de equidade E nesse ancoramento dos direitos na sociedade que se esclarece a afirmagao de Lefort a que o reconhecimento dos direitos nao depende da 69 Politica'e Espago Pablico, simples concordancia com a legalidade formal constituida. Tampouco depende da simples sangao do Estado. Para que uma demanda de direitos ganhe inscric&o juridica, diz Lefort, nao € suficiente “que tal ou qual reivindicagio encontre os ouvidos complacentes do Estado, é preciso que ela se beneficie antes ... do acordo mais ou menos acito de uma importante frago da opiniio publica, enfim, que ela se inscreva nisso que chamamos de espago piblico”, Espago indeterminado que nio se cristaliza como orde- namento institucional, na medida em que sua existéncia depende “daqueles que nele se reconhecem e Ihe dio sentido”."* Mas, se isso nao independe do conflito, este exige um espaco no qual possa aparecer como algo reco- nhecivel e inteligivel no seu acontecimento. E desse ponto de vista que o espaco piiblico se determina como espaco politico que “tem por efeito instituir uma cena na qual 0 conflito se apresenta aos olhos de todos (desde que a cidadania nao seja mais reservada a um pequeno ntimero) como necessario, irredutivel e legitimo”, de tal forma que “todas as divisdes de fato se transportam e se transfiguram nessa cena em que a divisio aparece como divisio de direito”.” E isto significa reconhecer que esse espago pUblico € regido por uma dinmica em que o proprio direito é sujeito a uma constante reinterpretacao, enquanto debate sempre reaberto sobre o justo € 0 injusto, 0 legitimo € oilegitimo. Debate sem garantias, enfatiza Lefort, porque nas sociedades modemas, sociedades nas quais foi elimi- nado todo referente que daria garantia A propria lei, ninguém pasrrossocis 70 RE HES Gat eet oS pode ocupar o lugar do grande juiz, de modo que o debate sobre a justiga fica inteiramente na dependéncia desse conflito que, ao se apresentar e se fazer representar no espaco publico, implica a abertura da sociedade a um permanente questionamento de seus proprios fundamentos, Mas isto também significa — e este € um dos aspectos mais instigantes da proposta de Lefort - que a existéncia formal de direitos nao garante a existéncia de um espa¢o piblico ¢ dessa sociabilidade politica que a pritica regida pela nogio de direitos € capaz de criar. Esse espago piblico desmoronaria, diz Lefort, se a posigdo cada vez mais forte do Estado enquanto garantidor de direitos econdmicos, sociais e culturais fizesse reduzir a legitimidade de novos direitos & sango do Estado. E se, por outro lado, as opiniées tendessem a encontrar um denominador comum, apesar de emanarem de categorias diversas, na espera dessa sangio, tornando-se virtualmente legitimadas na medida em que dispéem da “forga do ntimero”, Dai Lefort dizer que € a existéncia de um espaco publico atravessado por essa “consciéncia do direito a ter direitos” que Ihe € constitu- tiva, que faz toda diferenga entre uma forma democratica de sociedade e os regimes totalitirios: “a apreenstio demo: cratica do direito implica a afirmagao de uma palavra que, sem encontrar garantias nas leis estabelecidas ou na promessa do monarca, faz valer sua autoridade, na espera de uma confirmagao piiblica, em razdo de um apelo a consciéncia ptiblica”. Daf nao ser essa palavra a mesma coisa que uma demanda dirigida ao Estado. Daf também a 71 Politica e Bspago Piblico, diferenga entre a assisténcia que 0 Estado pode garantir em nome dos direitos e aquilo que um Estado totalitério pode, efetivamente realizar a titulo de protegao a0 bem estar de seus cidaddos. Nesse caso, ndo se pode falar propriamente de direitos pois “o discurso do poder é suficiente, ele ignora toda palavra que esteja fora de sua 6rbita”. Dessa forma, esse direito se transforma na outorga de um poder que, sempre arbitririo, “nao cessa de fazer a triagem entre aqueles aos quais ele concede os beneficios de suas leis e aqueles que sao dela excluidos”. Enquanto ‘outorga, os direitos criam stiditos e no cidadaos — “maquia- dos em direitos”, ndo so mais do que bens que os indi- viduos recebem, tratados que sio como dependentes e no como cidadios.” Se é verdade que'a garantia formal dos direitos no significa sempre e necessariamente um reconhecimento pUblico da legitimidade das razOes e vontades, interesses ¢ demandas de individuos ou grupos sociais, também € preciso reconhecer que os critérios publicamente estabe- lecidos de reconhecimento e legitimidade contém, em si mesmos, um principio de discriminacao que constréi a figura daqueles que, em fungio de sua condigio de classe, de género ou idade, de origem ou de cor, sio como que descredenciados como sujeitos reconheciveis e reconhe- cidos no espago publico. Trata-se daqueles que vivem sua condicao como diferenca que os exclui da dimensao piblica da vida social. Esses, para usar os termos de Hannah Arendt, so os parias da sociedade e a eles corresponde essa figura de um individuo privatizado do qual ela nos Dmurrossocuss 72 fala. E nessa figura que se pode, talvez, identificar os signos da dominagio, questo que esté ausente do pensamento de Hannah Arendt, mas para a qual ela certamente fornece elementos para uma reflex. Dominaciio que, no entanto, nunca chega a se objetivar plenamente no espago social, desde que a sociedade se abra a esse questionamento sobre o legitimo eo ilegitimo, o justo € o injusto, de forma que 0 “direito a ter direitos” possa significar, para muitos, como diz Lefort, um “recuo 4 obediéncia cega as normas estabelecidas Disso, certamente, do testemunho os movimentos sociais que surgiram nos tiltimos anos. Seu aparecimento ptiblico desenha uma trama visivel que poe em cena, junto com os (ou através dos) interesses, razdes e vontades que alimentam o conflito na materialidade daquilo que € reivindicado, uma luta simbélica em que se questionam as representagdes e imagens instituidas referidas 4 condigao de classe, de género, idade ou de raga, Sua aceitagao ptiblica nao se faz. sem resistencia e ambighidades de todos 08 tipos, mas se ela chega a se impor, nao € tanto pela “forga do ntimero” ou pela idéia convencional de correlagao de forgas, mas porque 0 acontecimento mobiliza em toro dele uma nogio de legitimidade e justiga que nao se fixa num critério nico, na medida mesma em que se abre a uma miiltipla, tensa, mas sempre reaberta reinterpretagio. Pioton« txpago Prisalo na Constitute do Seek notas sobre 0 pensamento de Hannah Arendt. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v.2, n.1, p.23-48, 1° Semesire 1950.) 73 ca © Bspago Publico. Notas * ARENDT, Hannah, Bntreopeassadoeo futuro, Sto Paulo: Perspectva, 1973. ™ ARENDT. La viede 'esprit-La pensée, p34. ARENDT. 4 condi¢do bumana, p22 ™ ARENDT, Hannah. Ves politiques Pas Galiard 174.37. S ENEGREN, Andeé. Lapenséepoliique de Hannab Arendt, Paris: PU, 1984. ps. Tbidem, p.194-195, » ARENDT. Los origenes del totalita- 10, p56. Politica e Bspaco Pablico, POBREZA E CIDADANIA: FIGURACOES DA QUESTAO SOCIAL NO BRASIL MODERNO Em texto célebre, Roberto ‘Schwarz comenta o quanto a sensagio que este pais sempre deu de dualismos, disparates e contrastes de todos os tipos deve a experiéncia do desconcerto diante de uma socie- dade que se quer modema, cosmopolita e civilizada, mas que convive placidamente com a realidade da violéncia, do arbitrio e da iniqtiidade. Roberto Schwarz fala do século XIX e tematiza o descompasso entre representagao ¢ real numa sociedade em que as relagdes de favor definiam um padrio de sociabilidade cuja especial virtude era esconjurar abrutalidade da escravidao." A pobreza brasileira contem- Pordnea traz algo — ou muito — desse desconcerto. Sao, é claro, outros os termos do desconcerto atual. Em primeiro lugar, estamos diante de uma sociedade que nao apenas se quer modema como, em alguma medida, se fez modema: €uma sociedade que se industrializou e se urbanizou, que gerou novas classes € grupos sociais, novos padrées de mobilidade e de conflito social, deixando para trés 0 velho Brasil patriarcal; € uma sociedade portadora de uma dina- ‘mica associativa que fez emergir novos atores e identidades, novos comportamentos, valores e demandas, novas formas de organizacao e de representagao que teceram a face publica de um Brasil modermo; é uma sociedade, enfim, que fez sua entrada na modernidade, que proclamou direitos, montou um formidavel aparato de Previdéncia Social, que passou pela experiéncia de conflitos e mobili- zag6es populares e construiu mecanismos factiveis de negociacao de interesses. Nesse caso, a persisténcia desconcertante da pobreza parece reativar velhos dualismos nas imagens de um atraso que ata o pais as raizes de seu passado e resiste, tal como a forga da natureza, A poténcia civilizadora do progresso. . Em segundo lugar, o atual desconcerto € diferente porque a iniqilidade nao ¢ (ou nao pode ser) mais expur- gada do real, reduzida que era a um mundo sem nome; jé que nao havia palavras para transformd-la numa experiéncia com significado vivo na sociedade. Se é verdade qué o pmsrossocas 80 “Brasil real” ganhou identidade(s) e vores) prépria(s), essa modemidade emergente trouxe consigo as evidéncias de um sistema de desigualdades, projetadas que foram, por forga de conflitos e lutas sociais, no cendrio publico da sociedade brasileira. Nesse registro, a pobreza é trazida para o lugar em que a linguagem elabora promessas de futuro e a acdo se faz visivel na sua capacidade de, para usar os termos de Hannah Arendt, interromper o ciclo da natureza e dar inicio a um novo comeg¢o. De fato, sob 0 impacto das lutas sociais que agitaram toda a década de 80, a nossa velha e nunca resolvida questio social foi colocada no centro das promessas que acenavam com a construgao de uma sociedade capaz de conciliar maior liberdade e maior igualdade. Depois de 15 anos de arbitrio e repressdo, uma conflituosidade inédita atravessou as mais diversas dimensées da vida social e fez ecoar por toda a sociedade, através de reivindicagdes diversas, a exigéncia por uma ordem de vida mais justa e mais igualitéria. A partir dai, a questdo social ganhou dimensio institucional evidente: enquanto “divida social” a ser resga- tada para que esse pais esteja 2 altura de uma modemidade pretendida como projeto, foi incorporada & agenda politica das forcas oposicionistas que se articularam na transigao. democratica;.com o fim do regime militar, compés 0 elenco dos compromissos assumidos pela Nova Republica, foi proclamada como prioridade e se transformou em peca obrigat6ria do discurso oficial; no contexto de uma recessiio econémica prolongada e de uma sociedade devastada por 81 Pobreza © Cldadania uma inflagdo descontrolada, transformou-se em item obrigatério em reiteradas propostas de pactos sociais, apre- sentadas como saida politica para a crise brasileira; enquanto exigéncia de direitos, polarizou confrontos e negociagdes em debates parlamentares, ¢ no sem marchas e contra- marchas, avangos e recuos, ambigilidades ¢ indefinigdes, a nova Constituigio, aprovada em 1988, expressou a aspiracao por uma sociedade democratica e mais igualitéria. Nessa perspectiva, o desconcerto de que se fala se apresenta, antes de tudo, como uma enorme perplexidade. Perplexi- dade diante de uma década inaugurada com a promessa de redengao para os dramas da sociedade brasileira e que se encerrou encenando aos olhos de todos o espéticulo de uma pobreza talvez jamais vista em nossa historia republicana, uma pobreza to imensa que se comeca a desconfiar que esse pais jé ultrapassou as fronteiras da vida civilizada. £, portanto, no horizonte de uma sociedade que se fez modema e promete a modernidade, que a pobreza inquieta. Nas suas miiltiplas evidéncias, evoca o enigma de uma sociedade que nao consegue traduzir direitos proclamados em parfmetros mais igualitarios de ag’o. populaco na pritica destituida de seus dire’ brasileira nfio deixa, de fato, de ser enigmatica numa Socie- dade que passou por mudangas de regime, fez a experiéncia de conflitos diversos, de mobilizagées e reivindicagdes populares, que mal ou bem fez sua entrada na moderni- dade e proclama, por isso mesmo, a universalidade da lei e dos direitos nela sacramentados. Daerressocias 82 ‘A pobreza contemporanea parece, na verdade, se constituir numa espécie de ponto cego que desafia teo- rias e modelos conhecidos de explicagao. Ponto cego instaurado no centro mesmo de um Brasil modemo, a po- breza contempordnea arma um novo campo de questdes ao transbordar dos lugares nos quais esteve configurada “desde sempre”: nas franjas do mercado de trabalho, no submundo da economia informal, nos confins do mundo rural, num Nordeste de pesada heranga oligarquica, em tudo o mais, enfim, que fornecia (e ainda fornece) as evidencias da l6gica excludente propria das circunstincias hist6ricas que presidiram a entrada do pais no mundo capitalista. De fato, ao lado da persisténcia de uma pobreza de raizes seculares, a face moderna da pobreza aparece registrada no empobrecimento dos trabalhadores urbanos integrados nos centros dinamicos da economia do pais. Como varios autores vém enfatizando, a velha dicotomia entre mercado formal e informal nao é mais suficiente para diferenciar pobres ¢ nao-pobres, seja pela deterioragio salarial que se aprofundou durante os tiltimos anos, seja pela degradacao dos servigos puiblicos que afetam a qualidade de vida nos centros urbanos, seja ainda pelo desemprego em larga escala que atinge o setor formal da economia. Na virada dos anos 80 para os 90, havia em tudo isso, é certo; os efeitos mais evidentes de uma inflagao que corroia salarios, de uma crise prolongada e de poli- ticas econdmicas ~ politicas de ajuste econémico, como se convencionou dizer ~ que provocaram recessio € desemprego, que induziram a um arrocho salarial sem 83 Pobreza e Cidadanta proporgdes em outros periodos da nossa hist6ria, que levaram 4 redugao dos gastos sociais e provocaram a deterioragao dos j4 precdrios e insuficientes servigos pliblicos. No entanto, se isso explica muito dos dilemas atuais, nao € suficiente para explicar as dimensdes da pobreza contemporainea. A chamada divida social aumentou muito nesses anos, mas suas origens vém de mais longe. E precisamente nisso que comeca a se armar 0 enigma da pobreza brasileira. Nos tiltimos 30 anos, ¢ isso € consenso entre analistas, o pais construiu base econémica e institu- cional para melhorar as condigdes de vida da populagio brasileira, diminuir a escala das desigualdades soci viabilizar programas de erradicacao da pobreza. Se nos, anos de crescimento econémico as chances nao foram aproveitadas, isso nao se deveu, portanto, a légica cega da economia, mas a um jogo politico muito excludente, que repde velhos privilégios, cria outros tantos ¢ exclui as maiorias. Se a pobreza contemporanea diz respeito aos impasses do crescimento econ6mico num pats situado na periferia do mundo capitalista, poe em foco sobretudo a tradi¢ao conservadora e autoritiria dessa sociedade. Porém, ainda assim o enigma permanece. Pois, conser- vadora e autoritéria, a sociedade brasileira sempre teve, para o bem ou para o mal, a questo social no seu horizonte politico. E uma sociedade na qual sempre existiu uma consciéncia ptiblica de uma pobreza persistente — a pobreza sempre apareceu no discurso oficial, mas tam- bém nas falas ptiblicas de representantes politicos e de Darrossoctas 84 liderangas empresariais, como sinal de desigualdades sociais indefens4veis num pafs que se quer 2 altura das nagdes do Primeiro Mundo. Tema do debate piblico e alvo privilegiado do discurso politico, a pobreza é e sempre foi notada, registrada e documentada. Poder-se-ia mesmo dizer que, tal como uma sombra, a pobreza acompanha a hist6ria brasileira, compondo 0 elenco dos problemas e dilemas de um pais que fez e ainda faz do progresso um projeto nacional. £ isso propriamente que especifica o enigma da pobreza brasileira. Pois espanta que essa pobreza persis- tente, conhecida, registrada e alvo do discurso politico, nao tenha sido suficiente para constituir uma opiniao publica critica capaz de mobilizar vontades politicas na defesa de padrées minimos de vida para que esse pais merega ser chamado de civilizado. Sobretudo espanta que o aumento visivel da pobreza no correr dos anos nunca tenha suscitado um debate piiblico sobre a justiga e a igualdade, ponido em foco as iniqitidades inscritas na trama social. Como problema que inquieta e choca a sociedade, a pobreza aparece sempre como sinal do atraso, pesado tributo que o passado legou ao presente e que envergonha um pais que se acostumou a pensar ser o “pais do futuro”. Tal como num jogo de espelhos invertidos, a pobreza incomoda ao encenar 0 avesso do Brasil que se quer moderno e que se espelha na imagem — ou miragem — projetada das luzes do Primeiro Mundo. Nesse registro, a pobreza é transformada em natureza, residuo que escapou a poténcia civilizadora da modernizagao e que ainda tem 85 Pobresa ¢ Cidadania, que ser capturado e transformado pelo progresso. Como espetdculo, é transformada em paisagem que nos lembra a condigao de pafs subdesenvolvido, mas que evoca a possibilidades de sua redengao pela via de um crescimento econémico capaz de brindar com seus beneficios os deser- dados da sorte. Entre as imagens do atraso e do progresso, a pobreza desaparece como atualidade, como problema que diz respeito aos parametros que regem as relages € as regras da reciprocidade através das quais a sociabilidade se efetiva. Num certo sentido, a pobreza contemporanea reatualiza questoes jé tratadas hé muito tempo por Sérgio Buarque'de Holanda e retomadas em outra chave por Roberto Schwarz. A “pobreza € horrivel’, mas no pode ser nomeada enquanto tal — é a aversdo ao real de que fala Buarque de Holanda*— pois isso obrigaria 2 escolha, ao julgamento e ao questionamento da forte estrutura de privilégios que caracteriza a sociedade brasileira: a pobreza € notada e é registrada, mas — para usar os termos de Schwarz — a notaco nao frutifica, 0 real nao se constitui como referéncia cognitiva e valorativa.’ As figuras de uma pobreza despojada de dimensao ética e transformada em natureza fornecem, talvez, uma chave para elucidar a persisténcia de uma pobreza em um pais que, afinal de contas, deixou para tras 0 estreito figurino da Reptblica oligirquica. Seria possivel dizer que essa figuraco ptiblica da pobreza diz algo de uma sociedade ‘em que vigoram as regras culturais de uma tradigao hierdr- quica, plasmadas em um padro de sociabilidade que asrrosscis 86 obsta a construgao de um principio de reciprocidade que confira a0 outro 0 estatuto de sujeito de interesses validos ¢ direitos legitimos. Como bem nota Roberto Da Matta, essa é uma matriz cultural propria de uma sociedade que no sofreu a revolugao igualitaria de que falava Tocqueville, em que as leis, ao contrario dos modelos classicos, nao foram feitas para dissolver, mas para cimentar os privilégios dos “donos do poder”; ef que, por isso mesmo, a modernidade anunciada pela universalidade das regras formais nao chegou a ter o efeito racionalizador de que trata Weber, convivendo com éticas particularistas do mundo privado das relagdes pessoais que, ao serem projetadas na esfera ptiblica, repdem a hierarquia entre pessoasno lugar em que deveria existir a igualdade entre individuos* E essa € a matriz da incivilidade que atravessa de ponta a ponta a vida social brasileira, de que so exemplos conhe- cidos a prepoténcia e 0 autoritarismo nas relagdes de mando, para nao falar do reiterado desrespeito aos direitos civis das populagées trabalhadoras. Incivilidade que se ancora num imagindrio persistent que fixa a pobreza como. marca da inferioridade, modo de ser que descredencia individuos para o exercicio de seus direitos, j que perce- bidos numa diferenca incomensurivel, aquém das regras dos direitos deveria concretizar, do que é prova evidente a violéncia policial que declara publicamente que nem todos sao iguais perante a lei e que os mais elementares direitos civis s6 valem para os que detém os atributos de 87 Pobresa e Cidadania. respeitabilidade, percebidos como monopélio das “classes superiores”, reservando as “classes baixas” a imposico autoritéria da ordem. O enigma da pobreza esti inteira- mente implicado no modo como direitos sio negados na trama das relagdes sociais. Nao € por acaso, portanto, que tal como figurada no horizonte da sociedade brasileira, a pobreza apareca despojadg de dimensao ética e 0 debate sobre ela seja dissociado da questo da igualdade e da justica: Pois essa é uma figuragdo que corresponde a uma sociedade em que direitos nao fazem parte das regras que corganizam a vida social. E uma figuraco que corresponde a0 modo como as relagdes sociais se estruturam sem outra medida além do poder dos interesses privados, de tal modo que o problema do justo e do injusto nao se coloca e nem tem como se colocar, pois a vontade privada ea defesa de privilégios - € tomada como a medida de todas as coisas. Seria um equivoco creditar tudo isso a persisténcia de tradicionalismos de tempos passados, residuos de um Brasil arcaico. Pois esses termos constroem a peculiaridade do Brasil moderno. E certo que a sociedade brasileira carrega todo 0 peso da tradigao de um pais com passado escravagista e que fez sua entrada na modernidade capi- talista no interior de uma concepgio patriarcal de mando. © autoridade,’ concepgao esta que traduz diferengas desigualdades no registro de hierarquias que criam a figura do inferior que tem 0 dever da obediéncia, que merece 0 favor e protecao, mas jamais os direitos.° Tradigao essa pmerrossociss 88 = que se desdobra na prepoténcia e na violéncia presentes na vida social, que desfazem, na pratica, o principio formal da igualdade perante a lei, repondo no Brasil modemo a matriz hist6rica de uma cidadania definida como privilégio de classe.” No entanto, no se trata de postular 0 descom- passo entre o Brasil legal e o Brasil real, essa imagem sempre evocada pela forga expressiva que ela contém para dar forma a perplexidade — ou o desconcerto, para falar como Schwarz — diante de uma realidade sempre na contramao, contradizendo as promessas proclamadas no mundo luminoso das leis, das instituigées e do Estado. Pois, a reposigio de hierarquias e diferengas no solo social tem a ver com © modo mesmo como direitos, leis e justica social montaram os termos da cidadania brasileira e teceram as figuras do Brasil modemo. E € nisso que se aloja o paradoxo da sociedade brasileira. Paradoxo de um projeto de modernidade que desfez as regras da Republica oligdrquica, que desencadeou um vigoroso processo de modernizacao econdmica, social € institucional, mas rep6s a incivilidade nas relagdes sociais. Pois nos anos 30, a concessio de direitos trabalhistas ea montagem de um formidavel sistema de protecao social tiraram a populacao trabalhadora do arbitrio, até entio sem limite, do poder patronal, para jogé-la por inteiro sob a tutela estatal. Trata-se de um peculiar modelo de cidadania, dissociado dos direitos politicos e também das regras da equivaléncia juridica, tendo sido definida estritamente nos termos da protegiio do Estado, através dos direitos sociais, 89 Pobreza © Cidadania como recompensa ao cumprimento com o dever do trabalho. Ea cidadania regulada, de que fala Wanderley Guilherme dos Santos. Dissociado de um cédigo universal de valores politicos e vinculado ao pertencimento corpora- tivo como condicdo para a existéncia civica, é um modelo de cidadania que nao construiu a figura modema do cidadio referida a uma nogdo de individuo como sujeito moral e soberano nas suas prerrogativas politicas na sociedade. A rigor, éste no tem lugar na sociedade brasileira, ja que sua identidade é atribuida pelo vinculo profissional sacramen- tado pela lei e que o qualifica para 0 exercicio dos direitos. © cidadao como individuo nao tem identidade e figura proprias: a verdadeira figura da cidadania é 0 sindicato? E ele que tem a posse de direitos e é através dele que 0 trabalhador reconhecido pelo seu vinculo legal 4 comporacao profissional pode ter acesso aos beneficios sociais garantidos pelo Estado. Daf Santos dizer que a carteira de trabalho, mais do que uma evidéncia trabalhista, € uma certidao de nascimento civico.” Fora dessa condicio, vigora 0 estado de natureza no qual sdo submergidos todos os que tém uma existéncia percebida como impermedvel & regula- mentagao estatal e que, por isso mesmo, nao existem para efeito legal. Desempregados, desocupados, subem- pregados, trabalhadores sem emprego fixo e ocupacao definida so na pritica transformados em pré-cidadios, “sujeitos ao tratamento hobbesiano classico”, ou se} reptessio pura e simples, tanto privada como estatal.” Se é verdade que essa definigao estritamente corpora- tiva de cidadania j4 € coisa do passado, também é certo prrossocus 90 que as marcas da origem deixam revelar seus efeitos na cultura politica desse pais na armadura institucional itos sociais. A persisténcia de uma percepco itos como doagdo de um Estado protetor seria inexplic4vel sem essa peculiar experiéncia de cidadania dissociada da liberdade politica, como valor e como pritica efetiva, e que se confunde, se reduz, a0 acesso aos direitos sociais, Mas 6 preciso ver, também, que essa cultura politica se corporifica a0 mesmo tempo que é realimentada numa peculiar trama institucional na qual os direitos sociais se efetivaram. Por isso mesmo, vale interrogar-se pela eficdcia desses direitos na moldagem da sociedade brasileira, pois so eles que poem em foco os paradoxos dessa sociedade. Nao pela evidéncia do descompasso entre a existéncia formal de direitos e a realidade da destituigio das maiorias. Ou melhor, pelo que esse descompasso revela da logica que preside a formulagio e formalizagio dos direitos na sociedade brasileira. Pois 0 que chama a atengao 6 a constituigdo de um lugar em que a igualdade prometida pela lei reproduz e legitima desigualdades, um lugar que constréi os signos do pertencimento civico, mas que contém dentro dele proprio o principio que exclui as maiorias, um lugar que proclama a realizac&o da justiga social, mas bloqueia os efeitos igualitarios dos direitos na trama das relagdes sociais. Voltaremos & questo na segunda parte desse texto. Por ora, vale dizer que € nisso que se explicita o aspecto mais desconcertante da sociedade brasilei sociedade que carrega uma peculiar experiéncia histérica ot Pobreza e Cidadanta. na qual a lei, ao invés de garantir e universalizar direitos, destitui individuos de suas prerrogativas de cidadania e produza fratura entre a figura do trabalhador e a do pobre incivil. Chama sobretudo a atengao uma lei que, a0 pro- lamar e garantir direitos sociais, sacramenta desigualdades, repde hierarquias pelo viés corporativo e introduz seg- mentagdes que transformam em pré-cidadaos todos os que nao tém a posse da carteira de trabalho.” Em primeiro lugar, se a partilha corporativa para efeito de atribuigao de direitos j4 nao existe, o pressuposto do vinculo ocupacional ainda se mantém, o que significa dizer que 0 acesso aos direitos sociais se dissocia, na pritica, de uma condigao inerente de cidadania. Em segundo lugar, vinculados que sio ao valor das contribuigdes fixadas a Partir da renda adquirida através do trabalho, os beneficios garantidos pelo Estado terminam por reproduzir o perfil das desigualdades sociais. Nesse caso, a universalidade da lei que garante a todos a protegao social consagra desi- gualdades e anula na pratica os efeitos redistributivos e compensatérios que supostamente sio os objetivos das politicas sociais. Trata-se do que a literatura especializada chama de “direito contratual”, que, pelo menos no caso brasileiro, tem a especial virtude de neutralizar a questo da igualdade. Mais do que limitagdes e perversoes de um determinado sistema de contribuigo e financiamento da idéncia ~ questio que tem sido alvo privilegiado das criticas ao sistema previdenciario brasileiro —, 0 que importa aqui enfatizar € 0 quanto isso carrega de uma ros sociass 92 = tradicao na qual os direitos sociais nao foram formulados do Angulo das desigualdades sociais que eles supostamente deveriam compensar. Nao foram formulados na perspectiva do individuo-cidadaio que encontra nos direitos sociais um recurso para compensar as vicissitudes da vida social que ‘©. comprometeriam como individuo auténomo e soberano nas suas prerrogativas de cidadao. Como mostra Angela Maria de Castro Gomes, o Estado getulista definiu uma peculiar nogao de igualdade entendida estritamente como igual direito a protecao do Estado, tendo por pressuposto a existéncia civica definida pelo pertencimento corporativo. Com isso, as desigualdades sociais se legitimavam no registro de hierarquias naturalizadas e traduzidas no orde- namento corporativo da sociedade.¥ E nessa matriz que sobretudo se esclarece 0 tipo de vinculo entre Estado e sociedade que os direitos sociais definem. Tal como foram institucionalizados na sociedade brasileira, estabelecem uma relagao vertical com 0 Estado que retribui na medida da contribuigao de cada um, forma- lizando no mundo piiblico da lei, uma matriz privada na qual as garantias contra a doenga, a invalidez, a velhice, a orfandade dependem inteiramente da capacidade — e da Possibilidade, dirfamos nés— de cada um em conquistar 0 seu lugar no mercado de trabalho. Podem ser entendidos como uma espécie de contrato de servigos que o contri- buinte estabelece com o Estado. A rigor, no se constituem como direitos sociais se por isso entendermos uma forma determinada de contrato social que define os termos da 93 Pobreza ¢ Cidadanta, reciprocidade entre as classes ¢ entre essas € o Estado, a partir das regras de julgamento que problematizam circunstancias de vida e de trabalho, tipificando a ordem de suas causalidades e responsabilidades." O fato de que apenas muito recentemente se admitiu a necessidade de um seguro-desemprego" 6, nesse sentido, caso exemplar de uma sociedade que joga inteiramente nas costas dos individuos a responsabilidade por seu préprio destino, quando a perda dos meios de sobrevivéncia nao tem relaglo com seus atos, vontades e competéncias, Mas nesse exem- plo mesmo fica claro que mais do que as caracteristicas formais de um modelo de Previdéncia, o importante éa tradigao na qual ele est ancorado e a-qtial, de alguma forma, dé continuidade: A defini¢ao da justica social como tarefa do Estado teve por efeito neutralizar a questo da igualdade numa l6gica perversa em que as desigualdades sio transfiguradas no registro de diferengas sacramentadas pela distribuigio diferenciada dos beneficios, invisibilizando a matriz real das exclusdes. Direitos que recriam desigualdades, pela sua vinculagio profissional so também direitos que no se universalizam € sobrepdem as diferencas sociais uma outra clivagem que transforma em no-cidadiios os que escapam as regras do. contrato. Esses so os no-iguais, os que nao estdo creden- ciados & existéncia civica justamente porque privados de qualificagio para o trabalho. Sao os pobres, figura classica da destituigao. Para eles, é reservado o espago da assisténcia social, cujo objetivo nao é elevar condigées de vida mas Deurrossocus 94 minorar a desgraca e ajudar a sobreviver na miséria."* Esse € 0 lugar dos nao-direitos e da nao-cidadania. E 0 lugar no qual a pobreza vira “caréncia”, a justiga se transforma em caridade ¢ 0s direitos em ajuda, a que o individuo tem acesso nio por sua condigao de cidadania, mas pela prova de que dela esta excluido. f 0 que Aldaiza Sposati chama de “mérito da necessidade” que define a natureza perversa de uma relacio com o Estado que cria a figura do neces- sitado, que faz da pobreza um estigma pela evidéncia do fracasso do individuo em lidar com os azares da vida que transforma a ajuda numa espécie de celebracao pliblica de sua inferioridade, j4 que 0 seu acesso depende do individuo provar que seus filhos esto subnutridos, que ele préprio é um incapacitado para a vida em socie- dade e que a desgraca é grande o suficiente para merecer aajuda estatal, Se na esfera dos direitos sociais a questo da igualdade e da justica € ocultada pela hierarquizacao na distribuigao dos beneficios sociais, aqui € a propria nogio de responsabilidade publica que se dissolve como se fossem naturais os azares do destino que jogam homens, mulheres e criangas para fora da sociedade. esse lugar de uma pobreza transformada em condigao natural, nao existem sujeitos. Nele, homens e mulheres se véem privados de suas identidades, ja que homogeneizados na situago estigmatizadora da caréncia, Sem existéncia juridica definida, nem mesmo Ihes cabe 0 recurso legal a que em principio os (outros) trabalhadores podem recorrer quando se percebem lesados nos seus direitos.” 95 Pobreza ¢ Cldadanta Aaassisténcia social na verdade traduz no registro da caréncia esse mundo sem sujeitos que € 0 chamado mercado informal de trabalho no qual esta submergida sua clientela Potencial. E esse um mundo que se estrutura nas fronteiras ambiguas entre a legalidade e a ilegalidade, um mundo que parece flutuar ao acaso de circunstancias sem explicitar sua relagio com as estruturas de dominacao e poder da sociedade, um mundo onde nao existe contrato formal de trabalho, direitos sociais ¢ representaco profissional, um mundo, portanto, sem a medida por onde necessidades » € interesses possam se universalizar como demandas e reivindicagdes coletivas."* Esse € o terreno no qual transita cerca de metade ou mais da populagio ttabalhadora, entre desempregados e trabalhadores do mercado informal, sem contar com as criangas, idosos e todos os que, por razbes diversas, esto fora do mercado de trabalho. Essa € uma gente desprovida de qualquer sistema PUiblico de protegao social. Mas é também uma gente que transita em um mundo social que “no existe” do ponto de vista legal. Nao existe pois 2 margem das regras formais da “cidadania regulada” que, apesar de todas as mudangas Por que passou o pais nas tiltimas décadas, mantém ope- rante o principio excludente montado nos anos 30. N40 deixa de ser espantosa uma arquitetura institucional que sempre manteve mais da metade da populago fora e& margem do “Brasil legal”. Fora e 4 margem do “Brasil legal”, porém submersa em uma intrincada e obscura rede de relagdes que articulam miriades de organizagées Datzrossocus 96 filantrépicas e o proprio Estado. Se é verdade que a matriz corporativa dos direitos produz a figura da pobreza incivil, sabe-se hoje que a tradigao assistencial nio comega com o Estado getulista, mas com a filantropia privada cujas origens remontam ao Brasil colonial. Tradig4o que ser redefinida no século XIX € continuard pelas trés primeiras décadas desse século como lugar da “pobreza desvalida”.® Como mostra Aldaiza Sposati, no p6s-30, o assistencialismo sera resgatado e redefinido pelo Estado getulista, instituciona- lizando € sacramentando © que os autores chamam de “gestio filantrépica da pobreza”. Paralelamente & centra- lizagao ¢ estatizaco dos servigos para os trabalhadores de posse de seus direitos de cidadania, a assisténcia social seguir, a0 contrério, o caminho da descentralizagio através da articulago do Estado com a filantropia privada respon- ‘vel pelos destituidos dos atributos da cidadania. Enquanto a regulamentagio profissional segmenta a sociedade em cidados e nao-cidadaos, o perfil das instituigdes de protecao social ir, portanto, produzir a segmentaco estigmatiza- dora entre trabalho e pobreza. Trabalho e pobreza trans- formam-se, assim, em dois modos antinémicos de existéncia social. Diante de uma figura normativa do trabalhador que da provas da sua capacidade para a vida em sociedade e, portanto, tem o privilégio da protegio do Estado, a figura do pobre é inteiramente desenhada em negativo sob 0 signo da incapacidade e impoténcia, fazendo da ajuda a \inica forma possivel para os assim definidos “carentes” se manterem em sociedade. 7 Pobreza @ Cidadantia Estranhos os caminhos da cidadania brasileira. Caminhos que, ao contrario das experiéncias clissicas conhecidas, bloqueiam os efeitos igualitarios que em principio as leis ¢ 08 direitos deveriam produzir. Em texto no qual comenta a “Democracia na América”, Marcel Gauchet chama a atengiio Para o papel que o Estado modemo desempenhou na cons- truco da “sociedade dos iguais” descrita por Tocqueville. Para além dos efeitos niveladores da lei que dissolve privilégios e hierarquias, o fundamental, diz Gauchet, € a dindmica igualitéria que se instaura na sociedade e que tem como foco o préprio Estado como a referéncia a partir da qual os individuos podem se conceber como iguais. A modema concepgao de individuo comio principio ¢ fundamento da sociedade,™ diz Gauchet, nao poderia existir sem a referéncia a um Estado que se apresenta como fonte da lei que deve valer para todos. O Estado é “oespelho no qual o individuo péde se reconhecer na sua independéncia e auto-suficiéncia’, liberando-se por essa via dos constrangimentos préprios dos modos tradicionais de vida. O Estado instaura sobretudo a referéncia simbé- a partir da qual os individuos se reconhecem como iguais, independentemente de suas vinculagées efetivas de familia, classe ou profissao. E essa a dimensio simbélica embutida na formalidade da lei e na individualidade abstrata nela pressuposta, que desencadeia uma dindmica igualitéria que tem a ver nao com a supresstio das desigualdades reais — estas irdo se reproduzir nas sociedades modernas -, mas com 0 modo como se concebe a natureza do vinculo: mrrossocis 98 que articula os individuos em sociedade. Nao é, portanto, num possivel nivelamento das condigées econémicas que a igualdade deixa entrever seu significado. A igualdade, enfatiza Gauchet, 6 um mticleo de sentido, fonte de um imagindrio —imagindrio igualitirio — que mostra seus efeitos no modo como os individuos se percebem e sao percebidos nas relagdes da vida em sociedade. A experiéncia brasileira parece se constituir ao revés da “revolugio igualitiria” fundadora das sociedades moder- nas, pois um mundo de hierarquias e diferengas € reposto ¢ figurado por referéncia a esse lugar em que os direitos so proclamados e sacramentada a universalidade da lei. Eo que chama a atencio € 0 fato de ser precisamente a justica social a pega que obstrui a dindmica igu: operando uma espécie de curto-circuito na dimensao simbélica implicada na universalidade da lei. Aparente paradoxo este, pois os direitos sociais deveriam, em prin- cipio, mostrar seus efeitos ali onde a igualdad encontra o seu limite, levando mais longe o imaginario igualitario no reconhecimento de que a sociedade deve dar garantias ao cidadaio quando condigées adversas compro- metem 0 seu direito a vida e ao trabalho. Porém, a justica social brasileira nao foi concebida no interior de um imagi- nario igualitario, mas sim no interior de um imaginario tutelar que desfigura a propria nogo modema de direitos, formulados que sio no registro da protegao garantida por um Estado benevolente. Intl, portanto, insistir num descom- asso entre Brasil legal e Brasil real. Pois nao se trata de 99 Pobresa e Cidadania. leis que nao funcionam e que so como que revogadas sociologicamente por uma realidade que nao se ajusta 2 racionalidade abstrata das regras formais. A persisténcia de desigualdades hierarquizadas nao tem a ver com dimensdes da vida social que estariam subtraidas ao império da lei. Ao contririo disso, a l6gica das discriminagdes opera no modo mesmo como a legalidade se institui na sociedade brasileira, Em outros termos, é na prOpria experiéncia do mundo piiblico da lei que o “pobre” é jogado para a esfera da natureza, mundo das hierarquias naturais através das quais _discriminagdes e exclusdes se processam. Todo o problema parece estar precisamente na vigencia de um mundo legal que no chega a plasmar as regras da civilidade 68 termos de uma identidade cidada, de tal modo que hierarquias S10 Tepostas onde deveriam prevalecer os valores modemos da igualdade e da justiga. Nessa articulagao das caracteristicas de uma sociedade hierdrquica e a tradigao autoritaria ha uma obstrugao da dinamica igualitéria propria das sociedades modernas. As dificuldades de se acolher 0 conflito como acontecimento legitimo sao os seus indicios mais evidentes. Como mostra Gauchet, enquanto foco de um imagindrio que se traduz nas regras da sociabilidade que articula individuos e classes, a igualdade é precisamente posta & prova no reconheci- mento ~ de fato e de direito ~ da diferenga do outro. E, Portanto, apenas no interior de um imagindrio igualitério. que 0 conflito pode emergir como acontecimento legi- timo. Ou melhor: numa sociedade regida pelo codigo rrossocats 100 da igualdade, 0 conflito aparece como acontecimento inevitavel e irredutivel da vida social, na medida em que 0s individuos se reconhecem e sao reconhecidos no seu igual direito de por em questio modos de ser em sociedade. Mas o lugar que 0 conflito ocupa nas sociedades modernas mostra também que a igualdade nao opera como um valor cultural transmitido pela forga das tradigdes. Se assim fosse, pouca esperanca haveria para um Brasil de origem escravagista, portador de uma tradigao que, na ldgica das diferenciagées hierdrquicas, atribui a individuos e grupos sociais modos de ser distintos e incomensuraveis. Mas 0 conflito € 0 outro pélo por onde a dinmica igualitaria se processa. E através do conflito que os excluidos, os nao- iguais, impdem seu reconhecimento como individuos € interlocutores legitimos, dissolvendo as hierarquias nas quais estavam subsumidos numa diferenga sem equivaléncia possivel.”’ E nele, portanto, que o enigma dos direitos se decifra, enquanto conquista de reconhecimento e legiti- midade, sem 0 que a cidadania formulada nos termos da lei nao se universaliza € nao tem como se enraizar nas praticas sociais. E nele ainda que a questo da justica se qualifica, enquanto garantia de uma eqilidade que a desi- gualdade de posigdes sempre compromete. Isso significa que a questo da justica esta implicada na trama dos conflitos. Na verdade, constitui o proprio campo dos conflitos: 6 em tomo da medida do justo e do injusto que a reivindicacdo por direitos € formulada, os embates se Processam e se desdobram numa negociacao possivel. 101 Pobreza e Cidadania. A experiéncia brasileira mostra quo penosa pode ser a conquista da igualdade. Mostra o quanto pode existir de ambivaléncia em uma sociedade na qual a dinamica igualitéria inscrita nas hutas sociais dos tiltimos anos convive com discriminagdes sempre repostas pela l6gica das hierar- quias enraizada no subsolo moral e cultural da sociedade. ‘Mas mostra sobretudo o quanto tradig&es podem ser eficazes no sentido de bloquear a poténcia propriamente simbélica dos conflitos. £ como se os conflitos fossem reduzidos a uma mera factualidade, percebidos no registro estrito de defesa corporativa de interesses, sem que 0 seu aconteci- mento tenha esse desdobramento no sentido de figurar na sociedade e para a sociedade a questio Portanto, da igualdade — implicada na rei direitos. Mesmo quando reconhecidos como fatos rotineiros da vida social, a questio da justica 6 deles subtraida sob as imagens da desordem, da convulsio, da imesponsabilidade ou da pura e simples inconseqiiéncia diante das “tarefas nacionais” prometidas a garantir o interesse de todos. Aqui, €a nossa e velha conhecida tradigao estatista que se faz presente na afirmacao do Estado como instncia exclusiva de uma agao dotada de sentido e eficacia politica, referencia primeira por onde razio estatal e razo nacional se funden na construgao de um pri de ordem posto como anterioridade e fundamento da prépria sociedade,* polo exclusivo de legitimidade sobre 6 qual se imagina fundar um consenso quanto ao que sefa ou deva ser bem piiblico ¢ interesses da Nagao. Mesmo que devidamente temperada Dmerrossocuus 102 pelas mudangas em curso do Brasil contemporiineo, essa tradigao (€ imaginario) € reposta nessa figuracdo dos conflitos. Se é verdade que muita coisa mudou no Brasil contem- porineo, se direitos, participagdo, representagaio e nego- ciagao ja fazem parte do vocabulirio politico a0 menos nos principais centros urbanos do pais, a questo da pobreza permanece e persiste desvinculada de um debate puiblico sobre critérios de igualdade e justiga. Mesmo que as figuras hist6ricas de um Estado tutelar nao tenham mais vigéncia no Brasil atual, mesmo que tenham sido submetida, nos {iltimos anos, a um jogo cruzado de criticas que, a esquerda € 8 direita, por razdes diversas e sob l6gicas politicas distintas, denunciaram seus efeitos perversos na hist6ria brasileira, a tradigéo cobra e continua cobrando seus tributos numa espécie de linha de sombra em que se confunde direitos ¢ ajuda, cidadania e protegio assistencial, 20 mesmo tempo em que repée essa espantosa indiferenga diante do espetaculo da pobreza, que tanto caracteriza a socie- dade brasileira. Pois € na propria visibilidade da pobreza que a tradigo se ancora para figurar o seu lugar no horizonte simbélico da sociedade. Visivel por todos os lados, nas suas evidéncias a pobreza é percebida como efeito indesejado de uma hist6ria sem autores e responsabilidades. Nesse registro, aparece como chaga aberta a lembrar o tempo todo o atraso que envergonha um pais que se quer modemo, de tal modo que sua eliminagio € projetada para as promessas civilizat6rias de um progresso que havera, 103 Pobreza e Cidadania algum dia, quem sabe, de absorver os que foram até agora dele excluidos. Como problema que inquieta e choca a sociedade, a pobreza aparece no entanto no registro da patologia, seja nas evidéncias da destituigao dos miseriveis que clamam pela ago protetora e assistencial do Estado, seja nas imagens da violéncia que apelam para sua ago preventiva e, sobretudo, repressiva. Num registro ou no outro, a pobreza é encenada como algo externo a um mundo propriamente social, enquanto mundo no qual so construidas as regras das reciprocidades sem as quais a sociabilidade nao poderia se realizar. Fruto de exclusdes miiltiplas, parece armar um cenario no qual desaparece como problema que diz respeito aos paramietros que regem as relagdes sociais. Nessas formas de encenacao publica, a pobreza € transformada em paisagem® que lembra a todos 0 atraso do pais, atraso que havera de ser, algum dia, absorvido pelas forgas civilizat6rias do progresso. Paisagem que rememora.as origens e que projeta no futuro as possibilidades de sua redengo, a pobreza nao se atualiza como presente, ou melhor, na imagem do atraso, aparece como sinal de uma auséncia. Como paisagem, essa pobreza pode provocar a com- paixdo, mas nao a indignagao moral diante de uma regra de justica que tenha sido violada. Como lembra Hannah Arendt, o primeiro é um sentimento estritamente privado as agdes que sio por ele movidas marcam di reafirmam a inferioridade do outro, que € 0 seu objeto. A indignacao moral s6 pode existir se houver uma medida ‘ancias 1 - Damerossocus 104 comum de equivaléncia, tendo na lei a referéncia simbdli a partir da qual os individuos, na iredutivel singularidade de cada um, podem se reconhecer como semelhantes.*° ‘Transformada em paisagem, a pobreza € trivializada e banalizada, dado com 0 qual se convive — com um certo desconforto, é verdade -, mas que nao interpela responsabilidades individuais e coletivas. Como se sabe, a trivializagdo é sinal de uma incapacidade de discerni- mento ¢ julgamento — € a isso que Hannah Arendt se refere quando fala da banalidade do mal.*' Na verdade, a pobreza brasileira, persistente no correr das décadas, € 0 retrato de uma sociedade que confundiu e ainda confunde modemizag4o com modernidade, uma sociedade na qual as nogdes de igualdade, liberdade e justica — valores defi- nidores dos “tempos modernos” ~ nao tém fungao critica €, na melhor das hipéteses, viram assunto de uma eterna desconversa que é, para Roberto Schwarz, a marca regis- trada do que ele chama “desfagatez de classe”. Hist6ria versus natureza: o lugar da pobreza na sociedade brasileira Pobreza transformada em natureza: pobreza tran: gurada em imagens que desfiguram diferenas, desigual dades e conflitos num territério indiferenciado para além da sociedade'e, portanto, para além da historia. E isso que esclarece o sentido de uma exclustio que se processa na l6gica de uma cidadania restrita em que os direitos nao se universalizam. Pois para além do que existe como regra formal, os direitos — desde que reconhecidos — estruturam a 105 Pobresa e Cidadan linguagem que torna a defesa de interesses audivel na sociedade e da forma reconhecivel aos conflitos. As priticas regidas pelos direitos montam 0 cenario no qual a experi- éncia da diversidade conflituosa dos interesses se faz como hist6ria na medida mesmo em que constr6i as balizas por conde o confito se faz legivel e compreensivel nos registros de seu acontecimento. Nas imagens que transformam a pobreza em natureza, a propria histria é neutralizada. Presente e visivel como Paisagem, a pobreza encena o atraso do pats — pais dos contrastes. Atraso que aparece como o fardo pesado que a sociedade carrega e que vem de uma historia sém autores € responsabilidades, transformada, portanto, taimibém ela, em natureza que ainda precisa ser capturada e transformada sob o signo do progresso. E nesse modo de figurar o lugar da pobreza na socie- dade que o presente evoca a hist6ria passada. Se esta pode esclarecer algo de nosso préprio presente, € pela possibi- lidade de esclarecer a légica de destituigio embutida no modo como sao construidas as figuras e os lugares da pobreza na sociedade brasileira. Nao se pretende com o que segue reconstituir fatos, acontecimentos e circunstancias que montam uma hist6ria real. © que importa é flagrar as imagens da pobreza através da narrago que os historiadores fazem de um Brasil urbarlo que se con: importa perceber © lugar que a pobreza ocupava no horizonte simbélico da sociedade brasileira. Na recusa da existéncia de uma Dasrrossocis 106 questio social — “a questdo social € um caso de pol ~havia a afirmagdo de um lugar no qual a pobreza era percebida, apreendida e objetivada, para além da cegueira ideol6gica desse liberalismo peculiar que conseguia a proeza de conviver com a escravidao e conferir raz0 20 arbitrio embutido num patemnalismo de raizes patriarcais. De fato, nesse Brasil urbano que se iniciava na vida politica independente, chama a atengao 0 quanto a pobreza fazia parte da experiéncia de uma sociedade em mudanga, que se queria moderna e civilizada, na direco de um progresso sintonizado com 0 padrao europeu. O tema do progresso, verdadeira obsesso da época, montava um horizonte simbélico que construfa as figuras de um presente dilacerado entre os simbolos nos quais as elites se reconheciam satisfeitas de sua propria modernidade e os sinais de um atraso associado a incivilidade popular e que gerava 0 desconforto, horror e temor diante de uma realidade que encenava 0 avesso da sociedade que se queria construir. Foi nesse horizonte que a miséria urbana foi tematizada por uma opinio publica constituida por jomalistas, cronistas, literatos e pol engenheiros € todos os tipos de especialistas que, banhados do cientificismo da época, advogavam a exigéncia de uma intervengio reformadora nas cidades para cimentar 0 caminho do progresso. Os modos de ser das populacées pobres das cidades foram radiografados, encenados e dramatizados pela literatura e pela crénica jomalistica, que 107 Pobrera e Cid faziam 0 retrato de uma humanidade degradada pela miséria e ignorancia;¥ suas condigdes de vida, seus habitos, seus costumes, suas praticas amorosas, suas relacdes fami- liares foram objeto das atengdes de juristas preocupados em tipificar patologias sociais, crimes e comportamentos delingiientes; foram observados e analisados por médicos © sanitaristas preocupados em descobrir as causas sociais e morais da doenga, da mortalidade infantil e da loucura;* foram alvo das preocupagées de militantes liberais que denunciavam a anomia em que viviam os pobres da cidade € que defendiam cruzadas moralizantes como ¢ondi¢o para a formacao de individuos auténomos ¢ responséveis, a altura da Nagao que se queria construir;’ seus habitos itinerantes nas cidades e os usos populares de seus espacos foram objeto de preocupagées de jornalistas, cronistas € reformadores urbanos,* mas também de delegados de policia que em seus inquéritos € relat6rios individualizavam. tipos sociais e discriminavam instrumentos de controle diferenciados para o vadio, o desempregado, 6 criminoso, © mendigo, 0 invalido, otlouco, a crianga abandonada.” Tudo isso junto montava as figuras de uma pobreza que inquietava a sociedade. Mas se a miséria inquietava, era Porque o retrato que dela se fazia exalava a ignordincia ea incivilidade de uma gente que trazia na propria natureza, como vicio de cardter, um passado que se queria superado. Os tracos visfveis da presenga popular nos espagos urbanos compunham uma realidade escrita em negativo. © popular, na verdade, era 0 proprio vazio social. O BaErrOSSOCIS 108 legado de um passado que se queria esconjurar aparecia transfigurado no cariter de uma gente que nao podia se constituir num povo de verdade, porque minada na sua constituigao fisica e moral pelos efeitos de uma mistura perversa de ragas e tradig6es, uma gente sem vocagio para a vida disciplinada do trabalho e da familia, que fazia do écio e da vadiagem um estilo de vida, que levava uma vida alheia as regras moras e aos c6digos da vida civilizada, que resistia as luzes da razio em seu apego irracional a costumes, crengas e crendices de tempos passados, uma gente, enfim, que vegetava numa existéncia degradada, feita de ignorancia, promiscuidade e desordem moral. Essas imagens no existiam como um modelo pronto transmitido pela forca cultural de tradigdes. Se € verdade que seus termos foram definidos ainda no Brasil escrava- gista, configurando os dilemas de uma época obcecada pela questo da construgao da nacionalidade num pais de escravos, essas imagens foram, no entanto, reelaboradas € redefinidas no terreno conflituoso da vida urbana. Devem por isso mesmo serem entendidas como o registro simbé- lico de praticas e acontecimentos que teciam uma hist6ria viva no solo da sociedade: trabalhadores pobres que, através da variedade das ocupagdes incertas irregulares que a vida urbana permitia, ocupavam as ruas da cidade numa logica que escapava as regras contratuais do mercado™ resistiram como puderam a repressio e destruigio de seus espacos, que vieram junto com transformacées e reformas urbanas;” moradores de cortigos e bairros pobres da cidade 109 Pobreza e Cidadania. cuja heterogeneidade de habitos, costumes ¢ tradigdes nao se ajustava a um padrdo de moralidade projetado das elites ¢ classes médias, que construfam as regras de uma s idade que desfazia, a cada passo, o sentido de ‘ordem que tinham uma “economia moral” que definia uma noco implicita de direitos e deveres nas suas relagdes com 0 Estado, de tal forma que quando a aco deste exorbitava ultrapassava a fronteira do que era percebido como legitimo, a resposta era a resisténcia aberta ou mesmo a rebelizo, como aconteceu na Revolta da Vacina;*' operdtios da indistria nascente que faziam greves e reivindicavam ireitos, organizavam associagdes sindicais e publicavam jomais e boletins proprios, enfrentaram a policia, resistiram a intransigéncia patronal, colocando, depois de 1917, a questio social na ordem dé dia da vida politica republicana. Essa presenga popular era fragmentaria e descontinua, além de isolada nos centros urbanos de um pais em que o mundo rural ainda predominava como fato ¢ influéncia politica, Mas nem por isso era destituida de eficdcia no sentido de produzir fatos e acontecimentos que interagiam na dindmica politica que vinha sendo construida em tomo de um Brasil urbano emergente. Porém, nada disso parecia: fazer historia, eram priticas e acontecimentos registrados nos sinais invertidos de um povo ignorante, incivil e potencialmente perigoso. Na construcao dessas imagens, ha uma operagio simbélica particular que destituia aconte- cimentos de qualquer significagio positiva, Desfigurados Dinrros soca 110 na sua dimensio propriamente hist6rica, estes s6 poderiam mesmo ser apreendidos no registro da natureza. Mas talvez seja nas imagens da desordem urbana que mais se esclarega o sentido da experiéncia inédita que se fazia dessa pobreza encenada exatamente no lugar que deveria consagrar 0 progresso como simbolo da entrada do pais no pantedo das nagdes civilizadas. A imagem de uma cidade insalubre, insegura e perigosa, habitada por uma populagio rude, estranha, que nem mesmo falava a ‘ava dos mesmos mesma lingua, muito menos compatti costumes e que ameagava a vida civilizada com 0 crime, a doenga, a depravagio moral eo motim, traduzia a consci- €ncia do divércio entre dois mundos sem equivaléncia possivel entre si, pois regidos por temporalidades distintas por onde se dava 0 choque entre as forgas do atraso eas forgas do progresso. £ nessa espécie de confronto entre natureza e cultura que se ancorava a ordem de razSes que dava sentido & intolerancia social e justificava a repressao € perseguigio As manifestacdes da cultura popular, suas praticas religiosas, seus espacos de sociabilidade, seus usos da cidade e, é claro, a toda forma de aglomeragao que pudesse prefigurar a ameaca do motim e da ago desatinada das massas ineultas. Nao por acaso a redengaio modemizadora do pais sera pensada nos termos da reforma urbana exigida para orga- nizar os espacos da cidade, ‘0s costumes € retirar as populagdes das trevas da ignorincia. Para Nicolau Seveenko, a experiéncia perturbadora de uma m1 Pobresa ¢ Cidadanta, modernidade divorciada do real, que nao encontrava um solo fixo onde fecundar e se traduzir enquanto Nacio, sera a matriz da atitude reformista e salvacionista de toda uma geragdo de intelectuais que se auto-representavam como tes € condigio da transformacao. Convictos da possi- lade de gerir os destinos do pais através da ciéncia, €sses intelectuais se propuseram a um “mergulho profundo na realidade do pais, a fim de conhecer-Ihe as caracteristicas, 0 processos, as tendéncias e poder encontrar um veredicto seguro, capaz de descobrir uma ordem no caos presente 0u pelo menos diretrizes mais ou menos evidentes, que Permitiam um juizo concreto sobre o futuro”. Mas, nesse caso, 0 real nao se apresentava como mundo social cons- trufdo através da interac humana. Para usar os termos dé Flora Sussekind, tratava-se do olhar desterrado diante de um real que prescindia da reflexao pois j4 dado, confor- mado que foi previamente pelo passado transformado em natureza.“ Em outras palavras, a notagao do real nao frutificava no sentido de se buscar os termos pelos quais problematizar a sociedade a partir de seus acontecimentos €conflitos.# Essa é uma questao tratada por Maria Alice Rezende, que localiza nisso, nesse real que nao surge como positivi- dade — pois percebido no registro do vazio e da auséncia ~ a chave que elucida a hist6ria de uma Reptiblica que “nunca guardou compromisso com uma politica e uma legalidade determinadas’, uma Repiiblica sobretudo carac- terizada por um “esvaziamento progressivo das questoes arrossocias 112 éticas” € pela vigéncia de toda sorte de voluntarismos salvacionistas “animados pela nocao de Progresso”. Na interpretagdo da autora, a predominancia na segunda metade do século XIX do tema do progresso, associado & questo da superacao da heranga colonial e da construgio de uma identidade nacional, ira repor a precedéncia do Estado sobre a sociedade, enquanto razaio modemizadora a partir da qual a hist6ria poderia ser lida como a passagem progressiva da “cidade indigna” para a “cidade ideal”. Dai a autora dizer que a cultura da reforma conformou os termos da nova jizagao brasil |. A moderniza¢gao aparece como mito de origem que legitima o regime na sua tarefa de construco racional da Nagao, de tal forma que essa legitimidade se descola do espaco politico dos conflitos por onde foi resolvida a construcao republicana nas sociedades modemnas. ‘A razio nacional formulada nos termos da cidade ideal ‘que se queria construir por uma intervengao orientada pela ciéncia correspondia a “uma preocupacao excessiva com ©. conhecimento sobre a cidade e, principalmente, sobre seus habitantes, dado que os reformadores compartilhavam da crenga comum no século XIX de que a verdade equivale & istiga e que a forga da dentincia, ao abolir os preconceitos, iminaria as iniqiidades”.*” Mas, a cidade ideal iria se chocar 0 tempo todo com a cidade real, com sua lidade conflitiva e plural que desafiava as possi de um principio tinico de ordenamento e que ficava sem palavras para ser nomeada nos termos dos seus conflitos, 113 Pobreza e Cidadanta. antagonismos e contradi¢des. Nesse caso, a experiéncia que se fazia do social repunha a imagem de uma sociedade fraturada internamente por ‘tempos e culturas distintos, um “mundo de insuficiéncias", como diz, ‘Rezende, fragmentario, inconstante, privado de um principio de finalidade, de tal forma que essa experiéncia s6 poderia ser descrita nos termos de uma desorderh que, no limite, punha em risco as condigdes da vida em sociedade. No contexto do Parti- cularismo e privativismo patriarcal da época, o imaginario do progresso registrava, ao mesmo tempo que repunha, a impossibilidade da experiéncia das oposigées e conflitos de interesses de construir uma hist6ria e balizar ameméria de seu préprio tempo. Esta operagiio sera Projetada na ficcdo de um Estado ~ Estado demiurgo — capaz de cons- truir a sociedade pela vontade modemizadora: construgio, Portanto, que prescinde de uma sociabilidade rotinizada pelo trabalho ou pela institucionalidade politica democratica e que se situa no tempo homogéneo da modemizagao, como caminho linear do: estado de auséncia paraa plenitude prometida pelo progresso. Mas com isso, 0 divércio entre sociedade e Estado € reaberto pela fratura entre a realidade e esse lugar onde uma nogao de bem Puiblico, referida a “cidade id se constitui.® Nesse horizonte simbdlico em que o social aparece como mundo naturalizado ¢ constituido fora da interagao humana, em que 0 povo é figura ausente e o individuo é reduzido a Pessoa desprovida dos atributos da razio, da moralidade e da autonomia, nao poderia mesmo haver uma noc&o de Dmrrossociss 14 questo social tal como contemporaneamente é entendida — isso significaria reconhecer o que nao poderia ter lugar: ‘uma positividade no mundo social apreendida no aconte- cimento dos conflitos e nas relacdes que articulam classes, grupos e individuos. E isso sobretudo que esclarece os termos pelos quais foi recusada a existéncia de uma questio social, apesar dos conflitos opersirios, apesar das dentincias das condigdes degradadas de vida e trabalho de que os documentos da época dao varios exemplos, apesar das vores ptiblicas que advogavam a exigéncia de direitos ¢ de mudangas nas relagdes de trabalho. A questio social era negada sob argumentos que forjavam a imagem de um pais transformado em pura natureza —natureza gene- rosa: um pais cheio de recursos, de possibilidades e chances de trabalho € mobilidade social. Um pais, portanto, em que estavam ausentes, ao contrario de outras terras, as condigdes que poderiam alimentar a “desinteligéncia de nossas classes operdrias” com seus patrdes, Daf a questo social nao ser um problema relativo @ ordem social, mas sim a ordem ptiblica por conta da agitagao de uma minoria de estrangeiros vindos “de outros climas, habituados a outras leis e martirizados por sofrimentos por nés desconhecidos”.? Quando se admitia a necessidade da intervengio do Estado, a énfase que predominava estava cunhada pelo paterna- lismo assistencialista da época, que propunha a | social niio como um direito do trabalhador, mas como “uma Preocupagio de cunho sanitirio e moral, tendo familia como seu objetivo e a casa como seu campo de atuacao".* Quanto ns Pobrera e Cidadanta, a0 direitos trabalhistas, eram abertamente recusados sob argumentos regidos por todos os preconceitos de uma Sociedade de recente passado escravagista: a tutela fabrril era reafirmada como recurso para disciplinar e formar 0 carater de trabalhadores incapazes e despreparados para receber os direitos que Ihes estavam sendo propostos. Nesse caso, as luzes do progresso identificadas com 0 trabalho industrial se associavam com o paternalismo Patriarcal que transcrevia relagdes de trabalho — e o Conflito no seu interior ~ no registro de hierarquias naturais Projetadas de um modelo privado de autoridade.5? Os trabalhadores continuavam sendo vistos como pobres, gente humilde que precisava da tutela, merecia o favor ¢ a caridade, mas jamais direitos, Como diz Paol o que tudo indica, este hori- Zonte simbolico encontrava consenso moral também nas classes médias: um bortzonte simbélico que despachava os trabalbadores pobres para o mundo do favor, da depen- déncia, da bierarquia exclu- dente; uma figura que para ser incluida na ordem das coisas necessitava ser um babitante silenctoso e sem intertoridade, constituido por obra benemérita das eltes:® rsrrossocu 116 ~ Nao se trata aqui de denunciar os horrores da Republica Velha. Tampouco cobrar de seus contemporaneos o que talvez estivesse fora do horizonte hist6rico da época. Importa, porém, chamar a atengio para uma figuracdo das desigualdades que obsta a construgio de um principio de equivaléncia que confira ao outro —as classes populares — identidade e estatuto de sujeito. E nisso que se explicita © significado de uma cidadania que excluiu as maiorias e se transformou em prerrogativa exclusiva do proprietério- cidadio Pois a regra que define os atributos que qualifi- cam 0s individuos como cidadaos, confere ao mesmo tem- po legitimidade as suas formas de vida e modos de ser. Os que escapam a essa medida, nao tém a dignidade de sujeito. Fora da regra, nao fazem parte da sociedade e sio fixados, por isso mesmo, no terreno da natureza: mundo que estio fora lutam, resistem, protestam, se tm vontades © constroem suas proprias raz6es, nada disso pode emer- gir como algo pertinente a vida em sociedade. No mun- do ptiblico, sao apenas os “pobres”, expressiio que su- gere mais do que uma simples descri¢ao sociolégica da realidade porque expressa uma indiferenciagao que € a forma mais radical da destituigio: os pobres sao aqueles que nao tém nome, nao tém rosto, nao tém identidade, no tém interioridade, nao tém vontade e sao desprovi- dos da razao. Nessa (des)figuracao, é definido também o seu lugar na ordem natural das coisas: sio as classes baixas, as classes inferiores, os ignorantes, que s6 podem esperar n7 Pobreza e Cidadanta. a protecio benevolente dos superiores ou entio a caridade da filantropia privada, As figuras da pobreza dizem, portanto, mais do que os horrores da privacao material. Elas montam um cendrio no qual a sociedade se faz ver no modo mesmo de sua constituicdo. No interior de um imagindrio que desrealiza a realidade no registro do vazio e caréncia, a questio da pobreza esclarece algo desse divércio entre Brasil real e Brasil legal, entre Estado e Nacio, Estado e sociedade, que inquietava os contemporaneos e que foi e ainda é temati- zado por tantos quantos se debrucaram sobre nossa hist6ria republicana, Pois esses so os termos que traduzem os paradoxos de uma sociedade na qual 0 universalismo burgués que conferia uma identidade modema as elites no'chegava no plano das relag6es sociais herdadas do passado colonial e escravagista. Ao “Brasil legal” corres- pondiam, no “Brasil real”, a violéncia, o mandonismo local © a capangagem, o que significa dizer a indistingao entre puiblico e privado, arbitrio e lei, norma e vontade pessoal. Ou seja, o retrato perfeito de uma Republica oligarquica: um mundo em que a delimitagao da dimensio publica da sociedade que, em principio, a lei proclama e a institucio- nalidade garante, no tem forga normativa diante das vontades privadas; em que a ordem legal nao € para valer ou s6 0 € quando torna-se instrumento de interesses Pessoais; em que a defesa de interesses prescinde da mediagio representativa porque se faz nas relagdes de favor entre pessoas privadas; em que conflitos e oposig&es nao chegam a ganhar forma institucional porque sio resolvidos aerrossocnts 118 ho uso bruto da forga e da violéncia. Esse mundo nao poderia mesmo se constituir como sociedade — sociedade civil, poderiamos dizer — se por isso entendermos uma esfera de sociabilidade que articula individuos e classes no 1g0 como uma dicg4o comum — mas nao idéntica — que permite a interlocugao. Num mundo social que tinha por tnica medida 0 particularismo patriarcal, a fico de um povo inexistente vira, portanto, realidade. Mil vezes repetida, entre 0 desgosto € 0 desprezo pela triste realidade brasileira, a idéia de um povo apatico, alheio, incivil e desprovido de espirito publico dizia algo mais do que o descompasso entre a realidade brasileira e os modelos conhecidos de cidadio importados de outras realidades. Murilo de Carvalho tem 14740 a0 dizer que o problema estava na enorme distancia entre a populagio e as elites que nao conseguiam ver discernimento no comportamento popular. Mas é essa distancia que interessa compreender. Murilo de Carvalho chama a atengao para 0 fato de que, nos anos iniciais da Repiiblica, as varias propostas — em conflito entre si — de Repblica e cidadania que ocupavam o universo ideolégico da época padeciam de umia ambigitidade de fundo quanto a sua idéia de povo e ao seu modelo de cidadao. Se era comum a insatisfagio com o passado, também o era a incerteza quanto aos rumos do futuro e, sobretudo, “quanto a reacio do piiblico a que se dirigiam ou, em alguns casos, quanto & propria identidade desse piblico”.*” Mas seria préptio terreno conflituoso dos interesses e const 119 Pobreza ¢ Cldadanta, inttil procurar um povo, pois este nao estava em lugar nenhum: quando ficava no lugar que Ihe era atribuido, correspondia a imagem de povo humilde, resignado, pact fico, obediente, mas... bestializado; quando saia desse lugar através do protesto, do motim ou da greve, dissolvia-se na imagem da turba de desordeiros, ignorantes, vaga- bundos e desclassificados movidos pela desrazio. Nao se trata; portanto, da distncia empirica entre dois universos sociais e culturais cujos contornos poderiam ser claramente fixados sob um olhar antropolégico. A distancia sugere a impossibilidade de uma medida comum que, no interior da diversidade dos modos de ser e dos antagonismos de interesses, estabelecesse alguma regra.de equivaléncia entre as diferencas. A exclusdio.da cidadania ao mesmo tempo que expressa, repée essa impossibilidade. A exclusio do outro enquanto diferenga reconhecida como identidade e representagio significa uma sociedade sem alteridade. Sem alteridade, 6 uma sociedade que se fecha ao questionamento que a experiéncia-do conflito sempre acarreta. Em primeiro lugar, é uma sociedade que bloqueia a possibilidade da construgio propriamente pol- tica de uma nogio do bem piiblico na relagdo sempre tensa e problemitica entre a sua definicao oficial corpori- ficada na institucionalidade legal e juridica e as razdes que formulam os critérios de validade e pertinéncia publica dos interesses em conflito.* Dai a persisténcia de uma figura do bem puiblico que se confunde com um Estado demiurgo, uma nogao de bem piiblico que € formulada Daerrossocuss 120 nos termos exclusivos da razao estatal, mas que se realiza, de fato, na pratica patrimonialista da privatizagao da coi piblica. Em segundo lugar, € uma sociedade que se subtrai a uma reflexdo que problematize sua experiéncia a partir das questdes postas pelo tempo hist6rico de seu aconteci- mento. Nao por acaso, a reflex4o que em outros lugares produziu uma historiografia, aqui se realizou na tentativa de ancorar a singularidade do pais na geografia que determina © reino dos fatos € 0 carter de sua gente.” Ao invés dos registros da hist6ria, € a natureza — aqui, natureza-meio — que aparece como referéncia das origens de um pais sempre em busca de sua propria identidade:® basta lembrar que a busca por um “povo brasileiro” sempre se traduziu na tentativa de fixar tipos sociais enquanto expresstio de um carter nacional produzido na simbiose entre as racas e entre estas e a natureza; quanto a idéia de Nago, esta foi sempre associada a uma natureza generosa — 0 “bergo espléndido* — que prefigura o pais do futuro — 0 “gigante adormecido” — pelas riquezas que contém, riquezas, é bom notar, que prescindem do trabalho para existir enquanto tal. Sem alteridade, essa é uma sociedade na qual a reali- dade vira 0 espelho de uma projegao narcisica das elites. Daj essa espécie de esquizofrenia de que o pais padece ainda hoje, em que identidades modernas projetadas na imagem (ou miragem) de um Brasil civilizado neutralizam lade nas praticas sociais. S40 os “dois Bra embutidos na forma como as relagdes sociais se instituem.* De um lado, isso significa uma realidade transformada 121 Pobresa e Cidadanta. em cena de delinquiéncia generalizada em que ninguém € responsivel por nada, pois cada um faz de si sua propria lei ¢ toma seus interesses como a medida de todas as coisas. Uma sociedade como essa s6 poderia mesmo ter ismo selvagem e predat6rio— um capi- protestante, como jé se disse varias vezes — no qual inexiste a de povo, territério e cultura enquanto valores e categorias politicas que balizam © jogo dos interesses por referéncia a um “mundo comum” construido como historia e legado das geragdes. Em segundo lugar —o mais importante, do ponto de vista das questes aqui discutidas ~ a realidade do arbitrio, da violencia, da iqUidade fica sem palavras para ser nomeada~A desti- tuigdo do “pobre” encontra aqui a’sua tradugao mais completa: privagao da palavra, ou seja, a privacao de um mundo de significagdes no qual suas vontades, necessidades € aspiragdes pudessem ser elaboradas e reconhecidas nas suas préprias raz6es. Nesse ponto, impossivel nao lembrar da triste figura de Isaias Caminha. Como sempre acontece, a literatura se antecede a reflexio tedrica, dando forma e significado ao que ainda se mantém latente e invisivel na experiéncia que os homens fazem do mundo. Ao descrever as desven- turas de Isaias Caminha, Lima Barreto faz o relato de umia experiéncia muda que por estar privada da palavra nao pode criar vinculos com os iguais da sorte, experiéncia que s6 pode ser vivida na mais radical solidao e no senti- mento dilacerante da humilhagdo que, no limite, faz Daerrossocus 122 jar de sua propria identidade. Impossibilidade da palavra, pois qualquer expresso corre 0 risco de revelar a origem indigna, marca da inferioridade social e sina dos que nao tém lugar fora das relagdes de tutela e favor. Nas “Recordagées...”, Lima Barreto descreve uma trajet6ria de destruigao da interioridade de um sujeito que nao tem como reagir no mundo e ao mundo, sujeito que a rigor no se constitui como tal porque tem sua vontade seqiies- trada, impotente que é para escolher 0 seu proprio desti- no. Sio os sonhos de gléria que se estilhagam num mundo hostil em que cada evento, cada palavra, cada ato declara a sua inferioridade e sua nulidade: a indiferenga do senador que Ihe recusa protegio, a acusago de roubo, a recusa de emprego, a desqualificagio de sua vontade como presungio de alguém que nao conhece o seu lugar. Encontrar um lugar nesse mundo significa abrir mao de tudo o que poderia constituir uma identidade, pois € lugar atribuido poraqueles que detém poder de decidir, entre a humilhacio, a indiferenca e a cooptagio, o destino do outro seu inferior. Nesse caso, 0 trabalho honesto nao € suficiente para definir um modo de reconhecimento: é a protecao do superior € © prestigio dourado de uma redagio de jomal que confere algo préximo de uma dignidade & mediocridade das tarefas de um continuo humilde e prestativo. Se vem uma pro- mogao inesperada, € porque um golpe de sorte o faz cair nas gragas de alguém “de cima” que soube se aproveitar de seus talentos. Ao final de tudo isso, resta uma figura vazia, espelho no qual o superior-protetor se enxerga envaidecido de seu préprio poder. 123 Pobresa e Cidadanta. eee Na hist6ria aberta em 1930, o Estado ird atribuir estatuto civil a uma gente que s6 encontrava lugar nas relagdes de favor e estava sujeita & arbitrariedade sem mando patronal. Este estatuto civil sera definido pelo trabalho, como dever civico e obrigac&o moral perante a Nago. Com isso, € certo, o Estado getulista conferiu ao trabalho uma dignidade que era recusada por uma socie- dade recém-saida da escravidao. E, através da legislac30 trabalhista, quebrou a exclusividade do mando patronal, colocando 0 espaco fabril no ambito da intervengao estatal. Porém, € no modo como 0 estatuto do trabalho foi definido — a cidadania formulada — que se aloja o enigma de um Projeto de modernidade que desestruturou as regras da Republica oligarquica, mas repés a incivilidade no plano das relagdes sociais. Nos termos de uma democracia social, o trabalho ganhard'um sentido ptblico inédito: sera identificado 20 “bem comum” corporificado na figura de um Estado que, através da justiga social, ordena a sociedade e constr6ia Naso. O trabalho seri projetado por inteiro no espago do poder, por referéncia ao qual o lugar de cada um sera definido na sociedade: através do trabalho 0 individuo Passava a ter existéncia civil e se transformava em cidad3o a quem o Estado oferecia a protecao dos direitos sociais; através do trabalho, 0 individuo ganhava personalidade moral enquanto prova de compromisso com a Na¢ao; através do trabalho, finalmente, o individuo ganhava identidade inerossociss 124 social enquanto atributo de honestidade que neutralizava o estigma da pobreza. A figuracdo politica do trabalho se confundia, portanto, com figuragio do préprio poder no interior de um discurso que fazia da justiga social a obra civilizadora por exceléncia que tirava o trabalhador do estado de natureza, o redimia da pobreza através da protecio ao trabalho e o dignificava enquanto Povo e Nagao. Sob o siléncio imposto pela repressio e pela raziio totalizadora do Estado, esse discurso acompanhava a regu- lamentagio da vida fabril, construindo a fico da lei que garante direitos pela forga que emana do lugar de sua enunciagao e que prescinde da ago coletiva, enquanto luta, conquista e representagao.® No entanto, a legislagao social € o decreto do salario minimo nao foram suficientes para impedir a deterioragao das condigdes de vida da populagio trabalhadora, bem como a formulagio legal nao significava a vigéncia pratica dos direitos que eram abertamente desrespeitados ou entZo manipulados e instrumentalizados para reforcar ainda mais o mando privado patronal.” Por outro lado, a lei que dava existéncia jurfdica aos direitos do trabalho, também prescrevia os modos aceitos de contestacio pelas vias dos procedimentos juridicos e dos caminhos burocréticos da Justica do Trabalho: os direitos se transformaram em regras legais no proceso de trabalho, mas deslegitimaram a reivindicag’o e legalizaram a represso.® Quanto aos que tinham uma condigao de existéncia percebida como impermedvel a regulacao legal, incapazes portanto de 125 Pobresa e Cidadant, pertencimento civico, esses eram os “outros”, os que estavam fora, no eram trabalhadores por mais que exer- cessem regularmente uma atividade produtiva, no faziam parte do povo e ndo mereciam a protecao do Estado: desempregados, subempregados, trabalhadores domés- ticos, auténomos caiam na vala comum de uma condi¢o criminalizada e indiferenciada que os confundia com 0 mar- ginal, 0 criminoso ¢ 0 subversivo. Para todos esses, a esfe- ra piblica s6 existia como repressio ¢ toda sua existéncia orosamente privatizada e destituida de significado positivo. Na melhor das hipéteses, eram os desprivile- giados da sorte “cujas dificuldades (eram) vistas apenas como pessoais, privadas, qualidades negativas Ou situa- 0es azaradas”,? Numa sociedade tomada publica pela regulamentaco estatal, a vida social serd privatizada na medida em que dela é retirada a possibilidade da ago, representagao e negociagao de interesses, repondo a violéncia nas rela- ‘g6es civis. Dignificado 0 trabalho no lugar do poder; 0 trabalhador é, ao mesmo tempo, desreconhecido e des- qualificado como sujeito de experiéncias validas, jé que interpelado como trabalhador pobre desamparado que precisa da tutela estatal ou ento estigmatizado como fonte do crime e da desordem social. Transformada em simbolo legitimador de um poder que fez dela a celebragao publica da modemidade inauguradora dos novos tempos, a justica social como dever administrado pelo Estado ira ao mesmo tempo desobrigar a sociedade do destino de seus cidacios, mrrossoctss 126 como algo que nio interpela responsabilidades sociais nas circunstancias que afetam a vida de toda uma classe. E é isso que arma o paradoxo de um projeto de modernidade que colocou a questo social no centro da vida politica brasileira, mas reps os pressupostos de um capitalismo selvagem e predatério: promete a redencao da pobreza no mesmo ato em que a reproduz na figura do pobre desprotegido; proclama os direitos mas desfaz sua eficicia nas relagdes entre as classes. A questo social colocada como tarefa de um Estado redentor sobretudo parece repor esse imagindrio em que © presente € desatualizado e desrealizado entre as imagens do atraso € a miragem do futuro em que, por obra do Estado demiurgo, a virtualidade do pais— 0 “pais do futuro” ~ se realiza. No pais das promessas — os populismos de todos os tipos, o que so sendo uma reiterada neutralizagao do presente em nome do futuro luminoso prometido? — a pobreza vira a sombra que o passado projeta no presente: ‘odesemprego, a fome, a doenga, a invalidez, a mortalidade, a destituicao material ficam por conta de circunstancias genéricas em que nao existem sujeitos e muito menos lades, apenas falam dos destinos da historia que fizeram deste pafs um pais pobre, porém pleno de Possibilidades. Nessa representagao, os antagonismos € conflitos desaparecem na sua positividade sob a figurago da “Indtistria” como agente da modemizagao que produz riquezas e gera 0 emprego para os que dele precisam. Quanto aos dramas da sobrevivéncia, sio desvinculados 127 Pobresa e Cidadania das relagdes de classe e submergidos na figuracao desi- dentificadora da pobreza: tornam+-se “dado de realidade” nomeado apenas para lembrar as responsabilidades do Estado em amparar e proteger aqueles que nao conseguem, com seu préprio trabalho, garantir um lugar ao sol numa sociedade generosa em possibilidades de ascensio e mobilidade social. O pobre ou o cidadao: as figuras da questo social Muita coisa mudou no Brasil atual. Para retomar os termos da abertura deste capitulo, 0 “Brasil real” ganhou voz propria e se fez ver através de uma sociedade perce- bida como solo de experiéncias validas porque espago de Tepresentagao e negociagio de interesses e de formagao de uma opiniao publica plural que recusa a exclusividade da voz do poder. Para usar a expressio de Weffort, a “descoberta da sociedade”” se fez na experiéncia dos movimentos sociais, das lutas operirias, dos embates polf- ticos que afirmavam, frente ao Estado, a identidade de sujeitos que reclamavam por sua autonomia, construindo um espago ptiblico informal, descontinuo e plural por onde circularam reivindicagdes diversas. Espaco puiblico no qual se elaborou e se difundiu, para usar a expressio de Lefort, uma “consciéncia do direito a ter direitos", conformando 08 termos de uma experiéncia inédita na historia brasileira, em que a cidadania é buscada como luta e conquista e a reivindicagao de direitos interpela a sociedade en- quanto exigéncia de uma negociacao possivel, aberta mrossocas 128 ‘ao reconhecimento dos interesses e das razdes que dao plausibilidade as aspiragdes por um trabalho mai por uma vida mais decente, por uma sociedade lizada nas suas formas de sociabilidade, No horizonte da cidadania, a questo social se redefine €0 “pobre”, a rigor, deixa de existir. Sob 0 risco do exagero, diria que pobreza e cidadania sio categorias antinémicas. Radicalizando 0 argumento, diria que, na 6tica da cidadania, Pobre € pobreza nao existem. O que existe, isso sim, sio individuos e grupos sociais em situagdes particulares de denegagao de direitos. E uma outra figuragao da questo social, que poe em cena a ordem das causalidades e tesponsabilidades envolvidas em situagdes diversas e nem sempre equivalentes. Sao situagdes diversas de denegacio € privacdo de direitos, que se processam em campos dife- rentes, com responsabilidades e causalidades identificaveis que armam, ao menos virtualmente, arenas di de Tepresentagao ¢ reivindicacao, de interlocugao ptiblica e negociagio entre atores sociais e entre sociedade e Estado. Ao invés do “pobre” atado pelo destino ao mundo das Privagdes, 0 cidado que reivindica e luta por seus direitos: duas figuragdes opostas e excludentes da questo soci A indiferenciago do pobre remete a uma esfera homogénea das necessidades na qual o individuo desaparece como identidade, vontade e aco pois plenamente dominado elas circunstancias que o determinam na sua impoténcia, E essa homogeneizagio carregada de conseqiiéncias, inscrita na figura do pobre, que a pritica da cidadania dissolve. E é 129 Pobreza e Cidadanta contra a desrealizagao da questo da pobreza que a priitica da cidadania se pe, na medida em que torna presentes necessidades sociais e coletivas no interior de uma lin- guagem ~ a linguagem dos direitos — que as coloca no centro das relagdes sociais e da dinmica politica da socie- dade. Para colocar a questio num outro registro, € através das riticas de cidadania que se faz a passagem da natureza para a cultura, tirando o outro do indiferenciado e inominado, elaborando sua(s) identidade(s), construindo o(s) seu(s) lugar(es) de pertencimento ¢ integrando-o(s) por inteiro nesse espago em que a experiéncia do mundo se faz como historia. Se nos tiltimos anos a trama da sociedade brasileira se modificou, abrindo-se ao reconhecimento das demandas populares, mesmo que no modo ambiguo e ambivalente de uma opiniao publica sempre pronta a desfazer sua legitimidade e evocar as velhas imagens da desordem; se a negociagao jé se toma factivel no lugar em que antes apenas existia a violencia que, sem deixar de estar presente © tempo todo, jé ndio aparece como resposta exclusiva € evidente por si mesma na ordem de suas razdes; se a palavra “trabalhador” (e do trabalhador) comega a ser acolhida positivamente, rompendo o sentido antes unfvoco* de inferioridade, mesmo que a acusagdo de ignorancia e incompeténcia para a coisa publica continue a mobilizar © imaginério coletivo e a tranqiilizar a opiniéo publica “esclarecida” que se vé confirmada em seus arraigados preconceitos; se tudo isso pode acontecer € porque no aerrossocass 130 ¢ampo-dos conflitos que agitaram toda essa década, foi construida uma trama representativa por onde a reivindi- cago por direitos pode circular, criando identidades onde antes parecia s6 existirem homens e mulheres indiferen- ciados na sua propria privagio. As ambigilidades e ambi- valéncias nesse processo, muito ligeiramente sugeridas acima, “apenas” mostram que € penoso o caminho na diregao de uma sociedade mais igualitaria e democritica. Mostram que as conquistas se fazem com dificuldades sob © pano de fundo de uma gramitica social (e politica) regida por regras muito excludentes que repéem velhas hierarquias, criam outras tantas e excluem do jogo as maiorias. Mas mostram também que € pelo Angulo dessa atuante que é possivel entrever horizontes Possiveis para uma utopia democratica. (A versdo 1 desse texto fo! apresentada como o capitulo Cida Pobreza, da tese de doutorado: A ‘cidadani tente: incivilidade e pobreza. So Paulo: Departamento de Sociologia da USP/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciénctas Humanas, 1992, 0.2.) Notas SCHWARZ, Roberto. Aovencedoras _* PAOLI, Maria Célia, Trabalhadores ¢ baiatas.3.ed. Sto Paulo: Duas Cidades, _cidadania. Experitncia do mundo pi 1988, bilico da histéria do Brasil modemo, SHOLANDA, Sérgio Buarque. Raisés Revista de Estudos Avancados da USP, do Brasil Wed. Rio de Janeiro: Jose V3, m7, 4066, 1989. Olympio, 1984 © CHAU, Marilena. Conformismo e > SCHWARZ, Robeno. Um mestre na estonia Aspecon da catins popalae eriferia do capitalismo, Machado de no Brasil, 2.ed. S40 Paulo: Brasiense, Assis. Sio Paulo: Duas Cidades, 1950. © Togo" {DAMATTA, Roberto. Acaiaeamia. 1 BRL, Sérgio Adomo. Osaprendizes -spago, cdadani, mulher e morte no Se ei Brasil Sto Paulo: Brasiiense, 985,“ Poder. O bacharelisimo liberal 131 Pobreza e Cidadanta, polttica brasileira, Rio de Janeiro: Paz “Terra, 1988. *PAOUL Revista de Estudos Avancades, A066. M SANTOS. Cldadantaejustica, "sempre bom lembrar por forga das pressdes co movimento sindical e da Fembranga perturbadora dos movi ‘mentos € saques de desempregados por ocasito da recess20 do inicio da Em uma sociedade como essa, a afirmago das diferencas, quando no repoe privilégios, é feita na légica de discrimi- nagdes que transfiguram desigualdades em modos de ser nao apenas distintos, mas incomensuriveis porque anco- rados na (suposta) ordem natural das coisas, aquém das regras de equivaléncia que a formalidade da lei supde € que 0 exercicio dos direitos deveria concretizar. E isso se projeta por inteiro no drama da pobreza brasileira. Pois as distancias sociais sao to grandes que parece no ser plausivel uma medida comum que permita que a questiio da justiga se coloque como problema e critério de julga- mento nas relagdes sociais; 0 fosso social é imenso e parece obstruir a possibilidade mesma de uma linguagem comum ¢, portanto, do convivio social, interlocuco e debate comum em tomo de questdes pertinentes a vida em sociedade, Isso é propriamente o apartheid social. Por outro lado, essa sociedade tao heterogénea quanto desigual, em que as diferengas so também ou sobretudo desenhadas pela ordem das caréncias acumuladas no correr dos anos, vem gerando uma conflituosidade inédita que atravessa todas as dimensées da vida social. f nessa dinmica de conflitos que se ancoram esperangas de cidadania e generalizagao de direitos. Mas € também nela que os problemas se situam em um contexto no qual se redefinem as relagbes entre Estado, economia e 145 Sociedade Clot sociedade por conta de transformagdes econdmicas € sociais que escapam aos mecanismos estabelecidos de regulagdo das relagdes socia societatios diversos e particul: que erodiu a homogeneidade pressuposta nos espagos tradicionais de representacio, transborda o ordenamento legal estabelecido e vem expressando demandas coletivas que implodem tipificagdes juridicas classicas e nfio encon- \diciais tradicionais.’ Em curso hi quinze anos ou mais, em um contexto de demo- cratizaco e generalizagio da consciéncia de direitos, essa itigiosidade ven produzindo situagdes inéditas dificilmente padronizaveis nas formas da lei, de tal modo.que os con- flitos sociais vém se resolvendo, cada vez mais, através de praticas de arbitragem que combinam a livre interpre- taco dos princfpios da lei, a transgressio consentida de normas legais e a produgao de regras de direito com uma isdigao propria e localizada.* Pode-se ver os registros disso no que Donzelot chama de “invengio do social” pela descoberta de uma arte da negociacio liberada das amarras juridicas e burocraticas do Estado e também emancipada de ficgdes teleolégicas passadas.’ E uma dinamica que alguns, corretamente ou nio, chamam de pés-modema, na qual os procedimentos informais de arbitragem deslocam lade e unicidade do direito estatal, gerando uma legalidade descontinua e fragmentéria, construida nas formas negociadas de resolucao e arbitra- gem de conflitos, mas que €, por isso mesmo, portadora tram lugar nos procedimento: pamrrossocnss 146 de virtualidades inéditas para uma cidadania ampliada, na medida em que se abre ao reconhecimento de novos direitos e aos principios de justiga social."° Porém, esse padraio emergente de conflitos também coloca questées novas ¢ nao previstas. O peculiar dos contemporaneos € que escapam aos principios universais de equalizacio, deslocam o sentido clissico de uma igualdade identitéria, para por em agio a logica diferenciada de “direitos das desigualdades” — direitos, como diz Ewald, das “discriminagdes positivas”. Indexados a contextos societérios particulares e espe- Cificos, os direitos reivindicados individualizam casos e situa- es ndo diretamente comensuraveis na ordem de suas necessidades, clivagens internas, relagdes de poder injustigas a serem reparadas. Sao direitos formulados no terreno mesmo dos conflites, em que a exigéncia de justica diz respeito nao tanto A aplicagdo equanime da lei, mas as regras de uma eqiiidade que restabelega equi rompidos, compense assimetrias de posigdes e defina o conjunto de prerrogativas e garantias dos desiguais. A rigor, €a definigao dessa regra de eqilidade que estrutura o campo de conflito, numa dinmica que escapa a l6gica bindria do permitido e interdito e evoca; por isso mesmo, uma arbi- tragem sobre o que “é de di que se abra as praticas da negociacao e a representacio legitimada dos interesses em confronto.” E nesses termos que se pode identificar na dinAmica politica contemporanea a construgio de um contrato social definido nas regras pactuadas do conflito. conflitos sociai rios 147 Sociedade Civi Trata-se de um contrato muito peculiar, que nao se reduz a0 ordenamento juridico estabelecido, pois € plural e descentrado, regido por regras a serem inventadlas e negocia- das na temporalidade prépria, sempre particularizada e muitas vezes inusitada, dos conflitos. Nao se estrutura, portanto, no registro da ordem e do consenso (pressu- posto da teoria politica cléssica), pois define exatamente ‘© campo no qual os conflitos se processam nos rituais da negociacao em tomo da(s) regra(s) de justica que deve(m) prevalecer nas relagées sociais. E tampouco se confunde com as obrigagées do mundo privado, pois arma a trama das civilidades e reciprocidades que articulam diferengas ¢ interesses nas formas de uma interlocugao possivel. No entanto, essa contratualidade informal coloca em questio as dificeis relagdes entre conquistas sociais e suas garantias, pois, no terreno mutante do conflito social, suas regras esto sempre sujeitas a questionamentos e redefi- nigdes por conta de circunstancias que solapam consensos los, deslocam equilibrios de forga e alteram licada nisso, em um esforco, muito desigual nos seus resultados, de inscrever novos direitos na ordem legal."* No entanto, longe de se dar por resolvida, a relagio dos movimentos sociais com o universo da lei reabre o dificil problema de sua eficdcia em garantir € universalizar direitos. A capacidade dos grupos sociais de fazer uso de suas prerrogativas é muito diferenciada; pasrrossoaus 148 0 beneficios sociais so distribuidos de modo desigual, conforme o poder de barganha e pressio dos grupos mais organizados; as garantias nao se generalizam;" e, como mostra José Eduardo Faria, 0 jogo de forgas se projeta por inteiro nas interpretagSes ndo-convergentes (e muito menos unitérias de principios legais) e na “aplicagao seletiva” de c6digos e leis, segundo as alteragdes dos varios grupos ¢ interesses envolvidos em sua capacidade de articulagao, conflito e barganha."* Entre uma sociedade atravessada por conflitos especi- ficos e demandas nao-generalizaveis e uma ordem legal também ela assimétrica na garantia de direitos e prerro- gativas, configura-se uma dindmica pi 0 risco de produzir uma geometria varidvel de direitos conforme as diferencas no poder de negociacao dos grupos envolvidos. E isso dramatiza imensamente a questo social em um pais no qual transformagdes e modernizagdes se processam em ritmo avassalador sem que tenham sido garantidos os princfpios basicos da igualdade civil e pata- um pais de enormes disparidades, em que as caréncias sociais so to grandes quanto diferenciadas, conforme regides e grupos afetados e no qual parcelas ponder4veis da populagao estao & margem das arenas organizadas do conflito. E € isso 0 que est em jogo nas tendéncias em curso de segmentagio do mercado de trabalho e precarizagio dos vinculos de trabalho. No contexto do reordenamento global da economia, os novos padrées tecnolégicos e novos 149 Sociedade Civil Sine imperativos de produtividade e organizagao produtiva vém sobrepor a antigas e persistentes desigualdades uma dualizagdo crescente entre segmentos cada vez mais restritos de trabalhadores mais qualificados, mais valorizados € preservados em seus empregos, de um lado, e uma maioria que, de outro, nao apresenta as habilitagdes exigidas pelo novo padrao produtivo, transitando entre o desem- prego € as alternativas precirias do mercado informal. Por outro lado, a chamada flexibilizagao das normas contratuais vem produzindo uma segmentacio juridica, jé realidade nas priticas de terceirizaco e de subcontratagao, que joga muitos no pior dos mundos - um mundo no qual nao existem as garantias (por defini¢io j4 precdrias) de um. contrato de trabalho regular, que se estrutura & margem das normas pactuadas e beneficios conquistados em acordos trabalhistas e que se fragmenta na auséncia de mecanismos estiveis de representacao. Nos termos como vem se processando, a desrégulamentagio do mercado de trabalho, defendida como condig’io de uma moderni- zagao necesséria da economia, mal esconde praticas de um privativismo selvagem, com s6lidas raizes em nossa historia, que recusa a regulamentagao estatal e também o espaco societdrio da representag4o e negociacao de inte- resses. Na formulacao precisa de Maria Célia Paoli, em um mercado no qual mais de um terco dos trabalhadores est’ de fato destituido das protegdes legais minimas, as estraté- gias do capital “passam no s6 por legalizar essa destituica0 dos direitos, jé exercida neste imenso mercado informal e amerossocs 150 embutida em varios setores de produg’o, como passam pela tentativa de estendé-la de fato para toda a forca de trabalho”. No atual quadro de desemprego crescente, de extrema pauperizacio, degradacao de padrées salariais € condigdes de vida, a questo hoje colocada diz respeito as possibilidades de uma regulagio democritica do mercado de trabalho."” Sem cair na ficgao do direito estatal, o desafio é definir direitos e suas garantias, bem como generaliz-los em um mercado cada vez mais heterogéneo, atravessado por dinamicas muito diferenciadas e por enormes dispari- dades na capacidade dos grupos operarios de fazer valer suas prerrogativas democriticas e cidadas. Se isso recoloca por inteiro a exigéncia de espagos ptiblicos demacriticos que consolidem e ampliem as priticas da representacio e negociagao, também € certo que reatualiza a exigéncia igualitéria. Pois sem a igualdade como medida de negocia- ‘¢4o, esta pode se reduzir a um mero ajustamento corpora- tivo de interesses ou entio se resolver no puro jogo de forga. Como diz Francisco de Oliveira, sem 0 postulado da igualdade, “a agilidade e a regulagao do Primeiro Mundo desenvolvido projetar-se-Ao sobre nés exportando incer- tezas, aleatoriedade de que o desenvolvimento da pobreza — esta tiltima taga que nos resta, por enquanto ~ sera somente a tinica possibilidade 20 nosso alcance”.* Enesse horizonte de problemas ¢ desafios que a questo da pobreza atual se coloca como problema propriamente politico de invengao e pactuagSo das regras da vida social. Pois as transformagdes em curso levam-nos a pensar 151 Sociedade civ que estamos presenciando algo proprio de uma histéria construfda na légica de uma modernizago selvagem - ou modemizages, como propoe Faoro, que deixam atris de si rastros de devastacio, nos ciclos econ6micos que se sucedem e se extinguem, numa légica predat6ria que deixa apenas decadéncia ¢ pobreza como legado-da riqueza antes criada, que destr6i o que foi anteriormente construido, nao sedimenta soci espolia energias humanas.” De fato, hd algo de descon- certante na atual destruigao dos servigos piblicos dos quais dependem a qualidade de vida de amplas maiorias: As adversidades da crise econ6mica e as circunstancias do chamado ajuste fiscal nao sto explicagao suficiente. Talvez se tenha af o exemplo-acabado, talvez o mais espetacular, do carater predat6rio da sociedade brasileira, na qual o exercicio do poder politico e econémico nao encontra limites ~ e por isso mesmo pode ser devastador; onde direitos nao fazem parte das regras do jOgo, mesmo quando sacramentados em lei ou corporificados em instituigdes, por mais precdrio que seja seu funcionamento — dai a permanente e tranqilila transgressdo nessa espécie de delinqiiéncia que parece fazer parte da cultura politica bra que nela est ausente o critério de responsa- bilidade piblica; em que o seu cariter excludente se traduz numa nogdo de bem ptiblico que se confunde com o Estado ou com a vontade, sempre inaugural, do govemante, desco- lado, pois, de bens ¢ instituigdes como patriménios nos quais se corporificam hist6ria passada, empreendimentos asrrossocnss 152 realizados e aspiracdes coletivas ~ dai essa permanente impressio de uma sociedade inacabada, que nfo constr6i histéria, pois tudo o que é feito € desfeito no momento seguinte e na qual o proprio acontecimento da hist6ria~ a histéria propriamente civil — nao se completa, na légica de uma espécie de “desacontecimento” que apaga os registros que poderiam balizar a sua meméria e estruturar uma narracao possivel. © peculiar dos dias que correm é que se trata de uma modemizagao que desloca os termos pelos quais o pais foi tradicionalmente pensado e alternativas de futuro formu- ladas, em meio a uma crise que é também uma crise de referéncias e parmetros estabelecidos. Entre a destruigio dos servigos ptiblicos, a erostio dos direitos do trabalho e a desmontagem de formas estabelecidas de regulacio social, hé a desestruturagio das referéncias reais e simbélicas nas quais, para o bem ou para o mal, durante décadas, se projetaram esperancas de progresso e se organizaram os termos como o préprio pais foi problematizado e pensado em suas po: des de futuro. Essa desestabilizacio de referencias conhecidas torna ainda mais dilematicos os efeitos sociais perversos das atuais transformagées na ‘ordem econémica, que carregam os riscos de uma segmen- tagdo da sociedade, dividida entre enclaves de modemidade uma maioria sem lugar. A reestruturagao produtiva e as mudangas no padrao tecnolégico em curso esto engendrando novas formas de exclusio em que & inte- gracdo preciria no mercado se sobrepdem o bloqueio de 153, Sociedade Ct! perspectivas de futuro e a perda de um sentido de pertinéncia a vida social.” £ isto que est, hoje, colocado no horizonte politico do pais, sob o impacto de politicas econémicas e sobretudo de um projeto de modernizagao que, se efetivado, haverd de levar a algo como um enco- Ihimento do pais. E isto atualiza velhas questées no hori- zonte dos dilemas contemporaneos, reabrindo, em novos termos, a disjungio entre modernizagiio e modernidade. tee As questdes acima comentadas mereceriam uma dis- cussio muito mais ampla do que seria possivel realizar neste trabalho. No entanto, esta mais do que rapida e incompleta pontuagao dos dilemas atuais tm o sentido de demarcar o terreno das questées que interessam no momento discutir. Nesses tempos em que se redefinem as relagdes entre Estado, economia e sociedade, em que a crenga em solugdes redentoras nao mais se sustenta, em que exclusées, velhas e novas, se processam numa légica que escapa as solugdes conhecidas, nesses tempos 0 que parece estar em jogo é a possibilidade de uma nova contratualidade que construa uma medida de eqilidade as regras da civilidade nas relagdes sociais. Antes de ser essa uma questio derivada de alguma formula te6rica, diria que € um certo modo de interpretar acontecimentos recentes, nas possibilidades que abrem no horizonte da sociedade brasileira, £ possivel ver na dina- mica da sociedade registros que apontam nessa direcao. Sao praticas, experiéncias e acontecimentos que reatualizam_ Drrossocuss 154 a “invengao democritica” que caracterizou os anos 80 em uma descoberta das leis dos direitos que se firma e renova na prdtica da representagao, interlocugao e negociagao de interesses.* De um lado, ao revés das propostas neoliberais hoje correntes no cenario ptiblico, de uma desregulamentacao selvagem das relagdes de trabalho, parcelas mais atuantes de sindicatos e organizagées fabris propuseram uma nego- ciag&o ptiblica e publicizada em espagos de representaco € interlocucao, acenando com a possibilidade e plausibili- dade de uma regulagao social da economia pautada pelo reconhecimento e garantia de direitos.” E isso que, no inicio dos anos 90, se enunciou em acordos que articulavam sindicatos, entidades patronais e representantes do governo em uma (dificil) negociagao em torno de pardmetros plblicos capazes para balizar os rumos ja em curso da modernizagao produtiva, tentando a dificil equagao entre economia ¢ direitos, acumulagao e eqiiidade, pactuando 0 sentido de uma modernizagao necessaria.® Como bem enfatiza Francisco de Oliveira, essas arenas piblicas de representagdo € negociacao nao se reduzem ao ajusta- mento ad hoc de interesses cofporativos, precisamente porque tém a peculiaridade de publicizar conflitos privados, universalizar reivindicacées e forgar o reconhecimento das alteridades, 0 que afeta a racionalidade do poder politico e do poder econ6mico, Nao se trata de um pacto entre iguais. E muito menos da anulago dos antagonismos sob ficc0 de uma “vontade geral unificadora”. Trata-se, isso sim, de 155 Sociedade Cte uma nova contratualidade que define a medida que baliza a relagio conflitiva dos interesses, medida ela propria negociada, tendo como mediagao as “categorias universais presentes na constituicdo societaria”.* Por outro lado, tendo por referéncia as possibilidades de uma cidadania ativa abertas pela nova ordem legal insti tuida em 1988, a movimentacao ampla e multifacetada dos anos 80 desdobrou-se em uma tessitura democratica, construfda na interface entre Estado e sociedade, aberta a Praticas de representacdo ¢ interlocucao publica. Nos anos que se seguiram a promulgacao da nova Constituigao, multiplicaram-se f6runs ptblicos nos quais questes como direitos humanos, raga e género, cultura, meio ambiente ¢ qualidade de vida, moradia, satide e protegao a infincia eA adolescéncia se apresentaram como questdes a serem levadas em conta numa gestio partilhada e negociada da coisa publica. Nesses f6runs, sob formatos diversos e representatividade também desigual, politicas sociais alter- nativas vém sendo elaboradas e debatidas: alternativas para a construcao de moradia popular sto discutidas em foruns que articulam organizages populares, ONGs, empresirios iberais e representantes governamentais; medidas efetivas contra a discriminago- racial ou de género so igualmente discutidas, desde pol ticas sociais pautadas pelo principio da agao afirmativa até a elaboracio de instrumentos politicos e juridicos que permitam dar efetividade a direitos garantidos (e conquis- tados) na Constituicao de 1988; ONGs, grupos de defesa Diurrossocuss 156 dos Direitos Humanos e até mesmo sindicatos se mobilizam em torno de programas de intervengao junto as criancas de rua, buscando alternativas que escapem & polaridade entre tutela e repressdo que sempre caracterizou a aco. pUblica junto a essa populagao; sindicatos elaboram e discutem em f6runs sindicais ou politicos, junto com empre- sirios e/ou representantes de governos locais, alternativas contra o desemprego, desde politicas de requalificagao de trabalhadores demitidos até apoio a micro empreendimentos que atuam nas fronteiras do chamado mercado informal, ‘ou ainda, em alguns lugares, possibilidades de constituigao de cooperativas de trabalhadores que possam atuar nas brechas abertas pelos processos em curso de terceirizago das indistrias. Em um quadro de aprofundamento da pobreza e da violéncia, sob o efeito conjugado de uma recessaio econdmica prolongada, da modemizago perversa da economia e faléncia dos servigos publicos basicos, essa movimentagio tem o efeito de reinventar a politica, a0 colocar em foco 0 jogo das responsabilidades envol nas varias circunstancias que afetam existéncias de grupos sociais ou de populagées inteiras, e de acenar com possi- bilidades efetivas, inovadoras ¢ por vezes inusitadas de ago politica e intervengio publica. Finalmente, essas alternativas democriticas podem ser identificadas nas relagdes que movimentos sociais passaram a estabelecer com governos locais, deslocando priticas tradicionais de mandonismo, clientelismo e assistencialismo em formas de gestao publica que se abrem a participacao 157 Sociedade Cette popular e a formas de negociagao em que demandas reivindicagdes estabelecem a pauta de prioridades e rele- vAncia na distribuicao dos recursos publicos, bem como a cordem das responsabilidades dos atores envolvidos.* f isso que vem se realizando, ao menos em alguns municipios, em foruns de negociagao em que, de formas diversas € sob composicio variada, técnicos de govemnos, associagdes de moradores, entidades civis, representantes do Poder Legislativo, sindicatos e entidades empresariais, negociam altemnativas para regulamentagao fundidria, para urbanizacaio de favelas e construgao de moradias populares, gestio e usos de fundos puiblicos municipais para desenvolvimento urbano e programas sociais, propostas de defesa ou recu= peracao do meio ambiente, apoio 4 chamada economia popular, possibilidades de desenvolvimento local e geracao de renda, além de problemas setoriais ou questdes pontuais ‘ou mesmo episédicas.” Os mecanismos de participacao e interlocugao publica so varios, alguns previstos nas formas da lei, outros construidos de modo informal conforme circunstancias e oportunidades; as experiéncias sio muito descontinuas e desiguais nos resultados obtidos, algumas episédicas, outras permanentes e regulares, e sio feitas € refeitas conforme momentos politicos e circunstancias locais. © importante porém! é que essas experiéneias, construidas na interface entre Estado e sociedade, definem ou permitem definir — uma forma de social politica que se abre a um jogo de reconhecimento que permite um novo tipo de regulacdo capaz de garantir € criar novos direitos. Derrossocuss 198 Seria possivel argumentar que essas experiéncias so. muito fragmentérias e descontinuas, que as conquistas so incertas pois processam-se em um terreno minado por praticas autoritérias ¢ excludentes, além de nao atingir muitos (na verdade, a maioria) dos que se encontram fora das arenas organizadas da vida social; que no sio sufici- entes para quebrar, quando nao reatualizam em priticas renovadas, corporativismos e praticas clientelistas de fundas raizes em nossa hist6ria; que propdem solugées pontuais ¢ particularizadas, muito aquém do que 0 tamanho da tragédia social esté a exigir. Tudo isso é (também) verdade. E nada garante — e isso € o mais importante — que essas experiéncias serio capazes de generalizar e universalizar novos termos do contrato social. No entanto, por maiores que sejam suas ambivaléncias e contradigdes, limites e fraquezas, essas experiéncias permitem - horizontes que descortinam para a invengao Sobretudo, permitem nomear e formular o desafio que se tem pela frente. Pois o que essas experiéncias colocam como questdo e problema é a possibilidade de que, nesse pais, se construa uma nogio de bem ptiblico, de coisa E esse € um modo de interpretar essas experiéncias democraticas, menos nas circunstancias sempre particulares sempre ambivalentes em que transcorrem, ¢ mais pelas lades que descortinam no horizonte da sociedade 159 Sectedade Civile As experiéncias aqui comentadas vém se repetindo em varias regides do pais, com formatos diferent desigual e resultados por vezes incertos. Mas essa € sua importancia — para uma nova que se abre a espacos de representacao, interlocugaio e negociagao, deslocando critérios até entdo muito exclu- dentes de legitimidade pelo reconhecimento como interlo- cutores muitos dos que antes sé encontravam lugar entre a repressao e a indiferenca ptiblica. E uma instituciona- lidade construida através das regras formais ou informais da convivéncia ptiblica, sob formas codificadas ou nao, Pernianentes ou descontinuas. Mas que traduz uma expe- riéncia que se firma como pardmetro e referéncia para P inéditas de cidadania ativa, S40 experiéncias que tedefinem, por isso mesmo;-o prOprio sentido da lei — nao mais no registro exclusivo de normat estatal, mas como referéncias pelas quais reivindicagées itos so formuladas como exigéncia de uma ordem democratica que incqrpore critérios substantivos de justiga, realizando isso que Habermas chama de sobe- izada e pluralizada,” em espacos ptiblicos mtiltiplos e diferenciados que de alguma forma Projetam os direitos como parametros puiblicos que bali- zam 0 debate sobre 0 justo € o injusto, o legitimo ¢ 0 ilegitimo, nas circunstancias e acontecimentos que afetam a Vida de individuos, grupos, classes ou mesmo de uma populago inteira. Por outro lado, ancoradas em uma dinmica societaria cada vez mais complexa, heterogénea e diferenciada, essas Dasrossocuss 160 experiéncias sugerem que se é certo que a democracia depende da construgao das “regras do jogo”, estas nao se reduzem 2 racionalidade formal da ordem constitucional. Pois as regras do jogo sao construidas pela mediacio de espacos puiblicos nos quais circulam as razdes que cons- troem os critérios de validade daquilo que € reivindicado como direito e so negociadas as questées pertinentes a uma regulagao publica na esfera da lei e das instituigoes.° E isso 0 que esta em jogo em experiéncias recentes nas quais a construgao desses espagos é consubstancial & defi- nico negociada de regras que estabelegam os critérios de pertinéncia, relevancia e prioridade de demandas. Seria mesmo possivel dizer que essas priticas acenam com a Possibilidade de uma reinvengao do contrato social, nao nos termos do juramento de obediéncia ao poder, tampouco reduzida & sintaxe liberal das regras jurfdicas que ordenam relagdes privadas — mas um contrato capaz de firmar os direitos como principios reguladores da vida social e que estabeleca os termos de uma negociacio e interlocugio is quanto As regras da eqitidade e 4 medida de justica que devem prevalecer nas relacdes sociais. E nessa articulagao entre movimentos sociais e priticas associativas, direitos e espagos ptiblicos democriticos que se pode ver os registros de uma sociedade civil em formacao, entendendo por isso nao simplesmente uma sociedade que se estrutura nas regras de organizacao de interes- ses privados.*! Mas uma sociedade na qual as relagoes sociais so mediadas pelo reconhecimento de direitos 161 Sociedade Civt e representacao de interesses, de tal forma que se tome factivel a construgao de espagos piblicos que confiram legitimidade aos conflitos e nos quais a medida de eqilidade a regra de justica venham a ser alvo do debate e de uma Permanente interlocuco. No horizonte das transformacées em curso — redefinigo do papel do Estado, glol economia, heterogeneidade das estruturas sociais e do conflito social - essa sociedade civil emergente acena com a possibilidade de novas formas de regulacao da vida social. Contra‘os automatismos perversos do mercado e 20 revés da unicidade do espago estatal tradicional (no caso brasileiro, unicidade excludente e autoritéria), é uma regu- lagao democratica que tem por pressuposto a ampliacai6 de mecanismos de representagao. £ construfda através dos “rituais de negociagio”, abertos & pluralidade de problemas € temas emergentes que nao encontram lugar no espago unitario estatal, que deslocam o poder do Estado como Arbitro exclusivo e ampliam as fronteiras das relagdes de para além do que € definido como cédigo juridico se construindo na convergéncia entre uma dinamica socie- ‘aria atravessada por uma conflituosidade ‘multifacetada, descentrada, que ultrapassa mecanismos tradicionais de representagao; a emergéncia de novos temas, desafios, problemas (sobretudo a questo social redefinida pela reestruturagao produtiva em uma economia globalizada) que escapam a formulas politicas conhecidas; a crise do insrossociss 162 Estado, a redefinicao de seu papel regulador e de suas relagdes com economia e sociedade. Trés dimensdes que foram, nas paginas anteriores, apenas indicadas e que exigiram, cada qual, um aprofundamento impossivel de ser feito nos limites deste texto, mas cuja referéncia é importante para situar a contemporaneidade da invencao politica com que essa sociedade civil vem acenando. Nao se trata aqui de negar o papel do Estado em nome das virtudes empreendedoras (na versio liberal) ou liber- tarias (na versio de esquerda). A questio diz respeito as possibilidades da construgdo, entre Estado e sociedade, de arenas ptiblicas que déem visibilidade aos conflitos ¢ ressonancia as demandas sociais, permitindo, no cruza- mento das razdes € valores que conferem validade aos interesses envolvidos, a construgio de parametros publicos que reinventam a politica no reconh como medida de negociagio e d que afetam a vida de todos. Construidas na interface entre Estado e sociedade, essas arenas publicas permitem tomar a gestao da coisa ptiblica permedvel as aspiragdes e demandas emergentes dla socie- dade civil, retirando do Estado 0 monopélio exclusive da definigao de uma agenda de prioridades e problemas pertinentes a vida em sociedade. E isto significa um outro modo de se construir uma nogio de interesse piblico: uma nogiio plural e descentrada, capaz de traduzir a diversidade ¢ complexidade da sociedade, rompendo, por isso mesmo, com uma sua versio autoritéria, solidamente enraizada na 163 Sociedade Civil hist6ria politica do pats, confundida com razo do Estado e identificada com imposi¢ao autoritaria da lei. £ nesses termos que, 20 menos virtualmente, uma nogio plural de bem ptiblico pode ser construfda, nao como valor “superior” a permitir a consagragao de coragdes e mentes ou como consenso que dilui diferengas de interesses em conflito, tampouco como algo identificado com 0 ordenamento estatal. Sempre sujeita a interpretagdes diversas ou mesmo divergentes, escapando de definigées substantivas e aca- badas, mas tendo como suposto e principio o reconheci- mento reciproco de direitos, estabelece uma medida comum que permite, por entre as diferengas e assimetrias de posigdes, uma diced comum (mas nao idéntica), a troca regrada de opinides e as normas pactuadas do conflito. Isso nao quer dizer que o interesse ptiblico seja a ema- nagig sem mediagdes da participagio popular. As demandas populares so sempre particulares, os interesses em jogo 80 conflitivos, as solugdes formuladas nos varios espagos de representacao sao parciais e os conflitos de interesses ¢ valores so também uma disputa quanto aos critérios de relevancia ¢ pertinéncia piiblica. No entanto, o peculiar nesses espacos é a possibilidade da construgao negociada de parametros que balizem a arbitragem dos interesses envolvidos e a deliberag3o politica. Nessa mediacao construida entre Estado e sociedade, é que, talvez, se tenha a chance de enfrentar o dilema proposto por Mari- Jena Chaus ao comentar as dificuldades da construgao de um campo democratico em uma sociedade polarizada Drerrossocuss 164 entre caréncias e privilégios. Se estes, por definigio, no podem se universalizar como direitos, as caréncias, por sua vez, Sio tao especificas que “nao chegam a transformar demandas em interesses gerais de um grupo ou uma classe social e, muito menos, chegam a universalizar-se e parecer como direitos”.* Escapar dessa antinomia exige a construgdo. de uma medida publica que quebre 0 reinado absoluto dos privilégios e redefina o particularismo das caréncias e dos movimentos sociais que as expressam. A definicao demécratica desta medida € tarefa dos espacos puiblicos. E nesse sentido que se poderia dizer que os direitos, como luta e conquista, significam também uma reinvengio licano da coisa piiblica, o que, na situacao brasil ifica na verdade uma (re)criagao da propria Repiiblica, essa ficg4o que na nossa hist6ria nunca ganhou inteiramente o imaginario coletivo, nunca estruturou uma meméria dos acontecimentos* e nunca se efetivou como Pritica e valor politico, numa quase-auséncia que repde 0 padrao oligarquico e patrimonialista de gestao da coisa piiblica.* Se essa refundagdo 6, hoje, ao menos imaginavel no cenfrio brasileiro como futuro possivel, depende intei- ramente desses espacos reinventados de democracia cidadania, abertos a invengo politica que as transformagdes € desafios no pais (e no mundo) estio a exigir ste texto é uma versdo bastante ampliada do trabalho ‘apresentado no Simpésio Os anos 90: poltica e sociedasle no Brasil, promovido pelo Departamento de Giéncia Pollica da Unicamp, em 1993, esta também in DAGNINO, Evelina, Os anos 90: politica e sociedade no Brasil, Sdo Paulo: Brasiliense, 1994. p.91-102) 165 Soctedade Clot DIREITOS SOCIAIS: AFINAL DO QUE SE TRATA? Direitos sociais: afinal do que se trata? A pergunta ndo é retérica. Tampouco Significa, de partida, tomar a sério as incertezas dos tempos que correm, Pois falar dos di dilemas talvez os mais cruciais do Brasil (e do mundo) contemporaneo. Suscita a pergunta ~ e diivida — sobre as possibilidades de uma sociedade mais justa e mais igua- certamente. Mas que ganha uma especial urgéncia diante da convergéncia al problematica entre uma longa hist6ria de desigualdades e exclusdes, as novas clivagens e diferenciagdes produzidas pela reestruturagao produtiva e que desafiam a agenda classica de universalizacao de direitos, ¢ os efeitos ainda nao inteiramente conhecidos do atual desmantelamento dos (no Brasil) desde sempre precirios servicos publicos, mas que nesses tempos de neoliberalismo vitorioso, a mesmo tempo em que leva ao agravamento da situag&o social das maiorias, vem se traduzindo em um estreita- mento do horizonte de em espécie de operacio ideol6gica pela qual a faléncia dos servigos ptiblicos é mobilizada como prova de verdade de um discurso que opera com oposicées simplificadoras, associando Estado, atraso e anacronismo, de um lado, e, de outro, modemidade e mercado. Operagio insidiosa que elide a questo da responsabilidad publica. E desca- racteriza a propria nogao de direitos, desvinculando-os do parametro da justica e da igualdade, fazendo-os deslizar em um campo semantico no qual passam a ser associados a custos e Snus que obstam a poténcia modernizadora do mercado, ou entio a privilégios corporativos que carregam anacronismos que precisam ser superados para que 0 possa se integrar nos circuitos globalizados da economia. Mas ao abrir esse texto de uma forma interrogativa, no se esta aqui sugerindo ou solicitando definigoes mode- lares que apazigtiem, nem que seja um pouco, nossas proprias perplexidades. Na verdade, é um modo de propor © debate que recusa exatamente a facilidade das definig6es. Nao porque eu seja contriria & precisdo das palavras, mas parossocus 172 porque essas definigdes, no mais das vezes, deixam escapar ‘© que talvez mais nos interessa compreender. Entdo vejamos: poderia lembrar que desde a Declaracio Universal dos Direitos Humanos, da ONU em 1948, os ireitos sociais foram reconhecidos, junto com os direitos civis e os direitos politicos, no elenco dos direitos humanos: direito ao trabalho, direito ao salério igual por trabalho igual, direito & previdéncia social em caso de doenga, velhice, morte do arrimo de familia e desemprego involuntario, sto a uma renda condizente com uma vida digna, direito ao repouso € a0 lazer (af incluindo o direito a férias remune- radas), € 0 direito & educacio. Todos esses stio considerados direitos que devem caber a todos os individuos igualmente, sem distingao de raga, religito, credo politico, idade ou sexo. Com variagées, esses direitos foram incorporados no correr desse século, sobretudo apés a Segunda Guerra Mundial, nas Constituigdes da maioria dos paises, ao menos do mundo ocidental. No Brasil, essa concepgio universa- lista de direitos sociais foi incorporada muito tardiamente, apenas em 1988, na nova Constituigao, que € uma refe- réncia politica importante em nossa hist6ria recente, que foi celebrada (e hoje € contestada) como referéncia fundadora de uma modemidade democritica que prometia enterrat de vez 20 anos de governos militares. E importante abel que esses direitos estio inscritos na lei e € importante lembrar que, em algum momento na histéria dos paises, fizeram parte dos debates e embates que mobilizaram homens e mulheres por parametros mais justos e mais igualitarios no ordenamento do mundo. 173 Diretor Soctate Mas, se tomarmos essas definigdes, por assim dizer canénicas, dos direitos sociais como ponto de partida para avaliar os tempos que correm, entio nao terfamos muitas alternativas a nao ser constatar (mais uma vez!) a brutal defasagem entre os principios igualitdrios da lei e a real dade das desigualdades e exclusdes — e nesse caso, falar dos direitos sociais seria falar de sua impoténcia em alterar a ordem do mundo, impoténcia que se arma no descom- passo entre a grandiosidade dos ideais e a realidade bruta das discriminag6es, exclusdes e violéncias que atingem maiorias. Além disso, ¢ talvez o mais importante, nao poderiamos ir muito além do que constatar— e lameniar— 8 efeitos devastadores das mudangas em curso no nfindo contemporaneo, demolindo direitos que mal ou bem garantem prerrogativas que compensam a assimetria de posigdes nas relagdes de trabalho e poder, e fornecem Protegdes contra as incertezas da economia e os azares da vida, Nesse caso, além da impoténcia para fazer frente aos rumos excludentes que vem tomando o reordenamento da economia e do Estado no mundo inteiro, falar dos direitos sociais também significaria falar de uma perda. Suspeito no entanto que as idéias de perda e de impoténcia montam uma armadilha que trava 0. pensa- mento por manté-lo encerrado nos termos como as coi- sas vém se armando 3 nossa volta, como o mundo vem se ordenando. Por mais que as evidéncias de perda e impoténcia possam ser demonstraveis pela andlise sociol6- gica e politica, o problema esta quando se transformam merossociass 174 essas evidéncias em pressuposto, algo como solo episte- mol6gico a partir do qual o pensamento se estrutura, pois afa reflexdo termina por esbarrar nas fronteiras que nosso pr6prio presente impde — € nesse caso, nada terfamos a opor a nao ser a dentincia indignada, o discurso edificante ou entio as frigeis certezas da anilise esclarecida que so, elas sim, impotentes para dissolver ou ao menos abalar essa convic¢do que vem ganhando coragdes e mentes de que estamos diante de processos inexordveis, e que a pobreza é inevitavel dados os imperativos da nova revo- lugSo tecnolégica que se impoe pelos circuitos de uma economia globalizada. Em outros termos, ao se fixar nas evidéncias de perda e impoténcia dos direitos sociais, hd o risco de demissio do pensamento, para nao dizer da ago, por conta de uma espécie de aprisionamento no préprio presente, sem abertura para um campo de possiveis. E se assim for, uma discussio sobre os direitos sociais na poderia mesmo ir além da justa indignago contra a mised do mundo ou entio a repeti¢io do discurso sociolégico que explica a ordem de suas causalidades ¢ determinacoes. ‘Mas entio talvez seja necessirio deslocar o terreno da discussio e repensar os direitos sociais, nao a partir de sua fragilidade ou da realidade que deixaram de conter, mas a partir das questdes que abrem e dos problemas que colocam. £ certo que falar dos direitos sociais é um modo de se apropriar da heranga (uma certa heranga) da modernidade e de assumir a promessa de igualdade e justia com que acenaram. Mas, ao invés de tomar isso 175 Diretios Socias. como dado da hist6ria agora superado ou negado pela fase atual de reestruturagdo do capitalismo mundial, trata-se de tomar os direitos sociais como cifra pela qual proble- matizar os tempos que correm e, a partir daf, quem sabe, formular as perguntas que correspondam as urgéncias que aatualidade vem colocando. E preciso dizer desde logo que 0 texto que segue nao tem a preiensdo de responder As inquietagdes até aqui comentadas € certamente esta aquém das questdes acima formuladas. Pode ser entendido como uma primeira tenta- tiva, nao mais do que um exercicio (ainda tateante) de reflexo para colocar a prova o sentido critico e questionador que a linguagem do direito contém, ou pode conter, desde que a consideremos como-um modo de descrever nomear a (des)ordem do mundo que pée em cena as aporias das sociedades modernas — e da nossa propria atualidade. eee Seria possivel dizer que nessa encruzilhada de alterna- tivas incertas em que estamos mergulhados, as mudangas em curso no mundo atual fazem vir & tona as dimens6es dileméticas da vida social, Se bem é certo que os modelos conhecidos de protege social vém sendo postos em xeque pelas atuais mudangas no mundo do trabalho que conquistas sociais vém sendo demolidas pela onda neoliberal no mundo inteiro, também é verdade que esse questionamento essa desmontagem reabrem as tensOes, antinomias e contradigdes que estiveram na origem dessa parrossocis 176 historia. E fazem ver as dificeis (e frageis) relagdes entre 0 mundo social e 0 universo piiblico da cidadania, na disjungao, sempre reaberta, entre a ordem legal que promete a igualdade e a reposicao das desigualdades e excludes na trama das relagdes sociais; entre a exigénci justica e o: universos culturais e valorativos de coletividades diversas ea logica devastadora do mercado. Mas essa disjungio estrutura o terreno dos conflitos que inauguraram a mo- derna questo social! e que reatualizam a cada momento a exigéncia de direitos, reabrindo a antinomia entre as espe- rangas de um mundo que valha a pena ser vivido € a logica excludente de modernizacdes que desestruturam| formas de vida e bloqueiam perspectivas de futuro, Lembrar isso no € uma trivialidade, pois esses conflitos, longe de se reduzirem ao puro confronto de interesses, colocam em pauta o dificil e polémico problema da igual- dade e justiga em uma sociedade dividida internamente e fraturada por suas contradigdes e antinomias. Por isso mesmo, ao revés de um determinismo econémico e tecno- logico hoje em dia mais do que nunca revigorado, sera importante reativar o sentido politico inscrito nos direitos sociais. Sentido politico ancorado na temporalidade propria dos conflitos pelos quais as diferencas de classe, de género, etnia, raga ou origem se metamorfoseiam nas figuras poli- ticas da alteridade — sujeitos que se fazem ver e reco- nhecer nos direitos reivindicados, se pronunciam sobre © justo e€ 0 injusto e, nesses termos, reelaboram suas

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