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LucVan Campenhoudt MANUAL DE INVESTIGACAO 3 EM CIENCIAS — | Sa TRAJECTOS 1. ANTES DE SOCRATES —INTRODUGAO ‘AQESTUDO DA FILOSOFIAGREGA José Trindade Santos 2. HISTORIA DA FILOSOFIA — PERIODO cRIsTA0. Fernand Van Steenberghen 3, ACONDICAOPOS-MODERNA Tean-Frangofs Lyotard 4, METADIALOGOS Grogory Bateson 5, BLEMENTOS DE FILOSOFIA DA CIENCIA Ludovie Geymonat 6. DO MUNDO FECHADO AO UNIVERSO INFINITO Alexandre Koyrt 7, GROGRAFIA HUMANA —TEORIAS ESUAS APLICACOBS MG. Badford ¢ W. A. Kent 8, OS GREGOS RO IRRACIONAL BR. Dodds 9, OCREPGSCULO DA DADEMEDIA EMPORTUGAL Anignio José Saraiva 10, ONASCIMEINTO DEUMANOVA FISICA 1. Bernard Cohen 11, ASDEMOCRACIAS CONTEMPORANEAS ‘Avend Lijphert 12, ARAZAO NAS COISAS HUMANAS Herbert Simon 13, PRE-AMBULOS — OS PRIMEIROS: PASSOS DO HOMEM ‘Yves Coppens 14, OTOMISMO. F. Van Stecnberghen 15, O LUGAR DA DESORDEM Raymond Bondon 16, CONSENSO ECONFLITO Seymour Martin Lipset 17, MANUAL DEINVESTIGAGAO TEM CHENCIAS SOCIAIS Raymond Quivy ¢ Lue Van Campenkoudt 18. NAGGES ENACIONALISMO mest Geliner 19, ANGOSTIA ECOLOGICA BO FUTURO Eco Figuciedo 20, REFLEXES SOBRE A REVOLUGAO NABUROPA Ralf Dahrendorf 21, ASOMBRA —ESTUDOSOBRE. ‘ACLANDESTINIDADE COMUNISTA José Pecheeo Pereira 22, DO SABER AO FAZER: PORQUE: ‘ORGANIZARA CIENCIA Joie Caraga 23, PARA UMA HISTORIA CULTURAL E,H. Gomtrich 24, AIDENTIDADBROUBADA José Carlos Gomes da Silva 25, AMETODOLOGIA DA ECONOMIA, ‘Mark Blaug 26, A YELHA BUROPA EA NOSSA. ‘Sacques Le Goff 27. ACULTURADA SUBTILEZA — ASPECTOS DA FILOSOFIA ANALITICA, M, S. Lowrengo 28, CONDIQGES DA LIBERDADE, Ennest Geliner 29, TELEVISAO, UM PERIGO PARA ADEMOCRACIA, Karl Popper e John Condy 30, RAWLS, UMA TEORIA DA JUSTICA BOS SEUS CRITICOS Chandran Kukathas e Philip Pettit 31, DEMOGRAEIA EDESENVOLVIMENTO: BLEMENTOS BASICOS Adelino Torres "32, OREGRESSO DO POLITICO Chantal Moutfe. 33, AMUSA APRENDI A ESCREVER Bric A. Havelock 34, NOVAS REGRAS DOMETODO SOCIOLOGICO, Anthony Giddens 35, AS POLITICAS SOCIATS EM PORTUGAL Henrique Medina Careira 36, AECONOMIA PORTUGUESA DESDE 1960 Tos da Silva Lopes. 37, IDENTIDADENACIONAL Anthony D, Sraith 38, COMO REALIZAR UM PROIECTO DEINVESTIGAGAO. Judith Bell 39, ARQUEOLOGIA —UMA BREVE inerRoDUGAO Paul ah 40, PRATICAS EMETODOS DE INVESTIGACAO EM CIENCIAS SOCIAIS Lae Albarll, Fogoise Dignffe, Jeen-Pieme iernaux, Christan Maroy, Danille Rugooy «Flete de Sint Georges A «REPUBLICA VELBA» (1910-1917) ENSAIO ‘Vaseo Pulido Valente 42, 0S NOVOS MEDIA EO ESPAGO PUBLICO Rogrio Santos aL RAYMOND QUIVY LUC VAN CAMPENHOUDT MANUAL DE INVESTIGACAO EM CIENCIAS SOCIAIS TRADUGAO JOAO MINHOTO MARQUES, MARIA AMALIA MENDES E MARA CARVALHO REVISAO CIENTIFICA RUI SANTOS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA. gradiva ‘Pitulo original francés: Manuel de recherche en sciences sociales © Dunod, Paris, 1995 so: Jodo Minhoto Marques, Maria Amdlia Mendes e Maria Carvalho Revisio cientifica: Rui Santos Capa: Armando Lopes Fotocomposigio: Gradiva Impressio ¢ acabamento: Manuel Barbosa & Filhos, L.* Reservados os direitos para Portugal por: Gradiva — Publicagoes, L.* Rua Almeida e Sousa, 21, r/c, esa, ~ 1399-041 Lisboa Telefs. 21 397 40 67/8 — 21 397 13 57 — 21 395 34.70 Fax 2) 395 34 7! — Email: geral@gradiva.mail.pt URL: hiupyAvww.gradiva.pt 42 edigio: Outubro de 2005 Depésito legal n.° 233 090/2005 gradiva Editor: Guilherme Valente \ Visite-nos na Intemet : http Wwwegradiva.pt Indice Prefacio 4 2.° edic OBJECTIVOS E PROCEDIMENTO. 1. Os objectivos .. 1.1. Objectivos gerais 1.2.Concepgio didéctica 1.3. «lnvestigagiion em «eiéneias» soci 2. O procedimento 2.1.Problemas de método (0 caos original. comegar mal) 2.2. As etapas do procedimento Primeira etapa APERGUNTA DE PARTIDA Objectives ... 1. Uma boa forma de actuar 2. Os critérios de uma boa pergunta de partida 2,1. As qualidades de clareza 2.2.As qualidades de exequibi 2,3.As qualidades de pertinéncia + Resumo da primeira etapa + Drabathi ieagiio n? Traba 0 de aplicagto n.° 1: formulagéo de wna pergunta ac 3. & se ainda tiver reticéncias... ll 15 1s 17 19 20 20 24 31 32 34 35 37 38 44 45 45 Segunda etopa A. EXPLORACAQ, Objectivos a 49 1. A leitura . 49 1.1.A escolha ¢ a organizagtio das leituras ... SL s Trabalho de aplicagdo n 2: escolha das primeiras leituras .. 57 1.2. Como fer? 57 = Trabalho de aplicagdo n° 3: eitura de um texto com a ajuda de ‘uma grelha de leitura .. ~ 58 + Trabalho de aplicagic n.° 4: resumnos de textos . 67 + Trabalho de aplicagéo n° 5: comparagio de textos .. 67 2, As entrevistas exploratérias .... 69 2.1. Com quem é dtil ter uma entrevista? n 2.2. Bm que consistem as entrevistas ¢ como realiz4-las? 72 23.A exploragaio das entrevistas exploratérias . 79 = Trabalho de aplicagio n° 6: realizag8o ¢ andlise de entrevisias 82 cexploratérias 3. Métodos exploratérios complementares + Resumo da segunda etapa + Trabalho de aplicagdo n 85 formulagao da pergunta de par- tida .. 86 Tereeira etapa ‘APROBLEMATICA Objectivos ... 89 1. Dois exemplos de concepgio de uma problematica 90 1.1.0 suicidio. 90 1.2.0 ensino.. 92 2. Os dois momentos de uma problematica ... 96 2.1. O primeiro momento: fazer o balango elucidar as problematicas possiveis .. 96 2.2.0 segundo momento: atribuit-se uma problemética 100 « Resumo da terceira etapa .. . 104 « Trabatho de aplicagao n° & a escolha ¢ a explicitagéo de uma problemética . 105 _ Oearta cana A CONSIRUGAO DO MODELO DE ANALISE Objectivos .. . 109 1, Dois exemplos de construcio do modelo de anilise .......... 110 1.1.0 suicidio 110 1.2.Marginalidade ¢ delinquéncia 15 2. Porqué as hipdteses? ... . 119 3, Como proceder coneretamente? 3.1.A construgdo dos conceitos 3.2.A construgio das hipdteses + Resumo da quarta etapa + Trabalho de aplicagao n formulagio das principais + Trabalho de aplicacdo lise 121 Quinta etapa A OBSERVACAO Objectivos . 155 1. Observar 0 qué? A definigo dos dados pertinentes 155 2. Observar em quem? O campo de anillise e a sélecgdo das unidades de observagio ... . 157 157 159 2.1.0 campo de anilise 2.2.A amostra. 3. Observar como? Os instrumentos de observacio e a reco- tha dos dados .. 163 3.1.A elaboragao dos instrumentos de obscrvagaéo 163 3.2.As trés operagdes da observagio 181 4, Panorama dos principais métodos de recolha das informa- gies 186 188 19t 196 4.1.0 inguérito por questionério 4.2.A entrevista 4.3. A observagio directa . dados secundarios ¢ dados 4.4.A recolha de dados preexistent documentais 201 + Resumo da quinta etapa .. 205 + Trabalho de aplicagio nH: concepgao da observagio 207 Sexta etapa AANALISE DAS INFORMAGOES Objectivos .. . 2ut 1. Um exemplo: o fenémeno religioso . . 212 2. As trés operagtes da anilise das informagées ... . 216 2.1.A preparagdo dos dados: deserever e agregar 216 2.2. A anélise das relagdes entre as varidveis.. . 218 2.3. A comparagao dos resultados observados com os resultados espe- . 219 rados © a interpretagiio das diferencas . 3. Panorama dos principais métodos de analise das informa- gies . 3.1. A anflise estatistica dos dados 3.2.A anflise de contefido 33, Limites e complementaridade dos métodos especificos: 0 exem- plo da field research 3.4.Um condrio de investigagio nao linear 3.5, Exemplos de investigagdes que aplicam os mét dos 226 233 235 237 + Resumo da sexta etapa 238 + Trabalho de aplicagio n° 12; analise das informagies 239 Sétina etapa AS CONCLUSOES Objectives .. . 243 1. Retrospectiva das grandes linhas do procedimento .......... 243 2. Novos contributos para os conhecimentos ... . 244 2.1. Novos conhecimentos relativos ao objecto de analise 244 245 2.2. Novos conhecimentos tedricos .. 3. Perspectivas priticas UMA APLICAGAO DO PROCEDIMENTO Objectivos .. 1. A pergunta de partida 2. A exploragio . 2.1. As leituras 2.2. As entrevistas exploratérias . 3. A problemitica . 3.1. Fazer o balango .. 3.2. Coneeber uma problemitica 4, A construgdo do modelo de anilise 4.1. Modelo ¢ hipétese: os critérios de racionalidade 4.2.08 indicadores 4.3. As relagdes entre construgio ¢ verificagi 4.4.A seleccdo das unidades de observagiio 5. A observaciio .. 5.1.0 instrumento de observaga 5.2.A recolha dos dados... 6. A andlise das informagies .. 6.1.4 medigo 6.2. desotigio dos resultados 6.3.A analise das relagdes entre a taxa de presenga e as razSes para ir as aules. 6.4. A comparago dos resultados cbservados com os resultados espe- rados a partir da hipétese ¢ 0 exame das diferencas 7. As conclusées .. A hipétese esquecida ... Recapitulagio das operagdes Bibliografia geral . Prefacio a 2.“ edigdo Nesta 2.° edig&o esforgémo-nos por nao alterar a concepgaio didéctica da obra. O Manual de Investigacdo em’ Ciéncias Sociais permanece resolutamente pratico. Foram feitas muitas correcgdes modificages locais em todas as partes do livro, Algumas foram transformadas de alto a baixo, As principais alteragdes so as se- guintes: Primeira etapa: a pergunta de partida — supressio de algu- mas passagens que podiam conduzir a mal-entendidos ¢ nova redaccio dos comentarios de determinadas questdes (relages entre a investigagao em ciéncias sociais ¢ a ética, entre a descrig&o ¢ a compreensiio dos fenédmenos sociais...); Terceira etapa: a problemética — capitulo quase inteira- mente recomposto tendo em conta os contributos de obras recentes sobre os modos de explicagao dos fenémenos saciais; Quarta etapa: a construgio do modelo de anélise — refor- mulagao das dimensbes do conceito de actor social a partir de investigagies recentes; Sexta etapa: a anélise das informagdes —- acrescentos sobre a tipologia, a field research, a complementaridade entre métodos diferentes ¢ um cendrio de investigagao n&o li- near; + Actualizagio das diferentes bibliografias e integragdo das bibliografias especializadas nas apresentagées dos métodos de recolha e de andlise das informagées, Estas alteragdes devem muito a varias pessoas, a quem queria- ‘imos assegurar 0 nosso reconhecimento: Monique Tavernier, pela sua ajuda competente e eficaz na preparagao desta 2." edigao; Michel Hubert, Jean-Marie Lacrosse, Christian Maroy e Jean Nizet, pelas suas criticas ¢ sugesties profissionais ¢ amigdveis; Casimiro Marques Balsa, seus colegas da Universidade Nova de Lisboa ¢, em particular, Rui Santos, pelo seu exame pormenoriza- do da obra e pelo acolhimento que the foi dado em Portugal; os muitos professores, estudantes ¢ investigadores de Franga, Suiga, Quebeque, Senegal, Bélgica ¢ de outros paises que nos deram 2 conhecer as suas reacgdes ¢ estimulos. OBJECTIVOS E PROCEDIMENTO 1. OS OBJECTIVOS 1.1. OBJECTIVOS GERAIS A investigagio em ciéncias sociais segue um procedimento andlogo ao do pesquisador de petrdleo. Nao é perfurando ao acaso que este encontraré o que procura, Pelo contrdrio, o sucesso de um programa de pesquisa petrolifera depende do procedimento segui- do. Primeiro 0 estudo dos terrenos, depois a perfuragdo. Este pro- cedimento implica a participagiio de numerosas competéncias dife- rentes. Os gedlogos iréo determinar as zonas geogrdficas onde & maior a probabilidade de encontrar petréleo; os engenheiros irdo conceber processos de perfuragéio apropriados, que iro ser aplica- dos pelos técnicos. Nio pode exigit-se ao responsavel do projecto que domine minuciosamente todas as técnicas necessérias. O scu papel espe- cifico seré o de conceber 0 conjunto do projecto ¢ coordenar as operagées com o maximo de coeréncia ¢ eficdcia, H sobre ele que recairé a responsabilidade de levar a bom termo o dispositive global de investigagao. No que respeita a investigagao social, o proceso & comparivel. Imporia, acima de tudo, que o investigador seja capaz de conceber e de pér em pratica um dispositive para a elucidacio do real, isto &, no seu sentido mais lato, um método de trabalho. Este nunca se apresentaré como uma simples soma de técnicas que se trataria de aplicar tal ¢ qual se apresentam, mas sim como um pereurso global do espirito que exige ser reinventado para cada trabalho. Quando, no decorrer de um trabalho de investigaco social, 0 seu autor se vé confrontado com problemas graves que comprometem © prosseguimento do projecto, raramente isso acontece por razGes de ordem estritamente técnica. EB possivel aprender variadissimas técni- cas de um modo bastante rapido, assim como, de qualquer forma, solicitar a colaboragao ou, pelo menos, os conselhos de um especia- lista. Quando um investigador, profissional ou principiante, sente gran- des dificuldades no seu trabalho, as razGes so quase sempre de ordem metodolégica, no sentide que damos ao termo. Ouvimos entio expres- sées invariavelmente idénticas: «Ja nfo sei em que ponto estou», tenho a impressiio de j4 nem saber o que procuro», «ntio fago a minima ideia do que hei-de fazer para continuam, «tenho muitos dados... mas n&io sei o que fazer com cles», ou até mesmo, logo de inicio, «ndo sei bem por onde comecar. Porém, ¢ paradoxalmente, as numerosas obras que se dizem meto- | dolégicas no se preocupam muito com... 0 método, no seu sentido mais lato. Longe de contribuirem para formar os seus leitores num. procedimento global de investigacao, apresentam-se frequentemente como exposigdes de técnicas particulares, isoladas da reflexao teérica eda concepgio de conjunto, sem as quais é impossivel justificar a sua escolha e dar-lhes um sentido. Estas obras tém, bem entendido, a sua utilidade para o investigador, mas s6 depois da construgao metodeld- gica, aps esta ter sido validamente encetada, Rsta obra foi concebida para ajudar todos os que, no Ambito dos seus estudos, das suas responsabilidades profissionais ou sociais, desejem formar-se em investigagio social ou, mais precisamente, empreender com éxito um trabalho de fim de curso ou uma tese, trabalhos, andlises ou investigagdes cujo objectivo seja compreen- der mais profundamente ¢ interpretar mais acertadamente os fend- menos da vida colectiva com que se confrontam ou que, por qual- quer raz&o, os interpelam. Pelos motivos acima expostos, pareceu-nos que esta obra s6 pode- tia desempenhar esta fungiio se fosse inteiramente concebida como um suporte de formagiio metodolégica, em sentido lato, isto é, como uma formagaio para conceber e aplicar um dispositive de elucidagao do real. Significa isto que abordaremos numa ordem Iégica temas como a formulago de um projecto de investigagio, o trabalho exploratério, a construcéio de um plano de pesquisa ou os critérios para a escolha das técnicas de recolha, tratamento ¢ andlise dos dados. Deste modo, cada um poderd, chegado 0 momento ¢ com pleno conhecimento de causa, fazer sensatamente apelo a um ou a outro dos numerosos métodos ¢ técnicas de investigagao, em sentido restrito, para elaborar por si mes- mo, a partir deles, procedimentos de trabalho correctamente adaptad a0 seu projecto. ™ 1.2. CONCEPCAO DIDACTICA | No plano didactico, esta obra é directamente utilizavel. Isto significa que o leitor que o deseje poderd, logo a partir das primei- ras paginas, aplicar ao seu trabalho as recomendagdes que lhe sero propostas. Apresenta-se, pois, como um manual cujas dife- rentes partes podem ser experimentadas, soja por investigadores Ptincipiantes isolados, seja em grupo ou na sala de aula, com o enquadramento critico de um docente formado em ciéncias | sociais. No entanto, recomenda-se uma primeira leitura integral antes. de iniciar os trabalhos de aplicagiio, de modo que a coeréncia global do procedimento seja bem apreendida ¢ as sugestdes sejam aplica- das de forma flexivel, critica ¢ inventiva. ‘Uma tal ambigao pode parecer uma aposta impossivel: como & possivel propor um manual metodolégico num campo de investigagaio onde, como é sabido, os dispositivos de pesquisa varia consideravel- mente com as investigagies? Nao existe aqui um enorme risco de impor uma imagem simplista ¢ muito arbitréria da investigagdio social? Por varias razées, pensamos que este risco s6 poderia resultar de uma leitura extremamente superficial ou parcial deste livro. Embora 0 contetido desta obra seja directamente aplicdvel, niio Se apresenta, no entanto, como uma simples colecgao de receitas, mas como uma trama geral e muito aberta, no dmbito da qual a fora da qual!) podem pér-se em pratica os mais variados procedi- mentos coneretos. Se é verdade que contém numerosas sugestdes priticas e exercicios de aplicagao, nem aquelas nem estes arrasta- Tk 0 leitor para uma via metodolégica precisa e irrevogavel. Este livro foi inteiramente redigido para ajudar o leitor a conceber por si préprio um processo de trabalho, e nfo para lhe impor um determinado processo a titulo de cAnone universal. Nao se trata, pois, de um «modo de emprego» que implique qualquer aplicagio mecAnica das suas diferentes etapas. Propde pontos de referéncia tio polivalentes quanto possivel para que cada um possa elaborar com lucidez, dispositivos metodol6gicos proprios em fungao dos seus objectivos. Com este propdsito —¢ trata-se de uma segunda precaugio——, as paginas desta obra convidam constantemente ao recuo critico, de modo que 0 leitor seja regularmente levado a reflectir com lucidez sobre o sentido do seu trabalho, 4 medida que for progredindo. AS reflexes que propomos ao leitor fundam-se na nossa experiéncia de investigadores em sociologia, de formadores de adultos ¢ de docentes. Sao, portanto, forgosamente subjectivas ¢ inacabadas, Partimos do pressuposto de que © leitor seguiu ou segue paralelamente uma forma- cdo te6rica ¢ goza da possibilidade de discutir e ser avaliado por um investigador ou um docente formade em ciéneias sociais. Veremos, por outro lado, no decurso desta obra, onde € como 0s recursos te6ricos intervém na elaboragao do dispositivo metodolégico. ‘Uma investigagao social nao é, pois, uma sucessio de métodos e técnicas estereotipadas que pastaria aplicar tal e qual se apresen- tam, numa ordem imutavel. A escolha, a elaboragao ¢ a organiza- gdo dos processos de trabalho variam com cada investigagdo especi- fica. Por isso —€ Irata-se de uma terceira precaugdo —, & obra est elaborada com base em numerosos exemplos reais. Alguns deles serdo varias vezes referidos, de modo a realgarem a coeréncia glo- bal de uma investigagaio. Nao constituem ideais a atingir, mas sim balizas, a partir das quais cada um poderd distanciar-se & situar-se. Finalmente — dltima precangio —, este livro apresenta-se, explicitamente, como um manual de formagio. Esté construfdo em fungdo de uma ideia de progresséo na aprendizagem. Por conse- guibte, comproender-se-t imediatamente que © significado ¢ 0 inte- resse destas diferentes etapas nao podem ser correctamente avalia- dos se forem reticadas do seu contexto global. Umas sao mais teonives, outras mais criticas. Algumas ideias, pouco aprofundadas no inicio da obra, sfio retomadas & desenvolvidas posteriormente noutros contexios. Certas passagens contém recomendagées fun- damentadas; outras apresentam simples sugestOes ou um leque de possibilidades. Nenhuma delas d4, por si s6, uma imagem do dis- positivo global, mas cada uma ocupa nele um lugar necessfrio. 1.3. «INVESTIGACAO» EM «CIENCIAS» SOCIAIS? com? fominio que ean Nos ocupa utilizam-se frequentemente — e forcados a incluir-nos neste «se» in cio s forg — as palavras «investigagai ° a x0 oh Scléncian com uma certa ligeireza nos sentidos mais. elasticos, Fale or exampl, de «investigagio cientificay para qualificar as iniaio, os estudos de mercado iagnéstic i benais 36 pores for ou os dia; sticos mais m efectuados por um servi iais 86 porque foram efectuad igo ou por um cent de investigicio universitério, Dé-se a entender aos estudantes do a ‘iro nivel do ensino superior, ¢ me: i anos , i § 4 smo aos dos tiltimos de ensino secundario, que as suas aula : onsing 5 is de métodos e técnicas de it n a inves- ‘igo social os tornardo aptos a adoptar um «procedimento cientifi- » ey le logo, a produzir um «conheci i , logo, a prod. simento cientifico», quand me vad, é muito dificil, mesmo para um investigador profissionel experiéncia, produzir conhecimento verdadei x b erdadeire faga progredir a sua disciplina. Stramente novo ae fimo que, na melhor das hipéteses, se aprende de facto no fim de quilo que é geralmente qualificado como trabalho de «inves- tigacto em ciéncias sociais»? A compreender melhor os significa- le um acontecimento ou de uma condi i - juta, a fazer inteligente- mente o ponto da situagao, a c: nai a n s ‘aptar com maior perspicdcia ) as X6aieas de Funcionamento de uma organizagio, a reflect acertada- re as implicagdes de uma decisdo politi i icagse politica, ou ainda comprender com ms nitidez como determinadas pessoas apreen lema ¢ a tornar visivei: soa sorseeentates ‘is alguns dos fundamentos das fonnator€ praca nos detenhamos e que adquiramos essa ; & principalmente a ela que o livro é " In e consagrado. Mas raramente se trata de investigagdes il vat i que contribuam para fazer pr seed os quadros conceptuais das ciéncias sociais, O° seus modlelos e andlse ou Os seus dispositivos metodoldégicos. Trata-se de estu- dos, ans ises ou cxames, mais ou menos bem realizadas, consoante a hoe a imaginagao do «investigador» e as precaugdes de nee ro ieia para levar a cabo as suas investigagées. Este trabalho precioso e contribuir muito i le para a lucidez dos actore sociais acerca das praticas de que sao te c autores, ou sobre os aconte- cimentos e os fenémenos que testemunham, mas nio se deve atri- uir-the um estatuto que n&o lhe é apronriado. Esta obra, embora possa apoiar determinados leitores empenha- dos em investigagSes de uma certa envergadura, visa sobretudo ajudar os que tém ambigdes mais modestas, mas que, pelo menos, estiio decididos a estudar os fendmenos sociais com uma preocu- pagdo de autenticidade, de compreensio ¢ de rigor metodolégico. ‘Em ciéncias sociais temos de nos proteger de dois defeitos opostos: um cientismo ingénuo que consiste em crer na possibili- dade de estabelecer verdades definitivas e de adoptar um rigor anélogo ao dos fisicos ou dos bidlogos, ou, inversamente, um cepticismo que negaria a propria possibilidade de conhecimento cientifico. Sabemos simultaneamente mais ¢ menos do que por vezes deixamos entender. Os nossos conhecimentos constrocm-se com © apoio de quadros teéricos € metodoldgicos explicitos, len- tamente elaborados, que constituem um campo pelo menos par- cialmente estruturado, e esses conhecimentos sao apoiados por fio dos factos coneretos. | aoe ease qualidades de autenticidade, de curiosidade e de rigor que queremos dar relevo nesta obra. Se utilizamos os termos «in- vestigagio, dinvestigadom e «ciéncias sociais» para falar tanto dos trabalhos mais modestos como dos mais ambiciosos, € por uma questio de facilidade, porque nao vemos outros mais convenientes, mas é também com a consciéncia de que siio frequentemente exces- sivos. 2. 0 PROCEDIMENTO 2.1, PROBLEMAS DE METODO (0 caos original... ou trés maneiras de comegar mal) No inicio de uma investigagao ou de um trabalho, 0 cenirio é quase sempre idéntico. Sabemos vagamente que queremos estudar tal ou tal problema — por exemplo, 0 desenvolvimento da nossa propria regiao, o funcionamento de uma empresa, a introdugao das novas tecnologias na escola, a emigragiio ou as actividades de uma associagio que frequentamos —, mas no sabemos muito bem como abordar a questo. Desejamos que este trabalho s¢ja util e resulte em proposigdes concretas, mas temos a sensa¢ao de nos perdermos nele ainda antes de o termos realmente comegado. Eis aproximadamente a forma como comega a maior parte dos traba- Ihos de estudantes, mas também, por vezes, de investigadores, nos dominios que dizem respeito aquilo a que costumamos chamar as «ciéncias sociais». Este caos original nio deve ser motivo de inquietagdo; pelo contrario, 6 a marca de um espirito que nao se alimenta de simplismos e de certezas estabelecidas. O problema consiste em sair dele sem demorar demasiado e em fazé-lo em nosso proveito. Para o conseguirmos, vejamos primeiro aquilo que nao deve- mos de forma alguma fazer... mas que, infelizmente, fazemos com frequéncia: a fuga para a frente. Esta pode tomar varias formas, das quais s6 iremos aqui abordar as mais frequentes: a gula livresca ou estatistica, a «passagem» as hipdteses ¢ a énfase que obscurcce. Se nos detemos aqui sobre o que nao devemos fazer, é por termos visto demasiados estudantes e investigadores principiantes precipi- tarem-se desde 0 inicio para os piores caminhos. Ao dedicar alguns minutos a ler estas primeiras paginas, o leitor pouparé talvez algu- mas semanas, ov mesmo alguns meses, de trabalho extenuante e, em grande parte, inutil. @) A gula livresca ou estatistica Como o nome indica, a gula livresca ou estatistica consiste em «encher a cabega» com uma grande quantidade de livros, artigos ou dados numéricos, esperando encontrar ai, ao virar de um para- grafo ou de uma curva, a luz que permitira enfim precisar, correc- tamente ¢ de forma satisfatéria, 0 objectivo e o tema do trabalho que se deseja efectuar. Esta atitude conduz invariavelmente ac desalento, dado que a abundancia de informagdes mal integradas acaba por confundir as ideias. Ser4 entéo necessario voltar atras, reaprender a reflectir, em vez de devorar, a ler em profundidade poucos textos cuidadosamente escolhidos ¢ a interpretar judiciosamente alguns dados estatisticos particularmente ¢loquentes, A fuga para a frente n&o sé 6 inutil, mas também prejudicial. Muitos estudantes abandonam os seus i projectos de trabalho de fim de curso ou de tese por os terem iniciado desse modo. ; E muito mais gratificante ver as coisas de outra forma e consi- derar que, bem compreendida, a lei do menor esforgo é uma regra essencial do trabalho de investigagao. Consiste em procurar sempre tomar 0 caminho mais curto e mais simples para 0 melbor resul- tado, o que implica, nomeadamente, que nunca se inicie um traba- Iho impottante sem antes reflectir sobre 0 que se procura saber ¢ a forma de o conseguir. _ Quem se sentir visado por estas ‘observagdes nfo deve deses- perar. Bastar-lhe-4 simplesmente descongestionar 0 cérebro & dese- ymaranhar a meada de nimeros ou de palavras que o asfixia e impede de funcionar de forma ordenada e criativa, Pare de acumu- lar sem método informagées mal assimiladas e preocupe-se primet- ro com o seu procedimento. b) A «passagem» as hipéteses Aqui esti uma outra forma diferente de fuga para a frente. Os jogadores de bridege sabem bem o que € uma «passagem. Em ‘vez de jogar primeiro o 4s e assegurar assim a va7a, 0 terceiro jogador tenta ganhar 0 ponto com a dama, esperando que 0 quarto nao tenha o rei. Se a jogada resultar, © jogador ganha a vaza e conserva o 4s, Uma tal aposta nao se justifica em investi- gaciio, onde € absolutamente necessirio assegurar cada ponto € realizar cuidadosamente as primeiras ctapas antes de pensar nas seguintes. ; ; . A apassagem» as hipdteses consiste precisamente em precipl- tar-se sobre a recolha dos dados antes de ter formulado hipéteses de investigagao — voltaremos adiante a esta nogiio ~— © em preo- cupar-se com a escolha e @ aplicagao pratica das técnicas de inves- tigagfio antes mesmo de saber exactamente aquilo que se procura ©, portanto, pata o que irfio servir, ; Nao é raro ouvir um estudante declarar que tenciona fazer um inquérito por questionatio junto de uma dada populag4o quando nao tem nenhuma hipétese de trabalho e, para dizer a verdade, nem sequer sabe © que procura, $6 € possivel escolher uma técnica de pesquisa quando se tem uma ideia da natureza dos dados a re- colher, o que implica que se comece por definir bem o projecto, Esta forma de fuga para a frente é corrente, sendo encorajada pela crenga segundo a qual a utilizagdo de técnicas de investigaciio consagradas determina o valor intelectual e o cardcter cientifico de um trabalho, Mas que utilidade tem a aplicagao correcta de téoni- cas experimentadas se estas estiverem ao servigo de um projecto vago e mal definido? Outros pensam que basta acumular um mé- ximo de informag&es sobre um assunto e submeté-las a varias técnicas de andlise estatistica para descobrir a resposta as suas perguntas, Afundam-se, assim, numa armadilha cujas consequén- cias podem cobri-los de ridiculo. Por exemplo, num trabalho de fim de curso um estudante tentava descobrir quais os argumentos mais frequentemente empregues por um conselho de turma para avaliar a capacidade dos estudantes. Tinha gravado todas as discus- sdes dos docentes durante o conselho de turma de fim de ano e, apés ter introduzido tudo num ficheiro de computador, havia-o submetido a um programa de andlise de conteddo altamente sofis- ticado. Os resultados foram inesperados. Segundo o computador, os termos mais empregues para julgar os alunos eram palavras como «e».., «de»... «heim»... «capaz».., «mas»... etc.! c) A énfase que obscurece Este terceiro defeito € frequente nos investigadores princi- piantes que esto impressionados e intimidados pela sua recente passagem pela frequéncia das universidades e por aquilo que pensam ser a ciéncia, Para assegurarem a sua credibilidade jul- gam ser titil exprimirem-se de forma pomposa e ininteligivel e, na maior parte das vezes, néo conseguem evitar raciocinar da mesma maneira. Duas caracteristicas dominam os seus projectos de investigagio ou de trabalho: a ambigdio desmedida e a mais completa confusiio. Umas vezes parece estar em causa a reestruturagao industrial da sua regifio; outras, o futuro do ensino; outras ainda é nada menos do que o destino do Terceiro Mundo que parece jogar-se nos seus poderosos cérebros. Estas declaragdes de intengio exprimem-se numa giria, tio oca quanto enfatica, que mal esconde a auséncia de um projecto de investigagao claro ¢ interessante. A primeira tarefa do orientador deste tipo de trabalho serd ajudar o seu autor a assentar os pés na terra ¢ a mostrar mais simplicidade e clareza. Para vencer as suas eventuais reticéncias é necessario pedir-lhe sistematicamente que defina todas as palavras que emprega e que explique todas as frases que formula, de modo que rapidamente se dé conta de que ele proprio néo percebe nada da sua algaraviada. Se pensa que estas consideragdes sc the aplicam, esta tomada de consciéncia, por si s6, p6-lo-4 no bom caminho, dado que uma carac- teristica essencial — ¢ rara — de uma boa investigago é a autentici- dade, Neste dominio que nos ocupa, mais do que em qualquer outro, niio ha bom trabalho que no scja uma procura sincera da verdade. Nao a verdade absoluta, estabelecida de uma vez por todas pelos dogmas, ‘mas aquela que se repde sempre em questo ¢ se aprofunda incessan- temente devido ao desejo de compreender com mais justeza a reali- dade em que vivemos e para cuja produgio contribuimos. Se, pelo contrério, pensa que nada disto lhe diz respeito, faga- -se, mesmo assim, o pequeno favor de explicar claramente as palavras ¢ as frases que jA tenha eventualmente redigido sobre um. trabalho que inicia, Pode bonestamente afirmar que se compreende bem a si mesmo e€ que os seus textos néo contém expressdes imi- tadas e declaragdes ocas e presungosas? Se assim é, se possui a autenticidade e 0 sentido das proporgdes, entiio, e s6 ent&o, € pos- sivel que o seu trabalho venha a servir para alguma coisa. Apés termos examinado varias maneiras de comegar muito mal, vejamos agora como é possivel proceder de forma valida a um trabalho de investigac&o e assegurar-Ihe um bom comego. Com a ajuda de esquemas, referiremos primeiro os principios mais impor- tantes do procedimento cientifico e apresentaremos as etapas da sua aplicagdo pratica. 2.2, AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO Fundamentalmente, 0 problema do conhecimento cientifico poe-se da mesma maneira pata os fendmenos sociais ¢ para os fenémenos naturais: em ambos os casos ha hipéteses tebri devem ser confrontadas com dados de abservagao ude cxperi mentagao. Toda a investigagdo deve, portanto, responder a alguns Principios estiveis e idénticos, ainda que varios percursos diferen- tes conduzam ao conhecimento cientifico. Um procedimento é uma forma de progredir em direcgao a um objective. Expor © procedimento cientifico consiste, portanto, descrever os principios fundamentais a pdr em pritica em qualquer trabalho de investigagio. Os métodos niio sio mais do que fonmalizagies particulares do procedimento, percursos diferentes concebidos para estarer i i- concebidos Pe - m mais adaptados aos fendmenos ou domi- Mas esta adaptagao no dispensa a fidelidade do investigador aos principios fundamentais do procedimento cientifico. _ Ao dar mais relevo ao procedimento do que aos métodos par- ticulares, a nossa formulagiio tem, assim, um alcance geral e pode aplicar-se a todo © tipo de trabalho cientifico em ciéncias sociais. Mas quais sio esses prinefpios findamentais que toda a investiga- gio deve respeitar? Gaston Bachelard resumiu o processo cientifi ; ico em algumas Palavras: «O facto cientficn € conquistado, constmido © verifi- lov: —Conquistado sobre os preconceitos; — Construido pela raz; — Verificado nos factos, A mesma ideia estrutura toda a obra Le métier de socit de P. Bourdieu, J. C. Chamboredon e J. C. Passeron (Paris, Moe Bordas, 1968). Nela os autores descrevem o procecimento como um processo em trés actos cuja ordem deve ser respeitada. E aquilo a que chamam «hierarquia dos actos epistemoldgicosy, Estes trés ao sao a ruptura, a construgao e a verificago (ou experimenta- oO objectivo deste manual é o de apresentar estes principios do procedimento cientifico em ciéncias sociais sob a forma de sete etapas a percorrer. Em cada uma delas so descritas as operagdes a empreender para atingir a seguinte © progredir de um acto para © outre. Ou seja, este manual apresenta-se como uma peca de teatro classica, em trés actos € sete cenas. O esquema da pagina seguinte mostra a correspondéncia entre actapa e os actos do procedimento. Por razGes didacticas, os actos @ as etapas sfio apresentados como operagdes separadas e numa ordem sequencial. Na realidade, uma investigagiio cientifica nao é téo mecAnica, pelo que introduzimos no esquema circuitos de retroacgfo para simbolizar as interacgdes que realmente existem entre as diferentes fases da investigacio. a) Os trés actos do procedimento Para compreender a articulagéo das etapas de uma investigagdo com os trés actos do procedimento cientifico é necessério dizer primeiro algumas palavras sobre os principios que estes trés actos encerram e sobre a légica que os une. A ruptura Em ciéncias sociais, a nossa bagagem supostamente «tedrica» comporta numerosas armadilhas, dado que uma grande parte das nossas ideias se inspiram nas aparéncias imediatas ou em posi¢des parciais. Frequentemente, nao mais do que ilusdes ¢ preconceitos. Construir sobre tais premissas equivale a construir sobre areia. Daf a importincia da ruptura, que consiste precisamente em romper com os preconceitos ¢ as falsas evidéncias, que somente nos dao a ilusdo de compreendermos as coisas. A ruptura é, portanto, o pri- meiro acto constitutivo do procedimento cientifico. A construgao Esta ruptura s6 pode ser efectuada a partir de um sistema conceptual organizado, susceptivel de exprimir a légica que o in- vestigador supde estar na base do fenémeno. E gracas a esta teoria que ele pode erguer as proposigées explicativas do fendmeno a estudar e prever qual o plano de pesquisa a definir, as operagdes a aplicar e as consequéncias que logicamente devem esperar-se no AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO Etapa 1 — A pergunta de partida Etapa 2— A exploragio As leituras As entrevistas} exploratérias Etapa 4— A construgio do modelo de andlise RUPTURA CONSTRUGAO VERIFICAGAO, termo da observagao. Sem esta construg&o tedrica nfo haveria experimentagao valida. Nao pode haver, em ciéncias sociais, veri- ficagdo frutuosa sem construgao de um quadro tedrico de referén- cia, Nao se submete uma proposigao qualquer ao teste dos factos. As proposigdes devem ser o produto de um trabalho racional, fundamentado na Iégica e numa bagagem conceptual validamente constituida (J.-M. Berthelot, L’/utelligence du social, Paris, PUF, 1990, p. 39). A verificacio Uma proposigao s6 tem direito ao estatuto cientifico na medida em que pode ser verificada pelos factos. Este teste pelos factos é designado por verificagio ou experimentagiio. Corresponde ao ter- ceiro acto do processo. 5b) As sete etapas do procedimento Os trés actos do procedimento cientifico nao siio independentes ‘uns dos outros. Pelo contrario, constituem-se mutuamente. Assim, por exemplo, a ruptura nao se realiza apenas no inicio da investi- gactio; completa-se na ¢ pela construgio. Esta niio pode, em contra- partida, passar sem as ctapas iniciais, principalmente consagradas 4 mptura. Por seu tumo, a verificag#o vai buscar o seu valor & qualidade da construgio. No desenvolvimento concreto de uma investigagiia, os trés actos do procedimento cientifico so realizados ao longo de uma suces- sio de operagées, que aqui sao reagrupadas em sete etapas. Por raz6es didacticas, o esquema anterior distingue de forma precisa as etapas umas das outras. No entanto, circuitos de retroacgao lem- bram-nos que estas diferentes etapas estiio, na realidade, em perma- nente interacgdo. Nao deixaremos, alids, de mostrd-lo sempre que possivel, uma vez que este manual dard especial relevo ao encadea- mento das operagdes ¢ a légica que as liga. PRIMEIRA ETAPA A PERGUNTA DE PARTIDA AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO Erapa 2— A exploragao [>| As entrevistas I exploratérias Etapa 3 -— A problemética Etapa 4— A construgio do modelo de anélise Btapa $— A observagto ; Etapa 6— A anslise das informagdes Etapa 7 — As conclusées | As leituras OBJECTIVOS O primeiro problema que se pde ao investigador & muito sim- plesmente o de saber como comegar bem o seu trepalho. De facto, nao € facil conseguir traduzir o que vulgarmente se apresenta como um foco de interesse ou uma preocupagio relativamente vaga um projecto de investigacdio operacional. O receio de iniciar mal o trabalho pode levar algumas pessoas a andarem as voltas durante bastante tempo, a procurarem uma seguranga ilusria numa das formas de fuga para a frente que abordémos, ou, ainda a renun- ciarem pura € simplesmente ao projecto. Ao longo desta etapa mostraremos que existe uma outra solugdo para este problema do arranque do trabalho, A dificuldade de comegar de forma vélida um trabalho tem, frequentemente, origem numa preocupagao de fazé-lo demasiado bem e de formular desde logo um projecto de investigagio de forma totalmente satisfatoria. E. um erro, Uma investigagiio 6, por definigao, algo que se procura. F um caminhar para um melhor conhecimento e deve ser aceite como tal, com todas as hesita- g6es, desvios e incertezas que isso implica. Muitos vivem esta realidade como uma angistia paralisante; outros, pelo contrério, reconhecem-na como um fenémeno normal ec, numa palavra, esti- mulante. Por conseguinte, o investigador deve obrigar-se a escolher rapi- damente um primeiro fio condutor tao claro quanto possivel, de 2, OS CRITERIOS DE UMA BOA PERGUNTA DE PARTIDA Traduzir um projecto de investigagio sob a forma de uma per- gunta de partida s6 seré util se essa pergunta for correctamente formulada, Isto nfo é necessariamente facil, pois uma boa per- gunta de partidadeve preencher varias condigdes. Em vez de apre- sentar imediatamente estas condigdes de forma abstracta, é prefe- rivel partir de exemplos coneretos. Procederemos, assim, a0 exame critico de uma série de perguntas de partida, insatisfatérias, mas com formas correntes, Este exame permitir-nos-d reflectir sobre os critérios de uma boa pergunta e o significado profundo desses critérios. O enunciado de cada pergunta sera seguido de um co- mentério critico, mas seria preferivel que cada um discutisse por si mesmo estas perguntas, se possivel em grupo, antes de ler, mais ou menos passivamente, os nossos comentirios. Ainda que os exemplos de perguntas apresentados lhe paregam muito claros, até mesmo demasiado claros, ¢ que as recomendagdes propostas Ihe paregam evidentes e elementares, nfo deixe de levar a sério esta primeira etapa. Aquilo que pode ser facil quando um critério 6 apresentado isoladamente sé-lo-4 muito menos quando se tratar de respeitar o conjunto destes critérios para uma tnica per- gunta de partida: a sua. Acrescentemos que estes exemplos nfo sao puras invengdes da nossa parte, Ouvimo-los todos, por vezes sob formas muito ligciramente diferentes, da boca de estudantes. Se, das centenas de perguntas insatisfatorias sobre as quais trabalhamos com eles, acabdmos por reter aqui apenas sete, é porque elas siio bastante representativas das falhas mais correntes ¢ porque, juntas, cobrem bem os objectivos pretendidos. Veremos progressivamente a que ponto este trabalho, longe de ser estritamente técnico ¢ formal, obriga o investigador a uma cla- rificago, frequentemente muito ail, das suas intengdes ¢ perspec- tivas esponténeas. Neste sentido, a pergunta de partida constitui normalmente um primeiro meio para pér em prética uma das dimen- ses essenciais do processo cientifico: a ruptura com os preconceitos e as nogées prévias. Voltaremos a este ponto no fim do exercicio. conjunto das qualidades requeridas pode resumir-se em algu- mas palavras: uma boa pergunta de partida deve poder ser tratada. Isto significa que se deve poder trabalhar eficazmente a partir dela e, em particular, deve ser possivel fornecer elementos para Ihe responder, Estas qualidades tem de ser pormenorizadas, Para esse efeito, procedamos ao exame critico de sete exemplos de perguntas, 2.1, AS QUALIDADES DE CLAREZA _As qualidades de clareza dizem essencialmente respeito a pre- cisdo e & concisio do modo de formular a pergunta de partida. Pergunta 1 Qual € o impacto das mudangas na organizagio do espaco urbano sobre a vida dos habitantes? Comentirio Esta pergunta é demasiado vaga. Em que tipos de mudangas se pensa? O que se entende por «vida dos habitantes»? ‘Trata-se da sua vida profissional, familiar, social, cultural? Alude-se as suas facilidades de deslocagao? As suas disposigdes psicolégicas? Po- deriamos facilmente alongar a lista das interpretagdes possiveis desta pergunta demasiado vaga, que informa muito pouco acerca das intengdes precisas do seu autor, se é que estas 0 silo. - Convira, portanto, formular uma pergunta precisa cujo sentido nao se preste a confusGes, Seré muitas vezes indispensdvel definir claramente os termos da pergunta de partida, mas € preciso pri- meiro esforgar-se por ser o mais limpido possivel na formulacio da propria pergunta. Existe um meio muito simples de se assegurar de que uma pergunta é bastante precisa. Consiste em formulé-la diante de um Pequeno grupo de pessoas, evitando comenté-la ou expor o seu sentido, Cada pessoa do grupo é depois convidada a explicar como compreendeu a pergunta. A pergunta ser precisa se as interpreta- gOes convergirem e¢ corresponderem 4 intengéio do seu autor. Ao proceder a este pequeno teste em relagio a varias perguntas diferentes, depressa observar que uma pergunta pode ser precisa e compreendida da mesma forma por todos sem estar por isso limitada a um problema insignificante ou muito marginal, Consi- deremos a seguinte pergunta: «Quais so as causas da diminuigaio dos empregos na indistria vali! no decurso dos anos 802» Esta pergunta € precisa no sentido de que cada um a compreenderd da mesma forma, mas cobre, no entanto, um campo de andlise muito vasto-(o que, como veremos mais a frente, colocara outros proble- mas). Uma pergunta precisa nao é, assim, o contrdrio de uma pergunta ampla ou muito aberta, mas sim de uma pergunta vaga ou impre- cisa. Nao encerra imediafamente o trabalho numa perspectiva restritiva e sem possibilidades de generalizagio. Permite-nos sim- plesmente saber aonde nos dirigimos ¢ comunica-lo aos outros. Resumindo, para poder ser tratada, uma boa pergunta de partida tera de ser precisa. Pergunta 2 Em que medida o aumento das perdas de empregos no sector da construgao explica a manutengao de grandes projectos de trabalhos publicos, destinados nfo sé a manter este sector, mas também a diminuir os riscos de conflitos sociais inerentes a esta situagiio? Comentério Esta pergunta é demasiado longa e desordenada. Contém supo- sig6es e desdobra-se no fim, de tal forma que ¢ dificil perceber bem 0 que se procura compreender prioritariamente. E preferivel formu- lar a pergunta de partida de uma forma univoca e concisa para que possa ser compreendida sem dificuldade ¢ ajudar o seu autor a perceber claramente o objectivo que perseguc. Resumindo, para poder ser tratada, uma boa pergunta de partida teri de ser univoca e tio concisa quanto possivel. "Da Velénia, regio francéfona da Belgica, (N. do T,) 2.2. AS QUALIDADES DE EXEQUIBILIDADE As qualidades de exequibilidade estiio essencialmente ligadas ao cardcter realista ou irrealista do trabalho que a pergunta deixa entrever. Pergunta 3 Os dirigentes empresariais dos diferentes pases da Comunidade Europeia tém uma percepgiio idéntica da concorréncia econdmica dos Estados Unidos ¢ do Japao? Comentévio Se puder dedicar pelo menos dois anos inteiros a esta investi- gagao, se dispuser de um orgamento de varios milhdes e de colabo- radores competentes, eficazes e poliglotas, terd, sem divida, algu- mas hipéteses de realizar este tipo de projecto ¢ de obter resultados suficientemente pormenorizados para terem alguma utilidade. Se nao, é preferivel restringir as suas ambigdes, Ao formular uma pergunta de partida, um investigador deve assegurar-se de que os seus conhecimentos, mas também os seus Tecursos em tempo, dinheiro e meios logisticos, Ihe permitirao obter elementos de resposta validos. O que é concebivel para um centro de investigacfo bem equipado e para investigadores com experiéncia néo o & forgosamente para quem nao dispde de recur- sos compardveis. Os investigadores principiantes, mas por vezes também os pro- fissionais, subestimam quase sempre as restrigGes materiais, parti- cularmente as de tempo, que os seus projectos de investigagao implicam. Realizar as iniciativas prévias a um inquérito ou a entre- vistas, constituir uma amostra, decidir as pessoas-chave que podem dar apoio, organizar reunides, encontrar documentos uteis, etc., podem devorar a partida uma grande parte do tempo e dos meios consagrados a investigacao. Em consequéncia, uma boa parte das informag6es recolhidas & subexplorada e a investigagéio termina num sprint angustiante, durante o qual nos expomos a erros e negligéncias, Resumindo, para poder ser tratada, uma boa pergunta de partida deve ser realista, isto 6, adequada aos recursos pessoais, materiais ¢ técnicos, em cuja necessidade podemos imediatamente pensar & com que podemos razoavelmente contar. 23. AS QUALIDADES DE PERTINENCIA ‘As qualidades de pertinéncia dizem respeito ao registo (expli- cativo, normativo, preditivo...) em que se enquadra a pergunta de partida. Procedamos, também aqui, ao exame critico de exemplos de perguntas semelhantes as que encontramos frequentemente no ini- cio de trabalhos de estudantes. Pergunta 4 A forma como 0 fisco esté organizado no nosso pats € social- mente justa? Comentério Esta pergunta nao tem, evidentemente, como objectivo analisar o funcionamento do sistema fiscal ou o impacto da mancira como ele é concebido ou levado a cabo, mas sim julg4-lo no plano moral, © que constitui um procedimento completamente diferente, que nao diz respeito as ciéncias sociais. A confusio entre a anilise ¢ © juizo de valor é muito usual ¢ nem sempre é facil de detectar. De uraa maneira geral, podemos' dizer que uma pergunta é moralizadora quando a resposta que lhe damos s6 tem sentido em relagio ao sistema de valores de quem a formula. Assim, a res- posta seré radicalmente diferente consoante a pessoa que responde ache que a justiga consiste em fazer cada um pagar uma quota- -parte igual 4 dos outros, sejam quais forem os seus rendimentos (como é 0 caso dos impostos indirectos), uma quota-parte propor- cional aos seus rendimentos ou uma quota-parte proporcional- mente mais importante A medida que forem aumentando os seus rendimentos (a taxa progressiva aplicada nos impostos directos). Esta tiltima formula, que alguns considerardo justa por contribuir para atenuar as desigualdades econémicas, seré julgada absoluta- mente injusta por quem considere que, assim, 0 fisco Ihe extorque bastante mais do que aos outros do fruto do seu trabalho ou da sua habilidade. Os lagos entre a investigagio social ¢ o julgamento moral sao, evidentemente, mais estreitos e mais complexos do que este sim- ples exemplo deixa supor, mas nao é este o lugar para os aprofundar. O facto de um projecto responder a uma preocupagio de carcter ético e politico (como contribuir para resolver problemas sociais, para instaurar mais justica e menos desigualdades, para lutar contra a marginalidade ou contra a violéncia, para aumentar a motivagdo do pessoal de uma empresa, para ajudar a conceber um plano de renovagao urbana...) nao é, em si, um problema. Longe de dever ser evitada, esta preacupago de pertinéncia prética com uma intengao ética deve ser encorajada, sob pena de produzir investiga- bes desprovidas de sentido e que constituiciam tio-somente «exer cicios de estilo» mais ou menos brilhantes, Tal naio impede a inves- tigago de ser conduzida com rigor, pelo menos desde que o investigador saiba clarificar as opgdes subjacentes ¢ controlar as implicagdes possiveis. Esse problema ndo 6, alias, proprio das ciéncias sociais, que, habitualmente, tém o mérito de o colocarem e de o enfrentarem mais explicitamente do que outras disciplinas. ‘Acresce que uma investigagio realizada com rigor é cuja problems- tica é construida com inventividade (v. quarta etapa) evidencia os desafios éticos e normativos dos fendmenos estudados, de maneira anéloga aos trabalhos dos bidlogos, que podem revelar desafios eco- I6gicos. Deste modo, a investigagao social cumpre o seu verdladeiro papel ¢ o conhecimento por ela produzido pode inscrever-se no praces- so mais englobante de um verdadeiro pensamento. Enfim, tal como foi bem demonstrado por Marx (L’Idéologie allemande), Durkheim (Les formes élémentaires de la vie religieuse) ou Weber (L'Ethique protestante et I’ esprit du capitalisme), os sistemas de valores ¢ de normas fazem parte dos objectos privilegiados das ciéncias sociais, porquanto a vida colec- tiva é incompreensivel fora deles. Resumindo, se o investigador deve esforgar-se por pensar nos lacos entre o conhecimento, 0 ético ¢ o politico, também deve evitar as confusdes entre os registos e, durante o trabalho de inves- tigagiio, abordar o real em termos de anilise, ¢ nado de julgamento moral. Trata-se, alias, de uma condigao da sua credibilidade @, por conseguinte, em iltima andlise, do impacto ético ¢ politico dos seus trabalhos. | Tal nao é forgosamente simples, pois, tanto na vida corrente como em determinadas aulas do ensino secundario, esses registos siio regularmente confundidos. Considera-se, por vezes, de bom tom terminar os trabalhos ou as dissertagdes com um pequeno toque moralizador, destinado tanto a edificag&o ética dos lcitores como a convencé-los de que se tem bom coragao. Também aqui a ruptura com os preconceitos e os valores pessoais é fundamental. Resumindo, uma boa pergunta de partida nao devera ser mora- lizadora. Nao procurard julgar, mas sim compreender. Pergunta 5 Serd que os patrdes exploram os trabalhadores? Comentirio Esta pergunta é, na realidade, uma «falsa perguntan, ou, por outras palavras, uma afirmagiio disfargada de pergunta, E evidente que, na mente de quem a fez, a resposta 6, @ priori, «sim» (ou «nao»). Serd, alids, sempre possivel responder-lhe afirmativamente, como também & possivel «provam que, inversamente, os trabalhadores exploram os. patrdes. Basta para isso seleccionar cuidadosamente os critérios e os dados adequados e apresenté-los da forma que convém. As mas perguntas de partida deste tipo sfio abundantes. A que se segue 6 um exemplo suplementar, ainda que menos nitido: «Ser a fraude fiscal uma das causas do défice orgamental do Estado?» Também aqui é facil imaginar que o autor tem, a partida, uma ideia bastante precisa da resposta que, custe o que custar, tenciona dar a esta pergunta, a O exame de uma pergunta de partida deve, portanto, incluir uma reflexfo sobre a motivagio ¢ as intengées do autor, ainda que n&io possam ser detectadas no enunciado da pergunta, como € 0 caso do nosso exemplo, Convira, nomeadameate, definir se 0 seu objectivo 6 de conhecimento ou, pelo contrario, de demonstragdo. O esforgo a despender para evitar formulagées tendenciosas da Ppergunta de partida, tal como os debates que poder ter sobre este assunto, podem contribuir de um modo eficaz para um recuo das ideias preconcebidas. ‘Uma boa pergunta de partida sera, portanto, uma «verdadeira pergunta», ou seja, uma pergunta «aberta», o que significa que devem poder ser encaradas a priori varias respostas diferentes ¢ que nfo se tem a certeza de uma resposta preconcebida. Pergunta 6 Que mudaneas afectario a organizacSo do ensino nos proéximos vinte anos? Comentirio O autor de uma pergunta como esta tem, na tealidade, como Projecto proceder a um conjunto de previsdes sobre a evolugio de um sector da vida social. Alimenta, assim, as mais ingénuas ilusdes sobre 0 alcance de um trabalho de investigagtio social. Um astré- homo pode prever com muita antecedéncia a passagem de um cometa nas proximidades do sistema solar, porque a sua trajectéria responde a leis estiveis, as quais no pode furtar-se por si proprio. Isto nao acontece no que respeita as actividades humanas, cujas orientagdes nunca podem ser previstas com certeza. Podemos, sem ditvida, afirmar, sem grande risco de nos enga- narmos, que as novas tecnologias ocuparao um lugar cada vez maior na organizagfio das escolas e no contetdo dos programas, mas somos incapazes de formular previsdes seguras que transcen- dam este tipo de banalidades. Alguns cientistas particularmente clarividentes ¢ informados conseguem antecipar os acontecimentos e pressagiar 0 sentido pro- vavel de transformagées préximas melhor do que o faria o comum dos mortais. Mas estes pressentimentos raramente se teferem a acontecimentos precisos ¢ apenas sfo concebidos como eventua- lidades. Basciam-se no seu profundo conhecimento da sociedade, tal como hoje funciona, e nfio em prognésticos fantasistas que nunca se verificam, a nfio ser por acaso. | oo Significard isto que a investigagiio em ciéncias sociais nada tem a dizer quanto ao futuro? Certamente que nio, mas 0 que ela tem a dizer depende de outro registo. Com efcito, uma investigagao bem conduzida permite captar os constrangimentos ¢ as l6gicas que determinam uma situagdo ou um problema, assim como dis- cernir a margem de manobra dos «actores sociais», e evidencia os. desafios das suas decisdes ¢ relagées sociais. E nisso que ela interpela directamente o futuro ¢ adquire uma dimensdo prospec- tiva, embora no se trate de previstio no sentido estrito do termo, Essa dimens%o prospectiva enraiza-se no exame rigoroso do que existe e funciona aqui e agora e, em particular, das tendéncias perceptiveis quando se observa o presente a luz do passado. Fora desta perspectiva, as previsdes feitas com ligeireza atriscam-se fortemente a ter pouco interesse ¢ consisténcia. Deixam os seus autores desarmados perante interlocutores que, por seu lado, no sonham mas conhecem os seus dossiers. Resumindo, uma boa pergunta de partida abordaré o estudo do que existe ou existiu, e nfo o daquilo que ainda nfio existe. Nio estudaré a mudanga sem se apoiar no exame do funcionamento. Nao visa prever © futuro, mas captar um campo de constrangimentos ¢ de possibilida- des, bem como os desafios que esse campo define. Pergunta 7 Os jovens sto mais afectados pelo desemprego do que os adultos? Comentério Em primeiro lugar, podemos temer que esta pergunta | exija apenas uma resposta puramente descritiva, que teria como tnico objectivo conhecer melhor os dados de uma situagdo. Se a intengao de quem a formula se limita, com efeito, a juntar e a exibir os dados — oficiais ou produzidos pelo proprio, pouco importa neste caso — , sem procu- rar compreender melhor, a partir deles, o fenémeno do desemprego e as logicas da sua distribuigdo nas diferentes categorias da populagio, teremos de reconhecer que é «um pouco curta>. Em contrapattida, numerosas questdes que se apresentam, a primeira visia, como descritivas nem por isso deixam de implicar uma finalidade de compreensdo dos fenémenos sociais estudados, Descrever as relagdes de poder numa organizagao, ou situagdes socialmente problemiticas que mostrem precisamente em que so «problemiticas», ou a evolugdo das condigdes de vida de uma parte da populagdo, ou os modos de ocupagao de um espaco pii- blico ¢ as actividades nele desenvolvidas... implica uma reflexio acerca do que 6 essencial salientar, uma selecgaio das informagies a recolher, uma classificagiio dessas informagdes com 0 abjectivo de descobrir linhas de forga e ensinamentos pertinentes. A despeito das aparéncias, trata-se de algo diferente de uma «simples descrigio», ou seja, no minimo, de uma «descrigdo construida» que tem o seu lugar na investigagdo social e que requer a concepgio c a realizagdo de um verdadeiro dispositive conceptual e metodolégico. Uma «descri¢ao» assim concebida pode constituir uma excelente investigac&o em ciéncias sociais e uma boa maneira de a iniciar, Aliés, muitas investigagdes conhecidas apresentam-se, de certo modo, como descrigées construidas a partir de critérios que rompem com as categorias de pensamento geralmente admi das e que, por isso, conduzem a reconsiderar os fendmenos estu- dados sob um olhar novo. La distinction, critique social du jugement, de Pierre Bourdieu (Paris, Editions de Minuit, 1979), & um bom exemplo: a descrigiio de préticas e disposigdes culturais é realizada a partir do ponto de vista do habito e de um sistema de desvios entre as diferentes classes sociais. Estamos, porém, muito longe de uma simples inten¢do de agru- pamento nio critico de dados e de informagées existentes ou pro- duzidas pelo proprio. E desejavel que essa inteng&o de ultrapassar esse estédio transparega na pergunta de partida. Resumindo, uma boa pergunta de partida visaré um melhor conhecimento dos fenémenos estudados e r&o apenas a sua des- erigho. No fundo, estas boas perguntas de partida sfio, portanto, aque- Jas através das quais o investigador tenta destacar os processos sociais, econémicos, politicos ou culturais que permitem com- preender melhor os fenémenos e os acontecimentos observaveis e interpreté-los mais acertadamente. Estas perguntas requerem res- postas em termos de estratégias, de modos de funcionamento, de telagdes ¢ de conflitos sociais, de relagdes de poder, de invengio, de difusio ou de integragfo cultural, para citar apenas alguns exemplos classicos de pontos de vista, entre muitos outros perti- nentes para a andlise em ciéncias sociais, ¢ aos quais teremos ocasiaio de voltar. Poderiamos ainda discutir muitos outros casos exemplares e salientar outros defeitos e qualidades, mas o que foi dito até aqui & mais do que suficiente para fazer perceber claramente os trés niveis de exigéncia que uma boa pergunta de partida deve respeitar: primeiro, exigéncias de clareza; segundo, exigéncias de exequibi i- dade; terceiro, exigéncias de pertinéncia, de modo a servir de primeiro fio condutor a um trabalho do dominio da investigagao em ciéncias sociais. RESUMO DA PRIMEIRA ETAPA APERGUNIA DE PARTIDA A melhor forma de comegar um trabalho de investigagio em cién- cias sociais consiste em esforgar-se por cnunciar 0 projecto sob a forma de uma pergunta de partida, Com esta pergunta, o investigador tenta exprimir o mais exacfamente possivel aquilo que procura saber, elucidar, compreender melhor. A pergunta de partida serviré de primei- ro fio condutor da investigacao. . Para desempenhar correctamente a sua fungao, a pergunta de partida deve apresentar quatidades de clareza, de exequibilidade ¢ de pettinéncia: + As qualidades de clareza: — ser precisa; —~ ser concisa e unfvoca; + As qualidades de exequibilidade: — ser realista; + As qualidades de pertinéncia: — ser uma verdadeira pergunta; — abordar o estudo do que existe, basear 0 estudo da mudanga no do funcionamento; — ter uma intengdo de compreenso dos fenémenos estudados. TRABALHO DE APLICACAO N° 1 FORMULAGAQ DE UMA PERGUNTA DE PARTIDA Se vai iniciar um trabalho: de investigagiio social sozinho ou em grupo, ou se tenciona comegé-lo em breve, pode considerar este exer= cicio a primeira etapa desse trabalho. Mesmo no caso de o seu estudo ja estar iniciado, este exercicio pode ajuda-lo a enfocar melhor as suas preocupacdes. Para quem comega uma investigagiio seria muito imprudente cumprir atabalhoadamente esta etapa. Dedique-the uma hora, um dia ou uma semana de trabalho. Realize este exercicio sozinho ou em grupo, com a ajuda critica de colegas, amigos, professores ou formadores. VA tra- balhando a sua pergunta de partida até obter uma formulacio satisfatéria € correcta, Efectue este exercicio com todo o cuidado que merece. Despachar rapidamente esta etapa do trabalho seria o seu primeito erro, © 0 mais caro, pois nenhum trabalho pode ser bem sucedido se for incapaz de decidir 4 partida ¢ com clareza, mesmo que provisoria- mente, aquilo que deseja conhecer melhor. O resultado deste precioso exercicio ndo ocupard mais:de duas a trés linhas numa folha de papel, mas constituird o verdadeiro ponto de partida do seu trabalho. Para levar este a bom termo pode proceder do seguinte modo: — Formule um projecto de pergunta de partida;. ~~ Teste esta pergunta de partida junto das pessoas que o rodeiam, de modo a assogurar-se de que ela é clara e precisa e, portanto, compreendida da mesma forma por todas; — Verifique se ela possui igualmente as outras qualidades acima recordadas; — Reformule-a, caso ndo seja satisfatbria, e recomece todo o pro- cesso. 3. E SE AINDA TIVER RETICENCIAS... Talvez ainda tenha reticéncias, Conhecemos as mais frequentes, * O meu projecto ainda ndo esté suficientemente afinado para proceder a este exercicio, Neste caso, ele convém-Ihe perfeitamente, porque tem precisa- mente como objectivo ajuda-lo —e obriga-lo— a tomar o seu projecto mais preciso. + A problemética ainda 86 esté no inicio. Apenas poderia formular uma pergunta banal. Isto nao tem importancia porque a pergunta nao é definitiva. Por outro lado, que pretende «problematizar», se é incapaz de formular claramente 0 seu objective de partida? Pelo contrario, este exerci- cio ajuda-lo-4 a organizar melhor as suas reflexdes, que de mo- mento se dispersam em demasiadas direcgdes diferentes. + Uma formulagéo tao lacénica do meu projecto de trabalho ndio passaria de uma grosseira redugdo das minhas interrogagdes e das minhas reflexdes tedricas. Sem diwvida, mas as suas reflexes no se perderiio por isso. Trio reaparecer mais tarde e sergio exploradas mais depressa do que pensa. O que é necessfrio neste momento é uma primeira chave que permita canalizar 0 seu trabalho e evite dispersar as suas preciosas reflexdes. + NGo me interessa apenas uma coisa, Desejo abordar varias facetas do meu objecto de estudo. Se é essa a sua intengfo, ela & respeitdvel, mas jé est a pensar em «problematica». Passou por cima da pergunta de partida, O exercicio de tentar precisar o que poderia constituir a pergunta central do seu trabalho vai fazer-lhe muito bem, porque qualquer investigagao coerente possui uma pergunta que Ihe assegura unidade. Se insistimos na pergunta de partida, € porque a evitamos com demasiada frequéncia, seja porque parece evidente (implicita- mente!) ao investigador, seja porque este pensa que vera mais claro A medida que avanga. E um erro. Ao desempenhar as fungdes de primeiro fio condutor, a pergunta de partida deve ajudé-lo a progre- dir nas suas leituras e nas suas entrevistas exploratérias. Quanto mais preciso for este «guia», melhor progrediré o investigador. Além disso, 6 «moldando» a sua pergunta de partida que o inves- tigador inicia a ruptura com os preconceitos e com a ilusio da transparéncia, Finalmente, existe uma tiltima razdo decisiva para efectuar cuidadosamente este exercicio: as hipéteses de trabalho, que constituem os eixos centrais de uma investigagéo, apresentam- -se como proposig&es que respondem a pergunta de partida. SEGUNDA ETAPA A EXPLORACAO AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO Elapa 1 — A pergunta de partida Etapa 2— A oxploragio Ag'leituras: [—>|As entre exploratorias Etapa 3— A problemética Etapa 4— A construgao do modelo de anélise Etapa 5 —- A observagio j Btapa 6 — A andlise das informagies Elapa 7 — As concluses OBJECTIVOS Ao longo do capitulo anterior aprendemos a formular um pro- jecto de investigagio sob a forma de uma pergunta de partida apropriada. Até nova ordem, esta constitui 0 fio condtitor do traba- lho. O problema é agora o de saber como proceder para conseguir uma certa qualidade de informagio; como explorar o terreno para conceber uma problemitica de investigagao. B este o objecto deste capitulo, A explorag&o comporta as operagées de leitura, as entre- vistas exploratérias e alguns métodos de exploragéio complementa- res, As operagdes de leitura visam essencialmente assegurar a qua- Jidade da problematizagio, ao passo que as entrevistas e os métodos complementares ajudam especialmente o investigador a ter um contacto com a realidade vivida pelos actores sociais. Tremos aqui esiudar métodos de trabalho precisos e directa- mente aplicaveis por todos, qualquer que seja o tipo de trabalho em que se empenhem. Estes métodos so concebidos para ajudarem 0 investigador a adoptar uma abordagem penetrante do seu objecto de estudo e, assim, encontrar ideias e pistas de reflexao esclare- cedoras. 1. A LEITURA O que é valido para a sociologia deveria sé-lo para qualquer trabalho intelectual: ultrapassar as interpretagdes estabelecidas, que contribuem para reproduzir a ordem das coisas, a fim de fazer aparecer novas significagdes dos fenémenos estudados, mais esclarecedoras ¢ mais perspicazes do que as precedentes. E sobre este ponto que querfamos comegar por insistir. Esta capacidade de ultrapassagem nao cai do céu. Depende, em certa medida, da formagao teérica do investigador e, de uma ma- neira mais ampla, daquilo a que poderiamos chamar a sua cultura. intelectual, seja cla principalmente sociolégica, econdémica, poli- tica, histérica ou outra. Um longo convivio com o pensamento sociolégico antigo e actual, por exemplo, contribui consideravel- mente para alargar o campo das ideias ¢ ultrapassar as intetpreta- des jd gastas, Predispde a colocar boas questées, a adivinhar 0 que nao é evidente e a produzir ideias inconcebiveis para um investi- gador que se contente com os magros conhecimentos teéricos que adquitiu no passado. Muitos pensadores siio investigadores mediocres, mas em cién- cias sociais nao existe um Gnico investigador que nfo seja também um pensador. Desiludam-se, pois, os que créem poderem aprender a fazer investigac&o social contentando-se com o estudo das técni- cas de investigagéo: tera também de explorar as teorias, de ler e reler as investigagdes exemplares (sera proposta uma lista no segui- mento deste livro) e de adquirir 0 habito de reflectir antes de se precipitarem sobre o terreno ou sobre os dados, ainda que seja com as técnicas de anélise mais sofisticadas. Quando um investigador inicia um trabalho, & pouco provavel que 0 assunto tratado nunca tenha sido abordado por outra pessoa, pelo menos em parte ou de forma indirecta, Tem-se frequentemente a impressao de que nfo hé «nada sobre o assunto», mas esta opi- nido resulta, em regra, de uma md informagio. Todo o trabalho de investigagaio se inscreve num continuum e pode ser situado dentro de, ou em relagdo a, cotrentes de pensamento que o precedem ¢ influenciam, F, portanto, normal que um investigador tome conhe- cimento dos trabalhos anteriores que se debrugam sobre objectos comparaveis ¢ que explicite o que aproxima ou distingue o seu trabalho destas correntes de pensamento. E importante insistir desde o inicio na exigéncia de situar claramente o trabalho em relagio a quadros conceptuais reconhecidos. Esta exigéncia tem um nome que exprime bem aquilo que deve exprimir; a validade externa. Falaremos novamente disto no ambito da etapa intitulada «Problemética», Ainda que @ sua preocupagao nao seja fazer investigacio cien- (fica em sentido estrito, mas sim apresentar um estudo honesto sobre uma questo particular, continua a ser indispensdvel tomar conhecimento de um minimo de trabalhos de teferéncia sobre o mesmo tema ou, de modo mais geral, sobre problematicas que Ihe esto ligadas, Seria ao mesmo tempo absurdo € presungoso acredi- tar que podemos pura e simplesmente passar sem esses contributos, como se estivéssemos em condigées de reinventar tudo por nés préprios. Na maior parte dos casos, porém, o estudante que inicia uma dissertaglio de fim de curso, 0 trabalhadlor que deseja realizar um trabalho de dimensio modesta ou o investigador @ quem 6 pedida uma anflise répida ndo dispdem do tempo necessétio para abordarem a leitura de dezenas de obras diferentes. Além disso, como ja vimos, a bulimia livresca é uma forma muito mé de iniciar uma investigagao. Como proceder nestas situagdes? © ‘Tratar-se-A, concretizando, de seleccionar muito cuidadosamen- te um pequeno némero de leituras e de se organizar paca delas retirar 0 maximo proveito, o que implica um método de trabalho correctamente claborado. E, portanto, um método de organizacio, de realizagio e de tatamento das leituras que comegaremos por estudar, Este € indicado para qualquer tipo de trabalho, seja qual for o seu nivel. J4 foi experimentado com sucesso em miiltiplas ocasides por dezenas de estudantes que nele confiaram. Inscreve- “Se na nossa politica geral do menor esforgo, que visa obter os melhores resultados com 0 menor custo em meios de todo o tipo, 4 comecar pelo nosso precioso tempo. 1.1. A ESCOLHA E A ORGANIZACAO DAS LEITURAS a) Os critérios de escotha A escolha das leituras deve ser realizada com muito cuidado. Qualquer que seja 0 tipo e a amplitude do trabalho, um investigador dispoe sempre de um tempo de leitura limitado, Hé quem $6 possa consagrar-Ihe algumas dezenas de horas, outros varias centenas, mas, para uns como para outros, este tempo sera sempre de certa forma demasiado curto em relagao as suas ambigdes. Niio ha entaéo nada mais desesperante do que verificar, aps varias semanas de Jeitura, que nfo se esté muito mais avangado do que no inicio. O objective é, portanto, fazer 0 ponto da situagio acerca dos co- nhecimentos que interessam para a pergunta de partida, exploran- do ao maximo cada minuto de leitura. Como proceder? Que critérios reter? SO podemos aqui propor, bem entendido, principios e critérios gerais, que cada um devera adaptar com flexibilidade e pertinéncia. Primeiro principio: comecat pela pergunta de partida. A melhor forma de nao se perder na escolha das leituras é, com efeito, ter uma boa pergunta de partida. Todo o trabalho deve ter um fio condutor e, até nova ordem, € a pergunta de partida que desem- penha esta fungdo. Seré, sem ddvida, levado a modificd-Ia no fim do trabaiho exploratério e tentaré formulé-la de uma maneira mais judiciosa, mas, por enquanto, é dela que deve partir. Segundo principio: evitar sobrecarregar 0 programa, seleccio- nando as leituras. Néo é necessario — nem, alias, na maior parte das vezes, possivel —- ler tudo sobre um assunto, pois, em certa medida, as obras e os artigos de referéncia repetem-se mutuamente ¢ um leitor assiduo depressa se d4 conta destas repetiges. Assim, num primeiro momento, evitar-se-4 o mais possivel comecar logo a ler calhamagos enormes ¢ indigestos antes de se ter a certeza de nfio poder passar sem eles. Orientar-nos-emos mais para as obras que apresentam uma reflexdo de sintese, ou para artigos de algumas dezenas de paginas, £ preferivel, com efeito, ler de modo aprofun- dado e critico alguns textos bem escolhidos a jer superficialmente milhares de paginas. Terceiro principio: procurar, na medida do possivel, docurnen- tos cujos autores nfio se limitem a apresentar dados, mas incluam também elementos de andlise ¢ de interpretacao. Siio textos que levam a reflectir e que nao se apresentam simplesmente como insipidas descrigdes pretensamente objectivas do fenémeno estu- dado. Abordaremos muito em breve a andlise de um texto de Emile ~~, 4 7 ee Varemos gue este texto inclui dados que, neste caso, até siio dados estatisticos. No entanto, no sao apresentados isoladamente, A andlise de Durkheim da-lhes sentido e permite ao leitor apreciar melhor o seu significado. Ainda que estudemos um problema que, @ priori, exigira a ulilizagio de abundantes dados estatisticos, tal como as causas do aumento do desemprego ou a evolugao demografica de uma regifio, &, mesmo assim, preferivel procurar textos de andlise, em vez de listas de némeros, que nunca querem dizer grande coisa por si mesmos. A maior parte dos textos que incitam A reflexao contém dados suficientes, numéricos ou nilo, para nos permitirem tomar consciéncia da amplitude, da distribuigio ou da evolugao do fenémeno a que se referem. Mas, além disso, permitem «ler» inteligentemente estes dados ¢ estimulam a reflexdo critica e a imaginagao do investigador. No estado presente do trabalho, isto chega perfeitamente, Se for itil uma grande quantidade de dados, havera sempre oportunidade de os recolher mais tarde, quando o investigador tiver delimitado pistas mais precisas. Quarto principio: ter 0 cuidado de recolher textos que apresen- tem abordagens diversificadas do fenémeno estudado. Nao s6 nfo serve de nada ler dez vezes a mesma coisa, como, além disso, a preocupagdo de abordar o objecto de estudo de um ponto de vista esclarecedor implica que possam confrontar-se perspectivas dife- rentes, Esta preocupagao deve incluir, pelo menos nas investiga- Ges de um certo nivel, a consideragao de textos m: is tedricos que, nao se debrugando necessariamente, de forma directa, sobre 0 fenémeno estudado, apresentem modelos de anilise susceptiveis de inspirarem hipéteses particularmente interessantes. (Voltaremos A frente aos modelos de anélise € as hip6teses.) Quinto principio: oferecer-se, a intervalos regulares, periodos de tempo consagrados A reflexio pessoal ¢ as trocas de pontos de vista com colegas ou com pessoas experientes. Um espirito atu- thado nunca € criativo. As sugestdes anteriores dizem principalmente respeito as primeiras fases do trabalho de leitura. A medida que for avangando, impor-se-&o progressivamente por si mesmos critérios mais precisos e especificos, na condigio, precisamente, de que a leitura seja entrecortada de perio- dos de reflexfo e, se possivel, de debate ¢ discussées. Uma forma de se organizar consiste em Jer «levas» sucessivas de dois ou trés textos (obras ou artigos) de cada vez. Apés cada leva, piira-se de ler durante algum tempo para reflectir, tomar notas e falar com pessoas conhecidas que se julga poderem ajudar-nos a progredir. E s6 apés esta pausa nas leituras que se decidird 0 contetido exacto da leva seguinte, estando as orientagdes gerais que se tinham fixado no inicio sempre sujeitas a correcges. Decidir de uma s6 vez o contetido preciso de um programa de leitura importante é geralmente um erro: a amplitude do trabalho depressa desencoraja; a rigidez do programa presta-se mal a sua fungiio exploratéria € os ‘eventuais erros iniciais de orientagao se- riam mais dificeis de corrigir. Por outro Jado, este dispositive por Jevas sucessivas adequa-se tanto aos trabalhos modestos como as investigagdes de grande envergadura: os primeiros portio fim ao trabalho de leitura preparatéria apés duas ou trés levas; as segun- das, apés uma dezena ou mais. Bm suma, respeite os seguintes critérios de escolha: _— Ligagées com a pergunta de partida; —— Dimensio razofvel do programa de leitura; _— Blementos de anilise ¢ de interpretacao; — Abordagens diversificadas. Leia por «salvas» sucessivas, entrecortadas por pausas consa- gradas a reflexdo pessoal ¢ as trocas de pontos de vista, b) Onde encontrar estes textos? ‘Antes de se precipitar para as bibliotecas ¢ necessétio saber 0 que se procura. As bibliotecas de ciéncias sociais dignas deste nome possuem milhares de obras. Hi intitil esperar descobrir por acaso, a0 sabor de um passeio por entre as estantes ou de uma olhadela pelos ficheiros, o livro ideal que responde exactamente dis nossas expecta tivas. Também aqui é preciso um método de trabalho, cuja primeira etapa consiste em precisar claramente 0 tipo de textos procurado, Neste dominic, como em outros, a prtecipitago pode custar muito caro. Por ter querido poupar aigumas horas de reflexdo, ha muita ae ee eas danoie varios dias, até varias semanas de trabalho. Nao abordaremos aqui o trabalho de pesquisa bibliografica pro- priamente dito, visto que isso nos levaria demasiado longe e nfio fariamos mais do que repetir o que qualquer um pode ler em varias obras especializadas neste dominio. Fis, no entanto, algumas ideias que podem ajudar a encontrar facilmente os textos adequados sem. gastar demasiado tempo: + Pega conselhos a especialistas que conhegam bem o seu campo de pesquisa: investigadores, docentes, responsiveis de organizagoes, etc, Antes de se thes dirigir, prepare com precisio o seu pedido de informagao, de forma que o com- preendam imediatamente e possam recomendar-lhe 0 que, segundo eles, mais Ihe convém. Compare as sugestdes de uns e de outros e faga, finalmente, a sua escolha em fungao dos critérios que tiver definid + Nao negligencie os artigos de revistas, os dossiers de sintese ¢ as entrevistas de especialistas publicadas na imprensa para um grande piblico insiruido, as publicagées de organismos especializados ¢ muitos outros documentos que, nao sendo relatérios cientificos em sentido estrito, nfio deixam por isso de conter elementos de reflexdo e informagio que podem ser preciosos para si; + As revistas especializadas no seu campo de inyestigagaio sao particularmente interessantes, por duas razoes. Primeiro, porque © seu conteido traz, os conhecimentos mais recentes na matéria ou um olbar critico sobre os conhecimentos ante- riormente adquiridos. Num e noutro caso, os artigos fazem. frequentemente o balango da questao que tratam e, assim, citam publicagdes a ter em consideragao. A segunda razéio 6 que as revistas publicam comentirios bibliograficos sobre as obras mais recentes, gragas aos quais pederd fazer uma escolha acertada de leituras; + As bibliotecas cientificas comportam repertérios especiali- zados, como a Bibliographie internationale des sciences sociales (Londres e Nova Iorque, Routledge) e o Bulletin signalétique do Centro de Documentagao do CNRS (Paris). Nestes repert6rios encontra-se uma grande quantidade de publicagées cientificas (obras e/ou artigos), organizada se- gundo um indice tematico ¢ muitas vezes resumida em pou- cas linhas; As obras comportam sempre uma bibliografia final que re- toma os textos a que os autores se referem. Como nela s6 se encontram forgosamente referéncias anteriores & propria obra, essa fonte s6 terf interesse se a obra for recente. Se consultar estas diferentes fontes, cobrir4 rapidamente um campo de publicages bastante vasto e poderd conside- rar que abarcou o problema a partir do momento em que volte sistematicamente a referéncias j4 conhecidas; No se assuste demasiado depressa com a espessura de al- guns livros. Nem sempre 6 indispensdvel 1é-los integralmen- te. Alias, muitos sio obras colectivas que retomam os contributes de varios autores diferentes sobre um mesmo tema, Outros siio apenas meras miscelineas de textos relati- vamente diferentes que o autor reuniu para fazer uma obra 4 qual se empenha em dar uma apar€ncia de unidade. Con- sulte os indices e os sumifrios, quando existam. Na sua auséncia, leia as primeiras ¢ as tltimas linhas de cada capi- tulo para ver de que tratam as obras. E, mais uma vez, se tiver dividas, nada o impede de pedir conselhos; ‘Tenha ainda em conta que as bibliotecas se modernizam e oferecem aos seus utilizadores técnicas de pesquisa biblio- grafica cada vez mais eficazes: classificagéo por palavras- -chave (que, no melhor dos casos, podem tomar-se duas a duas e, portanto, cruzar-se), mas também catalogagaio sistemé- tica do contetido das principais revistas, Jistas informatizadas de bibliografias especializadas, catalogos em CD-Rom, etc. Também neste caso, antes de procurar as obras, 6 muitas vezes rendivel consagrar algumas horas a informar-se correctamente acerca do modo de utilizagdo de uma biblioteca e dos servigos que oferece. Muitas pessoas que quiseram queimar esta etapa erraram horas a fio, sem encontrarem aquilo que procuravam, em bibliotecas perfeitamente equipadas para satisfazerem rapi- damente os utilizadores informados. . A regra € sempre a mesma: antes de se langar num tra- batho, ganha-se muito em questionar-se o que dele se espera exactamente e qual a melhor forma de proceder. 1.2, COMO LER? O principal objectivo da leitura é retirar dela ideias para o nosso proprio trabalho. Isto implica que o leitor seja capaz de fazer surgir essas ideias, de as compreender em profundidade e de as articular entre si de forma coerente. Com a expetiéncia, isto nao levanta geral- mente muitos problemas. Mas este exercicio pode colocar grandes dificuldades Aqueles cuja formagio técnica seja fraca e que nfo este- jam habituados ao vocabulério (hi quem diga 4 giria) das ciéncias sociais. E a eles que so destinadas as paginas que se seguem. Ler um texto é uma coisa, compreendé-lo e reter 0 essencial é outra. Saber encurtar um texto nfo € um dom do céu, mas uma capacidade que s6 se adquire com o exercicio. Para ser totalmente rendivel, esta aprendizagem precisa de ser sustentada por um mé- todo de Jeitura, Infelizmente, poucas vezes é este o caso. Os nedfi- tos sdio geralmente abandonados a si mesmos e léem muitas vezes de qualquer maneira, isto 6, com prejuizo. O resultado é invariavel- mente © desfnimo, acompanhado de um sentimento de incapacidade. Com a finalidade de progredir na aprendizagem da leitura e dela retirar 0 maximo proveito, propomos que seja adoptado, de inicio, um método de leitura muito rigoroso ¢€ preciso, mas que cada um podera depois tornar mais flexivel durante a sua formagiio © em fungio das suas exigéncias, Este método é composto por duas TEXTO DE DURKHEIM XTRACTOS®) etapas indissociaveis: 9 emprego de uma gretha de leitura (para ier €m profundidade e com ordem) e a redaceao de una resumo (para © Se dermos uma vista de olhos pelo mapa dos Suictdios europeus, destacar as ideias Principais que merecem ser retidas) Nolatemos imediatamente gue Nos paises puramente catdlicos, como a @) A grelha de leitura com at Prdissia, a Saxénin, a Dinamaren lal Cal6licos. Nao so apenas as relagdes entre as médias que confirmam & Tei; todos os tntimeros da primein coluna so superiores aos da Provtncies com 1” Saigo Imincria cabiiea | gor ming (renas ds 50%) [ae habinanes Provincias com | Saitaio Mais de 907% For enitiao eaéticos fae hatiiames Palatinado da Reno Beina Franconia... 157] Alo Palatinado 64 Francénia central Sudvia Alta Baviera ila Alte Franeénia Baixa Baviera 49 Média ® Contra semelhante unanimidade de factos concordantes € indtil inyocar, como o faz Mayr, 0 caso Gnico da Noruega ¢ da Suécia, que, apesar de protestantes, nao ultrapassam um ntimero médio de suicidios. Em primeiro lugar, tal como observamos no inicio deste capitulo, estas comparagées internacionais no so demonstrativas, a ndo ser que tenham por objecto um ntimero bastante elevado de paises, ¢ mesmo neste caso néio siio concludentes. Hi diferengas suficientemente grandes enire as populades da peninsula escandinava ¢ as da Europa central para podermos compreender que 0 protestantismo nao produz exactamente os mesmos efeitos numas e noutras. Mas, além disso, se, tomada isoladamente, a taxa de suicidios nio 6 muito considerfvel nestes dois paises, torna-se relativamente clevada se tivermos em conta © lugar modesto que ocupam entre os povos civilizados da Europa, Nao hé raziio para crermos que tenham alcangado um nivel intelectual superior ao da Tiélia, longe disso, e, no entanto, as pessous matam-se 16 duas a trés vezes mais (de 90 a 100 suicidios por milhfo de habi tantes, em vez de 40), Nao sera o protestantismo a causa deste agra- vamento relative? Assim, nao s6 0 facto nao infirma a lei que acaba de ser estabelecida sobre um téo grande nimero de observagdes, como tende antes a confirmé-la. @ No que diz respeito aos judeus, a sua tendéncia para o suicfdio & sempre menor do que a dos protestantes; de uma maneira muito geral, 6 também inferior, ainda que em menor proporgao, a dos cat6- licos. Contudo, acontece que esta tiltima relagio se inverte; 6 sobretudo em tempos mais recentes que se encontram estes casos de inversiio [...] Se pensarmos que, em todo o lado, os judeus so um niimero {nfimo que na maior parte das sociedades onde foram feitas as anteriores observagées os calélicos est4o em minoria, seremos tentados a ver neste facto a causa que explica a relativa raridade das mortes volun- tdrins nestes dois cultos. Com efcito, 6 perfeitamente concebivel que as confissdes menos numerosas, tendo de lutar contra a hostilidade das populagdes envolventes, sejam obrigadas, para se mantorem, a exercer sobre si mesinas um controle severo e a sujeitar-se a uma disciplina particularmente rigorosa. Para justificarem a tolerancia, sempre precd- ria, que Ihes é concedida sao obrigadas a uma maior moralidade. Para além destas consideragées, alguns factos parecem realmente implicar que este factor especffico tem alguma influéncia [...] @ Mas, de qualquer forma, esta explicagio nfo bastaria para dar conta da situagao respectiva dos protestantes ¢ dos catélicos. Porque, ainda que na Austria e na Baviera, onde 0 catolicismo é maioritario, a sua influéncia preservadora seja menor, ela é ainda bastante conside- ravel. Nao 6, portanto, apenas a sua situagdo minoritéria que ele a deve. De uma maneira mais geral, seja qual for a proporgao destes dois cultos no conjunto da populagao, verificou-se em todos os Ingares onde foi possivel compar4-los do ponto de vista do suicidio que os protes- tantes se matam muito mais do que os catélicos. Existem mesmo paises, como o Alto Palatinado ¢ a Alta Baviera, onde quase toda a populagao é catélica (92% e 96%) e, no entanto, ha 300 e 423 suicidios protestantes para cada 100 catélicos. A relagdo eleva-se mesmo a 528% na Baixa Baviera, onde a religido reformada nao chega a contar um fiel em 100 habitantes, Assim, mesmo que a prudéncia obrigatéria das minorias possa ter algo a ver com a diferenga tao considerdvel que apresentam estas duas seligides, a maior parte desta € certamente de- vida a outras causas, @ E na natureza destes dois sistemas religiosos que as encontrare- mos. No entanto, ambos proibem o suicidio com a mesma clareza; nfo 86 0 castigam com penas morais extremamente severas, como ensinam igualmente que além-tdmulo comega uma vida nova onde os homens Serio castigados pelas suas mis acgGes, e o protestantismo, tal como o catolicismo, inclui nestas o suicfdio, Finalmente, num e-noutro culto estas proibigdes tém um carécter divino: n&o so apresentadas como a conclusio I6gica de um raciocinio bem conduzido, mas a sua autoridade & a do proprio Deus, Portanto, se 0 protestantismo favorece © desen- volvimento do suicidio, nfo 6 por traté-lo de forma diferente da do cato- licismo, Mas entdio, se, nesta questo particular, as duas religides tem os mesmos preceitos, a sua acgZio desigual sobre o suicidio deverd ter como causa alguma das caracteristicas mais gerais que as distinguem. @ Ora a (nica diferenga essencial entre o catolicismo ¢ o protestan- tismo reside no facto de o segundo admitir o livre exame numa propor Go muito mais elevada do que o primeiro. Sem ditvida, o catolicismo, pelo simples facto de ser uma religifo idealista, d4 ao pensamento e & reflexfio um lugar muito maior do que o politefsmo greco-latino ou o monoteismo judaico. Jé n&o se contenta com actos maquinais, sendo antes sobre as consciéncias que aspira a reinar, B, portanto, a elas que se dirige; e, mesmo quando pede a razéio uma submissio cega, fa-lo na Tinguagem da razio, Nem por isso deixa de ser verdade que 0 catélico recebe a sua fé jd feita, sem exame, Nem mesmo pode submeté-la a um controle histérico, dado que os textos originais sobre que cla se apoia lhe s&o interditos. HA todo um sistema hierdrquico de autoridades, organizado com maravilhosa pericia, para tomar a tradigao invaridvel. O pensamento catélico tem horror a tudo © que seja variagdo. O pro- testante € mais autor da sua crenga. A Biblia é-Ihe posta nas maos & henhuma interpretagio dela Ihe é imposta. A prépria estrutura do culto reformado revela este estado de individualismo religioso. Em lado nenhum, excepto em Inglaterra, o clero protestante est hierarquizado; tal como 0 fiel, 0 padre depende apenas de si préprio ¢ da sua cons- ciéncia. # um guia mais instruido do que o comum dos crentes, mas sem antoridade especial para fixar 0 dogma. Mas o que melhor atesta que esta liberdade de exame, proclamada pelos fundadores da Reforma, nfio ficou no estado de afirmagao platénica 6 essa crescente multiplici- dade de seitas de todo o tipo, que contrasta tio energicamente com a unidade indivisivel da Igreja catdlica © Assim, se 6 verdade que o livre exame, uma vez proclamado, multiplica os cismas, é preciso acrescentar que os supde e que deles deriva, dado que, se é reclamado ¢ insticuido como um principio, & para permitir que cismas latentes ou semideclarados se desenvolvam mais livremente, Por conseguinte, se o protestantismo atribui um lugar mais importante ac pensamento individual do que o catolicismo, 6 porque contém menos crengas ¢ priticas comuns, Ora uma sociedade religiosa nao existe sem um eredo colectivo e é tanto mais una e tanto mais forte quanto mais amplo for esse credo. Isto porque ela ndo une os homens pela troca ¢ pela reciprocidade dos servigos, lago temporal que contém € supe mesmo diferengas, mas que ela é incapaz de criar. Sé os socializa, ligando-os todos a um mesmo corpo de doutrina, ¢ socializa- -08 tanto melhor quanto mais vasto e mais solidamente constituido for este corpo de douttinas, Quantas mais maneiras houver de agir e de pensar marcadas por um eardcter religioso e, por conseguinte, subtraf- das ao livre exame, mais a ideia de Deus estard presente em todos os pormenores da existéncia ¢ fara convergir para um s6 ¢ mesmo objec- tivo as vontades individuais, Inversamente, quanto mais um grupo con- fessional se abandonar ao juigamento dos particulares, mais ausente estara das suas vidas, menores serio a sua coesiio ¢ a sua vitalidade, Chegamos, portanto, 4 conclusio de que a superioridade do protestan- tismo do ponto de vista do suicidio resulta do facto de ele ser uma igreja meitos fortemente integrada do que a Igreja catélica. b) O resumo Fazer o resumo de um texto consiste em destacar as suas princi- pais ideias ¢ articulages, de modo a fazer surgir a unidade do pensamento do autor. E 0 objectivo principal das leituras explora- térias, sendo, portanto, o resultado normal do trabalho de leitura. 2 ui a, 88 i g 3 i. 7 gi a gba We Gu; He Gghh gfe ay SE| EX gc8Be te Z i ai fe aq? “He Gai fopapae i "jfs @°nt og HF iy be = |2# jesgejg¢ Je Te fe 73 el aa ay a4/8 q 3 ue [ke |geez/a2 [e/a [ad [28 Bla jes [eebdlee jegle lke [a8 a sfalee |i2z8lee [eels lez lee al gehigh [Seslae laalé jas lag a lajedje2 j2escl2b |S2)2 |Ps [gee =f elaciz? lagealg’ l2g]® [ee lees aq aleilad goa ePa aelé [ES Jase Bl allifee leeadles laale ja: is S /Elselig |esazie2 [fele [88 [Bea Rosle’ [egsilss /S2/¢ jpg [238 clighaz Jeb #/8o jsdle jhe lig3 fleiied [orgies leele [28 ig ea seelbe |Ee ala? |8l2 la 3 glsaled [evecied (S312 [ed |g8e glefles [2S2e/82 [2a/2 |28 [SEF o)e3)ae leeezyes leis [sy [S03 Ui dabbed iis zeje lee Ea: eecleeg|SEEle? 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Voltemos entéo A nossa grelha de Ieitura e voltemos a ler o contetido da coluna da esquerda, que se refere as ideias do texto. Postos em sequéncia, estes nove pequenos textos formam um resumo fiel do texto de Durkheim. Mas, neste resumo, as ideias centrais do texto nao se distinguem das outras. Qualquer que seja a sua importancia relativa, cada uma beneficia, por assim dizer, do mesmo estatuto que as suas vizinhas. Além disso, as articu- lagdes que Durkheim estabelece entre elas nfo aparecem clara- mente, Em suma, falta uma estruturagdo das ideias, imprescindivel para reconstituir a unidade do pensamento do autor e a coeréncia do seu raciocinio, O verdadeiro trabalho de resume consiste preci- samente em restituir esta unidade, acentuando as ideias mais im- portantes ¢ mostrando as principais ligagdes que o autor estabelece entre elas. Para o conseguir é preciso considerar igualmente 0 conteddo da coluna da direita, onde anotamos explicitamente informages rela- tivas & importancia e A articulagio das ideias, como, por exemplo: «Projecto: ...»; «Estabelecimento dos factos»; «Primeira explicagio possivel»; etc. A partir destas indicagdes, estamos em condigdes de distinguir imediatamente as secgGes do texto onde se encontram as ideias centrais das que contém as ideias secundérias, os dados jlustrativos ou os desenvolvimentos da argumentagao. Além disso, essas ideias podem ser facilmente encontradas & ordenadas gragas ao contetido da coluna da esquerda, onde séo retomadas numa forma condensada. Qualquer um pode fazer este trabalho por si préprio sem gran- des dificuldades, visto que a grelha de leitura fornece os meios para tanto e obriga, ao mesmo tempo, 2 assimilar verdadeiramente o texto estudado. Falta apenas redigir 0 resumo de forma suficien- temente clara para que alguém que nao tenha lido o texto de Durkheim possa ter dele uma boa ideia global pela simples leitura do resultado do seu trabalho. Mesmo que nao tenha qualquer inten- ao de o comunicar, este esforgo de clareza é importante. Constitui simultaneamente um exercicio e um teste de compreensiio, dado que, se ndo conseguir tornar 0 seu texto compreensivel para os outros, é muito provavel que ainda nao o seja totalmente para si. Eis um exemplo de resumo deste texto, redigido no seguimento do exercicio de leitura: Neste texto, Durkheim analisa a influéncia das religides sobre 0 suicfdio, Gragas ao exame de dados estatisticos que se referem princi- palmente & taxa de suicidio de diferentes populagdes europeias de re- ligifio protestante ou catdlica, chega & conclustio de que, quanto mais fraca € a coesio religiosa, mais forte € a tendéncia para o suicidio. De facto, uma religifo fortemente integrada, como 0 catolicismo, cujos fiéis partilham numerosas priticas e crengas comuns, protege-os mais do suicidio do que uma religiao fracamente integrada, como 0 protestantismo, que d4 grande importancia ao livre exame. Uma tal sintese literdria pode ser vantajosamente comple- tada por um esquema que, neste caso, representa as relagdes cau- sais que Durkheim estabelece entre os diferentes fenémenos con- siderados: Livre exame ——-—» Enfraquecimento ‘Aumento da coesio ~=——+ da tendéncia | da religifo para 0 suicidio Enfraquecimento L ddas crengas tadicionais No fim deste exemplo de trabalho de leitura e de resumo aper- cebemo-nos, sem dtivida, mais facilmente do proveito que dele podemos esperar. 8 claro que quem leva até ao fim este trabalho melhora as suas aptiddes para a leitura, para a compreensao dos textos e para a realizagao de resumos, o que é titi para qualquer trabalho intelectual. Mas o mais importante é que, pelo seu traba- lho activo, inscreve profundamente as ideias do texto no seu espi- rito. Gragas ao resumo, poderé comparar muito mais facilmente dois textos diferentes ¢ salientar as suas convergéncias ¢ as suas divergéncias. O que lhe parecia uma tarefa impossivel torna-se um trabalho de facto sério, até mesmo dificil, mas, no fim de contas, acessivel. E claro que o modelo de grelha de leitura apresentado é parti- cularmente preciso e rigoroso. Bxige que se Ihe consagre tempo e, portanto, que os textos nfo sejam demasiado longos nem dema- siado numerosos. Por conseguinte, em muitos casos devem poder ser imaginadas outras grelhas de leitura mais flexiveis e mais adaptadas a cada projecto particular. No entanto, é necessdrio desconfiar das falsas economias de tempo. Ler mal 2000 pfginas nao serve rigorosamente para nada; ler bem um bom texto de 10 paginas pode ajudar a fazer arrancar verdadeiramente uma inves- tigacdo ou um trabalho, Aqui, mais do que em qualquer outro caso, é verdade que devagar se vai ao longe, ¢ n&o devemos deixar-nos iludir pelas intermindveis bibliografias que encontramos no fim de algumas obras. Sem divida, um longo hdbito de trabalho intelectual convida a dispensa de uma grelha de leitura explicita, ainda que os leitores experimentados raramente Jeiam ao acaso. Quando as suas leituras se enquadram numa investigagao, tém sempre uma ideia clara dos seus objectivos e léem, de facto, com método, ainda que isso nfo seja formalmente vidvel. Em compensagio, estamos convencidos de que muitos leitores menos formados tém todo o interesse em modificar os seus habitos e em ler melhor textos mais cuidadosa- mente escolhidos. Ser o método acima apresentado para extractos também indi- cado para obras inteiras? Sim, com ligeiras adaptagdes. Por um lado, as secgSes de leitura podem ser muito mais longas quando o texto esté «diluido» e inclui numerosos dados e miltiplos exem- plos. Por outro lado, raramente é necessario proceder a uma leitura sistematica de todos os capitulos do livro. Tendo em conta os seus objectivos precisos, € muito provavel que sé algumas partes tenham de ser aprofundadas e que uma simples leitura atenta chegue para © resto, seer cai aoe “ EE ed SS 2, AS ENTREVISTAS EXPLORATORIAS Leituras e entrevistas exploratérias devem ajudar a constituir a problemitica de investigagio. As leituras ajudam a fazer o balanco dos conhecimentos relativos ao problema de partida; as entrevistas contribuem para descobrir os aspectos a ter em conta ¢ alargam ou rectificam 0 campo de investigacéo das leituras. Umas e outras sio complementares ¢ enriquecem-se mutuamente, As leituras dio um enquadramento As entrevistas exploratérias ¢ estas esclarecem-nos quanto @ pertinéncia desse enquadramento. A entrevista exploraté- ria visa economizar perdas initeis de energia e de tempo na leitura, na construgao de hipéteses e na observagio. Trata-se, de certa forma, de uma primeira «volta a pista», antes de pdr em jogo meios mais importantes, As entrevistas exploratérias tém, portanto, como fungo princi- pal revelar determinados aspectos do fenémeno estudado em que o investigador nio teria espontaneamente pensado por si mesmo e, assim, completar as pistas de trabalho sugeridas pelas suas leituras. Por esta razdo, € essencial que a entrevista decorra de uma forma muito aberta ¢ flexivel e que o investigador evite fazer perguntas demasiado numerosas e demasiado precisas. Como proceder? De uma maneira geral, os métodos muito formais e estrutura- dos, como os inquéritos por questiondrio ou certas técnicas sofisti- cadas de andlise de contetdo, nado s&o t3o adequados ao trabalho explorat6rio como os que apresentam uma grande maleabilidade de aplicagdo, como, por exemplo, as entrevistas pouco directivas ou os métodos de observago que deixam um clevado grau de liberdade ao observador, A raziio é muito simples: as entrevistas exploratérias gervem para encontrar pistas de reflexiio, ideias e hipéteses de trabalho, e nfio para verificar hipéteses preestabelecidas. ‘Trata-se, portanto, de abrir o espirito, de ouvir, e nao de fazer perguntas precisas, de descobrir novas maneiras de colocar o problema, ¢ nao de testar a validade dos nossos esquemas. A entrevista exploratéria € uma técnica surpreendentemente preciosa para uma grande variedade de trabalhos de investigagao. social. No entanto, os investigadores utilizam-na pouco e mal. ‘Teremos, pois, aqui oportunidade de a reabilitar, dado que, bem utilizada, pode prestar servigos inestimaveis. Cada vez que, pressio- nados pelo tempo, julgémos dever saltar esta etapa exploratéria arrependemo-nos depois amargamente. Permite sempre ganho de tempo e economia de meios. Além disso, ¢ no é 0 menor dos seus atractivos, constitui, para nés, uma das fases mais agradaveis da investigagiio; a da descoberta, a das ideias que surgem e dos contactos humanos mais ricos para o investigador. Fase interessante e dtil, portanto, mas também muito perigosa, se © investigador principiante a empreender a laia de turista. © contacto com o terreno, a expressiio do vivido ¢ a aparente con- vergéncia dos discursos (produtos dos estereétipos sécio-culturais) lev4-lo-do, muito provavelmente, a acreditar que percebe tudo muito melhor assim do que com as suas leituras e que as ideias mais ou menos inconscientes que tinha da quest&o correspondem de facto Aquilo que descobre no terreno, E uma tentagio frequente. Muitos principiantes nao Ihe resistem, negligenciam as leituras & orientam © seguimento da sua investigaco por impressbes seme- Thantes as de um turista que passou alguns dias num pais estran- geiro. Levado pela ilusiio da transparéncia, afunca-se na armadilha da confirmagao superficial de ideias preconcebidas. A sua inves- tigagio néio podera deixar de fracassar, dado que a exploragio foi desviada da sua fungéo primordial — a ruptura com a especulagao gratuita e com os preconceitos. Um exemplo concreto de investigagdo, apresentado no final da obra, permitiré uma melhor es a Para desempenharem esta fungao de ruptura, as entrevistas exploratérias devem preencher certas condiges, que sio apresen- tadas sob a forma de respostas as trés perguntas seguintes: * Com quem é itil ter uma entrevista? « Em que consistem as entrevistas e como realizé-las? * Como exploré-las para que permitam uma verdadeira rup- tura com os preconceitos, as pré-nogdes ¢ as ilusdes de transparéncia? 2.1. COM QUEM F UTIL TER UMA ENTREVISTA? HA trés categorias de pessoas que podem ser interlocutores validos. Primeiro, docentes, investigadores especializados e peritos no dominio de investigagiio implicado pela pergunta.de partida. J4 evoc4mos a sua utilidade a prop6sito da escolha das leituras. Po- dem também ajudar-nos a melhorar 0 nosso conhecimento do tet- reno, expondo-nos nao s6 os resultados dos seus trabalhos, mas também os procedimentos que utilizaram, os problemas que encontraram e os escolhos a evitar. Este tipo de entrevista nao exige uma técnica especifica, mas sera tanto mais frutuosa quanto mais bem formulada estiver a pergunta de partida, permitindo ao seu interlocutor delimitar com precis&éo 0 que lhe interessa. Para aquele cuja pergunta de partida esteja ainda hesitante, este tipo de entrevista também pode ajudar a clarificd-la, na condi- gio de o interlocutor estar disposto a ajuda-lo, o que nao é frequente. A segunda categoria de interlocutores recomendados para as entrevistas exploratérias é a das testemunhas privilegiadas. Trata- -se de pessoas que, pela sua posi¢ao, acco ou responsabilidades, tém um bom conhecimento do problema. Essas testemunhas po- dem pertencer ao piiblico sobre que incide o estudo ou ser-lhe exteriores, mas muito relacionadas com esse piiblico, Assim, num estudo sobre os valores dos jovens tanto podemos encontrar jovens responsdveis por organizagées de juventude como adultos (educa- dores, docentes, padres, trabalhadores sociais, juizes de menores) cuja actividade profissional os pde directamente em contacto com ne arnklamac da invertnde Finalmente, terceira categoria de interlocutores titcis: os que constituem o publico a que o estudo diz directamente respeito, ou seja, no exemplo anterior, os préprios jovens. Neste caso é impor- tante que as entrevistas cubram a diversidade do piblico envolvido. As entrevistas com os interlocutores da segunda e da terceira categorias sfio as que oferecem os maiores riscos de desvio devido A ilusfo de transparéncia. Directamente envolvidos na acgao, tanto uns como outros so geralmente levados a explicar as suas acgGes, justificando-as. A subjectividade, a falta de distancia, a visao par- celar € parcial, sdo inerentes a este tipo de entrevista. E indispen- savel uma boa dose de espirito ctitico e um minimo de técnica para evitar as armadilhas que encerram. 2.2. EM QUE CONSISTEM AS ENTREVISTAS E COMO REALIZA-LAS? Os fundamentos metodolégicos da entrevista exploratéria de- vemn set procurados principalmente na obra de Carl Rogers sobre psicoterapia. Comecaremos por dizer algumas palavras acerca dela, para apreendermos bem os princfpios e o espirito des.e mé~ todo, e depois abordaremos apenas os problemas da sua aplicagao a investigagao social. O que se segue aplica-se principalmente as entrevistas com as duas ditimas categorias de interlocutores acima apresentadas. a) Os fundamentos do método Rogers é um psicoterapeuta. O seu objectivo pratico é, portanto, ajudar as pessoas que se lhe dirigem a resolver os seus problemas de ordem psicoldgica, No entanto, o método proposto por Rogers distancia-se de todos os que atribuem ao terapeuta um papel mais ‘ou menos importante na andlise do problema. Para Rogers, a and- lise s6 pode dar todos os seus frutos se for inteiramente dirigida pelo proprio «clientes. Ao aprender a reconhecer-se a si proprio através da andlise das suas dificuldades, ele adquire, segundo Rogers, uma maturidade e uma autonomia pessoal que 0 beneficiam muito para além do problema mais ou menos espectfico devido a0 qual se dirigiu ao terapeuta. Para atingir este objective, Rogers concebeu ¢ experimentou um método terapéutico centrado na nfo- -directividade, que o tornou famoso e que aplicou depois ao ensino. O principio deste processo consiste em deixar ao cliente a escolha do tema das entrevistas, tal como o dominio do seu desenvolvimento. A tarefa do terapeuta ou do «ajudante» no 6, no entanto, simples. Consiste esta em ajudar o cliente a aceder a um melhor conheci- mento e a uma melhor aceitago de si proprio, funcionando de certa forma como um espelho que lhe reenvia sem parar a sua prdpria imagem e lhe permite, assim, aprofunda-la ¢ assumi-la. Este método & explicado de forma muito pormenorizada por Rogers em La relation @aide et la psychothérapie (Paris, ESF, 1980; 1." edigo inglesa, 1942). Esta versio francesa apresenta-se emi dois volumes, O primeiro descre- ve o método e o segundo apresenta uma aplicagéo real deste com 0 exame sistemético das intervengdes do ajudante e do seu cliente. Depois da de Rogers foram pubticadas numerosas obras sobre a entrevista de ajuda, tentando cada autor trazer um ou outro melhoramento sugerido pela sua pratica ou adaptar o método a campos de anélise e de intervengiio mais vastos, No entanto, refe- rem-se todos a Rogers ¢ ao préprio fundamento do seu processo: a nfo-directividade, Porém, ¢ paradoxalmente, é este principio que constitui tanto o interesse como a ambiguidade da utilizagio deste método em investigagao social. : b) A aplicagdo em investigagio social No seu livro L’ Orientation non-directive en psychothérapie et en psychologie sociale (Paris, Dunod, 1970, p. 112), Max Pagés explica «a contradigao entre a orientagao nao directiva e o emprego de entrevistas nao directivas como instrumento de investigagao social» da seguinte forma: «B facil revel4-la, Num caso, 0 objec- tivo da entrevista é fixado pelo préprio cliente ¢ o terapeuta nao procura influencid-lo. No outro é 0 entrevistador que fixa 0 objec- tivo, seja ele qual for: fornecer informagdes a um determinado grupo, cooperar numa investigag&o, favorecer o desenvolvimento comercial de uma empresa, a propaganda de um governo, etc.» Neste sentido, nunca podemos dizer que as entrevistas explo- ratorias em investigacio social sio rigorosamente nao directivas. Com efeito, a entrevista é sempre pedida pelo investigador, e nao pelo interlocutor, Refere-se mais ou menos directamente ao tema imposto pelo investigador, € niio Aquilo de que o interlocutor deseja falar, Finalmente, o seu objectivo esta ligado aos objectivos da investigagiio, € nfo ao desenvolvimento pessoal da Pessoa entrevistada. Tudo isto soma muitas diferengas, e nao sio Pequenas. E por isso que se fala cada vez mais de entrevista semidirectiva ou semiestruturada, No entanto, ¢ sem se iludir quanto ao cardcter nfo directive das entrevistas exploratérias que solicita, o investigador em ciéncias sociais pode, com grande proveito, inspirar-se em certas caracteris- ticas fundamentais do método de Rogers e, sob alguns pontos de vista, copiar 0 comportamento do psicoterapeuta nao directivo. De facto, a parte evitar que 0 seu interlocutor fale durante muito tempo sobre assuntos que nfo tém qualquer relago com o tema inicial- mente previsto, esforgar-se-A por adoptar uma atitude tio pouco directiva ¢ tio facilitante quanto possivel. Na prdtica, og principais tragos desta atitude sao os seguintes: 1. O entrevistador deve esforgar-se por fazer o menor niimero possivel de perguntas, A entrevista nao € um interrogatério nem um inquérito por questiondrio. O excesso de perguntas conduz sempre ao mesmo resultado: o entrevistado depressa adquire a impressdo de que Ihe é simplesmente Ppedido que responda a uma série de perguntas precisas e dispensar- -se-4 de comunicar 0 mais fundo do seu pensamento e da Sua experiéncia, As respostas tornar-se-4o cada vez mais breves ¢ menos interessantes, Apés ter sumariamente res- Pondido a anterior, esperaré pura e simplesmente a seguinte Como se esperasse uma nova instrugiio. Uma breve exposi- ¢4o introdutéria acerca dos objectivos da entrevista e do que dela se espera basta geralmente para lhe dat o tom geral da conversa, livre ¢ muito aberta; 2. Na medida em que um minimo de intervengées é, contudo, necessdrio para reconduzit a entrevista As seus objectivos, para recuperar a sua dinamica ou para incitar 0 entrevistado a aprofundar certos aspectos particularmente importantes do ma tema abordado, o entrevistador deve esforgar-se por formu- lar as suas intervengoes da forma mais aberta possivel. Ao longo das entrevistas exploratérias 6 importante que o entre- vistado possa exprimir a propria «realidade» na sua lingua- gem, com as suas caracteristicas Conceptuais e os seus qua- dros de referéncia. Com intervengées demasiado Precisas e autoritarias, 0 entrevistador impée as suas categorias men- tais. A entrevista deixa entfio de cumprir a sua fungao explo- tat6ria, dado que o interlocutor JA nfo tem outra escolha senao responder no interior dessas categorias, ou seja, con- firmar ou infirmar as ideias em que o investigador jé tinha previamente pensado, Com efeito, é raro 0 interlocutor rejei- tar a forma como o problema Ihe é Proposto, seja porque nele reflecte pela primeira vez, seja porque fica impressionado com © estatuto do investigador ou com a situagio de entrevista. Eis alguns exemplos de intervenes feitas de maneira a facilitarem a livre expressio do entrevistado. Por esta razio, designam-se frequentemente por «empurrdes»: + «Se bem percebo, quer dizer que...» * «Hum... sim...» (para manifestar a atengao e o inte- resse pelo que diz o entrevistado). * «Dizia ha pouco que...» «Pode especificar...2» (para retomar um ponto que merece ser aprofundado), * «O que quer exactamente dizer com...2» * «Referiu a existéncia de dois aspectos (razdes) deste problema, Desenvolveu o primeiro. Qual é o segun- do?» (para voltar a um «esquecimento»), * «Ainda nio falamos de...: pode dizer-me como vé...?» (para abordar um outro aspecto do assunto), Na mesma ordem de ideias, ndo devem temer-se os silén- cios. Estes assustam sempre o entrevistador principiante. Algumas pequenas Pausas numa entrevista podem permitir ao entrevistado reflectir mais calmamente, reunir as suas recordagies e, sobretudo, aperceber-se de que dispde de uma importante margem de liberdade. Querer frenetica- mente preencher 0 mais pequeno siléncio é um reflexg de medo e uma tentagao tio frequente como perigosa, pois incita a multiplicar as perguntas ¢ a abafar a livre expressio. Ao longo destes siléncios passam-se muitas coisas na cabega da pessoa que interrogamos. Muitas vezes hesita em dizer mais. Encoraje-a entio com um sorriso, ou qualquer outra atitude muito receptiva, porque o que cla diré pode ser fundamental; | Por maioria de raz&o, o entrevistador deve abster-se de se implicar no contetido da entrevista, nomeadamente envol- vendo-se em debates de ideias ou tomando posigéo sobre afirmagdes do entrevistado. Mesmo a aquiescéncia deve ser evitada, dado que, se 9 interlocutor se habitua a ela ¢ Ihe toma o gosto, interpretaré depois qualquer atitude de reserva como um sinal de desaprovagao; |. Por outro lado, € preciso procurar que a entrevista, se de- senrole num ambiente e nunt contexto adequados. © inttil esperar uma entrevista aprofundada e auténtica se esta se desenrolar na presenga de outras pessoas, num ambiente parulhento e desconfortavel, onde o telefone toca todos os cinco minutos, ou ainda quando o entrevistado est4 sempre a consultar o relégio para nao faltar a outro encontro. © entrevistado deve ser avisado da duragao provavel da entrevista (geralmente cerca de uma hora), sem prejuizo de, na altura, apaixonado pelo assunto, ele poder aceitar ou manifestar directamente o seu desejo de prolongé-la para além do limite combinado, Esta hipétese favoravel é, na realidade, muito frequente ¢ obriga 0 entrevistador a prever uma margem de seguran¢a relativamente grande; . Finalmente, do ponto de vista técnico, € indispensdvel gra- var a entrevista. Existem actualmente pequenos gravadores com microfone incorporado, que trabalham a pithas e podem. facilmente ser introduzidos no boiso de um casaco. Estes apareJhos discretos impressionam pouco os entrevistados, que, apés alguns minutos, deixam geralmente de Thes prestar atengdo. F claro que a gravagao esta subordinada a autoriza- do prévia dos interlocutores. Mas esta é geralmente dada sem reticéncias quando os objectives da entrevista so cla- ramente apresentados e 0 entrevistador se compromete, pri- proprio as fitas magnéticas e, terceiro, a apagar as gravagGes Jogo que tenham sido analisadas. ‘Tomar sistematicamente notas durante a entrevista parece-nos, pelo contrario, ser de evitar tanto quanto possivel. Distraem nao s6 0 entrevistador, como o entrevistado, que ndo pode deixar de considerar a intensidade da anotagio como um indicador do interesse que o interlocutor atribui as suas palavras. Pelo contrério, é muito util ¢ no apresenta inconvenientes anotar, de tempos a tempos, algumas palavras destinadas simplesmente a estruturar a entrevista: pontos a esclarecer, quesi@es 4 que é preciso voltar, temas que falta abordar, etc. Resumindo, os principais tragos da atitude a adoptar ao longo de uma entrevista exploratéria so os seguintes: — Fazer o minimo de perguntas possivel; — Intervir da forma mais aberta possivel; _— Abster-se de se implicar a si mesmo no contetido, — Procurar que a entrevista se desenrole num ambiente ¢ num contexto adequados; — Gravar as entrevistas. ‘Trata-se, portanto, de um método que nao tem rigorosamenie nada aver quer com a troca de pontos de vista entre duas pessoas, quer com a sondagem de opinio. O investigador fixa simplesmente, com ante- cedéncia, os temas sobre os quais deseja que o seu interlocutor expri- ma, 0 mais livremente possivel, a riqueza da sua experiéncia ou o fundo do seu pensamento e dos seus sentimentos, Para ajudar 0 inves- tigador a utilizar correcta e frutuosamente este método no existe nenhum «tuque», nenhum dispositivo preciso que bastasse aplicar como uma receita, O sucesso é aqui uma questo de experiéncia. c) A aprendizagem da entrevista exploratéria A aprendizagem da técnica da entrevista exploratéria deve, com efeito, passar obrigatoriamente pela experiéncia concreta. Se é sua intengdo utilizar esta técnica e nela adquirir formagio, a melhor maneira 6 analisar minuciosamente as suas primeiras entrevista, a, mafaraneia cam aleuns colecas, gue terdo sobre o seu trabalho um olhar menos parcial do que o seu. Bis uma forma de proceder a esta auto-avaliagio: * Olga a gravaciio ¢ interrompa-a apés cada uma das suas intervengGes. + Anote cada intervengaio e analise-a, Era indispensavel? Nao tera interrompido o seu interlocutor sem qualquer motivo importante quando este estava bastante animado com a en- trevista? Ndo teré procurado pdr termo um pouco depressa de mais a um siléncio de apenas alguns segundos? + Apés ter discutido cada intervengao, prossiga a audigio da fita para examinar a forma como o seu interlocutor reagiu a cada uma das suas intervencdes. Terao estas contribuido para ele aprofundar as suas reflexdes ou o seu testemunho, ou levaram, pelo contrério, a uma resposta curta e técnica? As suas intervengdes niio terfio suscitado um debate de ideias entre o seu interlocutor e vocé mesmo e, assim, comprome- tido as hipéteses de uma reflex&o e de um testemunho autén- ticos da parte do seu interlocutor? + No fim da audigao avalie 0 seu comportamento geral. As suas intervengdes nao terfo sido demasiado frequentes ou demasiado estruturantes? Fica com a impresséo de uma entrevista flexivel, aberta e rica de conteddo? Qual é, final- mente, o seu balango global e quais sfio, na pratica, os pontos fracos que é preciso corrigir? . Depressa observard que 0 mesmo comportamento da sua parte perante interlocutores diferentes nao conduz forgosamente ao mesmo resultado. O sucesso de uma entrevista depende da maneira como funciona a interacgio entre os dois parceiros. Num dia, o seu interlocutor ser muito reservado; no dia seguinte serd particularmente. falador e ser-Ihe-4 extremamente dificil impedi-lo de falar sobre tudo e mais alguma coisa. Noutro dia tera muita sorte e, talvez sem raziio, pensaré que a entrevista exploratéria € uma técnica que domina bem. Seja como for, nfio se apresse a atribuir ao seu interlocutor a respon- sabilidade do sucesso ou do fracasso da entrevista, As recomendagées anteriores sto regras gerais que deve esfor- gat-se por respeitar. Mas cada entrevista ndo deixa por isso de ser um caso especifico e, enquanto decorre, o entrevistador deve adap- tar © seu comportamento com flexibilidade e pertinéncia. S6 a pratica pode trazer 0 «faro» ¢ a sensibilidade que fazem o bom entrevistador, Finalmente, deve sublinhar-se que uma altitude de bloqueamento sistemitico ou selective por parte do seu interlocutor constitui frequentemente, em si mesma, uma indicago que deve ser interpretada como tal. 23. A EXPLORACAO DAS ENTREVISTAS EXPLORATORIAS | Devem ser aqui tidos em consideragao dois pontos de vista: o discurso enquanto dado, fonte de informagao, e o discurso enquan- to processo, a) O discurso enquanto fonte de informagiio As entrevistas explorat6rias nfio tém como fungo verificar hipéte- ses nem recolher ou analisar dados especificos, mas sim abrir pistas de reflexdo, alargar e precisar os horizontes de Jeitura, tomar consciéncia das dimensées € dos aspectos de um dado problema, nos quais o investigador nao teria decerto pensado espontaneamente. Permitem também no nos langarmos em falsos problemas, produtos, inconscien- tes dos nossos pressupostos e pré-nogdes, As divergéncias de pontos de vista entre os interlocutores so faceis de detectar, Podem fazer suigir questdes insuspeitadas no inicio e, portanto, ajudar o investiga- dor a alargar 0 seu horizonte e a colocar o problema da forma mais correcta possivel, As divergéncias e contradigées impdem-se-nos como dados objectivos. Nao somos nés que as inventamos. ; Por conseguinte, compreender-se-4 que a exploragao das entre- vistas exploratorias possa ser conduzida de forma muito aberta, sem utilizagao de uma grelha de anflise precisa, A melhor forma de actuar &, sem diivida, ouvir repetidamente as gravagdes, umas apés outras, anotar as pistas e as ideias, pér em evidéncia as contra- dies internas e as divergéncias de pontos de vista e reflectir sobre o que podem revelar. Ao longo deste trabalho é preciso estar atento a0 mais pequeno pormenor que, relacionado com outros, possa revelar aspectos ocultos, mas importantes, do problema. b) O discurso enquanto processo A entrevista nao directiva visa levar o interlocutor a exprimir a sua vivéncia ou a percepedio que tem do problema que interessa ao investigador. Frequentemente, 6 a primeira vez que é levado a exprimir-se acerca desse assunto. ‘Tera, portanto, de reflectir, de reunir as suas ideias, de as pér em ordem e de encontrar as pala- vras (mais ou menos) adequadas para, finalmente, exprimir © seu ponto de vista, Haé quem consiga fazé-lo com bastante facilidade, por estar habituado a este tipo de exercicio; para outros sera mais dificil, Comegarfio frases que ficardo incompletas por miiltiplas razées: falta de vocabulrio, pontos de vista contraditérios que se confrontam no seu espirito, informagGes cuja revelagao julgam ser perigosa, etc. Neste caso, a resposta sera cadtica, desconexa e, por vyezes, marcada por viragens que a légica tem dificuldade em se- guir, mas que podem ser reveladoras. Tsto leva-nos a considerar a comunicagio resultante da entrevista como um processo (mais ou menos penoso) de elaboragio de um pensamento e nao como um simples dado. 7 ‘ € est{ em permanente recom- posigaio no decurso deste processo. E por isso que é possivel afizmar que € bom investigador quem, possuindo um sélida cultura teérica, sabe «esquecer a teoria» no decurso do seu trabalho para explorar Os seus recursos no momento preciso em que eles se impGem por si. 2.2. O SEGUNDO MOMENTO: ATRIBUIR-SE UMA PROBLEMATICA © segundo momento consiste na atribuigio de uma problema- tica, Esta fase da investigagio é crucial, A problemética constitui efectivamente o principio de orientacao teérica da investigagio, cujas linhas de forga define. Da a investigacio a sua coeréncia e potencial de descoberta. Permite estruturar as andlises sem as en- cerrar num ponto de vista rigido. Conceber uma problematica é escolher uma orientagiio tedrica, uma relagdo com o objecto de estudo, o que implica a inserigao num esquema de inteligibilidade, como os descritos por Berthelot, Esta decisiio nfo pode ser tomada em abstracto; deve relacionar- ~se com a pergunta de partida ¢ 0 seu objecto. Este objecto de anélise 6 hist6rica e socialmente situado. E, por exemplo, o suici- dio, 0 insucesso escolar, 0 funcionamento de uma empresa, proble- mas sociais, praticas ou comportamentos, modificagdes de ordem cultural ou normativa, como se apresentam numa ou em vérias sociedades determinadas (geralmente a do investigador), num mo- mento determinado (geralmente o presente) ou no decurso de um period determinado. A problematizacdo consistira entiio em for- mular 0 seu projecto de investigagio, articulando duas dimensdes que se constituem mutuamente nele: uma erspectiva teérica e um objecto de investigagao concreto, ou ainda, indissociavelmente, um olhar ¢ 0 objecto desse olhar. Conceber uma problemitica & igualmente explicitar 0 quadro conceptual da sua investigagio, quer dizer, descrever 0 quadro teérico em que se inscreve a metodologia pessoal do investigador, precisar os conceitos fundamentais e as relagdes que cles tém entre si, construir um sistema conceptual adaptado ao objecto da inves- tigagio. : Concretamente, existem duas maneiras de realizé-lo. A ptimeira consiste em conservar um quadro teérico existente, adaptado ao problema estudado e cujos conceitos e ideias prin- cipais tenham sido bem apreendidos. Por exemplo, & possivel estudar problemas encontrados em organizagGes ou empresas a partir do quadro te6rico proposto por Crozier e Friedberg em L’Acteur et le systéme (Paris, Seuil, 1977) ¢ estruturar as anilises em torno de alguns conccitos-chave dessa abordagem, como os conceitos de racionalidade limitada, de poder, de estratégia e de zona de incerteza. Outro exemplo: para estudar as potencialidades de circulagio do virus da sida numa determinada populacio, & Possivel centrar as andlises em torno do conceito de rede social, a exemplo do que fizeram Laumann e outros nos Estados Unidos (The Social Organization of. Sexuality, Chicago, University of Chi- cago Press, 1994). Ou ainda, para estudar as condutas de revolta nos bairros populares, € possivel trabalhar directamente a partir da abordagem de actor social desenvolvida por Dubet em La galére. Jeunes en survie (Paris, Seuil, 1987), Este primeiro cendrio consis- te em explorar o melhor possivel uma problemitica ¢ instrumentos te6ricos que jé deram provas, eventualmente adaptando-os ou cor- rigindo-os para os tornar mais apropriados ao objecto de estudo. No fim desta obra, uma aplicagao da nossa abordagem incide sobre o absentismo dos estudantes. Nela o leitor encontrar um exemplo de construgiio da problemética ¢ a maneira de 14 chegar. A segunda maneira de construir a sua problemética consiste em tomar como pontos de referéncia varias abordagens teéricas dife- rentes. Esta possibilidade s6 devera ser explorada por investigado- res experientes. E evidente que niio se trata de conservar todas essas abordagens teéricas na sua totalidade nem, sobretudo, de construir uma «megateoria» na qual todas as outras se baseariam, perdendo, assim, 0 seu poder de elucidagiio respectivo. Explicitar a sua problematica ¢ também a ocasiao de reformular a pergunta de partida, Essa reformulagio cumpre duas fungdes que constituem ao mesmo tempo duas vantagens. Um erro corrente ¢ inconsciente dos investigadores principian- tes consiste em pretenderem fazer demasiado, recolher o maximo de elementos incorrendo no risco de ultrapassarem 0 objecto da inves- tigagiio. A explicitagaio da problemética permite tomar consciéncia das ambig@es iniciais e limita-las, reformulando a pergunta de par- tida. Essa limitag&o deve incidir ao mesmo tempo no objecto, na abordagem teérica e no dispositivo metodolégico no sentido restrito. ‘A segunda fungdo da reformulagao da pergunta de partida con- siste em explicité-la mais nos termos da opgao teérica desenvolvida na problematica. Por exemplo, a pergunta formulada por Alain Touraine a propésito da luta estudantil (v. primeira etapa) esta ligada & sua abordagem teérica accional, centrada no conceito de movimento social. Por meio destas clarificagées e aprofundamentos sucessivos, a pergunta de partida tornar-se-4 verdadeiramente a pergunta central da investigacZo, na qual se resumir 0 objectivo do trabalho. Por exemplo, em vez de questionar, de uma mancira bastante geral, como explicar a importancia inabitual dos insucessos numa deter- minada escola, a problematizagao podera conduzir a questionar de uma maneira mais precisa quais sfio as fimgées desses insucessos para essa escola (conservar a sua reputagio, colocar obsticulos a sua democratizagao...) ou de que forma esses insucessos resultam de relagées de forca entre diferentes categorias de actores dotados de recursos e estratégias diferentes. Quando se explicita a problematica, nem sempre se dispde de todos os recursos teéricos necessdrios e, provavelmente, ser4 pre- ciso proceder a algumas leituras suplementares com uma orienta- gao bem precisa. Assim, sera possivel apreender em profundidade as ideias centrais da abordagem pretendida e definir o mais judi- ciosamente possivel os conceitos centrais. Como se verifica, a formulagdo da pergunta de partida, as leitu- ras e as entrevistas exploratérias e, finalmente, a explicitagao da sua problemética interagem intimamente. Estas etapas estiio sem- pre a reflectir-se umas nas outras num processo que é mais circular ou em espiral do que estritamente linear, O processo 86 foi decom- posto em etapas distintas por uma questiio de clareza da exposi¢aio e de progressividade da formagiio, e ndo porque as etapas fossem realmente auténomas, Os circuitos de retroacgio que, no esquema seguinte, retrocedem de uma etapa para a anterior representam esse processo circular. Etapa 1 — A pergunta de partida Etapa 2—~ A exploragio As leituras As entrevistas| exploratérias A interacgao que se manifesta entre estas trés etapas encontra- -se também nas etapas seguintes. Assim, a montante, a problemé- tica sé chega realmente ao fim com a construgio do modelo de andlise (quarta etapa). A construgio distingue-se da problemati- zacio pelo seu cardcter operacional, porquanto a construgdo deve servit de guia A observagio (quinta etapa). A importancia da problemética para a construgio das etapas seguintes é claramente estabelecida por Jean-Marie Berthelot (op. cit., pp. 39 € segs.) quando organiza a férmula de Popper nos termos do esquema seguinte e afirma que «qualquer discurso de conhecimento com pretensées cientificas deve poder ser recondu- zido a este esquema»: T }= fe} onde: T designa um «sistema conceptual organizado» que corresponde 4 nossa problemética; {p} & cum conjunto de enunciados explicativos» a que chama- mos hipdteses e modelo de andlise na quarta etapa; {e} constitui «uma classe de enunciados empiricos» que sio efectivamente as verificagdes observadas e as relagdes empiricas cuja chave (op. cit, p. 41) € fornecida pelos enunciados explicativos {p}. Na nossa abordagem, esses enunciados empiricos sfo 0 produto da anilise de informa- ges (sexta etapa). Esta passagem mostra bem as implicagdes metodolégicas da exigéncia cientifica operacionalizada pelas etapas seguintes. QUARTA ETAPA A CONSTRUGAO DO MODELO DE ANALISE AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO Etapa I — A pergunta de partida Etapa 2— A exploragio | As Jeituras [| As entrevistas| {| exploratérias Etapa 3 — A problemética Etapa 5— A observagio Etapa 6— A anilise das informagbes Etapa 7 — As conclusdes OBJECTIVOS O trabalho exploratério tem como fungio alargar a perspectiva de andlise, travar conhecimento com o pensamento de autores cujas investigagGes e reflexdes podem inspirar as do investigador, revelar facetas do problema nas quais no teria certamente pensado por si préprio e, por fim, optar por uma problemética apropriada. Porém, estas perspectivas ¢ estas ideias novas devem poder ser exploradas o melhor possivel para compreender e estudaz de forma precisa os fenémenos concretos que preocupam o investigador, sem © que ndo servem para grande coisa. E necessirio, portanto, tradu- zi-las numa linguagem e em formas que as habilitem’a conduzir 0 trabalho sistematico de recolha e anflise de dados de observagio ou experimentagaio que deve seguir-se. E este 0 objecto desta fase de construgao do modelo de anfilise, Constitui a charneira entre a problemitica fixada pelo investigador, por um lado, e o seu traba- Tho de clucidagéo sobre um campo de andlise forgosamente restrito preciso, por outro, ‘Tal como a anterior, esta quarta etapa serd aqui desenvolvida a partir de dois exemplos: uma vez mais O Suicidio, de Durkheim —de forma a mostrar a continuidade entre as etapas de um pro- cesso metodolégico —, e um trabalho conceptual preparatério de uma inyestigagio sobre a marginalidade. A partir destes dois exem- plos poderemos mostrar ¢ sistematizar melhor os principios de elaboragio e as caracteristicas fundamentais dos modelos de ana- lise. 1, DOIS EXEMPLOS DE CONSTRUCAO DO MODELO DE ANALISE 11. O SUICIDIO Como vimos acima, Durkheim vé no suicidio um fenémeno social ligado, nomeadamente, ao estado de coesao da sociedade. Segundo ele, cada sociedade predispde em maior ou menor grau os seus membros para © suicidio, ainda que este tiltimo no deixe de ser um acto volun- trio ¢, a maior parte das vezes, individual, Por mais genial que seja, esta intuig&o tem de ser desenvolvida ¢ confrontada com a realidade, Isto implica, primeiro, que as nogGes de suicidio e de taxa de suicidio sejam definidas de forma precisa. E 0 que Durkheim faz na introdugio da sua obra; «Chama-se suicidio a todo o caso de. morte que resulte directa ou indirectamente de um acto positivo ou negativo realizado pela propria vitima ¢ que esta sabia que deveria produzir esse resultado.» Através desta definigdo precisa, Durkheim pretende evitar as confusdes que levariam a incluir 0 que nfio deve ser incluido — por exemplo, os casos de pessoas que se matam acidentalmente — e a omitir aquilo que deve ser incluido — por exemplo, os casos de pessoas que procuram e aceitam a sua morte sem a provocarem materialmente elas proprias, como o soldado que se sacrifica vo- luntariamente mum campo de batalha ou o métir que, ja na arena, recusa abjurar a sua £6, Ao reduzir ao m4ximo os riscos de confu- sio, esta definig&o da nogdo de suicidio permitiré a Durkheim, em principio, comparar validamente as taxas de suicidio de varias re- gides da Europa. Quanto 4 taxa de suicidio, é igual ao néimero de casos que correspondem a esta definigao ocorridos ao longo de um determinado periodo, numa determinada sociedade, por cada mi- lho ou 100 000 habitantes. Estas duas noges representam mais do que simples definigses do tipo que podemos encontrar aos milhares nos diciondzios. Ins- piram-se numa ideia teérica (a dimensao social do suicidio), tradu- zindo-a numa linguagem precisa e operacional que permite, no caso presente, reunir e comparar os dados estatisticos. Estando ligadas 4 mesma ideia central, estas duas nogées sic, além disso, complementares. Juntas, delimitam claramente o objecto da inves- a ee tigagaio. Além disso, a ideia de taxa de suicidio faculta a unidade de andlise dos dados recolhidos dentro desses limites. Estas qua- Tidades de tradugdo de uma ideia teérica, de complementaridade e de operacionalidade, que estas nogGes possuem justificam o facto de as distinguirmos nitidamente das simples definigdes, atribuindo- -lhes 0 estatuto de conceitos. A elaboragdio dos conceitos chama-se conceptualizagito. Cons- titui uma das dimensées principais da construg%io do modelo de anflise. De facto, sem ela é impossivel imaginar um trabalho que nao se torne vago, impreciso ¢ arbitrario. Gragas aos conceitos de suicidio e de taxa de suicidio, Dur- kheim sabe que categorias de fendmenos toma em consideragiio. Mas, em si mesmos, estes conceitos nfo Ihe dizem nada sobre a maneira de estudar estes fenémenos. Esta importante fungio é assegurada pelas hipéteses. Estas apresentam-se sob a forma de proposigdes de resposta is perguntas postas pelo investigador. Constituem, de algum modo, respostas provisérias ¢ xelativamente sumfrias que guiardio o trabalho de recolha e andlise dos dados € que terfio, por sua vez, de ser testadas, cortigidas € aprofundadas por ele, Para entendermos bem o que sao e para que servem, comecemos por voltar ao nosso exemplo. Num primeiro momento Durkheim levanta a questéio das causas do suicidio e exprime a sua intuigio, segundo a qual este fenémeno esta ligado ao funcionamento da prépria sociedade. Procuraré, portanto, as causas sociais do suicidio. Ao fazer isto, define a probleméatica da sua investigagao. Num segundo momento pic a hipotese de a taxa de suicidio de uma sociedade estar ligada ao grau de cocsio dessa sociedade: quanto menos forte for a coesiio social, mais elevada deverd ser a taxa de suicidio, Esta proposigiio constitui uma hipétese, porque se apresenta sob a forma de uma proposigio de resposta 4 pergunta sobre as causas sociais do suicidio. Esta hipétesc inspiraré a selecgio ¢ a andlise dos dados estatisticos e, reciprocamente, estas iiltimas permitirdo aprofundé-la e matiz4-la. Mas, antes de chegarmos a esse ponto, verificamos que esta hipétese estabelece uma relagdo entre dois conceitos: 0 de taxa social de suicidio, que j4 foi definido, ¢ o de coesio social, que deve ser precisado. O grau de coesio de uma sociedade pode, com efeito, ser estu- dado sob varios Angulos e avaliado em fungio de miiltiplos crité- tios, Num tal nivel de generalizagao ainda nao se vé exactamente que tipos de dados podem ser considerados para testar uma tal hipétese. Como critério para avaliar 0 grau de coesiio de uma sociedade, Durkheim toma primeiro a religifo. A fungao da religifo relativa- mente 4 coesdo social parece-lhe, de facto, incontestavel ao longo do século xix. Dir-se-4, portanto, que a coesao religiosa constitui uma «dimensao» da coesio social. Durkheim usaré igualmente uma outra dimensdo: a coesio familiar. Mas, para o que aqui nos interessa, limitar-nos-emos a coesiio religiosa. Esta pode ser medida de modo relativamente facil com a ajuda daquilo a que chamamos «indicadores», Com efeito, a importancia relativa da solidariedade ou, pelo contrario, do individualismo dos fiéis manifesta-se concretamente, segundo Durkheim, pela impor- tancia dada ao livre exame na teligiéo considerada, pela impor- tincia numérica do clero, pelo facto de numerosas prescrigdes re- ligiosas terem ou nao um car4cter legal, pela influéncia da religia na vida quotidiana, ou ainda pela pratica em comum de numerosos. ritos. Gragas a estes indicadores, que so tragos facilmente obser- vaveis, Durkheim torna operacional o conceito de coesio social. A sua hipétese poderd, em seguida, ser confrontada com dados de observagao. As relagdes entre os elementos que tém vindo a ser tratados s0 representadas esquematicamente na p4gina seguinte. Neste primeiro exemplo observamos que: 1, Esta hip6tese estabelece uma relagdo entre dois concei- tos, cada um dos quais corresponde a um fenémeno con- ereto: por um lado, 0 conceito de taxa de suicidio, que corresponde ao facto de os suicidios existirem e serem mais ou menos numerosos proporcionalmente ao conjunto da sociedade considerada; por outro lado, 0 conceito de coesao social, que corresponde ao facto de os membros de uma sociedade serem mais ou menos solidérios ou indivi- dualistas; BOHR AAZOA wanOnZZnkas BRROUPOQHEZH Coes&o social Hipétese Coesto religiosa Coesio familiar ‘Taxa de suicidio como facto social Importincia dada ao livre Cardcter legal ou exame no de numerosas prescrig6es religiosas Importincia Taxa de suicidio numérica como dado do elero estatistico Pratica em comum, de numerosos ritos Influéncia da religiio na vida quotidiana 2. Uma vez associados aos respectivos indicadores, os dois con- ceitos que constituem a hipétese so apresentados de tal forma que percebemos facilmente o tipo de informag&es que seré preciso recolher para a testar. Com efeito, a taxa de suicidio é ‘9 seu proprio indicador, ao passo que a coesio social poder ser medida gragas aos cinco indicadores definidos; 3. Gragas aos indicadores e ao relacionamento dos dois con- ceitos através de uma hipétese, sera possivel observar se as taxas de suicidio de diferentes sociedades variam, de facto, com 0 seu grau de coesio social. Por estarem assim relacio- nadas ¢ operacionalizadas, poderemos designar a taxa de suicidio ¢ a coesio social como varidveis. A coesio social, cujas variagdes supomos, por hip6tese, que explicam as variagdes da taxa de suicidio, chamar-se-4 «varidvel explicativa»', enquanto a taxa de suicidio, cujas variagdes, por hipétese, dependem das variagGes da coesio social, se chamara «variével dependente». Esta relagio é simbolizada por uma seta no esquema anterior. Nos capitulos seguintes da sua obra, Durkheim formula uma outra hipétese, Além do suicidio ligado a uma fraca coesio social, a que chama suicidio egoista, considera que, inversamente, uma coesiio social muito forte pode igualmente favorecer 0 suicidio. F este 0 caso quando, animados por um sentimento agudo do seu dever, os soldados se sacrificam pela honra do seu regimento e da sua patria, ou ainda quando, em certas sociedades, os velhos se abandonam A morte ou se matam para nao sobrecarregarem os seus descendentes com um peso initil e para, segundo pensam, termina- rem assim a sua vida com dignidade. Durkheim falaré ent&io de suicidio altruista. Considera, finalmente, uma terceira forma, 0 suicidio anémico, que resultaria de um enfraquecimento da consciéncia moral que acompanha frequentemente as grandes crises sociais, econémicas ou politicas. Quando as regras morais deixam de funcionar como indicagdes validas para estruturac as condutas dos individuos, os seus desejos tornam-se ilimitados e niio podem ser satisfeitos com os recursos de que dispdem, Este desequilibrio entre as ambigGes desenfreadas ¢ os meios para as satisfazer provoca inevitavelmente graves con- flitos intenos que podem levar ao suicidio. Assim, o sistema de hip6teses de Durkheim pode, finalmente, ser representado da seguinte forma: Hip. 1: Fraca coestio social Hip. 2: Coesiio social muito forte Suictdio altruista Suicidio Hip. 3: Anomia Este conjunto estruturado e coerente, composto por conceitos e hipéteses articulados entre si, constitui aquilo a que se chama o modelo de andlise de uma investigagiio. Construi-lo equivale, por- tanto, a elaborar um sistema coerente de conceitos e de hipéteses operacionais, 1,2, MARGINALIDADE E DELINQUENCIA ‘Um de nés teve de apresentar um modelo de anflise sociolégica da delinquéncia como contribuig&o introdutéria a uma investigagio pluridisciplinar sobre este tema. Esta investigagao foi realizada por uma equipa composta por animadores em meio popular e por investigadores universitarios. Os resultados da primeira fase, essen- cialmente exploratéria, foram publicados em Animation en milieu populaire? Vers une approche pluridisciplinaire de la marginalité (Bruxelas, Fédération des Maisons de Jeunes en Milieu Populaire, 1981). A contribuicaio de Luc Van Campenhoudt. «La délinguance sociaux: repéres sociologiques»', constitui a base do exemplo que aqui propomos. No entanto, o texto original foi refeito para desta- car a operaciio de construgao. O modelo de anflise proposto inspira-se na perspectiva geral da saciologia da acgiio, tal como foi concebida por Alain Touraine em Production de la société (Paris, Seuil, 1973). Assenta em dois conceitos complementares: 0 de relag&o social e o de actor social. A delinquéncia é considerada, por um lado, o efeito de uma exclusio social e, por outro, um processo de resposta a essa axclusio, Uma vez exclufdo, o delinquente cultivar a sua exclusado © a sua delinquéncia, porque é por meio desta que procura reconstituir-se como actor social. Através deste processo, o delinquente tenta reconstituir com outros um universo social no qual seja admitido, reconhecido, acei- te, c dentro do qual possa ter uma imagem gratificante de si mesmo, porque desempenha um papel. No universo do bando, os actos de desvio que assume e o papel que desempenha conferem-lhe de facto uma identidade, reconstituem-no enquanto actor social activo, valotizado, podendo exprimir-se e fazer-se ouvir, Nesta problemitica nfio se tata de explicar a delinquéncia pelas caracteristicas pessoais (psicolégicas, familiares, sécio-econ6- micas...) do individuo nem pelo funcionamento da sociedade glo- bal (que produziria os delinquentes como outras tantas vitimas passivas de um sistema a que seriam, afinal, exteriores), mas sim de tentar compreender melhor este fenémeno através da forma como sao estruturadas (ou desestruturadas) as relagdes sociais, em que os jovens delinquentes s&o parte interessada e através das quais se constituem como actores sociais. Esta problematica sugere num primciro momento duas hip6- teses: 1, Os jovens delinquentes so actores sociais cujas relagGes sociais esto fortemente decompostas, A violéncia e a rejei- gao das normas da sociedade s&o a sua resposta 4 exclusio social de que siio objecto; " «A delinquéneia como processo de adaptagio a uma decomposigfio das relagdes sociais; orientagdes sociolégicas.» (N. do T.) 2, A delinquéncia encerra um processo de adaptagdo a esta decomposi¢ao; constitui uma tentativa «fora das normas», ou desviante, de se reestruturar como actor social. _Estas hip6teses pdem essencialmente em relagio dois grupos principais de conceitos: por um lado, os de relagao social e de actor social; por outro, o de delinquéncia enquanto «condigio» (de excluido) © enquanto processo de reestruturagao. Vejamos como foi construfdo o conceito de actor social ¢ o modelo que dele decorre, © actor social define-se pela natureza da relacio social em que esta envolvido. Este actor pode ser individual ou colectivo. Por exemplo, numa empresa, a direcglio e o pessoal constituem, cada qual, um actor social que vive a experiéncia de uma rela- ¢4o social com o outro, O mesmo se passa com o professor e seus alunos, ou com as autoridades piblicas e os seus adminis- trados. : Seja qual for o caso, uma relagdo social apresenta-se como uma cooperagao conflitual entre actores que cooperam numa produgao. (entendida no seu sentido mais lato, por exemplo, de bens ou servigos, de uma formagio geral on profissional, da organizagao da vida colectiva...), mas que entram inevitavelmente em conflito devido as suas posigdes desiguais na cooperagdo, ou, o que equi- vale ao mesmo, devido a sua influéncia desigual sobre aquilo que a sua Cooperagao pde em jogo (a definig&o dos objectivos ou a retribuig&o dos desempenhos, por exemplo). Cada individuo é, com efeito, parte interessada num conjunto de relagdes sociais devido as suas coordenadas sociais. Segundo o local onde se encontra, o mesmo individuo tanto pode ser director de empresa como pai, simples membro de uma associacio ou presidente de uma outra. Pode ser simultaneamente executante, oficial na reserva e presidente da camara do seu concelho. Em cada uma das suas relagGes sociais pode ser um actor forte ou debilmente estruturado, consoante coopera ou néo na produgio e € ou nao capaz de inflectir as suas orientagdes, as suas modalida- des e os seus resultados, consoante, por outras palavras, é ou nao capaz de encontrar um lugar na cooperagao e de se defender numa relagio de conflito, Por conseguinte, podemos distinguir quatro tipos abstractos de actor social, definidos pela forma de praticar uma telagdo social, representados pelos quatro eixos do esquema seguinte: Conperagio Associado contestatdrio Marginal submisso Nélo-cooperagio Submissio As situacées reais raramente correspondem a tipos tio definidos e devem ordinariamente ser representadas por eixos intermédios, como, por exemplo, a linha tracejada. g que, na realidade, os tipos nao constituem propriamente categorias, mas pontos de referéncia gragas aos quais podemos captar e comparar as situagdes intermé- dias, mais matizadas. | A construgio deste sistema conceptual no s6 define os concei- tos de relagiio social e de actor social, como também contribui para clarificar as hipéteses, A primeira sugere uma ligag&o entre os comportamentos caracteristicos da delinquéncia e uma fraca estruturagio das relagdes sociais dos individuos em questi; a se- gunda supde que a reestruturagao da relagio social se faz por meio dos actos de violéncia caracteristicos da delinquéncia. Neste segundo exemplo observamos que: 1. Mais uma vez, o modelo de anlise 6 composto por concei- tos e hipOteses que estio estreitamente. articulados entre si para, em conjunto, formarem um quadro de andlise coerente e unificado, Sem este esforgo de coeréncia, a investigagio Gispersar-se-ia em varias direcgGes ¢ o investigador depressa se veria incapaz de estruturar 0 seu trabalho; 2. Tal como na pesquisa de Durkheim, este segundo modelo de anflise inclui muito poucos conceitos de base ¢ hipéteses. Para além disso, encontramos quase sempre uma hipétese central que estrutura 0 conjunto da investigagio, do mesmo modo que, no inicio, o trabalho se apoiou numa Gnica per- gunta central, ainda que esta tenha sido reformulada varias vezes. E claro que ser quase sempre necessario definir cla- ramente outros conceitos auxiliares, ou formular algumas hipéteses complementares, Mas é preciso evitar que a ri- queza e a subtileza do pensamento comprometam a unidade de conjunto do trabatho. Estas qualidades devem comple- mentar-se, tendo em vista o esforgo de estruturagao e de hierarquizagao dos conceitos ¢ das hipé6teses, Por outro lado, & preciso nao confundir os conceitos constituti- vos de um modelo de andlise com aqueles que nos limitamos a utilizar no corpo do trabalho e que fazem parte do vocabulétio corrente das ciéncias sociais. Se o sentido que Ihes damos se afasta do sentido mais geralmente admitido, sera sempre possivel defini- -los no momento em que os utilizamos pela primeira vez. 2. PORQUE AS HIPOTESES? A organizagio de uma investigagio em torno de hipéteses de tra- balho constitui a melhor forma de a conduzir com ordem e rigor, sem por isso sacrificar o espirito de descoberta ¢ de curiosidade que carac- teriza qualquer esforgo intelectual digno deste nome, Além disso, um trabalho nao pode ser considerado uma verdadeira investigagiio se néio se estrutura em tomo de uma ou de varias hipéteses. Porqué? Em primeiro lugar, porque a hipétese traduz, por definigao, este espirito de descoberta que caracteriza qualquer trabalho cientifico. Alicergada numa reflexiio te6rica e num conhecimento preparatério do fenémeno estudado (fase exploratéria), representa como que uma pressuposi¢ao, que nao é gratuita, sobre o comportamento dos objectos reais estudados. O investigador que a formula diz, de facto; «Penso que & nesta direcgdo que & necessario procurar, que esta pista sera a mais fecunda.» Mas, ao mesmo tempo, a hipétese fornece a investigacao um fio condutor particularmente eficaz que, a partir do momento em que ela é formulada, substitui nessa fungio a questio da pesquisa, mesmo que esta deva permanecer presente na nossa mente. O se- guimento do trabalho consistiré, de facto, em testar as hip6teses, confrontando-as com dados da observagao. A hipdtese fornece o critério para seleccionar, de entre a infinidade de dados que um investigador pode, em principio, recolher sobre um determinado assunto, os dados ditos «pertinentes». Esse critério é a sua utilidade para testar a hipotese. Assim, Durkheim nfo se embaraga com estatisticas interminaveis sobre 0 suicidio, Contenta-se com as que Ihe parecem indispensfveis para testar ¢ matizar as suas hipéteses, © gue, no caso, j4 nao € pouco. ; Apresentando-se como critério de selecgiio dos dados, as hipdteses séio, por isso mesmo, confrontadas com estes dados. O modelo de anélise que exprimem pode assim ser testado. Ainda que se inspire no comportamento dos objectos reais, deve, por seu turno, ser confrontado com esse comportamento. Se € verdade que as hipéteses contribuem. para uma melhor compreensio dos fenémenos observ4veis, devem, por sua vez, concordar com o que deles podemos apreender pela observagio ou pela experimentacdio. O trabalho empirico nio se limi- ta, portanto, a constituir uma anélise do real a partir de um modelo de andlise; fornece ao mesmo tempo 0 meio de o cortigir, de o matizar e de decidir, por fim, se convém aprofundé-lo no futuro, ou se, pelo contrario, vale mais renunciar a ele. Sob as formas e processos mais vatiados, as investigagGes apre- sentam-se sempre como movimentos de vaivém entre uma reflexdo teérica e um trabalho empirico, As hipéteses constituem as charneiras deste movimento; dio-lhe a amplitude e asseguram a coeréncia entre as partes do trabalho. 3. COMO PROCEDER CONCRETAMENTE? Resta saber como proceder para elaborar concretamente um modelo de andlise. Existem, evidentemente, numerosas vias dife- rentes. Cada investigagéio é-uma experiéncia nica, que utiliza caminhos préprios, cuja escolha esta ligada a numerosos critérios, como sejam a interrogagao de partida, a formacao do investigador, os meios de que dispde ou o contexto institucional em que se insereve o seu trabalho. Julgamos, porém, uma vez mais, que é ivel fazer sugest6es simultaneamente abertas e precisas a quem ja esta importante e dificil etapa da investigagao. Antes de mais, é preciso lembrar que uma hipdétese se apresenta como uma resposta proviséria a uma pergunta. Portanto, antes de estabelecer o modelo de anilise, € sempre Gtil precisar de novo, uma iltima vez, a pergunta central da investigagiio. Este exercicio constitui uma garantia de estruturagio coerente das hipéteses. Em seguida, ¢ situando-nos ainda a montante do modelo de andlise propriamente dito, a qualidade do trabalho exploratério tem uma enorme importéncia. Se os diferentes textos estudados foram objecto de leituras aprofundadas e de sinteses cuidadas, se estas foram confrontadas com atengiio umas com as outras, se as entre- vistas e as observagdes exploratérias foram devidamente explora- das, ent&o o investigador dispde normalmente de abundantes notas de trabalho que o ajudariio considcravelmente na elaboragio do modelo de anflise. A medida que for avangando no trabalho de exploracao, irdo sobressaindo progressivamente conceitos-chave e hipéteses importantes, bem como as relagées que seria interessante estabelecer entre eles. O modelo de andlise prepara-se, na realida- de, ao longo de toda a fase exploratéria. Para construir 0 modelo, o investigador pode, enfim, proceder de duas formas diferentes, embora nao exista uma separagiio rigida entre elas: ou pe principalmente a tonica nas hipdteses e se preo- cupa com os conceitos de forma secundéria, ou faz o inverso. Por razGes pedagdgicas, comegaremos pela construgio dos conceitos. ‘Trata-se agora, no fundo, de sistematizar aquilo que até aqui sé abordamos de forma essencialmente intuitiva ¢ com a ajuda dos dois exemplos precedentes para ensinar efectivamente a construir um modelo de anilise, 3.1. A CONSTRUGAO DOS CONCEITOS A conceptualizaeao é mais do que uma simples definiga0 ou convengdo terminoldgica. E uma construgéo abstracta que visa dar conta do real. Para isso nfio retém todos os aspectos da realidade em questo, mas somente o que exprime o essencial dessa reali- dade, do ponto de vista do investigador. Trata-se, portanto, de uma constiugao-selecgiio. Como vimos, construir um conceito consiste primeiro em deter- minar as dimensées que o constituem, através das quais d4 conta do real. Assim, para retomar uma analogia bastante conhecida, os conceitos «tridngulo» e «rectingulo» designam realidades a duas dimensées, do tipo superficie, enquanto 0 conceito «cubo» remete para uma realidade a trés dimensées, do tipo volume. Construir um conceito €, em seguida, precisar os indicadores gragas aos quais as dimensGes poderiio ser medidas, Muitas vezes, em cién- cias sociais, os conceitos e suas dimensGes nfo sio expressos em termos directamente observaveis, Ora, no trabalho de investigagio, a construgiio nao é pura especulagio. O seu objectivo é conduzir-nos ao real e confrontar-nos com ele, E este o papel dos indicadores. Os indicadores sfio manifestacdes objectivamente observaveis ¢ mensuraveis das dimensGes do conceito. Assim, os cabelos brancos e pouco frequentes, 0 mau estado da dentadura ¢ a pele rugosa sio indicadores de velhice. Mas, nos patses que tm um registo civil, a data de nascimento é um indicador mais pertinente, dado que permite uma medida mais precisa do estado de velhice, que sera obtido pela dife- renga entre a data da investigagao e a do nascimento. No entanto, existem conceitos para os quais os indicadores sfo menos evidentes, A nogao de indicador torna-se ent&o muito mais imprecisa, Este pode ser apenas uma marca, um sinal, uma expres- so, uma opiniao ou qualquer fenémeno que nos informe acerca do objecto da nossa construgiio. Existem conceitos simples (velhice) que tém apenas uma dimensaio (cronolégica) e um indicador (idade). Outros sto muito complexos, obrigando mesmo a decompor algumas dimensdes em componentes antes de chegar aos indicadores. O ntimero de dimensGes, componen- tes e indicadores varia, assim, conforme os conceitos. No sev termo, a decomposigaio do conceito poder apresentar, por exemplo, uma forma semelhante 4 que se vé na pégina seguinte. (Em vez do termo «indicador», alguns autores utilizam o termo «atributo»; outros falam ainda de «caracteristica». Estes diferentes termos sao equivalentes.) Existem duas maneiras de construir um conceito. Cada uma delas corresponde a um nivel diferente de conceptualizagao. Uma € indutiva e produz «conceitos operatérios isolados»; a outra é dedutiva e cria «conceitos sistematicos» (P. Bourdieu, J.-C, Chamboredon ¢ J.-C, Passeron, op. cit.). Dimensio 1. —~————-~——— indicador 111 indicador 211 componente 21 < indicador 212 Dimensio 2 componente 22— indicador 221 indicador 231 componente a indicador 232 indicador 233 componente 31 —— indicador 311 Dimensio 3 < indicador 321 componente nc indicador 322 indicaaor 323 a) O conceito operatério isolado Oxnaazoo Um conceito operatério isolado (COI) é um conceito cons- truido empiricamente, a partir de observagdes directas ou de infor- magées reunidas por outros. E através das leituras e entrevistas da fase exploratéria que podem ser recolhidos as elementos necessé- tios a esta construgdo. Eis um exemplo aplicado ao estudo do fenéd- meno religioso, retirado de uma investigagdo de Charles Y. Glock. (Este exemplo est4 exposto em R. Boudon e P. Lazarsfield, Le vo- cabulaire des sciences sociales, Paris, Mouton, 1965, pp. 49-59.) Verificando que os estudos sobre a religidio levavam a resultados contradit6rios e que cada autor concebia a religifio A sua maneira, Glock dedicou-se A construgao do conceito de religidio de forma pre- cisa e matizada, Retirou dos trabalhos dos outros autores os diversos aspectos da religizio que podem ser considerados, Reagrupou-os em tomo de quatro eixos e compés um COI com quatro dimensdes: 1. A dimensiio «experiencial» recobre experiéncias de vida es- pititual intensa, que dao aos que a elas acedem o sentimento

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