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O jornalismo literário está vivo e forte.

No lugar certo: os livros Carlos Chaparro (*)


O XIS DA QUESTÃO – O I Salão Nacional do Jornalista Escritor foi emocionante e grandiosa
demonstração de que o jornalismo literário não morreu. Ao contrário: está aí vivo, no lugar certo, em
estantes de livrarias, exuberante na quantidade impressionante de bons livros-reportagem e ótimas
biografias - obras jornalísticas tão inseridos na dinâmica da atualidade quanto os contundentes noticiários
do dia-a-dia.
1. A vitória da guerra...
Sempre que ouço lamentos em torno daquilo que alguns consideram “o desaparecimento do jornalismo
literário”, vem-me à lembrança um belo texto de Ramalho Ortigão, publicado creio que em 1856 em certo
periódico do Porto, no qual o amigo e colega de letras de Eça de Queiroz lamentava a morte do gênero
Folhetim. Fazia-o em jeito de predição: “A guerra expulsa o folhetim das páginas dos jornais” escrevia ele –
e peço desculpas pela ousadia das aspas em citação feita de memória, já que o livro onde li a crônica de
Ramalho Ortigão não está mais comigo; ofereci-o, já lá se vão anos, à minha amiga e colega de USP
Terezinha Tagé Dias Fernandes, uma das teóricas brasileiras que melhor percorre os espaços de interação
entre jornalismo e literatura.
Mas voltemos aos lamentos de Ramalho Ortigão, que anunciou a morte do folhetim. Tal como Eça,
Ramalho ocupava espaço e função de cronista na imprensa lusitana, na prática rebelde da crítica aos
costumes, modismos e poderes conservadores do seu tempo. Nessa arte, a de cronista, foi quase tão bom
quanto Eça no uso mordaz da ironia, em cruzamentos ora com o humor ora com a amargura. E ao atribuir às
guerras da época a causa do encolhimento progressivo do espaço concedido pelos jornais às tramas de
folhetim, o cronista reconhecia, a seu modo, que o núcleo vital do jornalismo é a narração da atualidade, não
a liberdade ficcional da literatura. Por essa, e não por qualquer outra razão, a guerra expulsou dos jornais o
folhetim, mas não conseguiu expulsar a crônica.
2. No curso da História
A História nos ensina que todas as razões de ser e evoluir do jornalismo estão vinculadas à atualidade,
isto é, aos atos e fatos da vida real das pessoas, e às suas circunstâncias, na dimensão do presente. Depois de
Gutenberg, mas ainda nos idos tempos das velhas monarquias, em que os senhores da terra, do ouro e do
gosto eram também donos dos súditos, os pobres e os fracos nem pessoas eram. E nos espaços impressos de
um jornalismo que se manifestava em artigos, brigavam entre si os ilustres senhores das elites - às vezes por
boas e históricas causas, diga-se de passagem.
Depois, no decorrer dos anos, a experiência humana de viver expandiu fronteiras e lutas pela
afirmação da dignidade humana, nos cenários político-sociais. E na sábia combinação entre avanços
civilizatórios e avanços técnico-científicos, o jornalismo foi crescendo e evoluindo, tanto em importância
como espaço público dos conflitos, quanto em eficácia como linguagem de relato e comentário dos
acontecimentos relevantes da atualidade.
Assim, o articulismo , que reinou absoluto até meados do século XIX, teve de ceder espaço à rapidez
da notícia, e ao seu poder de interferência na realidade, depois que o telégrafo viabilizou as agências
noticiosas, nas quais se inventaram e universalizaram formas (estilísticas e técnicas) de informar com
precisão e rapidez, superando distâncias. E o vigor político-social da notícia se tornou decisivo nas
sociedades modernas, depois que a invenção quase simultânea da rotativa, da linotipo, da fotografia e da
clicheria tornou possível o aumento das tiragens dos jornais em escala industrial e o desenvolvimento das
linguagens gráficas.
A notícia chegava assim cada vez mais longe, e mais rapidamente, adequando-se ao ritmo vital da
atualidade. Ao mesmo tempo, dialeticamente, o jornalismo impunha à atualidade o ritmo da própria notícia.
E isso se dava no âmago das lutas que elaboravam os avanços civilizatórios, manifestados em formas de
organização democrática aperfeiçoadas por ideários gerados nos mecanismos político-culturais.
Na criativa combinação entre os avanços democráticos e o ininterrupto surgimento de novas
tecnologias de comunicação, o jornalismo aumentou e aperfeiçoou, progressivamente, a sua capacidade de
responder às novas e crescentes demandas sociais por informação, debate e explicação. Assim surgiram a
reportagem e a entrevista, no final do século XIX; assim se desenvolveu a reportagem em suas diversas
espécies, ao longo do século XX, incluindo-se aí a grande reportagem da guerra e do pós-guerra. Sempre
inserida na dinâmica da atualidade..E com espaços e liberdades para um jornalismo de autor.
3. Cada arte no seu galho...
Claro que esse processo teve fases de crise. Numa delas, quando o fascínio da televisão parecia
ameaçar o futuro dos jornais, ocorreu o tal fenômeno do “jornalismo literário”. Grandes escritores, já
consagrados, e grandes jornalistas com vocação e talento de escritores, passaram a dispor de espaços
generosos, para oferecer ao público prazeres de leitura antes só acessíveis a quem podia ler livros.
O fenômeno durou poucos anos, porque logo se descobriu que o espaço da literatura está nos livros,
não nos jornais. E ainda bem que assim foi. Porque o tal “jornalismo literário”, expulso dos jornais em plena
aurora da sociedade informacional, explode hoje em livros importantes assinados por jornalistas escritores.
A verdade é simples e está aí, aos olhos de quem quiser ver: o jornalismo literário passou
verdadeiramente a existir depois que saiu das limitações dos jornais e ganhou as liberdades estilísticas e
espaciais do livro.
O I Salão Nacional do Jornalista Escritor foi emocionante e grandiosa demonstração de que o
jornalismo literário não morreu. Ao contrário: está aí vivo, no lugar certo, em estantes de livrarias,
exuberante na quantidade impressionante de bons livros-reportagem e ótimas biografias, em obras
jornalísticas tão inseridas na dinâmica da atualidade quanto os contundentes noticiários do dia-a-dia.
Quanto à bobagem de se dizer que só o “jornalismo literário” tem a dignidade e a arte do bom texto, é
apenas isso, uma bobagem. Textos bons e ruins existem em todos os formatos e estilos. No jornalismo da
cobertura e do debate dos fatos como em não poucas obras ditas literárias, que circulam por aí em formato
de livro.
O jornalismo de relato e comentário do dia-a-dia é tão indispensável que até o jornalismo literário – o
verdadeiro, esse que o Salão Nacional do Jornalista Escritor mostrou e debateu – precisa dele, para nele
divulgar, debater e promover suas obras. E os jornalistas escritores sabem muito bem que o percurso do
sucesso inclui a notícia, a resenha crítica e as entrevistas com o autor.
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A propósito, acabei de ler o belo, premiado e bem divulgado livro O Chão de Graciliano, de Audálio
Dantas (texto) e Tiago Santana (fotos). Na próxima semana escreverei sobre essa obra. Sem fazer jornalismo
literário. Mas tentando escrever corretamente, com a clareza e a precisão que se espera de qualquer texto
jornalístico. E com a beleza que os meus limites permitirem.
(*) Manuel Carlos Chaparro é doutor em Ciências da Comunicação e professor livre-docente
(aposentado) do Departamento de Jornalismo e Editoração, na Escola de Comunicações e Artes, da
Universidade de São Paulo, onde continua a orientar teses. É também jornalista, desde 1957. Com
trabalhos individuais de reportagem, foi quatro vezes distinguido no Prêmio Esso de Jornalismo. No
percurso acadêmico, dedicou-se ao estudo do discurso jornalístico, em projetos de pesquisa sobre gêneros
jornalísticos, teoria do acontecimento e ação das fontes. Tem quatro livros publicados, sobre jornalismo. E
um livro-reportagem, lançado em 2006 pela Hucitec. Foi presidente da Intercom, entre 1989-1991. É
conselheiro da ABI em São Paulo e membro do Conselho de Ética da Abracom.

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