O XIS DA QUESTÃO – O I Salão Nacional do Jornalista Escritor foi emocionante e grandiosa demonstração de que o jornalismo literário não morreu. Ao contrário: está aí vivo, no lugar certo, em estantes de livrarias, exuberante na quantidade impressionante de bons livros-reportagem e ótimas biografias - obras jornalísticas tão inseridos na dinâmica da atualidade quanto os contundentes noticiários do dia-a-dia. 1. A vitória da guerra... Sempre que ouço lamentos em torno daquilo que alguns consideram “o desaparecimento do jornalismo literário”, vem-me à lembrança um belo texto de Ramalho Ortigão, publicado creio que em 1856 em certo periódico do Porto, no qual o amigo e colega de letras de Eça de Queiroz lamentava a morte do gênero Folhetim. Fazia-o em jeito de predição: “A guerra expulsa o folhetim das páginas dos jornais” escrevia ele – e peço desculpas pela ousadia das aspas em citação feita de memória, já que o livro onde li a crônica de Ramalho Ortigão não está mais comigo; ofereci-o, já lá se vão anos, à minha amiga e colega de USP Terezinha Tagé Dias Fernandes, uma das teóricas brasileiras que melhor percorre os espaços de interação entre jornalismo e literatura. Mas voltemos aos lamentos de Ramalho Ortigão, que anunciou a morte do folhetim. Tal como Eça, Ramalho ocupava espaço e função de cronista na imprensa lusitana, na prática rebelde da crítica aos costumes, modismos e poderes conservadores do seu tempo. Nessa arte, a de cronista, foi quase tão bom quanto Eça no uso mordaz da ironia, em cruzamentos ora com o humor ora com a amargura. E ao atribuir às guerras da época a causa do encolhimento progressivo do espaço concedido pelos jornais às tramas de folhetim, o cronista reconhecia, a seu modo, que o núcleo vital do jornalismo é a narração da atualidade, não a liberdade ficcional da literatura. Por essa, e não por qualquer outra razão, a guerra expulsou dos jornais o folhetim, mas não conseguiu expulsar a crônica. 2. No curso da História A História nos ensina que todas as razões de ser e evoluir do jornalismo estão vinculadas à atualidade, isto é, aos atos e fatos da vida real das pessoas, e às suas circunstâncias, na dimensão do presente. Depois de Gutenberg, mas ainda nos idos tempos das velhas monarquias, em que os senhores da terra, do ouro e do gosto eram também donos dos súditos, os pobres e os fracos nem pessoas eram. E nos espaços impressos de um jornalismo que se manifestava em artigos, brigavam entre si os ilustres senhores das elites - às vezes por boas e históricas causas, diga-se de passagem. Depois, no decorrer dos anos, a experiência humana de viver expandiu fronteiras e lutas pela afirmação da dignidade humana, nos cenários político-sociais. E na sábia combinação entre avanços civilizatórios e avanços técnico-científicos, o jornalismo foi crescendo e evoluindo, tanto em importância como espaço público dos conflitos, quanto em eficácia como linguagem de relato e comentário dos acontecimentos relevantes da atualidade. Assim, o articulismo , que reinou absoluto até meados do século XIX, teve de ceder espaço à rapidez da notícia, e ao seu poder de interferência na realidade, depois que o telégrafo viabilizou as agências noticiosas, nas quais se inventaram e universalizaram formas (estilísticas e técnicas) de informar com precisão e rapidez, superando distâncias. E o vigor político-social da notícia se tornou decisivo nas sociedades modernas, depois que a invenção quase simultânea da rotativa, da linotipo, da fotografia e da clicheria tornou possível o aumento das tiragens dos jornais em escala industrial e o desenvolvimento das linguagens gráficas. A notícia chegava assim cada vez mais longe, e mais rapidamente, adequando-se ao ritmo vital da atualidade. Ao mesmo tempo, dialeticamente, o jornalismo impunha à atualidade o ritmo da própria notícia. E isso se dava no âmago das lutas que elaboravam os avanços civilizatórios, manifestados em formas de organização democrática aperfeiçoadas por ideários gerados nos mecanismos político-culturais. Na criativa combinação entre os avanços democráticos e o ininterrupto surgimento de novas tecnologias de comunicação, o jornalismo aumentou e aperfeiçoou, progressivamente, a sua capacidade de responder às novas e crescentes demandas sociais por informação, debate e explicação. Assim surgiram a reportagem e a entrevista, no final do século XIX; assim se desenvolveu a reportagem em suas diversas espécies, ao longo do século XX, incluindo-se aí a grande reportagem da guerra e do pós-guerra. Sempre inserida na dinâmica da atualidade..E com espaços e liberdades para um jornalismo de autor. 3. Cada arte no seu galho... Claro que esse processo teve fases de crise. Numa delas, quando o fascínio da televisão parecia ameaçar o futuro dos jornais, ocorreu o tal fenômeno do “jornalismo literário”. Grandes escritores, já consagrados, e grandes jornalistas com vocação e talento de escritores, passaram a dispor de espaços generosos, para oferecer ao público prazeres de leitura antes só acessíveis a quem podia ler livros. O fenômeno durou poucos anos, porque logo se descobriu que o espaço da literatura está nos livros, não nos jornais. E ainda bem que assim foi. Porque o tal “jornalismo literário”, expulso dos jornais em plena aurora da sociedade informacional, explode hoje em livros importantes assinados por jornalistas escritores. A verdade é simples e está aí, aos olhos de quem quiser ver: o jornalismo literário passou verdadeiramente a existir depois que saiu das limitações dos jornais e ganhou as liberdades estilísticas e espaciais do livro. O I Salão Nacional do Jornalista Escritor foi emocionante e grandiosa demonstração de que o jornalismo literário não morreu. Ao contrário: está aí vivo, no lugar certo, em estantes de livrarias, exuberante na quantidade impressionante de bons livros-reportagem e ótimas biografias, em obras jornalísticas tão inseridas na dinâmica da atualidade quanto os contundentes noticiários do dia-a-dia. Quanto à bobagem de se dizer que só o “jornalismo literário” tem a dignidade e a arte do bom texto, é apenas isso, uma bobagem. Textos bons e ruins existem em todos os formatos e estilos. No jornalismo da cobertura e do debate dos fatos como em não poucas obras ditas literárias, que circulam por aí em formato de livro. O jornalismo de relato e comentário do dia-a-dia é tão indispensável que até o jornalismo literário – o verdadeiro, esse que o Salão Nacional do Jornalista Escritor mostrou e debateu – precisa dele, para nele divulgar, debater e promover suas obras. E os jornalistas escritores sabem muito bem que o percurso do sucesso inclui a notícia, a resenha crítica e as entrevistas com o autor. ****** A propósito, acabei de ler o belo, premiado e bem divulgado livro O Chão de Graciliano, de Audálio Dantas (texto) e Tiago Santana (fotos). Na próxima semana escreverei sobre essa obra. Sem fazer jornalismo literário. Mas tentando escrever corretamente, com a clareza e a precisão que se espera de qualquer texto jornalístico. E com a beleza que os meus limites permitirem. (*) Manuel Carlos Chaparro é doutor em Ciências da Comunicação e professor livre-docente (aposentado) do Departamento de Jornalismo e Editoração, na Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo, onde continua a orientar teses. É também jornalista, desde 1957. Com trabalhos individuais de reportagem, foi quatro vezes distinguido no Prêmio Esso de Jornalismo. No percurso acadêmico, dedicou-se ao estudo do discurso jornalístico, em projetos de pesquisa sobre gêneros jornalísticos, teoria do acontecimento e ação das fontes. Tem quatro livros publicados, sobre jornalismo. E um livro-reportagem, lançado em 2006 pela Hucitec. Foi presidente da Intercom, entre 1989-1991. É conselheiro da ABI em São Paulo e membro do Conselho de Ética da Abracom.