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Beatriz Sarlo Tempo Presente Notas sobre a mudanga de uma cultura Tradugio Luis Carlos Cabral JOSE OLYMPIO EDITORA BIBLIOTECA ‘PROF. JOSE G. VIEIRA escola em crise ntre o Estado e o mercado ivernius uma crise educacional para a qual contribuiram, com iferentes niveis de responsabilidade, o achincalhamento do stado e as caracteristicas mercantis da cultura juvenil. Nao 4, para ela, solugdes pedagdgicas que sejam independentes le medidas sociais e polfticas. E quase um lugar-comum dizer que a escola média esta- al foi transformada em um hangar gigantesco freqiientado por adolescentes ao longo dos anos que os separam da uni- versidade e do momento de ingresso no mercado de traba- Tho. A ruptura da ordem tradicional néo levou a invengao de uma nova escala de valores. O vazio de significados afeta tanto os estudantes como os professores. Estes, por outro lado, sao 0 corpo vitimado que suporta a miséria previstvel: seus salé- rios nio contemplam nem o periodo de preparagao das au- las, nem a.atualizagiéo metodolégica, nem a procura de uma teia que una o saber a cultura dos estudantes. Aescola carece de ideais para transmitire isto afeta desde o ensino da lingua até a discussio de temas. morais. Nao se trata de um fendme- no tipicamente argentino, mas na Argentina ele € mais agudo em conseqiiéncia das dificuldades econdmicas e da deterio- racio institucional. 100 BEATRIZ SARLO Sabemos que a cultura da palavra esta em dificuldade no mundo inteiro. Administradores norte-americanos olham com inveja o desempenho das criangas japonesas, disciplinadas como samurais; também na Europa ha hoje uma preocupagao com a queda dos padrées, sobretudo nas disciplinas huma- nisticas. A crise da alfabetizacao nao afeta apenas os margi- nalizados, mas também os filhos da classe média urbana e dos segmentos operarios organizadaos. Esses problemas comuns agravam-se porque instituigdes ji débeis estao sendo ainda mais fragilizadas pelos progra- mas de reestruturagéo econdmica e de redimensionamento do Estado. A administragdo escolar nao est4 em condicgdes de garantir a qualidade da educagio numa época em que a cultura juvenil se contrapée a cultura letrada no campo de batalha simbélico representado pelos meios de comunicagéo de massa. Aescola (se diz) poderia beneficiar-se e aumentar sua efi- ciéncia aproveitando as habilidades aprendidas por seus alu- nos em outros lugares: a velocidade do feeling adquirido nos videogames, a capacidade de compreensao e resposta 4 super- exposicéo de mensagens dos clipes; os contetidos familiares € exdticos proporcionados pelos diversos meios. Seria absur- do discutir essas hipéteses benévolas. Nao tenho divida, no entanto, de que deveriamos poder dizer se essas habilidades e esses conhecimentos sfo suficientes para a aquisicéo de outras habilidades e conhecimentos, como 4 argumentacdo, a preciséo verbal, a escrita, instrumentos que s4o, até prova em contrario, indispens4veis no mundo da politica e do trabalho. As escolas podem usar as habilidades adquiridas pelos teles- pectadores apenas até certo ponto. Os telespectadores teréo um dia que virar leitores e uma p4gina muito simples ser4 TEMPO PRESENTE tol capaz de oferecer dificuldades que s6 poderao ser enfrenta- das através do uso de instrumentos diferentes daqueles ad- quiridos através da cultura do video. : Aaquisigéo de uma cultura comum € um ideal democrati- co que pode ser reinventado através da ampliacdo do plura- lismo, e este nao deveria ser desprezado. Ele supde uma série de processos de corte e néo simplesmente de continuidade do cotidiano, Aprende-se 9 que ndo se sabe: os textos literarios, os discursos histéricos e cientificos, os relatos das culturas populares ¢ orais, as obras de arte cultas e 0 folclore. Aescola é, para os adolescentes, o lugar da pobreza sim- bélica porque € um espaco nao exclusivo nem hegemonica- mente mass-mididtico. Por isso, tem dificuldade de articular novas sinteses culturais. E isto tem conseqiiéncias funestas quando se pensa nos segmentos da sociedade para quem a escola é 0 tnico meio de apropriacao dos elementos de uma cultura que ndo seja mass-mididtica, Na Argentina, 0 que o Estado deixou de fazer nao poder ser realizado por ninguém. A distribuicdo desigual das opor- tunidades educacionais é mais do que injusta: é, simplesmen- te, criminosa. Ela entrega o futuro a uma batalha regida pela lei de que cada um deve se virar como puder, adotando suas préprias receitas e de acordo com a capacidade de decisio de familias abandonadas a si mesmas. A configuracdo da socie- dade do futuro passa a depender da competéncia das forcas do mercado educacional. E, para coroar esta entrega, a cultu- ra juvenil fica subordinada ao mercado dos massmedia. Tal dinamica néo tem contrapesos. Quando a administragio educacional perde poder e recursos, os grandes ministros da Educacio sAo, na verdade, os gerentes e programadores do mercado, cujos valores nao incentivam o surgimento de uma 102 BEATRIZ SARLO sociedade de cidad4os iguais e sim o de uma rede de consu- midores fiéis. Lugares-comuns “Um ensino tecnicamente moderno deve preparar para o tra- balho e ser, também, interessante para os alunos.” Nao estou simplificando ao resumir desta forma uma ideologia difusa, abracada por muitos dos protagonistas do processo educativo, de autoridades governamentais a docentes inovadores. A frase parece inécua. E apenas um lugar-comum usado para enfren- tar anos e anos de faléncia da educacSo argentina. Nao ha davida de que trabalharam e trabalham no Ministério da Edu- cagio técnicos que nado pensam assim, mas a repeticdo desse tipo de banalidade indica que é necessario lev4-la a sério. Gostaria de recordar um texto escrito ha setenta anos pelo pensador italiano Antonio Gramsci. Analisando a escola ita- liana, ele chamava a atengiio para os perigos de um ensino demasiadamente empenhado em transmitir habilidades es- pecificas, voltadas para as exigéncias do mundo do trabalho e n4o para fornecer conhecimentos gerais e humanisticos (o adjetivo é de Gramsci). Ele alertava para o perigo de uma escola que pudesse reforcar as desigualdades sociais e cultu- rais. Uma escola que se proponha, fundamentalmente, a preparar os estudantes para o mundo do trabalho tende a espe- Cializar-se em funcio das categorias laborais requisitadas pelo mercado. Produz futuros escriturarios, empregados do setor terciério ou operdrios, sem levar em conta uma fragilidade adicional: ninguém sabe muito bem como estard o trabalho na Argentina daqui a quinze anos. TEMPO PRESENTE 403 O que a politica adotada pretende é que os jovens das camadas mais pobres ou da baixa classe média vivam na es- cola uma antecipagao dos canais pelos quais as suas vidas correrao, Uma escola desse tipo, em vez de possibilitar uma mudanga de expectativas, confirma o destino social de ori- gem. A ela, Gramsci opunha um outro tipo de educacio, que chamava de humanistica, na qual a igualdade de oportuni- dades culturais compensaria as desigualdades sociais. Além do mais, 0 que quer dizer “preparar para o traba- lho?”. No inicio do furor da informética, proliferaram-se como fungos cursos privados que, em nome do futuro, ensinavam aos meninos a linguagem da programacao. Isso n&o aconteceu ha meio século, mas hé dez ou doze anos. Hoje, todo mundo sabe que os softwares tornaram supérfluo qualquer conheci- mento da linguagem de programagdo. Assim, as hipdteses que parecem estar hoje na crista de uma onda modernizadora podem revelar-se dolorosamente arcaicas pouco tempo depois. A educacao que Gramsci chamava de humanfstica nio pode ser vitima de uma rapida obsolescéncia: a formacdo intelec- tual dos cidadaos tem hoje o mesmo valor que tinha h4 dez anos €, se vista sob a 6tica da compreensio dos direitos dos cidadaos, é mais forte do que o conhecimento da informatica. Gramsci também analisou a premissa de que a escola deve ensinar a aprender, pois assim estaria evitando a transmiss30 passiva de conhecimentos. Os alunos aprenderiam a pensar a partir de contetidos minimos de pensamento. A concretizacio completa deste principio nao € desejavel. A escola nfo deve oferecer apenas uma maquina formal, mas também a substan- cia que esta maquina processa. Afirmar que tal substancia vem das criancas, que a extraem da televisio, da prépria experiéncia ou de suas descobertas implica acreditar numa espécie de auto- 404 BEATRIZ SARLO abastecimento infantil que é de todo improvavel. E, logica- mente, reforca as desigualdades sociais originais. Sem ditvida, a pedagogia tem demonstrado ha bastante tempo que as criangas ndo sdo t4buas rasas nas quais se escre- ve uma educacio. Sem divida, as criancas conhecem muitas coisas, Mas esse conhecimento da vida, embora forte, tam- bém € limitado. Toda a cultura que conhecemos (desde as regras de com- portamento 4 mesa ou em banheiros, avides ou concertos mu- sicais) € uma construgio edificada em um sentido que vai contra a espontaneidade. A cultura é sempre um corte, um desvio ou uma supressio dos nossos impulsos. A escola é um dos lugares onde esse corte deve ser feito de maneira menos autoritéria. O critério de priorizar aquilo “que inte- tessa As criangas” é apenas um ponto de partida, nio um instrumento de uma chantagem que possa converter a trans- missio cultural em um simulacro pdlido e demagégico da cultura adolescente. Por outro lado, a escola nado é imune A crise das institui- g6es. Consideradas desde os anos sessenta como um aparato de reproducdo das relagées sociais, as tendéncias mais pro- gressistas da educacdo chegaram a uma encruzilhada na qual, uma vez criticado o autoritarismo da escola autorit4ria, nao se conseguiu construir, para substitui-la, um lugar autorizado, mas nao autoritdrio, onde as diferencas entre professores e alu- nos no originassem uma pratica disciplinar feroz, mas se mantivessem ao mesmo tempo no papel de motor da ativi- dade docente. A ladainha de que alunos e professores so en- tidades simétricas no resolve os problemas da transmissao de conhecimentos e habilidades. Aquilo que os alunos apren- dem com os professores continua sendo @ problema da escola. TEMPO PRESENTE 105 Na escola esto em aco as resisténcias e os conflitos de uma cultura. Ignorar esse dado lembra um preceito hippie pate- ticamente inadequado & vida. Afinal, o reconhecimento dos limites € 0 impulso da transformagao e da ruptura, A escola deve entrar no show business? Um episédio bastante elucidativo dessas questées: hé pouco tempo, uma filha de exilados argentinos que vive na Franca falava dos exames que prestara para tornar-se bacharel. Ela tem vinte anos e estava orgulhosa do esforco feito durante mais de um ano para estudar uma lista quase intermindvel de livros de literatura francesa, obrigatérios até para estudan- tes que optam por carreiras cientificas ou técnicas. O exame escrito de literatura dura quatro horas, € o oral, cerca de trin- ta minutos. No exame escrito, os estudantes tém de fazer uma dissertacdo sobre um tema literdrio, que inclui duas teses anta- gonicas e sua discussao, analisar um texto que so Ihes é en- tregue no momento da prova e responder com dissertagées mais curtas a outras duas questdes. Escrever corretamente do ponto de vista ortografico é uma condigdo elementar, que se da por previamente adquirida. O que qualifica o estudante é a logica da sua argumentacio, a sintaxe, a fluidez do texto € o conhecimento das obras que analisa. Acscola francesa é publica e gratuita; ela enfrenta, como todas as escolas do planeta, problemas graves: como incor- porar, sem intimidar nem reprimir culturalmente, as crian- gas de origem Arabe? Como transmitir uma cultura tradicional que tem séculos de existéncia adaptando-se ao mesmo tem- po as transformagées do presente? Esta € uma escola que foi 106 BEATRIZ SARLO- reformada varias vezes desde o movimento de Maio de 1968. E uma escola permanentemente discutida, considerada por muitos demasiadamente nacionalista em relagao aos imigran- tes e demasiadamente autoritaria, mas cujo nivel de excelén- cia, de gratuidade e de laicismo muitos estao dispostos a defender. Seus professores so individuos respeitados, que nao precisam da compaixdo do resto da populacdo. E umaescola que cumpre com suas tarefas e, se incentiva alguma coisa, esta é a insurreig&o, e ndo a indiferenca ou a desilusao. E muito provavel que os textos literarios da ampla lista que os pequenos franceses tém de estudar para o exame de bacha- relado nAo se relacionem diretamente com seus interesses ime- diatos. E possfvel, também, que nenhum professor de liceu francés faca esforcos descomunais para revelar, em suas aulas, quais as relagdes da tiltima banda de rock com uma tragédia de Racine ou Os miserdveis de Victor Hugo. A lista de textos para o exame de bacharelado nao esta embebida das interessantes peripécias da vida cotidiana dos adolescentes, nem Ihes ofere- ce dados, fatos ou personagens que possam confundir-se facil- mente com os do imagindrio juvenil, A lista leva em conta, simplesmente, que os jovens fazem parte de uma cultura, e essa cultura é um patriménio, uma marca de identidade e um direito. As leituras obrigatérias podem entrar em conflito com outras marcas de identidade, mas a escola nao abdica da sua participacio nesse conflito, e age como parte ativa do cendrio social, formado por jovens que se preparam para o exame, Es- tado francés, instituico escolar, cultura nacional, cultura ju- venil, enfim, elementos misturados em uma configuracéo que muitos pedagogos argentinos considerariam explosiva. Sim, nés devemos ser muito mais espertos do que os fran- ceses. Nao perdemos a oportunidade de estabelecer relagoes TEMPO PRESENTE 107 entre a obra do grupo de rock Dividides e os pequenos céus patriéticos do poeta rio-platense Bartolomé Hidalgo. Afinal, nossos professores tém tempo para procurar esses pontos de contato em sua imaginacao. Nossa escola corteja o mundo dos jovens, em vez de hes oferecer a alternativa de conhecer outros mundos. Nossa escola é juvenilista. As escolas consi- deradas mais avancadas sio aquelas que adulam os jovens, ¢ que’ chegam a traté-los como clientes, Este viés mercantil “progré” fica evidente quando se ouve falar, o que é rotinei- ro, em prover a escola de contetidos que sejam interessantes para os jovens. Ninguém explica, no entanto, o que deve ser ‘entendido como “interessante”. A esta altura, est4 claro que _estamos falando das escolas voltadas para jovens das classes imédia e alta. As outras, destinadas aos pobres, pertencem ao ino da necessidade. A palavra “interessante” da inicio a todo um problema. Muitos acham que a escola tem de preparar os jovens para 0 mundo do trabalho. Bem, af est4 o mundo dos que tém tra- alho, um mundo cheio de coisas interessantes: hordrios extensos que devem ser escrupulosamente respeitados; obe- iéncia a uma disciplina severa imposta pela escassez de pos- s de trabalho versus abundancia de mao-de-obra; execugado le tarefas repetitivas até nos postos considerados mais cria- ivos; aprendizagem de técnicas alheias Aquilo que as pessoas d lesejam aprender; cumprimento de rotinas cotidianas até em — que deveriam ser inovadoras; medo permanente de chefes que podem demitir por qualquer falha menor. Temos varias perguntas a fazer. Como a escola age para stabelecer uma relagdo do jovem com o mundo do trabalho? Gnico papel da escola é 0 de prepard-lo para o mercado de balho ou ela deve transmitir uma cultura? A escola é uma 108 BEATRIZ SARLO amiga dos jovens (como se fosse um pai cimplice) ou é uma instituicéo cuja funcZo nao é divertir, mas propor praticas provavelmente menos interessantes, mais tediosas e, portan- to, mais realistas, que reflitam melhor o que € o mundo do trabalho e, mais, a vida, simplesmente a vida? Sem davida, a escola tem de levar em consideracéo todas essas alternativas, sem aceitar, de imediato, que os outros, os jovens, possam nao se interessar jamais por aquilo que acon- tece fora do.circuito da MTV. Basicamente, a escola tem que se apresentar a todos os jovens como o espago universal que foi quando seus avés eram meninos, filhos de imigrantes euro-. peus ou de imigrantes do interior que encontraram nela nao um teatro mais interessante do que as novelas de radio que eles escutavam certamente com paixfo, mas sim um teatro . diferente e, provavelmente por isso, ela lhes foi medianamente interessante e medianamente util.

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