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PIERRE NORA, OUO HISTORIADOR DA MEMORIA Ana Claudia Fonseca Brefe” Além de seu certo reconhecimento internacional, Pierre Nora é um dos historiadores mais conhecidos na Franga, sobretudo depois da organiza- 0 de obras coletivas como Faire de "Histoire e, mais recentemente, Les liewx de mémoire. Sua producto historiogréfica desenvolveu-se em paralelo & sua carreira de editor numa das mais conhecidas editoras francesas, a Gallimard, onde ele € responsdvel pela publicagtio de grandes nomes das como Michel Foucault, Georges Duby, Jacques Le Goff, Keith Thomas, Eric Hobsbawm, entre outros, Em grande parte, essa condigio profissional “bipartida” explica o seu percurso intelectual que permitiu a realizagao de empresas monumentais, ‘como as citadas Na entrevista que se segue, que nos foi concedida em seu charmoso escritério nas Edigdes Gallimard em Paris, Pierre Nora nos fala de seu per- curso come historiador, destacando os contextos intelectual, politico e histo- riogeifico da Franga a partir dos anos 70, quando sua obra foi produzida. Sobre sua filiagao a Escola dos Annales e & “Nova Histéria’, a res- posta de Nora mostra-se ambfgua, na medida em que ele assinala os tragos que 0 unem & Tereeira Geragiio do Annales, mas essencialmente aqueles que © separam, ou que marcariam a singularidade de seus encaminhamentos. * Doutora em Histéria ~ IFCH-Unicamp. HISTORIA SOCIAL, ‘Campinas = SPT NPS Ba 1999 4 PIERRE NORA, OU © HISTORIADOR DA MEMORIA (O seu interesse pelo estudo da meméria, fruto da constatagio de um conjunto de fendmenos bastante complexos ¢ profundos que marcaram a Franga a partir do inicio dos anos 70, dé 0 tom inovador a seu trabalho, pro- fundamente atento & transformagao das tradigGes francesas ¢, sobretudo, 3 ‘mudanga radical na forma de encaré-las, ‘A anilise da “reviravolta” no campo das tradigBes se Faz pelo estado do sentimento nacional de um ponto de vista novo, ou seja, a partir da valo- rizagao de objetos, na maior parte das vezes, entiio, desprezados pela disci- plina hist6rica. Esse tipo de abordagem, que se distancia das ané cas da questio nacional, se faz pela escolha de um novo método de pesquisa {que consiste, principalmente, em se aproximar dos ebjetos de maneira direta em olhé-los de seu interior. Esse procedimento resultou na eriagfio de um conceito, 0 de lugares de meméria, que foi sendo claborado ao longo do tempo € por meio de uma aproximagao cada vez mais estreita dos objetos ises classi- analisados. Essa nogiio acabou por se tomar um rico instrumental de trabalho para todo historiador preocupado em problematizar a questo nacional, em seu complexo emaranhado tecido entre hist6ria e meméria, seja no ambito focal, fernacional, ainda que a revelia de seu cria- regional, nacional ou mesmo dor, como ele mesmo constata. Histéria Social: Depois da tradugio dos livros Faire de I'Histoire no Brasil, logo depois de sua publicagao na Franga em 1976, seu nome tornou-se co- nhecido no meio das ciéncias humanas. Retomando a apresentagao do pri- meiro volume, entendemos que se trata de uma espécie de balango e de uma reflexio coletiva sobre © que estava acontecendo no campo da histéria, na Franga, desde o final dos anos 60. O senhor poderia nos falar sobre isso? Pierre Nora: Sim. Para entender Faire de I'Histoire & preciso entender que, na minha situagio pessoal na Franga, associei intimamente meu trabalho de editor com 0 de historiador, o que € bastante raro, pois a maior parte dos historiadores so, especialmente, professores universitérios. Quando eu quis ANA CLAUDIA FONSECA BREFE 15 criar a colegio Faire de U'Histoire' La Bibliotheque des Histoires, que se seguiu, ou mais precisamente, duplicou uma outra colegio que eu havia criado antes, La Bibliotheque des Sciences Humaines, eu tina pensado ‘numa espécie de “volume manifesto” que poria em destague os problemas te6ricos epistemolégicos que a disciplina histérica, entao, tinha diante dela. E preciso dizer que, na Franga, depois de L'apologie pour I'Histoire, de Mare Bloch,’ praticamente nao houve um livro que discutisse tais ques- ties, salvo aquele de Henri Marrou, De la connaissance historique, de 953 = portanto vinte anos antes — um livro que questionava a diseiplina historica. ‘Ora, no infcio dos anos 70 houve um enorme trabalho que se operou no inte~ rior da Escola dos Annales e, certamente, gracas a ela, Estévamos em um periodo, eu diria, de virada, um momento em que a experiéncia adquirida dos Annales tinha capitalizado um saber considerdvel em miltiplas diregdes que foi, na época, especialmente a histéria econdmica e social e 0 inicio da hist6ria das mentalidades e, em seguida, um outro perfodo que também vem no fluxo da Escola dos Annales, mas que marca uma grande inflexio no movimento que serd claramente perceptivel no momento em que Faire de U'Histoire ira aparecer. Assim, a hist6ria classica dos Annales, a sua esséncia econdmica € social, serd repentinamente revirada em diversas diregdes que so claras e perceptiveis. Aqucla que Le Goff the daré com a antropologia hist6rica, aquela que Frangois Furet the dard com a hist6ria politica propri amente dita, aquela que outros, como o préprio Duby, Ihe darao com a histé- ria das mentalidades, muito acentuada como a histria artistica e Le Roy Ladurie, no Montailiou, que data de 1975, com esta tentativa, muito dife- rente de sta tese sobre os camponeses do Languedoc, feita no dominio da hist6ria econémica e social. Assim, Faire de I'Histoire se situa exatamente no momento dessa mudanga intema, Meu projeto pessoal, na época, era um "Esse & 0 nome da colegio criada por Piecre Nora na editora Gallimard, em meados dos anos 69, que se dedica & publicagies no campo da Histéria, Traducio em por- tugués: Histéria, novos problemas, novas abardagens, novos ebjetes, 3 volumes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976 2 Traduzido em portugues como: Intradugdo a historia, Buropa-América, 1987. 16 PIERRE NORA, OU 0 HISTORIADOR DA MEMORIA pouco diferente, Ele consistia — e eu havia falado sobre ele com Michel Foucault que tinha se interessado ~ em fazer um livro somente com trés ou quatro pessoas, Foucault, Furet, Le Goff, Le Roy Ladurie e eu, que trocari- ‘amos textos sobre 0 problema da mudanga dos Annales € daquilo que se passava com a historia, Foi Jacques Le Goff, com quem eu me associei, que se empolgou pelo tema ¢ que, de certo modo, transformou esse projeto mais modesto em uma vasta geografia, um vasto inventério, E 0 livro, para dizer a verdade, carrega muitas dessas contradigSes da época, dessas facetas dife- rentes, E um livro que, em muitos sentidos, & pés-marxista, hé somente Pier- re Vilar que ainda faz uma histéria que poderia ser chamada de marxista, mas ela é marcadamente conceituada. E um livro de vanguarda, algumas das novidades que marcam a época seguinte como (através do meu artigo sobre © fato)? a histéria contemporanea e a pressio do presente sobre 0 questio- amento do passado; de vanguarda também na dimensao da historiografia, isto &, da histéria da Hist6ria que nao esteve muito presente na reflexao dos hristoriadores antes e que ganharé uma importéncia cada vez maior; de van- guarda ainda no caso de algumas tentativas da época que mio deram os fru- tos esperados, como a histéria psicanalitica, através de Besangon,* cujo tra- batho no deu em grande coisa. Dessa forma, em varios sentidos, Faire de FHistoire reflete, ao mesmo tempo, um amadurecimento da época, uma virada, ¢ as contradigdes que esse periodo ainda exprimia. O livro teve, para mim, um sucesso completamente inesperado, porque eu enxergava suas falhas, suas contradigGes, seus defeitos; eu no via aquilo que o grande pi blico via nele, isto é, a primeira demonstragao publica daquilo que nds cha- ‘mamos a Nova Histéria. De resto foi uma das discussdes que tivemos com Jacques Le Goff, que € provavelmente um dos melhores representantes de ‘sua gerago na histéria dos Annales, que quis que marcassemos esse “mani- festo" de forma mais clara, do lado da Histéria chamada de Nova. E cu pes- * Nora, Pierre. “O retorno do fato". Jn: Le Golf, comp. Histéria: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. Besangon, Alain, Histoire et expérience du moi (1971) [ANA CLAUDIA FONSECA BREFE, 0 soalmente, na Gallimard, ndo queria que a Hist6ria fosse ou parecesse a expressio da Ecole des Hautes Etudes, mas englobasse de maneira mais ¢geral os problemas intelectuais que se punham & disciplina, Por isso, para escrever os artigos do livro, preferi escother amplamente pessoas que no pertencessem ainda completamente ~ ou gue parecessem néo pertencer & Escola dos Annales, ou seja, no a Nova Historia, mas, digamos o que havin de novo na histéria em geral, Em resumo, nao fazer dele um manifesto de escola. De todo modo, foi assim que pareceu ao grande piiblico ¢ foi nessa ‘medida que o livro foi, muito provavelmente, um grande sucesso. Histéria Social: Quatro anos depois da publicagio de Faire de U'Histoire, Jacques Le Goff e Jacques Revel publicaram La Nouvelle Histoire, uma ‘obra também coletiva, organizada & maneira de um diciondrio, Para alguns autores, essa obra é considerada como o manifesto de uma nova geragio de historiadores, ao mesmo tempo, herdeiros e desertores da Escola dos Anna- les. © senhor concordaria em chamar esse grupo de historiadores de Tercei- ra Geragio dos Annales? O senhor se considera pertencente a ela? Pierre Nora: Sim, € incontestavelmente a Terceira Geragio dos Annales que far o livro que vocé mencionow ¢ ele & a consegiiéncia direta de Faire de UHistoire ¢ da discussio sobre a qual eu Ihe falei, No fundo, Le Goff, um pouco insatisfeito com o catéter marcadamente geral, muito pouco Nova Histéria, aceitou, com muito prazer, fazer um diciondrio, dessa vez, franca- mente chamado de La Nouvelle Histoire. Mas, voc® sabe, é preciso nfo exa- sgerar. Na época foi uma espécie de vontade social ¢ é muito natural que, logo apés a publicaglo do Faire de I’Histoire, cle tivesse sido desejado de uma outra forma, no formato de um diciondrio. Mas, com efeito, e voce tem raziio de assinalar, aconteceu algo de profundo sobre © que nds voltaremos * Parcialmente traduzido em portugues com o titulo: A Histéria Nova. Si0 Paulo: Martins Fontes, 1990. 18 PIERRE NORA, OU O HISTORIADOR DA MEMORIA mais adiante, entre Faire de U'Histoire e La Nouvelle Histoire; nfo seria algo realmente chocante, ¢ eu iniimeras vezes assinalei que no Faire de PHistoire nfo haja nada sobre a meméria, nem uma s6 palavra sobre esse aspecto que, 20 menos para mim, ganharia uma imensa importincia? Ao passo que, em 1978, para 0 seu dicionério sobre a Nova Hist6ria, Le Goff me pediu varios artigos, “Meméria coletiva”, “Tempo presente”, que mani- festavam a emergéncia dessa dimensiio, Retomando sua questo sobre a geragdo a que pertengo. E evidemte que a Primeira Geragio dos Annales & aquela de Lucien Febvre ¢ Mare Bloch, que a Segunda Geragio € aquela de Braudel ¢ de Labrousse © que a ‘Terceira é aquela de Le Roy Ladurie, Le Goff, Frangois Furet, por exemplo. Porém, para chegar até mim, que & precisamente sua questo, se eu pertengo a essa geragio, sim € nao. Sim. Todos eles tém cinco ou dez anos a mais do gue ev. Eu sou um pouco mais jovem, mas intelectualmente so todos ami- ‘gos com os quais trabalhei. E do ponto de vista intelectual, entdo, que eu vou falar. Os Annales foram muito lentos em admitir, no seio mesmo da Ecole des Hawes Etudes, a histéria propriamente contemporanea. Na Fran- a, ela permaneceu um monopélio da Sorbonne ¢ da universidade clissica, dominada por uma grande personalidade que estudava a Hist6ria das Rela~ ‘g6es Internacionais e que foi o senhor Pierre Renouvin. Conseqiientemente, aqueles que pretendiam fazer hist6ria contempornea, como era 0 meu caso, eram obrigados a recorrer a Renouvin, mais do que & Ecole des Hautes Ewe des. De fato, foi necessério esperar a saida de Braudel para que a Ecole des Hautes Etudes se interessasse pela histéria dita contemporinea e a desen- volvesse. E isso se deu, ento, quando Le Goff ou Furet foram presidentes da Ecole des Hautes Etudes, depois da saida de Braudel, Muitas vezes foi dito que Faire de I'Histoire foi, no fundo, o fim simbslico da época “brau- deliana” € o inicio de uma outra época. E justamente sobre essa geracio que ‘estou falando. E preciso dizer que os problemas do quais tratei ai, sejam aqueles da meméria, em particular, sejam aqueles da érbita e da heranga dos Annales, pois é esta a sua questio. A resposta é muito clara, Se considerar- mos a Escola dos Annales essencialmente ligada a essa histéria estritamente ANA CLAUDIA FONSECA BREFE 19 econdmica e social, do anos 50 e 60, certo que aquilo que eu ago niio fax parte, mas inaugura, ou pertence a um outro dominio intelectual evidente, Se quisermos considerar que a Escola dos Annales ndo se resume a um desses momentos, mas consiste num acolhimento e numa abertura quase perma- nente a uma renovagiio em profundidade da histéria, neste momento, claro ‘que a hist6ria da meméria que eu procurava desenvolver vinha na finha di- reta dos problemas que teriam certamente apaixonado pessoas como Lucien Febvre ou Mare Bloch de Rois Thawmaturges, pot exemplo. Ou mesmo pessoas como Le Goff, que se adaptaram e se interessaram completamente, e outros historiadores menos conhecidos da época, como Alphonse Du- pront,° que conhecemos por seu livro sobre 0 mito das cruzadas € que foi da zperagio de Braudel, mas que se interessava pela hist6ria cultural, ideolégica, religiosa, pela antropologia religiosa, tais autores se apaixonariam por meu projeto de uma historia da meméria, Portanto, resposta obrigatoriamente ambigua, claramente negativa no que se refere & histéria econdmica e social, muita mais flexivel, em se tratando de uma histéria bastante aberta Historia Social: Entre a publicagao do Faire de l'Histoire e La Nouvelle Histoire se passaram menos de quatro anos, mas notamos que algo acontece, pois temas que no apareceram no primeito livro, como “meméria coletiva”, slo acrescentados. © que aconteceu, de fato? Pierre Nora: Acontecet alguma coisa em meados dos anos 70 na Franga, sobre a qual tomamos consciéncia apenas retrospectivamente € que na época nio foi percebido, mas que explica exatamente o problema que vocé acaba de assinalar, isto é, a emergéncia desse problema da meméria como preocu- pagio hist6rica. Um desnivelamento, vasto € poderoso, ocorreu, to grande que deve ser atribuido nao a uma ou duas razées locais ¢ precisas, mas a um ® see historiador esereveu uma tese sabre 0 mito das eruzadas, ainda nos anos 50, que pode ser considerada como os primérdios de uma hist6ria cultural. Essa obra foi recentemente publicada por Nora na Bibliotheque des Histoires: Le myrhe des croisades. Pats: Gallimard, 1998, 4 volumes. 20 PreRRE NORA, OU 0 HISTORIADOR DA MEMORIA Conjunto, no qual eu diria que se cruzam inimeros fendmenos, aparente- mente diferentes entre si, mas que, entretanto, se recortam para entrar em ressondncia. Acredito que o primeiro desses fendmenos € 0 fim dos 30 anos de crescimento que acaba brutalmente em 1974, no momento do inicio da crise econémica, na Europa e no mundo, estritamente ligada ao problema do petroleo e a sua subida repentina de prego. Ou talvez, a inversio do cresci ‘mento da sociedade rural trad sio foi muito tardia — que se manteve por mais tempo do que em outros Tu- gares. ‘onal francesa ~ jé que na Franga essa inver E em meados dos anos 70 que aquilo que os sociélogos da vida rural jj assinalavam ha dez ou quinze anos, ou seja, 0 fim das bases rurais france- sas tradicionais, torna-se repentinamente perceptivel para a consciéncia publica ¢ geral, Isso se di de uma maneira muito violenta e seré marcado pelo sucesso de alguns livros como Le cheval d'orgueil, de Jacques Ezelias, ou L'histoire de la vie rurale, publicado em quatro volumes pelas edigdes do Seuil e dirigido por Armand Wallon, os quais mostram bem que repenti- namente a atengao piblica po aquilo que chamamos de vida rural ow mem6- ria rural é uma forma de reconstituigao histérica no momento em que a rea- lidade rural estd prestes a desaparecer violentamente, E justamente em 1975 que os estatfsticos ressaltam que a taxa de po- pulagdo ativa que trabalha na agricultura na Franga cai para menos de 10%, sendo que ela era ainda de 45% no fim da Segunda Guerra. Como se vé, @ queda € mesmo brutal. Assim, com o desaparecimento da velha base cam- ponesa, crista também, enfim da vetha base rural francesa, 0 infcio de uma vasta transformago ou a consciéncia de uma vasta transformagio comeca, mostrando, primeiramente, a consciéncia da perda, a contrapartida dessa renga é 0 desaparecimento dos antigos costumes, das antigas tradigdes, das ntigas paisagens, dos antigos sitios, das antigas culindrias, dos antigos tipos de sociedades, dos antigos artesanatos que ainda restavam, da antiga classe ‘operdria sobre a qual o Partido Comunista Francés foi fundado. E toda uma Franga a respeito da qual temos a impressio de que ela se revira e desapare- ‘ce para sempre. Isso serd certamente um fenémeno de treino da meméria, ANA CLAUDIA FONSECA BREFE au pois ndo se trata de um desaparecimento brutal, ¢ sim de um tuto, de uma presenga fantasmagérica, trata-se de um espectro da antiga Franga que as- sombra o inicio de uma nova. Em resumo, hié todo um fendmeno de memé- ria, de reapropriagtio dessas tradigBes que entra em jogo. Um segundo fend- meno que julgo muito importante € o impacto do desaparecimento de De Gaulle e aquilo que Ihe seguiu, a partir do inicio dos anos 70. E nesse mo- mento que comegamos a tomar consciéncia da importancia do “gaullismo” na tradigao politica, percebendo que ele no foi apenas um fendmeno meio folclérico, ov excepcional, Higado @ uma personalidade que & aquela do ge- neral De Gaulle, Nota-se que 0 “gaullismo” teve efeitos profundos ¢ longos sobre 0 conjunto da vida politica francesa. Quais? Eles se situam em diferentes nfveis. © primeiro & que, com 0 desapa- recimento de De Gaulle, comega a transformacdo mental do personage em tomo do qual se reinem muito dos seus inimigos, particularmente toda a esquerda francesa ¢ a imagem de De Gaulle, divisor da Franga, general, em relagao aos civis, personalidade autoritiria, anti-europeu. Tudo isso vai saparecer para culminar na exaltagao de um grande homem, o que inverte a idéia mesma daquilo que ele foi e que se torna o homem da unidade, 0 ho- mem da Reptblica, o homem da Europa, 0 grande homem ¢ a iiltima das sm, & o fim imediato do figuras que encarnam a grandeza francesa e, tam consenso que De Gaulle soube langar sobre 0 periodo da Segunda Guerra, declarando no dia seguinte de seu fim que todos os franceses tinham se portado bem durante o perfodo da guetra, salvo um punhado de desgarrados que se deixaram levar pela Colaboragdo e que a reagao global do povo fran- és tinha sido correta e que, no conjunto, a Franga teria resistido, Foi uma ilusdo, mas uma iluso profundamente construtiva depois da guerra ¢, politi- camente, bastante compreensivel. Pouco tempo depois do desaparecimento de De Gaulle comega a aparecer uma outra versio mais critica da Resistén- cia e, por diferentes razées, reaparece a lembranga acusadora € vergonhosa do periodo “vichysta”.’” Depois do processo Tuvier, por exemplo, que co- 7 Referente 20 Governo de Vichy € 0 nome dado ao governo estabelecido em Vichy, sob a directo do Marechal Pétain, durante a ocupasio alemi. 2 Pweg NORA, OU 0 HISTORIADOR DA MEMORIA rnhecemos ¢ que se tornon muito tempo depois processo de crime contra a humanidade, ou através do livro de Robert Paxton sobre a Franga de Vichy, ‘que mostra a colaboragiio de Vichy com os alemaes, ou ainda o filme Le chagrin et la pitié. Tudo isso, entre 1970 e 1973, traz & tona néo apenas a lembranga acusadora da Franga de Vichy, mas também todas as lembrangas de uma Franga vergonhosa, eu diria, aquela da Franga contra-revolucionaria, dos “camisards”. enfim tudo o que a Franga havia recalcado, de certa for- ma, de si mesma, ¢ que a grande era De Gaulle havia mascarado, vai come- gar a reaparecer. Acteditivamos que a constituigdo gaulliana da 5* Reptiblica tinha sido valida principalmente sob De Gaulle. Ora, se confirmara cada vez mais que a Constituigdo de 1958 ¢ 1962, isto é, feita por De Gaulle, a 5* Republica, digamos, que tinha substituido a 4°, € um reequilibrio das instituigdes pro- fundamente desestabilizadas pela Revolugio Francesa. Teria sido, ainda, aquilo que o general De Gaulle quis com o restabelecimento de um Executi- Yo muito forte, de modo que evocar a sombra da monarquia de outror, afastada desde a Revolugdo Francesa, seria uma forma de encontrar um equilibrio que permitiria uma espécie de reconciliagto dos franceses com eles mesmos e que reconciliaria, no fundo, a hist6ria da Franga republicana ow revolucioniria com a histéria da Franga mondrquica. De tal modo que ‘uma longa perspectiva, ¢ se eu a evoco € para explicar essa virada memorial gue a Franga conheceré por volta de 1975, recolocard em foco 0 conjunto do passado nacional ¢ permitird um certo tipo de interesse muito forte pelo periodo monarquico, Eis af, ao menos, duas razdes, Talvez. fosse necessario acrescentar uma terceira, decisiva. Na Franga, 0 Partido Comunista foi, ‘como vocé sabe, muito forte, muito mais do que em qualquer outro pa europeu, H em meados dos anos 70 que comeca a se dissipar a forga do Par- tido Comunista Francés, que tinha até 25% de eleitores e que vai sofrer uma queda para menos de 10%. Assim, em pouco tempo, isto é, em cinco ou seis * Calvinistas do cevenois (regio francesa) insurgidos duramte as perseguigbes que se seguiram a revogagio do Edito de Nartes, Este nome se deve & camisa que eles usavam por debaixo das roupas para serem reconhecidos pelos seus ANA CLAUDIA FONSECA BREFE. 23 anos, torna-se uma forga politica quase nula na Franga. & um fenémeno extraordindrio que ocorre antes mesmo da queda da Uniiio Soviética e de sua transformagdo. Entre 1975 ¢ 1981, data da vitdria socialista nas eleigdes, opera-se, primeiramente no meio intelectual € posteriormente num ambito ‘maior, um desgaste, um apagamento, uma decomposicao da idéia revoluci néria, Ora, essa idéia revolucionéria foi sempre muito forte depois da Re- volugo Francesa, naquela que Marx havia chamado a Franga o lar, o pais da Revolugdo, desde 1830, 1848, 1870, a Comuna, ete. Portanto, o fim da idéia revolucionéria como organizadora do sentido da hist6ria foi muito impor- ante, eu diria, para revalorizar uma espécie de culto da tradigao. Todas es sas razdes, somadas a muitas outras que ainda poderfamos entumerar como: em meados dos anos 70, 0 sentimento de uma certa forma de soberania fran- cesa chega a seu fim, tornando imperativa a submissio as exigéncias inter- nacionais globais; a interiorizagao, também, do fim do império francés, com © firm da Guerra da Argélia, desde 1962, mas que levou alguns anos para ser aceito. Tudo isso representa, no fundo, a transformagdo de uma grande po- téncia que teve, gragas a De Gaulle, uma certeza na sua consciéncia de si mesma de ser uma grande poténcia. Essa grande poténcia toma consciéncia de que, dentro do panorama europeu e mundial, ela nao € mais do que uma poténcia mediana. Tal adaptagio, muito profunda, do olhar que os franceses vo ter sobre a Franga acompanha-se de uma revalorizagao evidente do pas- sado nacional, Portanto, hé uma mudanga de atitude muito profunda tanto em relagio ao futuro como em relugaio ao passado. E uma espécie de au- mento progressivo do culto do patrimdnio que ocorte ¢ tudo isso explica de forma clara a transformagto que os histotiadores repercutiram sobre um plano que, talvez, possamos dizer, o meu mérito foi de sentir, centralizar ou de orquestrar para se langarem nessa empresa de sete volumes dos Liewx de mémoire, que eu intelectualmente comecei entre 1978 e 1980, iro esbogo do pro- 10 &, da idéia & Historia Social: O verbete “meméria coletiva” € 0 jeto dos Lugares de meméria. Como se fez a passager ‘materializagiio da prépria empresa? 24 PIERRE NORA, OU O HISTORIADOR DA MEMORIA Pierre Nora: Muito bem, eu vou Ihe dizer que, concretamente, ocorreu 0 inverso. A aplicagio pritica veio antes da conceituagdo que, por sua vez, veio de maneira progressiva, porque, de fato, desde que entrei na Ecole des Hautes Etudes, cm 1978, eu quis estudar o sentido do “nacional”, eu di entre aspas. E me pareceu mais interessante, mais estimutante do que fazer ‘generalidades sobre a hist6ria do patriotismo, sobre a histéria do sentimento nacional, sobre a percepedo da patria, mais do que fazer uma hist6ria de ‘déias puras, no sentido tradicional, muito mais estimulante tomar objetos portadores dessa expresstio do sentimento nacional e, entio, investigé-los, esmiuigé-los, analisé-los por dentro, estudar sua anatomia, dissecé-los. ‘Assim, entre 1978 ¢ 1979, cu me deixei flanar longamente entre temas, aparentemente diferentes uns dos outros que comegavam com memoriais completamente verdadeiros, como © Pantedo, como os monumentos aos rmortos, 0 cemitério Pere Lachaise, os museus de monumentos franceses €, pouco a pouco, entre temas que tinham uma relagao com esses memoriais para mim evidente, mas nio tio evidente para o grande publica, por exem- plo, o que a bandeira francesa, © que um emblema, uma instituigio como a ‘Academia francesa, uma regidio como a Vendée” transmitiam de expresso nacional de meméria; 0 que monumentos como o “Mur des Fédérés”"° car- regavam como histéria e como simbolos; 0 que certas bibliotecas populares, ‘onde poderfamos ainda pesquisar seus fichérios, apresentavam de tipos de cultura popular constituidos em um dado momento; qual foi a histéria do 14 de julho como festa nacional, que atualmente nfo tem mais grande impor- tincia, mas ji teve uma enorme, funcionando como um rito republican absoluto; 0 que foi um manual, tal como Le Tour de France par deux en- ‘fants. Eu me dei conta de que nunca fora feita a histéria da maior parte des- ses objetos, inclusive do Pantedo, da bandeira francesa, que foi apenas estu- dada por militares. Fui, entao, literalmente tomado por uma espécie de em- * Departamento Francés do “Pays de la Loire”, Também conhecida no perfodo revo. lucionério pela insurreigao monarquista ¢ contra-revolucionatia, © Muro do cemilério Pére Lachaise de Paris, diante do qual foram executados os ‘liimos defensores da Comuna de maio de 1841. [ANA CLAUDIA FONSECA BREFE. 25 briaguez, Eu vi se abrir diante dos meus olhos uma espécie de campo, a0 fundo cada vez mais largo, um horizonte de problemas que se punham a cada dia de forma mais enfética: que tipo de relagéo haveria entre a psicolo- gia coletiva e a meméria coletiva; que principio de nago se elabora; quais seriam as diferengas entre 0 sentimento nacional e 0 sentimento puramente francés ou republicano; quais problemas colocariam as comemoragées, que estudamos to pouco e, em si, a teoria do ritualismo e da comemorago: em resumo, era todo um campo, o préprio patriménio, sua histéria que repent. namente comegava a emergit como histéria e em grande quantidade. O que mais me fascinou foi que uma quantidade de temas considerados locais, marginais, provincianos em relagdo & “grande Histéria”, ganhava uma nova centralidade, Por exemplo, algo que the interessa, a histéria dos museus, que até entio fora feita apenas por conservadores. a histéria dos arquivos que realmente no havia sido feita, nem mesmo por conservadores, um certo ‘arquivo local, mas nao a histéria da constituicdo dos arquivos e, além disso, por exemplo, como a constituigdo desses arquivos conduziu a uma forma progressiva de fazer a histéria, Eis af dois temas ~ histéria dos arquivos, histéria dos muscus ~ que eram # pequena histéria erudita e que repentina- mente ganhavam uma dignidade, uma importincia, uma centralidade e se tomam a “grande historia” Eu acredito que um dos efeitos dos Lugares de meméria no foi so- mente de inventar temas, mas de thes dar um brilho, uma centralidade que nunca tiveram, Entao, pouco a pouco, todo um campo se desdobrou diante de mim e, evidentemente, eu nio poderia explori-lo sozinho, mas seriam necessérios especialistas, chamar uns € outros para trazerem sua contribui- ao, para “tapar esse buraco”, para explorar esse dominio, para esclarecer este ou aquele ponto. Foi assim que eu me tomei uma espécie de maestro pela forga das coisas, sendo levado progressivamente @ me colocar proble- mas te6ricos e a fazer a teoria da empresa. Bu levei muito tempo para fazé-la cla evoluiu muito lentamente, porque se eu me precipitei sobre a expresso os lugares de meméria, que me pareceu se impor desde © principio para abranger objetos to diferentes uns dos outros, essa nogo em si mesma 6 PIERRE NORA, OU 0 HISTORIADOR DA MEMORIA quando quisemos defini-la, cercé-la intelectualmente, tivemos muitos pro- blemas para fazé-lo. Assim, eu Jevei bastante tempo para elaboré-ta, ¢ ela, progressivamente, se transformou. Histéria Social: O texto introdutério da colecio, “Entre mémoire et histoire la problématique des lieux”, o senhor escreveu ao final’? Pierre Nora: Sim, certamente, eu o fiz no final e eu 0 reescrevi ao menos umas dez vez. E um texto que, de inicio, tinha cerca de 200 a 250 paginas. Fu tinha pensado em publicé-lo separadamente da colegio, como um livro. Foi refletindo um pouco que eu pensei que isso teria um ar pedante, como se cu dissesse “eis aqui a teoria, as aplicagbes te6ricas nao so meu problema” Pensei que seria necessirio ligar os dois e que assim seria mais enriquece- dor. Posso Ihe dizer que hesitei bastante quanto & melhor forma de publica- ‘sao, Num dado momento, pensei mesmo em fazer o livro sozinho, fazer uma longa introdugdo tedrica e trés ou quatro case studies, que eu teria feito so- zinho, Escolhi a outra solugo, que consistia em fazer quatro volumes que se tornaram sete, Foi work in progress, como dizemos. E a obra engendrou a si ‘mesma, como bonecas russas, ela se desenvolveu, ela nasceu de seu préprio trabalho. E é isso que faz, eu acredito, que esses livros muito raros, esten- dendo-se ao longo de 12 anos, reflitam a prépria evolugio de sua época e época em si mesma. Os Liewx de mémoire nao obedeceram 2 um plano line- ar e a uma realizagio progressiva de um plano previamente estabelecido, mas no interior de trés grandes leques ~ Repiiblica, Nagio, Franga -, eles cengendraram a si mesmos, desenvolveram-se do interior, um pouco como tum campo, ou um (umor, como preferir, ou ainda como um ser orgénico. Historia Social: Os autores pattiram deste conceito, que no inicio era im. preciso, os lugares de meméria? Pierre Nora: Nao. E preciso dizer que os autores, que foram todos profun-

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