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Q ESTUDO DA MORFOLOGIA Z Para tentar definir em que consiste o estudo da morfologia, vamos descrever algumas situacdes em que foram criadas novas palavras. Situacio 1: Pai e filho passeiam pelo terreiro. De repente, © filho vé uma formiga e pisa em cima dela. Como ela permanece imével, o filho afirma — Pai, a formiga morreu! Segundos depois, a formiga volta a andar e o filho exclama: — Pai, a formiga desmorrew! Situaglo 2: Perguntado sobre o que seria quando crescer, © mesmo “filho” da situagio 1 respondeu: — Fabricador de carto! Situaglo 3: Em seu conhecido programa de televisio, o entrevistador JO Soares, apés saber que determinado integrante de uma banda tinha o costume de colocar apelide em todo mundo, exclamou: — Ah, esse € 0 apelidador da turmal ‘Além das situagdes acima apresentadas, consideremos 0s contextos abaixo, em que aparecem algumas palavras novas na lingua: A Previdéncia Social & imexivel! (palavras pronunciadas por um ministro de Estado perante as cimeras de televisto) A Petrobris precisa atingir a produgio de 1.200.000 barris de petréleo por dia. Mas esse atingimento s6 ser possivel se... (palavras pronunciadas por outro ministo de Estado perante as cimeras de televisio) Os taxistas de Belo Horizonte e os taxeiros de Salvador esto satisfeitos com as tarifas das corridas. 2 Picbadores € grafiteiros, uni-vos! ‘A minha relaglio com o governador nao é camal, £ uma relagio de amizade! © atual prefeito é mestre em criar factGides. Associagio dos Sexadores de Pintos de um Dia. E possivel citar um grande ntimero de palavras novas da Iingua — consagradas pelo uso ou ndo —, como: bipar, malufar, cburrasquear, clientar, agito, xingo, restauro, desmate, agro-boy, narco-deputado, eco-erético (a propésito da novela O Pantanal ), blecaga (de black + aga), carreata, tratorada, bicicleata, bondeata, barqueata, seqiestravel, medalbdvel, clondvel etc. Partindo das palavras que acabamos de citar, inimeras perguntas podem ser feitas: a) Por que causa estranheza a formagio de palavras como desmorrer € fabricador? Afinal, se a lingua possui palavras consagradas como, desmerecer, desenterrar, pescadore paquerador, os vocabulos desmorrere fabricador nao poderiam ser “normais’ na lingua? b) Por que apelidador e atingimento sao consideradas como palavras nao-existentes na lingua, mas perfeitamente possiveis de seem criadas? ©) Por que a criago de imexivel por um ministro de Estado causou tantos comentarios entre as pessoas? d) E possivel encontrar as duas formas, palestrista e palestrante. Qual seria considerada a forma correta € por qué? ©) Encontrista é uma palavra formada de acordo com © “espitito” da lingua? £) Por que em Belo Horizonte € consagrado 0 termo taxista e em Salvador, taxeiro? g) Por que dizemos pichador e grafiteiro e nio invertemos os sufixos e dizemos: picheiro e grafitador? h) Se existe teatral (de teatro), bragal (de braco), carnal (de carne), por que nao existe camal (de cama)? i) Por que formamos novas palavras com os sufixos -dor, -eiro ¢ -ista (como nos exemplos citados acima) e nao formamos novas palavras com 0 sufixo -dneo (de moment-dneo), -estre (de camp-estre) ou -ebre (de cas-ebre)? j) Por que laranjadae limonada sao termos “familiares” aos falantes de Belo Horizonte, ¢ cajuadae maracujada no 0 sao, apesar de estes refrescos serem muito comuns na Capital Mineira? So perguntas como essas que interessam ao estudo da morfologia. Intimeras outras podem ser feitas, mas parece que essas atingem a esséncia do problema. Neste trabalho pretendemos, em sintese, responder a perguntas do tipo: 7 —Por que formamos novas palavras? — Como formamos novas palavras? — Quando formamos novas palavras? —Por que formamos determinadas palavras e néio, outras? — Quais sio as “partes” de uma palavra? — Quando variamos uma mesma palavra e quando criamos uma nova palavra? — Qualquer pessoa pode criar uma nova palayra? — Baseado em que critério se pode dizer que uma palavra existe em uma lingua? — Existem “palavras impossiveis"? Cremos estar assim sintonizados com os objetivos de uma teoria morfolégica, tais como foram sintetizados por SCALISE (1984:41): “O objetivo de uma TEORIA MORFO- LOGICA € 0 de definir as ‘novas’ palavras que os falantes podem formar, ou mais especificamente, as regras através das quais as palavras sao formadas.” Mais adiante o autor conclui, citando Aronoff. Um falante que ouve uma palavra pela primeira vez reconhece-a como uma palavra da sua lingua, ¢ tem intuigdes a respeito de sua estrutura € de seu significado, Uma teoria morfolégica, conclui Aronoff, deve também dizer alguma coisa a respeito desses fatos, em particular a respeito da relagdo entre os mecanismos formais que criam novas palavras ¢ a andlise de palavras jf existentes. 1.1 A MORFOLOGIA £ OS ESTUDOS LINGiISTICOS Se consultarmos qualquer gramatica da lingua portuguesa, como a de CUNHA & CINTRA (1989), BECHARA (4972) ou CEGALLA (1979), veremos que todas elas dedicam B 4 um capitulo especial ao estudo da morfologia. Isso se dé com as chamadas gramiticas normativas. No ambito da lingiistica geral, ou seja, no que se refere ao estudo cientifico da linguagem, a morfologia tem tido dias de gloria e dias de abandono. Como veremos ainda nesta introdugao, a morfologia foi o centro das preocupagdes da gramética estrutural, tendo ai alcangado um progresso notavel. Jé na lingitistica gerativo-transformacional, a morfologia ficou “perdida em algum lugar’, como afirma ARONOFF (1976:4): “Havia uma boa razao ideoldgica para isso: com o seu zelo, a lingiiistica pés-Syntatic Structures viu fonologia e sintaxe por toda parte, resultando dai que a morfologia ficou perdida em algum lugar.” Tal posicionamento pode ser comprovado por intermédio de outros trabalhos, como se verifica por esta passagem de BAUER (1983:7): “No momento, o estudo da formagio de palavras esta sujeito a alteragoes freqiientes. Nao ha um corpo de doutrina pacificamente aceito nesse campo, de tal forma que os pesquisadores esto sendo obrigados a estabelecer a sua prépria teoria ¢ procedimentos 2 medida que caminham.” De uns tempos para ca, no entanto, o zelo “pés- Syntatic Structures’ vem cedido lugar a estudos cada vez mais profundos da morfologia, em diversas partes do mundo, como se pode comprovar pela bibliografia no final deste trabalho. No Ambito especifico da lingua Portuguesa, tem-se observado um interesse crescente pela disciplina, principalmente depois da publicag&o no Brasil de Estruturas Lexicais do Portugués; uma Abordagem Gerativa, de Margarida Basilio (BASILIO: 1980). Neste trabalho defenderemos a posicao de que a morfologia é um ramo auténomo da lingiiistica, com suas regras especificas, nao coincidentes com as regras da fonologia, da sintaxe, da semantica ou do discurso. ~ _ & possivel distinguir quatro grandes correntes ou escolas que procuraram descrever ¢ analisar 0 componente morfolégico das linguas: 0 descritivismo, o historicismo, © estruturalismo € o gerativismo. Maiores informagdes sobre o hist6rico da morfologia poderao ser encontradas em BASILIO (1980), BAUER (1983), SCALISE (1984) e SPENCER (1991). Nos itens subseqiientes trataremos de cada uma dessas correntes. 1.1.1 DESCRITIVISKO Como sabemos, os graméticos-fildsofos gregos, com seu espirito logicizante, preocuparam-se sobretudo com a telacdo entre a logica e a linguagem. Afinal, 0 que predomina: uma relagio de regularidade (analogia) entre 98 conceitos estabelecidos pelos homens e as linguas ou uma relagio de irregularidade (anomalia) entre esses mesmos conceitos ¢ as linguas? Preocupados, portanto, com a questo da regularidade € da iregularidade em linguagem, os gregos procuraram fixar paradigmas, como as declinagdes e conjugacdes. Esse modelo-de estudo da lingua, ou, mais especificamente, de estudo da morfologia, a que se deu mais tarde o nome de “Elemento ¢ Paradigma’, é, em tiltima andlise, um modelo Preocupado com a descrigao e fixagio de paradigmas, razdo por que pode ser chamado de descritivista. Com base na filosofia, ou, mais especificamente, na légica, a gramitica grega apresentou estudos de fonética, como a classificagio dos sons da lingua grega e descrigdes do acento, a par do estudo do vocabulério e da oragio. Foi Aristételes quem primeiro apresentou as célebres “partes do discurso” (substantivos, verbos ¢ particulas) e quem primeiro discorreu sobre a estrutura da oragio (o nome como sujeito € o verbo como predicado). Os estéicos, por sua vez, introduziram 0 conceito dos casos nominais. Com telacao aos modelos de estudo da lingua — como o de “Elemento e Paradigma”, citado acima — consulte-se HOCKET (1954) e VILLALVA (1986). Torna-se desnecessério dizer que a gramitica latina seguiu 0 modelo da gramitica grega Como a influéncia da cultura greco-latina foi — e continua sendo — avassaladora sobre o mundo ocidental, € de se supor que as graméticas escritas nos primeiros séculos da nossa Era tenham tido forte influéncia da gramitica classica. Foi o que de fato aconteceu. Depois de uma época de obscurantismo (Idade Média), a gramatica descritivista greco-latina ressurgiu brilhantemente no século XVII, j4 sob 0 dominio das concepgdes filoséficas de Descartes, como se pode verificar pela Grammaire Genérale et Raisonnée de Lancelot e Amaud, de 1660 (citado por JENSEN, 1990:4). 5 2% 1.1.2 HISTORICISHO A influéncia da gramdtica greco-latina sobre as linguas ocidentais foi tao grande, que um dos primeiros compéndios gramaticais do idioma, a Grammdtica da Lingua Portugueza, de Jo%o de Barros, que € de 1540, apresenta um capitulo especial dedicado a declinagio dos nomes, como em gramaticas do latim. No século XIX os estudiosos chegaram & concluso de que linguas como o portugués, o francés, o espanhol e o italiano, dentre outras, tinham vindo do latim, ou, mais especificamente, do latim vulgar. Surge entio a Filologia Romanica que, ao lado da Filologia Germanica, deu um enorme impulso ao estudo das linguas. A filologia, por ser um estudo essencialmente histérico, introduziu nas pesquisas linguifsticas a obrigatoriedade de uma abordagem diacrénica Fssa postura exerceu uma enorme influéncia na concep¢4o dos estudos gramaticais, tendo havido um progresso consideravel na morfologia histérica. Por outro lado, essa visio essencialmente hist6rica dos estudos lingiifsticos privou os estudiosos de observagées sobre o funcionamento da lingua em uso. Em resumo, na chamada gramatica hist6rica ou gramética comparativa, embora tenha comecado a surgit um interesse mais acentuado pela constituigao da palavra, pode-se dizer que esse interesse foi superficial, por dois motivos: em primeiro lugar, porque o comparativismo ainda estava dominado pelos ideais cléssicos, que atrelavam o modelo lexical a uma visio padronizada da realidade lingiiistica. Fm segundo lugar, a perspectiva historica, que era 9 fulcro das preocupagdes dos comparativistas, confinava as pesquisas lingiiisticas a exemplos cristalizados, dificultando ao extremo 0 estudo do vocdbulo em formagao. Em decorréncia disso, nio houve possibilidade de pesquisas relacionadas com a produtividade. A gramatica comparativa preocupou-se muito mais com a evolucio da palavra como um todo. 1.1.3 ESTRUTURALISMO No principio deste século, 0 pensamento ocidental foi sacudido por uma nova ordem, que teve inicio sobretudo a partir da obra do lingiiista suico Ferdinand de Saussure — Cours de Linguistique Générale — publicado em 1916 (SAUSSURE, 1964). A esséncia do pensamento saussuriano pode ser resumida nestas palavras de DOSSE (1993:65), ao referir-se 4 obra do mestre genebrino: “O essencial da demonstraco consiste em fundamentar 0 arbitrario do signo, em mostrar que a lingua é um sistema de valores constituido nao por contetidos ou produtos de uma vivéncia mas [por] diferencas puras.” A esséncia do pensamento saussuriano consiste, por- tanto, em se considerar que a lingua é um ‘sistema de valores”, Podemos dizer que os fonemas, os morfemas, a palavras, as frases, 0 texto, enfim, as formas lingtifsticas so valores que se opdem entre si, formando as mais variadas estruturas da lingua. Saussure é considerado 0 “pai do estruturalismo”, embora esse termo tenha sido usado pela primeira vez por Jakobson, Na verdade, Saussure s6 tinha feito uso do termo sistema, que usou 138 vezes nas 300 paginas do seu Cours de Linguistique Générale (citado por DOSSE, 1994:66) Paralelamente A vertente européia do estruturalismo, fundada por Saussure, surge o estruturalismo norte- americano, cujos principais mentores foram Edward Sapir (SAPIR, 1921) e Leonard Bloomfield (BLOOMFIELD, 1933). Embora possam ser citados alguns autores norte-americanos mais preocupados com a “filosofia da linguagem”, como € © caso de Sapir, no ha dtivida de que o estruturalismo norte-americano, capitaneado por Bloomfield, apresentou um cardter eminentemente pritico, utilitarista. De fato, preocupados com a possivel extingdo das linguas indigenas norte-americanas, localizadas sobretudo na costa oeste do pais, os lingliistas lancaram-se a uma aventura semelhante a Corrida do Ouro: passaram a descrever as linguas indigenas do territério americano. No inicio, a tarefa foi puramente empirica, tendo inclusive surgido um manual que “ensinava” a descrever e analisar as linguas; trata-se da obra organizada por Franz Boas, intitulada: Handbook of american indian languages (BOAS, 1911). Mais tarde surgiram obras notaveis de anilise lingiiistica, como 0 livro de BLOOMFIELD (1933), Language, considerado um marco na evolugio da Lingiistica. Embora tenham se preocupado com a descricao das linguas, os estruturalistas nao foram, portanto, simplesmente descritivistas, como os gregos € os latinos. A nocao de estrutura foi fundamental para a caracterizagao dessa escola. No afi de descrever as Ifnguas, os estruturalistas chegaram ao conceito de MORFEMA, que definiremos provisoriamente como “a menor unidade significativa da palavra. Na palavra infeliz temos duas unidades minimas, a 2B in + feliz, em salmista, salm + ista; em saltitar, salt + it+ a+r, € assim por diante. No item que se segue (1.1.4), bem como no decorrer deste trabalho, veremos que uma morfologia baseada exclusivamente na depreensio e classificacio dos morfemas (como queriam os estruturalistas), é algo inadmissivel em morfologia gerativa (BAS[LIO, 1980:42; ANDERSON, 1992:69). Por esse motivo, ndo vemos necessidade de desenvolver esta questio neste trabalho. Para 0 que nos interessa no momento, podemos dizer que a visdo estruturalista desenvolveu com bastante rigor as técnicas de depreensio dos morfemas e essa foi a sua preocupacao bisica como movimento lingiiistico. Em sintese, o estruturalismo preocupou-se em: a) fazer a segmentagio dos morfemas; b) proceder a classificacao dos morfemas. Para um estudo mais profundo do morfema, consulte-se especialmente: GLEASON (1955), HOCHETT (1958), ELSON & PICKETT (1973) e CAMARA JR. (1964b). O modelo do periodo estruturalista ficou sendo conhecido como “Elemento e Arranjo”. Um balango do estruturalismo podera ressaltar os seguintes aspectos positives da “escola” 2) 0 carter cientifico do movimento, que partiu para um trabalho experimental, com gravagdes nos diversos campt de pesquisa, resultando dai uma atitude destiuida de preconceitos, em que uma lingua indigena —e mais tarde, qualquer modalidade de lingua — passava a adquirir o mesmo status ou © mesmo interesse cientifico de linguas clissicas ou oficiais, como 0 latim o inglés por exemplo; b) como decorréncia do item @, chegou-se a conclusio de que a lingua é um sistema de valores, de oposigdes e de elementos que formam uma estrutura, e que essa estrutura € valida em si mesma, ou seja, pode se constituir em um objeto da ciéncia independentemente de sua origem, de sua histéria e mesmo de seus sujeitos Falantes. Desse modo, o sineronismo linguistico, ou seja, 0 estudo da lingua num momento dado, em vez de destronar o diacronismo, passou a ter existéncia paralela a ele e independente dele, permitindo que as linguas sefam estudadas por duas perspectivas autOnomas: a descritiva e a historica; ©) com relagio ao nosso campo de interesse, pode-se dizer que a morfologia alcangou um progresso notivel no estruturalismo. Preocupados com a segmentacio ¢ a classificagto dos morfemas, os lingUistas americanos levaram essa técnica ao extremo, o que, sem dvida, apesar dos exageros, veio beneficiar 0 estudo da morfologia. A preocupagio com essa técnica era tio grande, que outros componentes lingbisticos, como a sintaxe a semntica foram deixados de lado, tendo sido pouco estudacos nesse periodo. Como sempre acontece com a evolugao do pensamento humano, no final da década de 50, a “escola”, ou “técnica”, ou “modelo” estruturalista j4 demonstrava sinais de esgotamento, quando o lingiiista norte-americano Noam Chomsky langou as bases da Gramatica Gerativo-Transformacional, com o livro Syntatic-Structures (CHOMSKY, 1957). Sobre essa nova visio dos estudos da linguagem, falaremos no item que se segue. 1.1.4 GERATIVISMO © gerativismo introduziu uma nova concep¢ao nos estudos da linguagem, muito diferente, por exemplo, da “escola” anterior, o estruturalismo. A vertente bloomfieldiana do estruturalismo estava comprometida com uma postura essencialmente procedimental, desdenhando postulagées mais profundas sobre a lingua. Poder-se-ia dizer, é verdade que com um certo exagero, que para o movimento estruturalista “estudar uma lingua seria descrever uma lingua” Tal postura era, evidentemente, muito superficial, tendo Chomsky chegado a afirmar: “Uma teoria lingiifstica nao deve ser confundida com um manual de procedimentos liteis, nem se deve esperar que ela assegure métodos mecfnicos para a descoberta de gramiaticas." (LYONS, 0). Para Chomsky, a lingua € algo muito mais profundo, inerente & condicdo humana, relacionado com a capacidade criadora de um ser pensante. E 0 que se deduz de suas palavras (CHOMSKY, 1972:23): “...a linguagem humana é livre de controle de estimulos € nao serve a uma funcdo meramente comunicativa, mas é antes um instrumento para a livre expressao do pensamento e para a resposta apropriada as novas situagdes, Estas observacées referentes ao que temos chamado o aspecto criador do uso da linguagem...” Mais adiante, a p. 29, o lingiiista conclui: “O resultado é uma linguagem humana que serve primordialmente como 6rgio do pensamento, como meio de chegar ao pensamento reflexo e s6 secundariamente serve 4 finalidade de comunicagao social.” Se nos for perguntado por que adotamos as concepgdes da gramiatica gerativa como base de sustentagao para as vn posi¢des adotadas neste trabalho, diremos que um dos motivos é 0 fato de a lingiifstica chomskyana considerar a linguagem nao como um simples meio de comunicacao, mas como uma projecdio ou um apandgio do préprio homem. Ao considerarmos que a competéncia lingiiistica do falante deve ser o parimetro para o estudo das relacdes lexicais, estamos reconhecendo a devida importincia da linguagem humana, que deixa de ser um mero instrumento de comunicagio, para se confundir com a esséncia do proprio homem. © primeiro paragrafo de Estruturas Lexicais do Portugués, uma Abordagem Gerativa, de Margarida Basilio (BASILIO, 1980:7), parece resumir com preciso 0 “espirito” da abordagem gerativa em face da abordagem estruturalista, no campo da morfologia: Na gramética tradicional, assim como no estruturalismo, a morfologia derivacional € definida como a parte da gramética de uma lingua que descreve a formagio e estrutura das palavras. Numa abordagem gerativa, podemos dizer que a morfologia derivacional é a parte da gramética que di conta da competéncia do falante nativo no léxico de sua lingua. Na morfologia tradicional, a preocupagio residia em descrever as linguas, o que consistia em separar os morfemas da lingua e classificd-los. Era uma operacio “de fora para dentro”, em que o objeto lingua era dissecado numa mesa de operacao. Ja na perspectiva gerativista, ha uma preocupacao dos lingiiistas em explicitar a capacidade ou a competéncia que um falante nativo tem com relacio ao Iéxico de sua lingua, ou seja, a sua capacidade de formar novas palavras, de rejeitar outras, de estabelecer relagdes entre itens lexicais, de reconhecer a estrutura de um vocdbulo etc. Como afirma KATAMBA (1993:99), © Iéxico no € uma lista passiva de palavras e de seus significados. Nao € simplesmente como um laboratério de anatomia, onde palavras jf existentes sao dissecadas em morfemas constituintes € examinadas num microcéspio. Nao, nessa teoria o léxico € muito mais do que isso. E também um lugar cheio de vitalidade, em que as regras sfo usaclis ativamente para criar novas palavras. A morfologia gerativa chegou mesmo a questionar 0 interesse da morfologia em identificar e classificar os morfemas de uma lingua. BAS{LIO (1980:42) afirma que “o estabelecimento de morfemas como entidades lingilisticas nao € necessério numa abordagem gerativa da morfologia derivacional”. Mais adiante, 2 mesma pfgina, a autora situa a condicao de existéncia dos morfemas na perspectiva da morfologia gerativa: “Dentro de uma abordagem gerativa, palavras sao formadas por regras e/ou analisadas por regras, de modo que o estabelecimento de entidades como morfemas ou afixos, como elementos separados de regras e bases, constitui uma repeticdo desnecess4ria e, provavelmente, indesejivel.” De fato, como afirma ANDERSON (1992:56), *... os principios que sustentam a nogio estruturalista de morfema devem ser pelo menos reformulados, sen’o abandonados” A alternativa que o autor Propoe “trata o material morfolégico como relagdes (entre formas lexicais) ou Processos (através dos quais uma forma lexical pode ser construida a partir de outra)” (p.62). ANDERSON conclui a sua posicao sobre o assunto a p. 69: “Em vez de um léxico de afixos, a morfologia de uma lingua deveria consistir em um conjunto de regras, que descreveriam as modificagdes das formas existentes que estariam relacionadas com outras formas.” Esse modelo de andlise lingitistica da morfologia ficou sendo conhecido na literatura como “Elemento e Processo” Segundo a “teoria padrio” da gramatica gerativa, apresentada sobretudo a partir de Aspects of the Theory of Syntax, de Chomsky (CHOMSKY, 1965), uma lingua natural apresenta dois tipos de estrutura: a profunda e a superficial. ‘Na estrutura profunda estariam as construcées fixas, regulares © constantes, como SUJEITO + PREDICADO, VERBO TRANSITIVO DIRETO + OBJETO DIRETO, DETERMINADO. + DETERMINANTE etc. As estruturas superficiais seriam realizacdes ou manifestagdes dessa estrutura profunda. Assim, a estrutura profunda Ronaldo saboreia um abacate em companhia do irmao corresponde a vérias estruturas superficiais, como: Em companhia do irmao, Ronaldo saboreia um abacate. Um abacate Ronaldo saboreia em companhia do irmao. Ronaldo nao saboreia um abacate em companhia do irmao Ronaldo saboreia um abacate em companhia do irmac? Um abacate é saboreado por Ronaldo em companhia do irmao, 31 2 Os exemplos dados no esgotam todas as possibilidades de manifestacao da estrutura profunda na estrutura superficial. A passagem da primeira para a segunda é feita através de regras de transformac’o. Diz-se também que a estrutura profunda gera estruturas superficiais, dai o nome de GRAMATICA GERATIVO-TRANSFORMACIONAL, ou, simplesmente, GRAMATICA GERATIVA. Na chamada teoria padrao, as regras de transformacao cram todas sintaticas e fonolégicas. Assim, a explicagao para a geragao de uma palavra como transbordamento, por exemplo, era dada através de regras sintiticas. Logo, porém, os gerativistas se deram conta de que certas explicitacdes s6 poderiam ser feitas, se sc levasse em consideracao a existéncia de um componente morfolégico autOnomo. Como afirma MIRANDA (1979:11), “... ao tentar restringir o poder da sintaxe e da fonologia, os gerativistas se deram conta de que certos fenémenos que ofereciam resisténcia a uma descricio adequada em um desses niveis, poderiam ser descritos dentro de um nivel morfoldgico” £ interessante observar que foi o proprio Chomsky quem primeiro chamou a atengio para a possibilidade de independéncia da morfologia em face da sintaxe, através do artigo “Remarks on Nominalization” (CHOMSKY, 1970). Ao estabelecer distingdes sintaticas, semanticas e de estruturagao interna entre “gerundive nominals” € “derived nominals”, Chomsky, segundo SCALISE (1984:19), “ ... conclui que nominais derivados nao podem ser criados através de transformagoes a partir de um verbo na estrutura profunda e propde, em vez disso, um tratamento “lexical” para tais verbos, isto €, através de regras morfoldgicas que operam dentro do componente lexical”, Regras de estrutura da frase L Léxico + Estruturas profundas — Interpretago semintica Regras transformacionais Estruturas superficiais 4 Fonologia Para termos uma idéia “visualizada” da questao, reproduzimos na pagina 32 0 esquema do modelo cléssico da gramatica gerativa, apresentado por SPENCER (1991). Essa posiciio de Chomsky, que passou a ser conhecida na literatura como HIPOTESE LEXICALISTA, trouxe algumas conseqiiéncias importantes para o estudo da teoria lingtifstica em geral e, mais especificamente, para o desenvolvimento da morfologia lexical. Segundo SCALISE (1984:20), as principais conseqiiéncias sao: a) costuma-se dizer que “Remarks...” nfo foi revolucionatio em si mesmo, mas desencadeou uma série de revolugdes: de fato, no $6 0 componente de base foi afetado, mas também o componente transformacional sofreu modificagdes; b) em “Remarks...”, Chomsky sugeriu, pela primeira vez, que 0 “poder” da gramitica nao precisa estar concentrado necessariamente no componente transformacional; ©) finalmente, “Remarks...” criou um espago técnico para ‘um componente morfol6gico auténomo, uma possibilidade que foi excluida explicitamente dos primeitos trabalhos da gramética gerativa transformacional. A partir da Hipétese Lexicalista, varios estudiosos trabalharam no desenvolvimento da morfologia lexical, como HALLE (1973), JACKENDOFF (1975) ¢ principalmente ARONOFF (1976). Para o portugués, foi de capital importincia a publicacao do livro Estruturas Lexicais do Portugués, uma Abordagem Gerativa, de Margarida Basilio (BASILIO, 1980). Para posteriores desdobramentos da morfologia lexicalista, consulte-se especialmente SCALISE (1984) e SPENCER (1991) 1.2 CONCEITOS BASICOS DA MORFOLOGIA GERATIVA Desde o aparecimento de “Remarks...” até os mais recentes tratados de morfologia, varios conceitos foram sendo fixados com o tempo e se tornaram indispensaveis para o estudo da morfologia gerativa. Para uma melhor compreenstio dos capitulos que se seguem, vamos apresentar alguns desses conceitos. E preciso salientar que a esta altura dos estudos morfolégicos, estamos longe dos rigorismos e dos formalismos da gramitica gerativa. Aqui interessam-nos aqueles 3

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