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I masculina (como na caca, que é representada, em muitos rituais, por argila vermelha e simbolos vermelhos). Existem muitos simbolos que os préprios Ndembu classificam como “coisas brancas” ¢ que acreditam dotados dos atributos morais da alvura, A drvore do leite, que representa a matrilinearidade, & um, deles. Para os Ndembu, a matrilinearidade € 0 que o professor Fortes ‘chamou (1949, p. 344), embora num contexto diferente, de um “prin. cipio irredutivel” da organizagéo social, pelo qual a ordem moral, com todas as suas prescrigdes e proibigdes, é mediada para o indivi- duo. A mattilinearidade ¢ 0 quadro de referéncias desses aspectos da moralidade Ndembu que as pessoas véem como imutiveis e como pontos nodais harmoniosamente interligados. Seria possivel mostrar que as normas e os valores que controlam essas relagdes derivadas, do lago de leite formam a “matriz” da ordem moral © possuem idealmente 0 que os Ndembu veriam como uma qualidade “branca”, A mattilinearidade dé forma e caracteristica especificas & moralidade que de outra forma seria imprecisa ¢ geral, NOTAS "Apresentago no Thad InerationlAfican Seminar exn Salisbury, Rodis, em devembro de 1960, Publicado pela primeira vez em African systems of thought (FORTES; DIETERLEN, 1968). REFERENCIAS FORTES, Meyer. The Web of kinship among the Tallensi. London: Oxford University Press, 1949. FORTES, M.; DIERTLEN, G. (Ed.). African systems of thought. London: Oxford University Press, for the International African Institute, 1965. 94 It A CLASSIFICACAO DAS. CORES NO RITUAL NDEMBU: UM PROBLEMA DE CLASSIFICACAO PRIMITIVA! |imos tempos, vem-se observando um notével ressurgimento ieresse pelo que Durkheim (1963) chamava de “formas primiti- Strauss, Leach, Needham e Evans-Pritchard. Tem-se presta- wwita atengao a classificacdo dicotémica nos sistemas religiosos pparentesco, bem como a outras classes de formacées isometricas po quaternério ov octidico, A ressurreicao, por obra de Needham, trabalhos de Robert Hertz (1960) ¢ os recentes estudos de dham (1960) ¢ Beidelman (1961) sobre o simbolismo da laterali- -¢ da oposicao entre direita e esquerda, com suas implicacdes Nito social e de sua resolucdo, era sensivel, ao mesmo tempo, mbolizacao e formalizagio desse conflito. Muitas das disputas alviam oposicées entre os principios da matrilinearidade e da idade, e, em virtude disso, parecia razodvel supor que a opo- Entre os sexos fosse portadora de uma representacao ritual © ica. Descobri que isto acontecia, efetivamente, mas nao tardei eeber que nio somente 0 dualismo dos sexos, mas também luer outra forma de dualismo, estava contida num modo de clas- Omais amplo, de carater tripartido. A CLASSIFICACAO DAS CORES NO RITUAL AFRICANO, Essa classificagao tripartida esta relacionada com as cores branca, vermelha ¢ preta. Estas sio as tinicas cores para as quais os Ndemby possuem termos primarios. Os termos para as demais cores ou sao derivagées destes — como no caso de chitookoloka, “einza”, deriva. do de ‘oka, “branco”, ou consistem em expressbes descritivas ou metaféricas, como no caso do “verde”, meji amatamba, que signiti- ca “égua das folhas de batata-doce”, Com muita freqiiéneia, certas ‘cores que nés distinguiriamos do branco, do vermelho ¢ do preto cram lingiiisticamente identificadas com eles, pelos Ndembu. O te- cido azul, por exemplo, € desctito como pano “preto”, ¢ os objetos: amarclos ¢ de cor laranja so agrupados, indistintamente, como “ver- melhos”, As vezes, um objeto amarelo pode ser deserito como neyi nsela, “igual & cera de abelha”, mas, com freqiiéncia, 0 amarelo é visto como ritualmente eguivalente ao vermelho. ‘Quando, pela primeira vez, observei os ritos Ndembu, fiquei impres- sionado pela freqiéncia do uso de argila vermelha ¢ branca como, ornamentaco ritual. Supus de imedialo que apenas essas duas cores ‘eram ritualmente significativas e que estava lidando com uma clas- sificacao dualista, Havia, com efeito, uma certa sustentacio para essa hipétese na literatura antropolégica sobre os Bantu centro-ociden- tais. Baumann (1935, p. 40-41), por exemplo, escrevendo sobre os Chokwe, do leste de Angola, afirma que para esse povo: “O branco € a cor da vida, da saide, do Ivar e das mulheres, © vermelho, em ccontrapartida, tem ligacbes com a doenca, 0 sol, e os homens.” Em seguida, cle tenta estabelecer uma equivaléncia da oposicio entre as ‘cores com a oposiciio entre direita e esquerda, associando © verme- Iho coma dircita ¢ o branco com a esquerda, Baumann admitia, ainda, que a argila branca “representa um principio vital” e se vé forcado, pela l6gica do seu esquema dual, a considerar 0 vermelho como sen do acor da “morte”. No entanto, quando discute a pintura vermelha dos novigos, na ceriménia de circuncisio, esereve: “E como se a cor vyermelha fosse, em si mesma, nio s6 a cor da doenca, mas também a cor que afasta a enfermidade.” Outras autoridades em matéria de Bantu ceniro-orientais nao estao absolutamente de acordo com a in terpretacao de Baumann. C.M.N. White (1961, p. 15), por exemplo, rma que “o vermelho simboliza a vida e 0 sangue em varios co” textos Luvale”, e os Chokwe e Luvale sto bastante parecidos do pont 96 fe vista cultural. White registra, também, que varias frutas ¢ drvores melas Sao “constantemente associadas com a fertlidade e a vida”. “Minhas proprias observacdes de campo entre os Ndembu tendiam a “onfitmar a interpretacio ce White mais do que a de Baumann, em- ora seja verdade que ha uma série de contextos rituais em que 0 nelho é associado com a masculinidade, tal como na pintura ri- fal vermetha dos chefes de guerra (tumbanji), circuncidadores € adores, € 0 branco com a feminilidade, como no caso da arvore smutdyi que Secreta um latex branco c € o simbolo supremo da fem fidade e da maternidade. Por outro lado, descobri uma quantidade, , minimo, igual de ocasides rituais em que o branco representava a sculinidade, e o vermelho, a feminilidade. No rito do Nkuwla, por femplo, executado para livrar as mulheres das desordens mens- sais, @argila vermelha, juntamente com outros simbolos vermelhos presentam 0 sangue menstrual, “a parturicio do sangue” € a ‘uma nascente, & explicitamente assimilada ao “sé men”. Em itrapartida, da argila vermelh pulverizada, conservada na concha eum molusco fluvial ¢ soprada sobre a paciente, depois do pé bran- 60, diz-se que representa “o sangue da mae”. A argila branca é aplicada hi correlacio fixa entre as cores ¢ os sexos. O simbolismo das ores nfo tem uma ligac3o coerente com 0 sexo, embora o vermelho Eo branco possam, em situagdes especificas, representar a oposigio Sexos. Eevidente que a tentativa de Baumann no sentido de polarizar os Yalores simbéticos do branco ¢ do vermelho ¢ artificial e forcada fo poderia sugerir que estamos lidando com algo mais amplo do “uma classificacio dual. E certo que o branco ¢ o vermelho se es, mas 0 fato de que cada um deles Teptesentar 9 mesmo objeto — cm outras palavras, 0 fato de que "us significados se interpenetram — indica que é preciso levar em mals d© que um par de opostos. De fato, como ja indiquei, Teeito termo ow fator. Trata-se da cor negra, sob certos fos, a mais interessante das trés. A CLASSIFICACAO DAS CORES NOS RITOS DE PASSAGEM NDEMBU Examinemos agora alguns contextos nos quais as trés cores apare. ccem juntas, antes de olharmos pata cada uma delas em separado, ou de tomé-las como pares de oposigio, Os Ndembu me asseguram de que a relagio entre as cores “comeca com 0 mistério (ou enigma, mpang’u) dos trés rios: os tios da alvura, do rubor e do negror (ou, escuridio)". Esse enunciado criptico refere-se a uma parte do ensinamento secreto da cabana iniciatica, durante os ritos de circu (Mukanda) ¢ durante a fase de reclusio nos ritos da confraria funeriria de Chiwila © Mung'ong’i. Dizem que, até recentemente, este mistério (mpang’x) era também ensinado as meninas, durante 6 seus ritos de puberdade (Nkang’a), mas nao encontrei nenhuma evidéncia neste sentido, Nio observei pessoalmente a instrucio dos novigos a respeito desse jo dos trés rios, mas registrei vérios relatos de informantes, confidveis. © primeiro deles € de um membro da confraria Chiwila, que realiza elaborados ritos de iniciagdo para a gente jovem, por oca- sitio da morte dos membros femininos de seu culto. O Chiwila nao se realiza mais na Zimbia dos dias de hoje, mas a minha informante tinha sido iniciada, quando menina, entre os Ndembu de Angola. Ela me descreveu como se ensinava as novigas 0 mistério de um dos “tios” (nulong’a), neste caso, 0 “rio do sangue” (kalong’a kamashi) ou 0 “rio do rubor” (kachinana). O prefixo ka- significa, as vezes, que 0 termo por cle qualificado é um lfquido, usualmente égua. AS- sim, kt-chinana significa “estar vermelho (ou amarelo)”, chinana € © radical, © ka-chinana significa “fluido vermelho” ou “rio verme- Iho” e Aeyila, 0 “tio negra”. Segundo minha informante os novigos, tanto os rapazes quanto as meninas, eram levados para um longo abrigo coberto, sem paredes, chamado izembi. O celebrante sénior, intitulado Samazembi (“pai de mazembi”), tomava, entdo, de uma enxada © cavava um sulco, nO interior do reftigio. A forma do sulco era “como de uma cruz” (neyi mivambu), mas podia, também, assumir 0 formato de um machado Niembu (chizemba) ou de uma enxada (itemwa). Em seguida, pegs va varetas pontiagudas, dessas que se usam para fazer esteiras, € a8 plantava ao longo das duas margens do sulco. A isto seguia-s¢ # plantagio, em linha, ao longo de cada um dos lados do sulco, de 98 ‘mnuitos pequenos chifres de antilope, contendo uma poco de folhias Traceradas (nsompu). Depois, enchia o sulco com Agua; a tarefa se- guinte do Samazembi consistia em degolar (0 termo ku-ketula, Feortar’, & sempre usado neste sentido) uma ave, derramando o seu ‘ganaue dentro do “rio” para tingi-lo de vermelho, Nio contente com jaso, acrescentava outros corantes rubros, tais como barro verme- oem po (mukundu ou ng'ula) € resina pulverizada da érvore tukula. Em seguida, 0 Samazembi lavava seu corpo com uma po- “gio feita de raspas de raizes embebidas em Agua, contida na sua saga pessoal, O que sobrava depois das ablugées, ele jogava no do rubor”. Em seguida, pegava um pouco de argila branca em ‘p6 (mpemba ou mpeza), ditigia-se aos espiritos “daqueles que ti- ‘nha passado pelo Chiwila ha muito tempo”, ungia suas drbitas ‘ooulares e témporas com mpemba, ungia os ne6fitos, dirigindo-se cles da seguinte forma: Prestem atengiot Esse ro € sangue, E muito impor tante(lteralmente, "pesago”). E muito perigoso. ‘Voeés no deve fara respite deena ade, quan- do voltarem, Cuidado! Este no € um rio comam, Deus (ambi) 0 fez hi muito, muito tempo aris. E © rio de Deus (kalong’kaNzamby). Voots nao de- ‘em comer sal, por muites dis, am nada que soja salgado ou doce (omala significa ambas es cose). [io falem dessis coisas em pblico, na aldein, € entre os dentes, sem o auxflio das maos. Todos iam para fora ntavam realizar o dificil feito de se arquearem para tras de modo Barem os chiftes de tal maneira que pudessem ser apanhados ?Pelos adeptos localizados s suis costas, sem derramar a pogo con- lamazembi recolhia entio todos estes chifres, escondendo-os na ‘ta cabana de preparo das pocdes (katunda). A poco era chamada ‘hifunda, nome aplicado também 2 pocio da cabana ii Kanda, ou tito de iniciacéo dos meninos. Além de outros ingredi- ,continha cinzas do incéndio das cabanas dos defuntos. A njunda © jogada fora, sendo a porcao que sobra zo final de cada ses- do Chiwita ou Mung’ong’i usada no préximo ritual Tovo preparado. A nfunda usada nos ritos de circuncisio, a0 tio daquela dos ritos Chiwila, contém cinzas e carvao em po 99 da cabana de reclusio, queimada ao final do periodo de segregacio, © cinzas e carvao dos diversos fogos sagrados extintos quando do encerramento dos ritos. Todos eles eram considerados simbolos “ne. gros”. E interessante a observacio de Baumann (1935, p. 137), segundo a qual, entre os Chokwe, ufuida significa “enterro” ¢ deriva do verbo ku-finda, “enterrar”. © temo funda, que parece ser um cognato de nfivida, de acordo com Baumann, significa “um fardo” e “parece estar ligado i idéia de um cadaver envolto num fardo, ¢ amartado & vara de carga”. A nfienda tal como apatece nos ritos Mukanda, Mung'ong’i-e Chiwila, dos Ndembu, é certamente um fardo de medicamentos; a possivel conexio etimoldgica com a morte 6 sugestiva, tendo em vista sua conexo com os ritos funersrios, coma destruicio de edificagdes sacras e simbolos negras. Meu informante a respeito dos costumes Chiwila nao foi capaz ow no teve vontade de se aventurar muito no caminho da interpretacio, Outros informantes me proporcionaram exegeses adicionais sobre os rituais Mukanda e Mung’ong’i. Nestes ritos, disseram-me, ha “tres rios". “O rio do sangue”, usualmente escavado em forma de uma acha, representa “um homem com uma mulher” (iyala namumbanda), ou a “cépula” (kudiswida). O homem ¢ representado pela cabega do machado, com sua espiga, e a mulher pelo cabo de madeira (0 “rio” ou “vala” principal, 0 “mais velho”, como dizem os Ndembu, €0 “tio da alvura” (katooka). Este “corre em linha direta para o abri- go izembi.” “O rio da dgua rubra é mais jovem [jinior], ¢ € seg pelo rio de dguas negras. O rio vermelho é uma mulher com o seu marido.” © cruzamento dos sangues do pai e da mae significa uma crianga, uma nova vida ( kabuku kawumi — kabubu representa um organismo de tamanho pequeno, como um inseto: representa tam bem o cordlio umbilical; wumi significa a vida, no sentido genérico, mais do que o principio vital pessoal ~, assim, considera-se que a8 ¢riangas, antes de serem destnamadas, tenham wumi, mas n40 mvvuevulu, uma “alma-sombra” que, depois da morte, se torna um espirito ancestral do mukishi). Um dos informantes me contou que 0 katooka é clarcado com argila branca pulverizada (mpemba), “repre senta 0 wumi” ¢ & 9 “tronco ao qual os rios vermelho ¢ negro estéo presos como ramiticagdes”. O rio preto (keyila), enegrecido com ‘carvao (makala), representa a “morte” (Kuve). Durante a celebragio do Mung’ong’t, os novigos tém de responder uma porgiio de adivinhagoes (jipang’ux). Uma delas 6: “Qual é a agua 100 mnca que mio descansa i noite (katooka kusatoka)?”. A respasta sta €“o semen” (matekela). Assim, um dos sentidos do “rio bran- wg a poténcia gerativa masculina, Esse rio é também, descrito mo “um rio de Deus”. ‘br “No Mung’ong’i, como anteriormente no Mukanda, os neétitos apren- fa recitar uma canc4o, ou antes, um encantamento, repleto de arros. Transcrevo 0 texto sem poder traduzir -Katooki mejkansalu kelung' chinbungu chelang'a Delang'amte-e Rio bruneo regi a eseassa era do campo, monsiro canibal (ou hiena) do campo... Mukayande-che-e kart kasmena mind mint Junwatula hing? Ao sofrer (2) a varetinha de procriar no cesto de ‘medlicamentos (2), dono, quem hi de encontr-to? Apia kapwunbi mujnthé samazedi ye-e (signiticn- ‘do deseonhecido). “A.varetinha que procria” é, provavelmente, o pénis; “mini”, o dono, de referir-se ao nome do espirito territorial ou semideus, propi- Ciado no ritual Musolu para trazer as chuvas, quando estas tardam, € falvez esteja ligado ao tema da 4gua, Eventualmente, os Ndembu “descrevem 0 sémen como 0 “sangue clareado (ou purificado) pela 4gua”. O verbo “urinar” tem o mesmo radical -tekela que o substan- tivo matekela, “sémen”. Além disso, a urina de um circuncidador “aprendiz é um dos ingredientes da pogao nfunda. Daf se deduz, cla- “Tamente, que o rio da alvura é imaculado, ao passo que 0 rio do sangue Contém impurezas, Essa diferenca vai aparecer, com mais nitidez, ‘quando cu apresentar as interpretagdes que os informantes dio para cada uma das cores individualmente. Enquanto discutia o “rio branco” com um informante, este me ofere- eu um breve estudo sobre a teoria Ndembu da procriacio, Ssociando-a diretamente aos mistérios da iniciagao. “Uma erian= , disse, “significa boa sorte (wittooka, que também significa ‘alvura”), Porque uma crianca da coisas em primeiro lugar ao seu i que foi quem primeiro a engendrou. A mae € como se fosse “4penas um recipiente, o corpo ¢ a alma da crianga vém do pai. Mas ¢ Neambi (Deus) que dé a vida (wumi) & crianca.” Perguntei-lhe, en 101 tio, por que os Ndembu tragavam a descendéncia através da mae, Ele respondeu: “Um homem engendra filhos, mas eles sio da me, porque & ela quem thes dé de mamar e cuida deles. Uma mae alimen- aa crianca com o seu seio; sem cle, acrianca morreria.” Em seguida, citou o provérbio: “O galo engendra os pintinhos, mas estes sio da galinha (kusema kwandemba nyana yachali).” Continuou lembran- do que 0 leite do seio materno (mayeli) também é “br “manancial branco”, e que a drvore mudyi, simbolo dot rito de puberdade das meninas, € um simbolo branco porque ela cexsud litex branco. Com efeito, o sentido primétio da irvore mudyi Eo leite do seio feminino. Desa maneira, o katooka ou o “rio bran- co” € bisexual na sua significacdo, representando, a0 mesmo tempo, ‘0 sémen ¢ 0 leite. Os simbolos brancos podem, por conseguinte, re- presentar objetos masculinos e femininos, de acordo com 0 contexto ‘ou situagio, e no se limitam, como no relato que faz Baumann so- bre os Chokwe, aos objetos femininos. No Mung’ong’i, finalmente, hd um cantico muito Tongo, entoado pelos novigos, que diz assim: “Yaleyi Nyameya Iupemba lufunda ‘anti wafunda nimumi niwayilé”, 0 que significa, literalmente, “Ta 6 homem Nyameya, tu grande mpemba que traces linhas sobre as gen- tes, tracas linhas sobre os vivos e sobre aqueles que se foram (isto é os mortos).” Yaleyi & um vocativo bastante familiar que pode ser aplicado a pessoas de ambos os sexos, como a palavra “man” n0 inglés sul-alticano. Nyameya significa, literalmente, “a mae da alvu- ra” na linguagem Luvale, mas o prefix nya-, “mic de”, pode ser ‘usado, honorificamente, para homens importantes, tais como chefes ‘ou grandes cacadores, com a conotagio de “alguém que alimenta”. Lupemba & mpemba ou pemba com o prefixo adicional fa- que, mui- tas vezes, denota 0 tamanho. Os substantivos pertencentes & classe Iu- so geralmente inanimados, incluindo muitos objetos longos. Aqui, no entanto, tendo a achar que a “grandeza” da mpemba, e da alvura ‘que cla representa, estd sendo enfatizada. Kw-funda, no idioma lunda, significa “tracar linhas” com argila branca, argila vermelha ou cat~ vao, Quando sc dé a morte de um pai ou mie de filhos, se traga, sobre o peito destes, com argila branca, uma linha que desce até 0 umbigo, como sinal de que 0 defunto € descjado como um doador de nomes aos seus (ou &s suas) descendentes. Dar 0 proprio nome # alguém implica, no caso Ndembu, uma reencaagio parcial de ce tos tragos do corpo ou do cardter. Quando, no entanto, morre uma 102 a estéril, se tragu uma linha negra, com um pedago de earvao, ~ fo umbigo do morto para baixo, entte as pernas e em tomo do sacro. sto 6 um recado para os mortos de que nfo devem voltar a visitar gate mundo, que “motram para sempre”, como dizem os Ndembu. {Em muitos ritos, 0s vivos sto fgualmente marcados com argila bran- ca, Para citarmos um exemplo, quando os Ndembu se dirigem aos ‘spiritos de seus ancestrais, ao pé de altares sumérios em forma de " Aryore, assentados, em sua honra, nas aldeias, pegam argila branca, marcam a érvore de branco, em seguida tragam uma, trés ou quatro finhas no chio, da base da arvore na diregio de si mesmos, para finalmente sc ungitem com essa mpemba, a0 redor dos olhos, nas " témporas ¢ no umbigo. Diz-se que a mpemba representa o estado de boa vontade, ou de bons sentimentos, entre vivos € mortos, Supde-se ro existirem, entre eles, “ressentimentos secretos”, que “enegregam” (bvivilisha) seus figados, (nyichima) sede dos sentimentos. A CLASSIFICAGAO DAS CORES NOS RITOS DE PASSAGEM NGONDE Outros relatos sobre os ritos de iniciagao na Africa Central mencio- ‘nam muitos dos elementos que acabam de ser descritos. Lyndon Harries (1944), por exemplo, registra diversos textos entre os Ngonde “da Tanganyika meridional’ que discutem o significado da triade de cores, tanto na iniciagio masculina, quanto na iniciagao feminina. Ble pedi aos informantes nativos que interpretassem para ele al- guns dos cinticos criplicos da cabana de reclusio. Uma das explicagbes dizia o seguinte: “Uma mulher concebe pelo sémen de homem. Se o homemtiver sémen negro, nao poder gerar filhos. las, se tiver stmen branco, ha de ter filhos” (HARRIES, 1944, p. ). O ensinamento esotérico ministrado aos novigos inclui a exibi- », Por um ancidio, das “irés coisas que simbolizam a pureza sexual, i doenca venérea causada pela impureza, ¢ a menstruagio”. Estes ibolos sto, respectivamente, a farinha branca, 0 carvao negro, € a ‘0 inumbati vermelha. “Os meninos sio instrufdos por meio des- simbolos” (HARRIS, 1944, p. 23). Incidentalmente, a poco Wumbati rubra é usada para “ungit uma crianga recém-nascida”, € a iga dos novigos “Eu quero pogiio inumbati”, segundo Harries, dizer “Eu quero gerar um fillio”. A poco inumbati é feita da 103 casea ou resina pulverizada de uma drvore Pterocarpus; espécie Prerocarpus angolensis desempenha um papel fundamental no ri- tual Ndembu, no qual figura como um simbolo vermelho. Outra vez, somos informados de que os meninos se besuntam com argila negra (cikupi) de tal maneira, que “nao possam scr vistos pelos que transitam na floresta” (p. 16). Entre os Ndembu, 0 negrume esta ligade também com a escuridao ¢ 0 ocultamento. Representa a mor- te, nao s6 no sentido concreto, mas também no sentido simbélica ou. ritual,e pode muito bem ter este mesmo significado na prética Ngonde «que acaba de ser mencionada, Nos ritos de puberdade das jovens, entre os Ngonde, as meninas recéminiciadas si0 conduzidas i fonte por uma iniciada mais etka. Cada vez que chegam a uma encruzilhada, essa mening ‘mais velha se agacha, ragando no chao da tlh tris riscas, uma vermelha, com ocre, para a menstrun ‘gio; uma negra, com um pedacinho de earvio, para 4 Impureza sexual; © uma branea, com farina de rmandioca, para a pureza sexual. (p. 39). Aqui, mais uma vez, temos uma relacéo entre a égua, o padrio da cruz ea fade de cores. Em Chisungu, a Dra. Audrey Richards (1956) descreve como, entre ‘os Bemba, 0 simbolismo das cores desempenha um papel importan- te nos ritos de puberdade das meninas. Assim, por exemplo, os emblemas de cerimica mbusa, usados para insiruir as novigas nos aspecos esotéricos do ritual, s4o “usualmente pintados de branco, preto e vermelho” (RICHARDS, 1956, p. 59). Os objetos de maior tamarho, modelados em batro cru, sao decorados com feijées, ful ‘gem, giz e tintura de madeira vermelha (RICHARDS, 1956, p. 60) O p6 de madeira vermelha “é 0 sangue”, como disseram a Dra Richards (1956, p. 66). Esse p6 6 esfregado naqueles que passaram por situagdes de perigo, tais como os cacadores de leSes ou os que ‘enfrentaram, com sucesso, o ordélio do veneno. Em certas situacdes, © p6 surge, nitidamente, como um simbolo masculino, a exemplo do que ocorre nas ocasiées em que as irms do noivo, pintadas de vermellio, estimulam os noivos (RICHARDS, 1956, p. 73). Aquir outra vez, a arvore mulombwa, que exsuda um liquido verme Iho, “representa 0 macho, 0 Ieao, ¢, em alguns casos, 0 chefe” (RICHARDS, 1956, p. 54). O vermelho, entre os Bemba, como en- 104 ire os Ndembu, tem igualmente conotacdes femininas, pois, em mui ‘contextos rtuais, representa o sangue menstrual. Entre os Bemba, ‘pranco representa a ablucio do sangue menstrual (RICHARDS, 356, p. 81). As trés cores sao reunidas no rito de purificagio do dkuya ku mpemba (“lavat até ficar branco”) em que se lava ¢ limpa a fa, ¢ seu corpo & coberto de branco. Ao mesmo tempo, coloci- sobre sua cabeca um punhado de lama negra, em forma de cruz, € decorada com sementes de absbora e tintura vermelba, En- quanto isso, entoa-se a seguinte cantiga: “N6s tormamos as meninas prancas (como garcas). Nés as fazemos bonitas... agora elas estio fimpas (“brancas”) da mancha do sangue... acabou-se 0 que era ver~ lho.” Este rito marca um estagio definitivo do rito de puberdade [CHARDS, 1956, p. 88-90). Em outro episédio, as contas brancas, 1 iam a fertilidade (como também ocorre entre os Ndembu) (RICHARDS, 1956, p. 72). nitifs de POubangui, A.M. igiat (1936, p. 92) discute 0 simbolismo das cores dos Manja (ou ndja) nos seguintes termos: © negro (Sob forma de p6 de earvao) € atribuilo & morte. Os guerrsiros cobrem seus corpos de uli- gem quando vio & guerra. As pessoas que estio de Ito permanccem suja, nio se lavando mais. O pre- fo€ um simbolo de impureza, A cor branca signifien 6 renascimento, Ela protege da docnga, Ae final da injciagdo, os meninos iniciados se pintam de bran- 0, Sio homens novos. Na ceximénin do luto, 0s parentes do moxto fazem o mesmo. © branco purifi «a. Overmelho éum simbolo de vide, alegra e sade, (Os nativos se untam de vermelho para dancar ¢ os ue estio onfermes cobrem, freqientemente, seus ccorpos de vermelho, \ CLASSIFICACAO DAS CORES O DEUS SUPREMO NA AFRICA CENTRAL E indtil multipticar esse tipo de citagies; elas se encontram na litera- ‘a dos ritos de iniciagao africanos para quem quiser ler. Talvez Vilesse a pena mencionar que Baumann (1935, p. 12) encontrou um Ago titual (izembi) — que cle chama de “zemba” — do culto Ming’ong’i, numa aldeia Chokwe, a0 norte do alto Kasai. Dis- 105 seram-lhe que os dois grandes fogos que ardiam dentro do “zemba” “siio chamados Kalunga (que significa Deus); eles aleangam até o céu”, Assim encontramos as trés cores amplamente associadas com os ritos de iniciacao e com os ritos de crise de vida, e, entre os Ndembu Chokwe, em todo 0 caso, com o Deus Supremo. Das trés, 0 branco, parece ser dominante ¢ unititio, o vermelho ambivalente, pois é ao ‘mesmo tempo fecundo ¢ “perigoso”, enguanto o negro 6 como se fosse 0 parceiro silencioso, 0 “terceiro que esta na sombra”, num certo sentido, oposto tanto ao vermelho quanto ao branco, pois re- presenta a “moric”, a “esterilidade” ea “impureza”. No entanto, vamos ver que 0 negrc, na plenitude do seu significado, tem determinados sentidos em comum com o branco € com o vermelho, ¢ que nem ‘sempre € considerado maléfico. As cores sio concebidas como rios de poder, que tem sua nascente comum em Deus ¢ permeiam todo 0 universo de fendmenos sensoriais com suas qualidades especificas. Mas, além disso, sio consideradas também como tinturas da vida moral e social ca humanidade, cada qual com sua eficécia particular, de modo que s2 diz, por exemplo, “este é um homem bom porque tem um figado branco”, ou “ele € mau; scu figado € negro”, quando, na realidade fisica, o figado € vermelho-escuro. Ainda que se diga dos Ndembu, como de muitas outras sociedades simples, que tm um Deus acioso, este Deus pode ser considerado ativo, na medida ‘em que dele emanam incessantemente os trés prineipios do ser que sio simbolizados ¢ adquirem uma forma visivel na trfade de cores branco-vermelho-preto. As evidéncias desses prineipios de poder estio, assim cr3em os Ndembu, espalhadas por toda @ natureza, nos objetos que tém essas cores, tais como drvores com resina, ou casca, ou raizes vermelhias ou brancas; autras com frutos brancos ow ne~ «gros; argila branca de caulim ou terra vermelha oxidada, lama aluvial negra, carvio; 0 sol ea lua, que so brancos; a noite negra; 0 verme- Iho do sangue; a alvura do leite ¢ a cor escura das fezes. Os animais © 0 pissaros adquirem significagio ritual por causa de suas peles ou penugens, quando estas se revestem de uma dessas cores. Até mes~ ‘mo os seres humanos, ainda que sejam negros, sio classificados como brancos” ou “negros” de acordo com os matizes de sua pigmenta- io, Ha uma ciferenca moral implicita, ¢ « maior parte das pessoas tem objegées quanto a serem classificadas como “negras”. 106 ERPRETACAO NDEMBU DA TRIADE DE CORES que & que S¢ easing, entZo, aos novigos sobre o significado da fade? Coligi uma quantidade considerdvel de textos dos meus in- formantes Ndembu sobre o simbolismo das cores, registrando 0 que Tiaham aprendido, na iniciagao ¢ no decorrer de sua participacio em iigs de variados tipos, sobre o significado das cores. Comecemos i ss de cada uma delas. (0s informantes estio de acordo no sentido de que a argila branca ba ou mpeza) € outras “coisas brancas” (yuma yitooka) repre= tam a “alvura” (iwutooka) que é equivalerte a: 1, bondade (ku-waha); 2. tomar forte ou saudavel (ku koleka ou ku-kolisha); 3, pureza (ku-iooka) [isto significa meramente “ser branco”, ‘mas pode, de acordo com 0 contexto, ser reconhecido como a “pureza”}; 4, estar livre de (ou estar sem) ma sorte ow infortdinio (ku- bula kw-halwa); 5. ter poder (kwirala nang’ovu) [literalmente, “estar com poder”]; 6. estar sem morte (ke-bula ku-fiva) [isto 6, néo ter a morte em seu grupo de parentesco]; cestar sem Kégrimas (ku-bula madiiu) [como acimals 8 chefia ou autoridade (wanta); quando a gente se resine com os espfritos dos antepassa- dos (adibomba niakishi); 10. vida (wut); Al, saiide (ku-handa); 12. gerat ou criar filhos (Jusemu); 107 13. 14, 15. 16. 17. habilitagdo na eaga (wubindays doagao ou generosidade (kwinka): relembrar (kwanuika) [isto & recordar nossos ancesteais com, daidivas ¢ oferendas, nos seus santudrios muyombu]; rir (ku-seha) [a marca da sociabilidade amével]; comer (ku-dyad) [os Ndembu observam que tanto 0 leite materno, quanto a farinha de mandioca, que € 0 principal alimento, sao brancos}; 18, moltiplicar (ku-seng'tuka) [no sentido de fertilidade dos homens, animais e plantagoes}; 19. tornar visivel ou revelar (kt-solola); 6. 20. tornar-se maduro ou um ancio (kut-kula) [aqui os Ndembu ‘comentam o fato de que os anciaos tém cabelos brancos ~ € sua “alvura” que se tora “visivel”; 21. varrer (ku-komba) [isto &, livear de impurezas]; 22, lavar-se (kut-wuela) [como acima]; 23, estar livre do ridiculo —“as pessoas no riem de voc€ por- 4 que vot fez algo errado ou tolo”, ‘Vermelho “As coisas vermelhas (yuma yachinana)”, dizem os informantes, “sao de sangue (mash) ou de argila vermelha (ng''ula).” Existem diferen- tes categorias (nyichidi) de sangue. Sao elas 108 ‘© sangue dos animais (mashi atunyama ou mashi anyama) isto significa a qualidade de quem € cacador (jwubinda ou wuyanga), ¢ também a carne (rbiji)]; sangue da parturic2o, das maes (mashi alusemu amama)s 6 sangue de todas as mulheres (mash avvambanda ejima) [isto é, 0 sangue menstrual (mbayi ow kanyanda)|; 6 sangue do assassinato, do apunhalamento, da matanga (mashi awubanji hela kutapana) {0 sangue derramado 4 circuncisdo se inclui nessa categoria, como também # coisas negras compreendem: 0 carvao (makala), a lama do rio Howa), a tintura das drvores mupuchi e musamba (wulombu, Palavra que agora se usa para “tinta”), e 0s frutos negros da drvore ‘.O negrume (wuyila) 6 yatama); ‘ornamentagio vermelha, nos ritos destinados & purifica- io de um homicida ou do matador de um leao, leopardo ou bafalo]; ‘o sangue da bruxaria ou feiticaria (awuloji) [pois a feitiga- ria ou bruxaria Ndembu € necr6faga e, nos ritos contra a feitigaria, o vermelho representa o sangue exposto em tais festins]. coisas vermelhas pertencem a duas categorias; clas agem para 0 em e para o mal; shundama kuyedi, yela nikuwaha nukutama, yadibomba).” Essa ativa expressa bem a ambivaléncia do simbolismo vermelho (estes) estio combinados (Yuma yachinana “As coisas vermelhas tém poder (yikweti ng’ovw); sangue 6 poder porque um homem, um animal, um inseto, ou um passaro precisam ter sangue, caso contrario morrem. Bonequinhos de madeira (nkisht) nao tém sangue e, por isso, no podem respirar, falar, cantar rir ou tagarelar uns com os ‘outros ~ so apenas talhas de madeira. Mas, se as figurinhas, uusadas pelos feiticeiros (aloji) receberem sangue, poderio andar por ai e matar pessoas.” “O sémen (matekela) & branco (afortunado, puro) sangue ‘bom (mashi atooka amawahi). Se for vermelho (ou) ne- 870, nao ha fecundacao (nevi achinana eyila kusenta nehi). sémen vermelho ¢ ineficaz ou impotente (azeka), no pode penetrar integralmente (ku-dita).” Tuindade ow maldade (ku-tama), coisas ruins (yuma carecer de sorte, pureza ou alvura (ku-bula ku-tooka); ter sofrimento (pifung’u) ou infortinio (mativa); 109 ter doongas (pikweti yikatn)s 5. bruxaria ou feitigaria (wuloji) [se o seu figado for negro, voet pode matar uma pessoa, vocé é mau (muchima neyi wuneyili wukutwesa kujaha muni, wunatami dehi), por outro lado, se 0 seu figado for branco, vocé é bom, voce ri ‘com os seus amigos, vocés sio fortes juntos, um ampara g ‘outro € todos juntos conseguem ter sucesso, onde isolada- mente teriam fracassado]; morte (kufiva); desejo sexual (wavumbi); 8. noite (Wwufuku) ou escuridao (mwidima).. Comentario sobre o simbolismo do negro Inevitavelmente, o inventério dos atributos que fiz aqui daria uma impressio falsa sobre como os Ndembu encaram essa cor, se eu omitisse toda e qualquer referéncia ao conceito de morte ritual ou mistica e a0 conceito correlato da morte da paixio e da hostilidade. O conceito Ndembu de ku-fiva (morte) no tem o cariter de finalida- de que, apesar do eristianismo, parece ter a morte no Ocidente. Para ‘os Néembu, “morrer”, geralmente, significa alcancar 0 fim de um estigio particular do desenvolvimento, alcancar 0 término de um ci- clo de crescimento. Quando uma pessoa morte, permanece ativa, seja na qualidade de um espirito ancestral, que vigia a conduta de seus parentes vivos e se lhes manifesta através de virios modos de afligio, seja parcialmente reencamado em um parente, na medida em que se reproduzem neste algumas de suas caracteristicas mentais ou fisicas. Tal pessoa sofreu nao s6 uma mudanga de status social, mas também de modo de existéncia; neste caso, niio se trata de ani- guilagio. O termo ku-fixa equivale também a “desmaiar”, e, com efeito, em diversas ocasides, os Ndembu me disseram que tinham “morrido” e se haviam recuperado gracas 20 tratamento de um dou- tor (chimbuki). A expressio brasileira que melhor capta este sentido Ndembu talvez seja a de “apagar”. A morte € um blecaute, um pe- riodo de impoténcia e passividade entre dois estados de vida. Existe também um nexo entre os conceitos de “morte” ¢ “maturago” (ku- ula) entre os Ndembu, As pessoas tendem a crescer passando por estigios definidos, cada um dos quais é a morte do estégio preceden No te, através de uma sézie de “mortes e entradas”. Assim, quando uma genina menstrua pela primeira vez, os Ndembu dizem “wunakuli dehi”, “ela amadureceu”, ¢ a mesma observacio ¢ feita quando dos fitos de sua primeira gravidez e quando ela di a luz o seu primeiro filho. A relagio entre ku-fiva e ku-kula € ilustrada de forma marcante também nos ritos de circuncisio, nos quais 0 local da operacio ‘denominado ifivilu, “o lugar de morrer”, a0 passo que o lugar em que ‘os meninos ficam sentados, sangrando, enquanto se recuperam da ‘operacio, € um troneo comprico de mukula, uma Arvore de litex ‘yermelho cujo nome deriva de ku-kula, “amadurecer”. “Pela morte ‘maturidade”, esta bem poderia ser a divisa dos ritos de circuncisio ‘Mukanda. O local era que as meninas ficam deitadas, imévcis, de- baixo de um cobertor, para cumprir um orddlio de 12 horas, no primeiro dia dos seus ritos de puberdade (Nkang’a), € também ifivitu ou chilung'u, o lugar do softimento (ver o item 3, na parte sobre simbolismo do negro) ¢ o objetivo desses ritos é conferir maturidade sexual 8 noviga, O simbolismo negro desempenha um papel importante, ainda que disereto, nos ritos de circuncisio dos meninos. ki mencionei como certos objetos simb¢licos negtos sio ingredientes importantes da posto nfimda, Da mesma forma, quando os novigos retornam as suas mies, depois da reclusdo, batem dois basides, cima de suas cabe- ‘as, enquanto si corduzidos por seus guardiaes rituais (vitombola). Estes bast6es so adernacios com listras alternadas pretas e brancas, que, segundo os informantes, representam “a vida e a morte”. O sim- bolismo da cor negra aparece também, as vezes, nos disfarces faciais dos mascarados makishi, que os meninos eréem que surgem de den- tro da terra, no lugar chamado ifivilu. Nessas méscaras se podem ‘observar trés lstras retangulares superpostas, como uma bandeirola, Uma € de cor branca, a outra vermelha e a outra negra, sendo que a branca ocupa o ponte mais alto, ¢ a negra, o mais baixo. ‘Tais cores ‘Sfo descritas como “muito importantes”. Em sua explicagio, os in- formantes me remeteram & cancdo dos ritos Nkula, realizados, entre ras coisas, para curar uma mulher da frigidez que a impede, se- Bundo os Ndembu, de ter filhos, e que € associada a desordens Menstruais, tais como a menorragia e a dismenorréia. A cancio diz: “Tu deste as inhas (istras), 6 mangusto, este € 0 teu costume, que te faz recusar os homens, tW des= trdis as linhas. (Wakisa nyilenjé nkala chaku i chey'ochu chiwalekelang’a amavala, wakisa nyilenj Em seguida os informantes explicaram que o mangusto da espécie nkala tem “listras vermelhas, pretas e brancas ao longo do seu dor- 30”. A cangio quer dizer: 4 paciente & uma mulher mi, initil, sem poder (haateta ng’ovaku) ~ vos’ esté se destrindo ma- Thee; voee devia ter nenés: voc’ & indigna (hawateletaky, culpa. Voo® & uma raulher f (vafiva movitta,literalmente, morta na cabana). O mangusto tem lists, mas esta mulher, apesar de ter as sus partes, no 26 usa para nada, Eventualmente, 0 toco de madeira que os novigos devem trazer con- sigo, todo 0 tempo, durante sua reclusio, no Mukanda, © que representa 0 seu membrum virile, & chamado também de mkala, “mangusto”, ¢ este animal € um dos alimentos tabu na cabana iniciftica. Ao que parece, é um simbolo bissexual do poder gerativo € representa a agao simultdnea dos trés principios cromaticos. O que signilica o negro na sua combinacio, se af ndo representa as coisas mas ¢ desafortunadas? Existe, sem dlivida, uma relagdo entre a cor negra e a paixao sexual (wuvumbi). Por exemplo, durante a reclusao, as mulheres mais ve- Thas pegam a casca enegrecida de deteminadas dirvores, tal como a arvore mudyi, ¢ com ela pintam de preto a vulva das novicas. Actedi ta-se que isto contribui para aumentar seus atrativos sexuais. AS mulheres de pele muito negra, afirmam os Ndembu, sio muito dese- Jéveis como amantes, ainda que nao como mulheres. A paixio sexual € associada & escuridio e também ao segredo. Por isso, 0 negro re- presenta o que esta aculto (chakusweka, chakujinda) e nao esti somente oculto, mas é um objeto desejado, A nocio wagneriana da morte-de-amor, tal como exemplificada em Tristdo e lsolda, acode logo & mente aqui. O negro esta igualmente relacionado com o amor licito e, em muitos contexts, representa 0 casamento. Logo apés 0 término dos ritos de puberdade de uma menina, por exemplo, a noviga passa a noite com 0 seu noivo (conhecido como kalemba). O casal tem miiltiplas rela Ges sexuais, e, quando a noiva esté satisfeita, faz, secretamente, um sinal afirmativo a instrutora ritual (nkong’u), que vai visité-la & pr meira hora da mani, Esta entdio se afasta na ponta dos pés para 112 jer uma certa quattidade de malowa, barro aluvial negro, cathido ‘margem do rio, no dia anterior, ao cair da tarde, e que “guardou Mage da vista de qualquer homem”. Com ele, percorre todas as cho- js do povoado, depositando um pouco em cada soleira, Um Fiformante Ndembu explicou-me isto do seguinte modo: © matovwa & um simboto (chingikij) de amor (nkeng’). Porque, agora, uma jover ¢ seu esposo se amam, Na aldea, enteetanto, cada qual tem de ‘enlzar em contato com esse amor. Usa-s, tulnémn, ‘0 malowa porque & trio procedente do rio. Em con- ‘seqigncia, 0 seu matriménio permanceerd em paz. [Embora 0 malowa seja negro, neste caso ele nao re- presenta mi sort, esim a paz marital awa felcidade (suit. "Aqui o negrume acrescido da frialdade parecem representar a ces- ‘sagfo da hostilidade entre os dois grupos que se ligam pelo casamento, hostilidade esta previemente mimetizada nos ritos. Logo, o preto pode, de vez em quando, representar a *morte” de uma condigio indeseja- ‘yel ou de mau agoure © CONTRASTE BRANCO/NEGRO. Uma breve investigacio dos significados atribufdos pelos informan- tes a0 “branco” e ao “negro”, respectivamente, indica que, na maioria dos casos, os dois podem ser alinhados em uma série de pares antitéticos, como por exemplo: bondade/maldade; purcza/auséncia de pureza; auséncia de mé sorte/auséncia de infortinio/infortinio; ausén- ia da morte/morte; vida/morte; satide/doenca; rir com os amigos! feitigaria; tornar visiveV/escuridao, ¢ assim por diante. Esse arranjo revela daramente que, quando as cores sio considera- das abstraindo-se os contextos rituais © sociais, os Ndembu pensam_ no branco e no negro como a suprema antitese do seu esquema da Tealidade. Entretanto, como veremos, rito apés sito, o branco € 0 Vermelho aparecem em conjuncio, ¢ 0 negro sé muito raramente se expressa de forma direta. Abstraidas as situacdes reais, o vermelho Parece compartilhar as qualidades, tanto do branco, quanto do ne- Bo; em contextos de acdo, no entanto, o vermelho aparece, egularmente, de par com o branco. M3 Si eoniecteriations das ines Dranea CYerEeIns dao do subordinado. A veneracio dos ancestrais enfatiza esses se Os vivos trazem lenha, bebida e comida simbélica, sob a for- “Je mpemba, o simbolo branco por exceléncia, oferecendo-os aos jtos ancestrais em suas arvores-santusrio, que sio de madeira Assim, pois, nesta fase dos procedimentos, os mortos depen- m dos vivos. Por outro lado, os vivos dependem dos mortos para fem sade, a longo prazo, bem como felicidade, fertilidade ¢ sorte aga, de vez que se supde terem os antepassados poder para pro- cionar esse tipo de béngiios e também para “amarrar” (ku-kasila) ertilidade © a caca (wubinda) dos seus parentes vivos, caso estes jgenciem as oferendas que Ihes sio devidas. Além disso, para ‘ouvida pelos ancestrais, a congregacio inteira, cujo cere € cons- aido pela parentela matrilinear desses ancestrais, deveria, a rigor, ‘em paz e concdrdia. Essa harmonia entre os vivos e os mortos, los vivos entre si, € representada por marcas brancas feitas na ér- ‘mayombu, pot linhas brancas enire a drvore eo oficiante, marcas (2) Alvura, Embora cada urva das cores rituals tenha um amplo es. pectro de referéncias, cada qual tem sua propria qualidade distintva, ‘© que pode ser formulado, em sintese, dizendo-se que o branco é positivo, o vermelho ambivalente ¢ 0 preto negativo, Ser “branco” significa estar na relagdo certa com os vivos ¢ os mortos. Estar na relagao certa com 0s vivos € os mortos significa estar i em si mesmo. Nem se incorre na célera ¢ inveja dos outros, nem se é levado a sentir animosidade com relagao a eles. Portanto, nao se teme a bruxaria ou a feitigaria, nem se € tentado, interiormente, a praticé. a. Uma pessoa em tais condicées esta admiravelmente equipada para o exercicio da autoridade (wana), pois nao vai abusar do poder. Sera zgenerosa em matéria de presentes e hospitalidade, © magnanima, ‘Afastard as “coisas mas” da aldeia e da chefia, a seu encargo, da mesma forma que varre, piedosamente, o pé e as impurezas deposi- tadas ao pé da drvore muyombu, onde faz libagées aos espiritos de seus ancestrais (com a cerveja branca de milho ou paingo) e invoca 0 auxilio deles em favor do seu povo. Provera seu povo de comida, alimentando-o com sabedoria. Pois o branco 6, inter alia, 0 simbolo da alimentacio. Essa qualidade é “tornada visivel”, como dizem os, Ndembu, por meio de formas materiais, tais como o leite do seio materno, o sémen c a farinha de mandioca. Ela representa a continu 0 dade sem sobressaltos de uma geracao a outra, sendo associada com também, aquilo que pode ser visto pelos olhios, aquilo que & 0 prazeres do comer, do conceber e do amamentar. Gerar e ama- esté escondido. A moralidade Ndembu é essencial- mentar So, na verdade, processos que os Ndembu identificam com freqiiéncia, Depois de se saber que uma mulher esti gravida, por ‘exemplo, seu marido continua a manter relagdes com ela por algum tempo, “para alimentar a crianca” com o seu sémen. O mesmo termo. ivumu é usado para “estémago” ¢ “ttero”, ¢, muitas vezes, uma mu- . fe vi . Iher cujo parto se revela longo ¢ dificil recebe comida “para fortalecer Fr =. Seu fardo, dividindo lealmente bens ¢ servicos. © egoismo aieiianga”. trsistente pode, na verdade, por em perigo a sobrevivéncia do gru- a . . i Poe, por esse motivo, deve ser condenado. Admite-se que uma pessoa Outro aspecto do simbolismo branco é a natureza da relagio entre Possa levar a maior parte de sua vida a plena vista do piiblico e, ainda pessoas que representa, Esta é uma relagio entre quem alimenta € 4Ssim, alimentar restrigoes secretas, quando se trata de assistir seus quem é alimentado. Implica, certamente, supremacia e subordint Sompanheiros. Pode albergar ressentimentos ¢ nutrir ambicdes. Uma cao, dominagao ¢ submissio, embora se trate de um dominio Péssoa desse tipo, como mostrei num trabalho sobre a divinagio benevolente e de uma submissio branda, Na relaclo, o parceiro mais idembu (TURNER, 1961, p. 61-62), quando exposta pela divinagio, velho proporciona alimento ¢ sabedoria ao mais mogo. A alvura eX : 2 ; iderada um feiticeiro. O branco é, portant, a luz do conheci- pressa a generosidade do parceiro dominante, e, ao mesmo tempo, '© Piblico, do reconhecimento aberto. De fato, representa a luz id us do dia; e tanto o sol quanto a lua sio considerados seus “simbolos” (vifikijilu), 20 contrario do que registra Baumann (1935, p. 40) a res- peito dos Chokwe, os quais, segundo ele, consideram 0 branco como “a cor do luar” ¢ 0 vermelho como “relacionado com o sol”, O sol e 4 lua séo também considerados simbolos de Deus (Nzambi) e, m: uma vez, voltamos & nogio de que 0 branco, mais do que qualquer outra cor, representa a divindade como esséncia e fonte, bem como amparo. O branco, tal como a luz que emana da divindade, tem, no sentido aqui considerado, um carter de confiabilidade e de veraci- dade, pois os Ndembu acreditam que tudo 0 que pode ser visto claramente € aceitivel como base valida de conhecimento. © branco é também o imaculado e o impotuto. Este cariter de isen- gio de toda mancha pode ter um sentido tanto moral quanto social Assim, ouvi certa vez um balconista africano despedido, cujo patréo ‘© acusara de furto, dizer “meu figado esta branco”, mais ou menos ‘como qualquer um de nés diria “minha consciéneia esté limpa”, Em ‘contrapartida, existem certos estados ou estatutos ritualmente poluentes. Um menino nio-circuncidado é conhecido como wunabulakutooka, “aquele a quem falta a pureza do branco”, ¢ néo pode comer comida preparada no mesmo vasilhame onde foi feita a refeigio de um homem adulto. Caso o fizesse, diz a crenca, os diver- sos poderes misticos adquiridos por um homem, em vistude dos muitos ritos a que se submeteu, como o de abater a caga, perderiam sua eficacia, Acredita-se que “a sujeira embaixo do prepicio” (wanza, palavra comumente usada como insulto) de um menino néo-circun- cidado ¢ altamente contaminadora, sejam quais forem as suas qualidades morais como individuo, A agua € considerada “branca” porque limpa 0 corpo da sujeira, porém mais especialmente porque a lavagem simboliza a remocao das impurezas inerentes a uma condi- io biolégica ou a um status social que se esti em via de deixar para trés. Nas iniciagdes, tanto masculinas quanto femininas, por exem= plo, os ne6fitos so cuidadosamente lavados antes de retornarem a0 convivio social, depois do perfodo de reclusio. Por ocasio do térmi- no dos ritos funeririos, uma viva, ou um vitivo, é lavado, ungido com 6leo, barbeado ao redor da linha do cabelo, vestido com uma roupa nova ¢ branca, e adornado com contas brancas; série de atos que ilustra a ligagio intima entre a ablucao e 0 simbolismo do bran co. O que se lava nesses ritos de crise de vida € o estado de morte ritual, a condicao liminar entre dois periodos de vida social ativa. A 116 ‘alyura ou a “pureza” é, pois, em determinados sentidos, idéntica & Gneambéncia legitima de um status socialmente reconhecido, Com- portar-se de modo « transgredir as normas desse status, por mais \écuo que esse comportamento possa ser, para quem se reveste de fatto status, constitui impureza. E particularmente impuro compor- tar-se regressivamente, isto é nos termos das normas de um status ocupado anteriormente, no ciclo de vida individual. Isto porque os “estdgios sucessivos da vida sfo pereebidos como uma ascensio pro- gressiva da impureze de um nio-circuncidado & pureza de um sénior, no caso dos homens. ¢ da impureza de uma moca menstruada, atra- és da crescente pureza de uma mie de muitos filltos, até o estatuto pés-menopausa de kashinakaji, a veneravel lider das mulheres da aldeia. A ancestralidade € ainda mais pura e os albinos so consid 3s seres especialmente propicios porque tém “a alvura dos espiritos strais” (wutooke wawwakishi). or detris do simbolismo da alvura, encontram-se, pois, as nocdes harmonia, de continuidade, de pureza, do manifesto, do piblico, do apropriado e do lzgitimo. Q) 0 rubor. Que havemos de pensar do simbolismo vermelho, 0 ‘qual, em sua forma arquetipica, nos ritos de iniciacao, € representa- do pela interseccio de dois “tios de sangue™? Essa dualidade, essa “ambivaléncia, essa posse simultdnea de dois valores ou qualidades ‘contrarias sio bastante caracteristicas do vermetho, na visio Ndembu. ‘Como dizem eles: “o vermetho atua tanto para 0 bem quanto para 0 mal”. Assim, ao passo que € boa coisa combinar o sangue da mae mo do pai, é mau praticar a bruxaria necréfaga. Tanto o sangue do ascimento, quanto o sangue consumido pelos bruxos so represen- dos pela argila ou terra vermelira, que contém Oxidos (mukundu, la). O vermelho €, particularmente, a cor do sangue ou da carne, or camal, Por isso evoca a agressividade ¢ o aguilhio da carne. epresenta a matanci ¢ a carneacdo dos animais e as dores do parto. a, também, no vermelho, algo de impuro. Um homicida tem de ser ificado da macula do sangue por ele derramado, embora tenhia 0 ito de usar, nas ocasides rituais subseqiientes, a pluma vermelha Papagaio de Livirgstone (nduwa), apds os ritos de purificacio. O melho representa igualmente a menstruacao das mulheres, em {ais como 0 Niula, termo usado, as vezes, como sindnimo de ‘sttuacdo. O term comum para o fluxo menstrual & mbayi, que Xe Ser relacionado com ku-baya, “ser culpado”, embora se use, uy com freqiiéncia, o termo kanyanda. Kashera designa um periodg menstrual, mas o circunléquio ku-kiluka kwitala dikwawu, “putar para a outra cabana”, € muito comum, Pois, até recentemente, cada aldeia tinha ao menos uma choga de capim perto da margem da flo- resta onde as mulheres ficavam reclusas durante 0 seu periodo menstrual, Nela tinham de preparar sua prépria comida. Durante esse periodo, estavam proibidas de coziniar para seus maridos e filhos ow de tomar as refeigdes com eles, Enquanto durasse sua auséncia, ou- tra mulher da aldeia assumia essas tarefas. O sangue da menstruagio e do assassinato é, portanto, sangue “ruim” ¢ os Ndembu 0 relacio- ‘nam com o preto.' O sangue detramado por um cagador € oferecido, junto aos tiimulos ¢ altares dos ancestrais cagadores é, no entanto, reconhecido como sangue “bom” e ritualmente associado com o sim- bolismo branco. A maior parte dos ritos do culto dos cagadores, carateriza-se pela invacacdo de simbolos brancos ¢ vermelhos. Parece haver uma certa correlagdo do papel masculino com 0 ato de. tirar a vida, ¢ do papel feminino com o ato de dar a vida, embora ambos permanecam sob a rubrica do vermelho. © homem mata, a mulher di luz, © 0s dois processos sio associacos com o simbolis- mo do sangue. semen, como jii observamos anteriormente, € sangue “purificado pela figua”. A contribuicao do pai para a crianga esté, portanto, livre Gas impurezas que afetam 0 sangue feminino. Como o branco se cencontra em estrcita associacio com os espiritos ancestrais e com Nzambi, o deus supremo, poder-se-ia dizer que 0 “sangue do pai” € ‘mais “espiritual” € menos “carnal” do que 0 sangue da mie. Essa ‘maior pureza est provavelmente ligada a uma crenca generalizada entre os Ndembu de que relacao pai-crianga € a Gnica completa mente livre da macula da bruxaria ow feitigaria. A relagéo mie-crianca, 20 contrairio, esté longe de ser isenta dessa mancha, ¢ acredita-se que as bruxas matem seus proprios filhos a fim de obter “carne” para 08 seus pactos. Em compensagio, enquanto uma pessoa tem fortes la- gos juridicos com a sua parentela do lado materno, os Ndembu cconsideram que esta pessoa deve ao seu pai ¢ & sua parentela do lado paterno importantes tracos da sua personalidade. E seu pai que™ recorre a divinaciio para encontrar-Ihe um nome, logo depois de set nascimento, ¢ esse nome € usualmente obtido dos parentes mortos dele. Acredita-se que certos tragos do cardter e do fisico do espirite doador do nome se reencarnam na crianga. Além disso, 0 pai desem™- us snha um papel importante no Mukanda, rito de eireuncisio dos 1s, cercando scu filho de cuidados, provendo-Lhe instrugio ¢ ndo-o (contra a falta de cuidado dos circuncidadores), duran- m fase de Separacio, ao passo que a mac estd, por sua propria iggo, excluida da cabana inicitica. Estou mencionando essas ‘cas ¢ crencas para enfatizar a natureza “pura” do vineulo pai- Piro, Entre os Ndembu, todos sabem que as relagdes no ambito da Merentcla matrilinear SA0 com freqiiéncia muito tensas. Isto porque ge tende a desenvolver a competicao em torno de questaes de he- Tanga c de sucessio Na sociedade tribal africana, a competigio me 8s relacoes de parentesco tende, a longo prazo, a suscitar 3s de feiticariae bruxaria, e os bruxos e feiticeiros, segundo ‘leoria Ndembu, sio pessoas “de figado negro”, que anseiam por fearne humana vermelha” e alimentam “rancores” (yitela), os quais discussdo sobre as conotagées sexuais do vermelho ¢ do bran- 9,na teoria Ndembu da procriagio, conduz inevitavelmente a uma ‘comsideracdo dessas cores como um par, como um sistema binirio. © negro é, com muita freqiiéncia, o membro negligenciado da significam.‘ Desse modo, usar um simbolo negro equivale a evocar a Torte, a esterilidade e a feiticaria. Aqueles contextos em que a cor 0c preto do Mukanda, e da faixa negra da mascara ikishi, cos- am referir-se 4 morte ritual e esto em intima conexfo com a 0 oposta de regeneracio. Quando s¢ utilizam simbolos negros, O no caso da malowa, a lama aluvial negra, eles tendem rapida- dos a apaziguar os espiritos ancestrais, envolvendo a base de Helos rituas, tis como os altares feites de drvores, ou enterrada baixo de simbolos de doenea, “para esfrid-los”, isto é, para pro- vocar morte do aspecto “quente” e, portanto, misticamente petigo. so da afligao. Afirma-se que os feiticeiros fazem uso de materiais considerados “negros” ¢ “impuros” — fezes das proprias vitimas, E caracte tieamente humano pensar em termos de ‘olagies didicas: ns hubitualmente transformamos uma relagio trdica em dois pares de diades. Com cefeito, essa disposigio € de tal maneira enraizada, que alguns chegario a objetar que uma relacio triddica € um par de diades. Seria jgualmenteldgico sustemtar que todas as relagies di tviades com um membro nulo. prepiicios decepados, sorrateiramente subtraidos aos circuncidado- res, e coisas do género ~ como ingredientes de suas pocdes letais (wang’a). Essa idéia ilustra com perfeigio 0 nexo ntimo do simbo- ismo do negro com 0 comportamento socialmente indesejavel, ow com a privagio da vida ou do bem. Trata-se dla extingio, voluntaia ‘0u nao, de tudo o que se move, respira e tem autodeterminacio, {Nos casos em que 0 branco € 0 vermelho sio vistos como comple- jentares, mais do que como pates antitéticos, provavelmente ftaremos diante de uma cclagio triddica em que o negro é “membro nulo”, Como, no entanto, em virtude das idéias Ndembu sobre a na- tureza da representacio, 6 impossivel representar visualmente o negro ‘sem evocar 0s seus podletes maléficas, sua auséncia do campo de visio nio significa necessariamente a sua auséncia do pensament om efeito, a propria auséncia pode ser significativa, pois constit O branco € o vermelho, ao contrério, sio associados & atividade, Considera-se que ambos “tém poder”. © sangue, principal denota- io do “rubor”, € inclusive identificado com 0 “poder”. O branco, além disso, remete aos fluidos vitais; representa 0 leite ¢ 0 sémen. 0. negro, ao contrario, representa os dejetos corporais, a sujeira do cor. po ¢ os fluidos de putrefacdo, além dos produtos do catabolismo. HG, no entanto, entre 0 branco e 0 vermelho uma importante diferen- ‘cas pois o primeiro representa a preservacio e continuidade da vida, a0 passo que 0 iiltimo pode significar o despojamento da vida, e, O branco ¢ 0 vermelho emparelhados, sob os distintos aspectos do mesmo quando representa a continuidade da vida pelo parto, como ‘masculino e do feminino, da paz e da guerra, do leite e da carne, sfio no caso de certos simbolos vermelhos, como a frvore mukula, eles ‘conjuntamente a “vida” (wumi); ambos se opdem ao negro, enquan- nao deixam de ter uma conotacao de perigo e descontinuidade. Tal tomorte ¢ negatividade. como dar & luz, matar também € uma atividade da vida, Por isso 0 vermelho, da mesma forma que 0 branco, se inclui na categoria geral , de “vida”. Quando associado com a pureza, podemos pensar no san- ALGUNS DADOS COMPARATIVOS. ‘gue derramado pelo bem da comunidade. O vermelho ¢ 0 branco podem encontrar-se mesclados, no pensamento Ndembu, como 10, caso do sémen normal, “sangue branqueado pela agua”. O mesmo se di com o negro, como no caso do sémen de um homem impoten- te, “sémen morto”. Nos casos em que se desenvolve uma classificagio bipartida das coisas em “brancas” ou “vermelhas”, estando 0 negro ‘ou ausente ou aculto, as vezes acontece de o vermelho assumit mui= tos dos atributos negativos e indesejaveis do negro, sem conservat, 1no entanto, seus aspectos mais positivos. Faz parte, naturalmente, da esséncia da polaridade que qualidades contrérias sejam atribufdas aos dois pélos. Por isso, quando uma classificagao de cores tripartite cede a vez a uma classificacio bindria, vemos 0 vermelho tornar-Se no s6 0 complemento, mas também, em alguns contextos, a antites¢ do branco. Talvez fosse conveniente citar aqui o Iogico simbslico A: B. Kempe (1980), que escreveu: Como tive pouca oportunidade de repassar toda a literatura de forma ‘sistemtica, o que vem a seguir tem de ser necessariamente um pou- €9 a0 acaso. Comeco este levantamento comparative com dados Griaule (1950, p. 58-81) descreve, nos Dogon da Africa Ociden- al, a relacio entre um mito cosmolégico, mascaras, estatuctas, ras rupestres, ¢ as rubricas cromaiticas branca, vermelha e preta. Aqui o preto & associado com a poluicio, © vermelho com o sangue menstrual da Terra Mie, que cometeu incesto com o seu primogénito, © Chacal, eo branco coma pureza. Uma grande serpente de madeira, 120 i121 representando a morte ¢ o renascimento, € consagrada por meio de sacrificios sangrentos e decoracia com essas cores, Os jovens nestitos do sexo masculino usam méscaras coloridas de branco, preto € ver- melho, AS pinturas rupestres usadas nos ritos sdo reavivadas com, pigmentos desses matizes. O vermelho € também associado com 9 sol € 0 fogo. Arthur Leib (1946, p. 128-33) resume 0 que chama de “sis mitico” das cores en:re as poves de Madagascar como segue: “Com, 6 negro esto associadas palavras como as seguintes: inferior, desa- gradivel, ruim, suspeito, indesejivel. Com o branco: luz, esperanca, pureza. Com 0 vermelho: poder, forga, riqueza.” 4 mencionei a ambivaléncia do simbolismo negro entre os Ndembu, A lama aluvial negra (malowa) é um simbolo de fertilidade ¢ amor marital. Ora, em muitas sociedades africanas o negro tem conotagdes auspiciosas. Entre os Shona da Rodésia do Sul," o negro representa, inter alia as nuvens carregadas com as chuvas que cacm na estacio \imida, e os sacrificios para os espiritos-guardides que mandam a chuva sio feitos com reses, cabras ou galinhas pretas, vestindo os édiuns ou sacerdotes paramentos de tecido negro. Assim, em socic~ dades Bantu contiguas, o preto pode representar, em uma, a esterili- dade, ¢, na outra, a fertilidade. De acordo com Huntingford (1953a, p. 52), um garrote regro é imolado sobre 0 timulo do fazedor-de- cchava, entre os Kukv de Bari, enquanto nas ceriménias propiciatérias da chuva, celebradas entre 0 Lokoya, se sacrifica um bode preto, e, com 0 contetido de seu estomago, se unge a Lipide do timu- lo do pai do fazedor-de-chuva. E ainda Huntingford (1953b, p. 138) quem nos informa de que, entre os Sandawe de Tanganyika,’ “sacerdotes (ou adivinhos) so também fazedores-de-chuva ¢ ofere- cem em sacrificio bois, carneiros ¢ cabritos negros para trazer a chuva”, Com freqiiéncia, foram alegadas as afinidades dos Sandawe com cs bosquimanos. Por isso € interessante descobrir que entre os tilti- mos, de acordo com Bleek ¢ Lloyd (1911), um lustroso pé negro feito de especularite (ferro especular) moida e que se conhece pelo nome de /fhara entr> os bosquimanos do Cabo era usado na pintura corporal © nos pentzados, ¢ que, segundo parece, sc Ihe atribufam qualidades magicas. Assim, para citar um dos textos de Bleck (191L, p. 375, 377): 122 es etm abe com arom msn cul Gain, enganio Jace quo eto Sra Grew, E el so ttn blo por caus & fat pote nts scapes deando quo ae [oles exes em melean gn uns sce ‘oa nese ue tare il is, aoa hoe cms pe ona te] Porhao xosuinnon uma omen un jem mato Gono gt ta cate ae ¢ examen bla coe oe jea pena assinalar, desde logo, que a especularita era, ao que pare- ce, “um elemento muito cobicado para pintar, durante 0 Paleolitico Superior, no Cabo, a julgar pelas pecas encontradas nos sitios de ipacio deste periodo” (CLARK, 1959, p. 244). A minha propria fese a de que o negro tende a transformar-se numa cor auspit plantas!). Nas regides em que ha muita agua ¢ onde o alimento € abundante, 0 negro pode converter-se numa cor funesta. Assim, nao te, Joan Wescott (1962, p. 346) escreve: 0 negro 6 sssoiado (pelos Yor) coma nit, rote est associa. com 0 mal. E noite que & ‘usar ea fetgari andam sles eos homens sto smaisvulneriveis Alguns Yorbacizsmy, singlamen- 15, que leh (a divindade Trickster) pintado de negro por causa de sua mada Penfnsula Malaia bosquimanos empregam todas as trés cores ritualmente. Da mes- forma os Semang, Sakai e Jakun da penfnsula Malaia. Como os Posquimanos, esses povos sao cacadores ¢ coletores, Skeat e Blagden 06, p. 31) relatam que os Sakai pintam seus corpos de “preto, No, vermelho c, acasionalmente, de amarelo, sendo os dois diti- Sreneg gue parece, de valor equivalent, do ponto de vista magico”, Ga tualmente, da mesma forma que o sio entre os Ndembu, Quan- fascem criangas entre os Sakai, a parteiza thes aplica listras de fento das sobranceliias & ponta do nariz, negras, no caso das me~ 123 nas, vermelhas, no caso dos meninos (SKEAT; BLAGDEN, 1906, p. 48). Afirmi-se que a linha negra do nariz protege as meninas do “demonio do sangue” (Hantu Darah) que detém 0 fluxo menstrual da mulher e, dessa maneira, a impede de dar & luz filhos sadios. @ branco é, geralmente, uma cor auspiciosa, entre os Sakai e outros povos malaios Austral Charles P. Mountford (1962, p. 215) menciona que tods as trés eo. res sio usadasna arte rupestze dos aborigenes australianos—o negra, sob a forma de Gxido de manganés, ou qualquer outro minétio fer. ruginoso; o branco extraido dos depésitos de argila ¢ caulim; ¢ 9 ‘ocre vermelhe, que pode obter-se mediante extracdo ou comércio = na verdade as pessoas chegam a viajar centenas de milhas para cole. tar esses ocres, em determinados lugares (‘ais como Wilgamia, na Austrilia Ocicental, e Blinman, nas North Flinders Ranges do sul da Australia) (MOUNTFORD, 1962, p. 210). Mountford descreve 0 modo pelo qual os pigmentos brancos e ver. methos so empregados nas pinturas rupestres dos Wandjinas~ figuras altas e sem boca, com uma espécie de auréola em tomo da cabeca; as vezes, chegam a seis metros de altura. A cara é sempre branca e rodeada por um, as vezes dois arcos em forma de ferradura, apresen- tando, por veees, linhas que inradiam a partir deles. A cor destes costuma ser 0 vermelho. “Os aborigenes créem”, diz Mountford, “que essas pinturas estio cheias de esséncia de sangue ¢ égua; a gua, tio necessiria para todos os seres vivos, é simbolizada pela cara branca, © 0 sangue, que tora fortes os homens ¢ os animais, pelos arcos de ocre-avermelhado.” Nota-se, uma vez mais, a afinidade estreita com a exegese do branco edo vermelho. A Agua, para os Ndembu, ébran- ca”, € 0 sangue, naturalmente, é “vermelho”. Indios da América do Norte Meu Giltimo exemplo tomado de fontes etnogrificas € procedente do Novo Mundo, das Sacred Formulas of the Cherokees, de Mooney (citado por Lewis Spence, em seu artigo sobre os Cherokee, m4 Hastings Encyclopaedia of Religion and Ethics). Mooney most como, entre os Cherokee, 0 branco representa a paz, a felicidade & 0 124 vyermelho fem a ver com 0 sucesso, o triunfo ¢ 0 norte; 0 preto 4 morte ¢ 0 oeste; o azul com a derrota, a desgraca e 0 leste, sjmente, estes significados indicam que, tal como em certas da Africa, o azul & percebido como tendo afinidades com 0 ‘Algumas divindades e espiritos Cherokee correspondem, em ia de cor, as caracteristicas que Ihes s4o atribuidas. Espititos se vermelhos, quando em combinacfo, eram uswalmemte en- fados como aqueles dos quais emanavam as béncdos da paz ¢ da sade. OS espiritos negros cram invocados para matar um inimigo. E ante lembrar aqui como o branco eo vermelho sio usados no Hual Ndembu para indicar poderes passiveis de se combinarem em mneficio do sujeito dos ritos (por exemplo, nos ritos de caca e nos nais ginecol6gicos), enquanto o preto surge como a cor da feitig ine da bruxaria. )por Sti Sankaracharya, 0 grande filésofo do século XVIII indiano. ecentemente, Swami Nikhilinanda (1963) traduziu os Upanixades, notas baseadas nas explicagdes de Sankaracharya. Vou citar umas s passagens do Upanixade Chhandogya (VI, iv, 1) e acrescen- rao primeiro texto o comentiio de Nikhilinanda: A cor vermelha do Fogo (genético) & 2 cor do (ogo original); a or branea do foyo (genética) € a cor da {gua (original) [recordem-se aqui os costumes dos aborigines e dos Ndembu]; cor negra do fogo (3 rico) éa cor da (terra original). Assim desaparece do fogo 0 que 6 comumente chamado fogo, sendo a modificagio apenas um nome, que surge do discur 80, a passo que as ts cores (formas) sio as Gnicas verdadeiras Comentitios: As teés cores, ou formas, constituem o fogo visivel Quando essas trés cores sio explicadas como per- tencentes a0 fogo, 3 gua e 2 terra originals, © fogo tal como é comumente conhecide desaparece, bem camo a palavea “Togo”, Pois © fogo nao existe inde- 125 pendentemente de wma pala palavea denoxa, Por esse mative, © que os ignoran. tes denotam com a palavra “fogo” ¢falso, sendo ay tris cores a tnica verdade (srifo n0ss0). (© mondo inteio € tipartido. Por isso, ta como no «aso do fogo (ou nos casos do sol, da lu, do reli. pago etc) a nica verdade sobre 0 mundo reside nas, {ues cores, Como a tera apenas um efelto da Sua, a tinica verdade 6 gua; a terra € um mero nome, As. sim, também, a igua, sendo um efeito do fogo, um, simples nome, ¢ 0 fogo, a tnica verdade. O fog0, por sua vez, como efeito do Sat ou Puro Set, é uma sim ples denominagio, sendo o Puro Ser a nica verdade, Nesse Upanixade, as cores aparecem, 2s vezes, como “divindades”, Ha exemplos de como elas se manifestam nos fendmenos. Assim, “o alimento, quando ingerido, divide-se em trés partes. O que nele & mais grosseiro (a parte escura) transforma-se nas fezes, o que € mé- dio (a parte vermelha) vira carne, € o que € mais sutil (a parte branca) transforma-se no espitito” (VI, v. 1). Da mesma forma, 2 gua, quando bebida,divide-se em tr pares. 0 que nea hi de mais srosscieo (ou preto transforms- se em urina, o que é médio (ou vermelho) vita sangue, & © que & mais fino (ou branco) transforma se em prana (= 0 sopto vital que sustenta& vida num corpo fisco ou 4 eneria ou forg primordial, de que as demas forgas sho maniestagies). As trés cores parecem ser idénticas aos gunas ou “fios” da existéncia (uma metifora proveniente da tecelagem), encontrados no Samkys- Karika, obra at . Estes so descritos por R. C. Zachner (1962, 91) como “permeando todos os recantos do ser da Natureza (prakiri)”. Os trés sio chamados sattva, rajas e tamas, ter mos que podem ser traduzidos literalmente como “a qualidade do ser, a energia ¢ a escuridao”. Sativa € a qualidade da pureza ¢ tran ‘quilidade (e pode ser equacionada com o branco); rajas € o prinespio ativo que inicia 0 karma (e pode ser identificado com o vermelbo), ao passo que famas € “constritivo, obstrutivo, ¢ conducente & apatia letargica (e pode ser equacionado com o preto)”. Zaehner (1962) cita do Livro 4, Capftulo 5 da grande epopéia do Mahabharata, algans versos que elucidam melhor a relagio entre os gunas e as cores: 126 Coma Fémen nia nase . branes, vemmelhs ou ne agra 'simbolizando osrés ganas”, esereve Zacher), que Froduz muitas criaturas como ela mesma Juz 0 Vario nao mascida, ¢ se deleita: outro Vari ao raseide a abandona quando dele ela tver ob 0 0 seu prazer. Parece provavel que a nogio das cores seja a heranca de um passado 10 (talver. pré-Indo-Euroreu) e que os textos dos Upanixades sejam especulacées de uma filosofia posterior sobre esse depSsito “primordial “Aqui vale recordar, uma vez mais, que as tr2s cores ou formas sio, ‘no hinduismo antigo, em tiltima andlise, redutiveis a uma s6 nature- za 0U Ser, a Sat ou Praktri, pois a nocio Ndembu de que os “trés fos” de cor brotam da divindade nao é muito diferente. Também encontramos nas duas culturas a nocdo de que 0 branco esté ligado & pureza ¢ 4 paz.¢ a mais “sutil” ou a mais “cspiritual” das cores. (O dranco parece (er mais ow menos o mesmo leque de significados ‘tas religiGes semiticas, pois Robertson Smith (1912, 590, S83) re- tra, 2 propésito dos érabes que, quando um homem se desgraca em virtude da quebra do costume ou da etiqueta tradicional, sua face fica negra, a0 passo que uma vez sanada a omissao, ou encerrada & pendéncia, cla volta a ser branca. Existem igualmente semelhancas entre os significados do vermetho nas culturas hindu e semitica. O ‘fermo comum hebraico para paixio (quinal) deriva de uma raiz, erbal que significa primordialmente “estar enrubescido”; rajas, 0 ido “fio”, “vermelho”, ¢ freqiientemente traduzido como “pai- 08 ingleses ou americanos, Maurice Farbridge (922) escreve que, para os hebreus do Velho Testamento, “verme- , como cor do sangue, representa o derramamento de sangue, & guerra e a culpa”, TRES CORES NA LITERATURA ARQUEOLOGICA Em muitos sitios arqueol6gicos africanos, muito distantes uns dos Outros, os vestigios da Idade da Pedra atestam o uso do branco, do Yermelho e do negro em contextos rituais. Para citar alguns exem- Plos 20 acaso: Roger Summers (1958, p. 295), que fez a escavacio = tm abrigo em Chitura Rocks, distrito de Inyanga, na fronteira 127

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