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A enunciagio do cinema para a tevé (Anilise do video Morte e Vida Severina) Aline Maria Grego Lins* Resumo Revisitar 0 poema de Joao Cabral de Melo Neto, a pastir do olhar jornalistico. Essa foi a proposta do video-reportagem Morte e Vida Severina 40 anos depois', produzido e dirigi- do pelo jornalista, ex-aluno da UNICAP, Gerson Camarotti ¢ «que € analisado, neste artigo, a partir das teorias da enunciacio aplicadas ao cinema e adaptadas para a televisio. Recorrendo também A andlise do discurso, o presente trabalho procura apon- tar, de forma relacional os elementos que compéem a enunciagio cinematogrifica ea enunciacio televisiva,evidenciando seus su- jeitos enunciadores eas diferentes fungSes que desempenham 1nos dois veculos. Ao mesmo tempo, traca paralelo entre a es- trutura de documentirio empreendida pelo realizador do video € a estrutura existente na formacio e apresentagio de um telejornal. A idéia € apresentar ao leitor os mecanismos que ‘stio envolvidos na produgio de um audiovisual, sobretudo na edigio (video) e na montagem (cinema). Palavras-chave: discurso da enunciagio, cinema, video, telejonal ‘THE ENUNCIATION OF THE CINEMA BY TELEVISION (An analysis of the video Death and Life Severina) Abstract Re-examining Joio Cabral de Melo Neto's poem, from a journalistic perspective. This was the Idea behind the video- report Death and Life ~ 40 years later!, produced and directed by the journalist, Gerson Camarotti an ex-stadent of UNICAP. ‘Thisis analysed inthis paper by using the theories of enunciation. applied to the cinema and adapted for television. By also using discourse analysis, the paper secks to pinpoint, ina structured ‘way, the elements which comprise cinematographic enunciation and small screen enunciation. Itdoes so by showing what theit ‘enunciating subjects are and the different functions which they perform in the two media. Atthe same time it traces a parallel between the documentary structure employed by the director of the video and the structure currently used in the compilation and presentation of TV news. The Idea is to introduce the reader tothe mechanisms which are involved inthe production of an audiovisual piece, specially in editing (video) and producing (cinema). Key-words: discourse of enunciation, cinema, video, TV news *DCS/UNICAP Universidade Catélica dé Pernambuco - 14 <@ “Estamos no mundo como qualquer outro animal, corpos fisicas ¢ senstveis que respon- dem ¢ reagem. Contudo, nossas respostas, ‘mesmo quando parecem diretas ¢ imediatas, sao mediadas pelo pensamento que & signo. Vivemos nessa oscilagao: entre estar nas coi- sas e estar fora delas, entre estar no outro ¢ estar fora dele, entre estar em nés e fora de nés. Sou onde ndo estou, estou onde ndo sou, disse sabiamente Lacan”. Licia Santaella Santaella fala do signo & luz do espelho, uma releitura do mito de Narciso e do investimento sim- bélico que o homem produz, cotidianamente, para tentar viver em harmonia no mundo. Mas, certa- mente, esse texto da Santaella poderia resumir mui- to bem o processo desencadeado na sala escura do cinema, de que falam as teorias da enunciacio, dos mecanismos de projecio, do espelho (Lacan), da pulsio escépica, do desejo secreto de cada espec- tador de ver e de ser visto, de ser ele proprio ¢ de ser um outro, de brincar de “metamorfosear-se”, proceso mediado nio apenas pelo pensamento, mas através do que se passa na tela cinematografi- ca. As teorias da enunciacio no cinema procu- raram (¢ ainda procuram) compreender e explicar esse “jogo de cumplicidade” travado entre o filme € 0 espectador, ou melhor, entre o enunciador e 0 enunciatirio. A enunciagio é a base onde se arti- cula 0 discurso filmico, “é o apropriar-se ¢ apoderar-se das possibilidades expressivas oferecidas pelo cinema para dar corpo e consisténcia a um filme” (CASETTI, 1989, p- 42). Heranca do discurso literatio, as teorias da enunciacio no cinema crescem em complexidade, levam em consideragio as especificidades técni- cas necessirias 4 produgio de sua arte (diferente das especificidades literarias), por sua vez, encon- tram num outro instrumental tedrico o par “per- feito”: a psicanilise, em especial, as teorias de Freud (complexo e pulsdes) e a de Lacan (teoria do espelho). Ba identificacao e o reconhecimento do sujeito no jogo da enunciagéo, que ora pode estar dando asas as suas pulsdes (voyeurista, exibicionista), num espaco socialmente aceito tal Revista SymposiuM — qual é a sala de cinema, ora pode projetar-se nas personagens onde, sem rigor ¢ livre da censura moral da sociedade, pode transitar entre 0 “moci- nho” € 0 “bandido” e melhor, sem constrangimen- tos ou receios, uma vez que sabe ter a grande pos- sibilidade no final do filme, no acender das luzes, de voltar a ser ele prdprio. Quando se fala, portanto, em enunciacio, palavra que vem do latim “enuntiatione”, que sig- nifica ato ou efeito de enunciar, exprimir-se, mani- festar-se através de um enunciado’, estamos fatal- mente falando de “sujeitos”: quem enuncia o qué? © enunciador; através de quem enuncia? 0(s) sujeito(s) da enunciacio; a quem é enderecado 0 enunciado? o enunciatétio, também identificado por alguns tedricos como narratitio, destinatirio ou interlocutério, 0 que fatalmente produz a cor- respondéncia semAntica do outro lado da relacio, isto é, 0 narrador, destinador, interlocutor. Essa idéia de sujeito que vé, que observa a obra, o pon- to de vista desse sujeito, surge jé com os renascentistas na pintura ¢ na literatura. O reco- nhecimento da figura do observador (enunciatitio) chega também 4 fotografia, ao cinema ¢ & televi- sio, recorte que particularmente nos interessa neste trabalho, em especial a enunciacao dos programas denominados informativos e/ou jornalisticos. Con- tudo, antes de irmos adiante com esse propésito, vamo-nos deter um pouco mais na enunciacio no cinema, uma vez que foi, a partir dos esforcos ted- ricos dessa rea, que se tornou possivel pensar, também, a perspectiva de uma discussio tedrica enunciativa para a tevé. ‘As imagens, ou melhor, os planos cinemato- grificos, so os pontos de vista apresentados pelo enunciador, através de uma organizacio narrativa, que guia nosso olhar pelo filme. Enuncia o qué, onde e como nos podemos localizar a0 longo do que se passa na tela. E com Griffith que surge, no cinema, a preocupacao em fazer com que 0 espec- tador compreenda a historia, é com ele que nasce, podemos dizer assim, a sistematizagao de um pro- cesso de enunciagio do filme (XAVIER, 1984), onde planos ¢ seqiiéncias de montagem comecam a pontuar a hist6ria, a instituir um narrador, que no estava explicito, mas que levaria o espectador a acompanhar 0 enunciado e, conseqiientemente, 0 objetivos do proprio enunciador (isso acontece até hoje em certos filmes, seja em cinema ou tele- visio). ‘A partir das primeiras “regras” da “gramati- ca cinematografica”, 0 processo narrativo no cine- ma torna-se mais complexo, mais criativo, mais inovador e, também, mais envolvente, dando asas para os experimentos, utiliza a cAmera subjetiva, faz com que espectador veja a historia com os olhos de um personagem, descobre ¢ incentiva 0 voyeur que existe em cada um de nés, vai jogar com 0 olhares dos personagens e com os nossos, vai mais além, faz com que nos projetemos na tela, identifiquemo-nos com os personagens, com seus dramas ¢ atitudes, envolve-nos, deliberadamente ou nfo, com a trama, no convite 4 hipnose da sala escura. “a disposifao dos diversos elementos - projetor, scala escura, tela, além de reproduxir de modo bastante impressionante 0 espago da caverna, cenério exemplar de qualquer transcendéncia ¢ modelo topoligico do idealism, produz, 0 dispositive necessério para que tenba inicio a _fase do espelbo descoberta por Lacan” (BAUDRY, 1991, p. 395). Mas essa hipnose niio é estitica, esse es- paco da sala de cinema nfo é um engessamento do olhar € do corpo do espectador. Como bem nos lembra Roland Barthes “nesta obscuridade urbana é onde se elabora a liberdade do corpo”. (BARTHES, 1986, p. 351). Essa capacidade da sala escura de envol- ver seu espectador, de fazé-lo até despregar-se do seu corpo € habitar, metaforicamente, outros cor- pos, esse clima de seducio cuidadosamente pre- parado nessa sala, que é espaco publico, para atra- ir o espectador ao “mundo da tela”, nfo pode ser acompanhado pelo espectador de televisio. A tevé, praticamente, anula o “entorpecimento” oua “con- templacio”. Ao contriirio do ambiente da caverna (no cinema), o ambiente onde esté inserida a tela de televisio € doméstico e dispersivo. Segundo Arlindo Machado (1990), um espectador de tele- visio jamais perde a nogio de que esti em casa, que est diante de um aparelho eletrdnico e viven- do sua propria realidade doméstica, ele é menos vulneravel ao ambiente ¢ A tela do que o especta- dor de cinema. Evidentemente, essa mudanca de espago,* de ambiente vai implicar uma mudanga de com- PR Ano5+n° 2+ julho-dezembro 2001 - 15 portamento desse espectador, ou melhor, desse telespectador, conseqiientemente, vai significar também mudanga na forma de enunciar. Na tele- visio, o cariter polifénico da enunciagio revela uma multiplicidade de vozes, que tomam a pala vra ¢ interpelam seus destinatarios (enunciatarios), sem falar na fragmentagio do discurso (verbal ¢ visual), e no que Requena (1995) denomina de “macrodiscurso televisive” (0 discurso conjunto da progtamagio da tevé), que acaba obrigando 0 es- pectador a mudar, constantemente, de posigio ¢ de sentimentos, ora ele assiste a um drama, ora a uma comédia, ora a uma noticia, ora as mais diver~ sas publicidades. O espectador de tevé tem que ser eclético, ele pode ver tudo e compreender tudo, mas também pode nfo entender nada. O fato é que 0 controle desse espectador é muito mais com- plicado, mais dificil do que o controle efetuado sobre © espectador de cinema. Falar dessa dificuldade de controle na tevé no implica dizer, por outro lado, que ele nunca é exercido, longe de nés tal afirmativa, mas ha que se reconhecer que esse controle enfrentara mais, problemas para se estabelecer. Nio significa ates- tar, também, que, no cinema, 0 controle atinge a todos sem distincao ¢ sem resisténcia. O proceso de conquista da narrativa cinematogrifica, é pre- ciso lembrar, nfo depende s6 da sala escura, isso é certo, depende de outros fatores, depende da enunciagio, da habilidade do enunciador na mon- tagem das imagens e dos sons, do trabalho implici- to do narrador’, “mao invisivel que, através da organi- zasao das imagens, expie um ponto de vista, modula a emogao, argumenta, colvea o espectador na condigio ideal dos fatos”. (SAVIER, 1984, p. 49). Mas é preciso no esquecer, também, o alerta de Nick Browne (1993), de que o narrador cinematogrifico nio é personalizado e que, apesar de organizar e agenci- ar os elementos do filme, ele nao detém o controle absoluto sobre a platéia de cinema, caso contritio, no seria possivel termos varios espectadores de um mesmo filme, admitindo diferentes interpreta- Ges. Mirian Hansen (1993) também nao vé o es- pectador passivo diante do filme, segundo ela, ha um certo grau de autonomia desse espectadot, que pode “ler” e “ver” o filme com um outro olhar, até diferente do olhar do enunciador. Universidade Catdlica de Pernambuco -16 <@ ee Ora, se alguns tedricos reconhecem a difi- culdade de controle por parte de um enunciador num filme cinematografico, muito mais dificil € essa tarefa da enunciacio diante do espectador de tevé. Para Arlindo Machado, essa possibilidade de entrega & imagem cletrOnica é muito mais precétia do que na imagem do filme, “a imagem moisacada se presta mal ao poder de centralizagio de um sujeito enunciador” (MACHADO, 1990, p. 94). A temida manipulacio da mensagem e do espectador de tevé, de que falam os teéricos “apocalipticos” dos mei- os de comunicacio de massa (Paul Virilio, Baudrillard, Vilches, entre outros), no € tio sim- ples quanto eles tentam fazer parecer. Oefeito poliftmnico da enunciacio televisiva acaba gerando diversas estratégias enunciativas para atender as exigéncias dos diferentes progra- ‘mas, inclusive os informativos/jornalisticos que, como dissemos anteriormente, interessa-nos estu- dar mais de perto. O trabalho telejornalistico, em geral, é produto de uma equipe, é coletivo, o que, de certo modo, inviabiliza ou, pelo menos, dificul- ta, 0 poder centralizador de um tinico enunciador. O telejornal, por exemplo, é uma montagem de vi- rias vozes, varios sujeitos enunciadores, numa di- versidade de pontos de vista sobre o que esta acon- tecendo tanto nos eventos transmitidos a0 vivo quanto nos eventos exibidos, nfo necessariamen- te, no tempo mesmo em que ocorrem: 0 tempo real. Porisso, 20 nos depararmos com um telejornal, passamos a ter acesso a versdes diferentes dos fa- tos: verses do repérter, dos entrevistados, dos Ancoras, dos comentaristas, do cinegrafista. Ele, 0 telejornal, é, portanto, uma mediagao entre o evento € 0 espectador, a quem ele interpela, fala de fren- te. O que é um interdito no cinema é pritica na tv €, em especial, nos programas jornalisticos. O(6) enunciador(es) fala(m)diretamente a0 seu enunciatario, a imagem da tevé é frontal, enquan- to no cinema ela é enviesada, é obliquat. Uma ou- tra diferenca entre cinema € tv é que a base da signagem do cinema, explica Décio Pignatari (1984), é montagem; j4, na televisio, pode-se di- zer que a signagem é a “colagem/montagem”. Mas é também esperado e reconhecido que tal colagem (respeitando as caracteristicas técni- cas ¢ programacionais, portanto a estética da TV) “Revista SymposiuM = dé ao discurso televisivo elementos para um enun- ciado, no minimo, compreensivel, onde 0 especta- dor tenha condigdes de acompanhar o ritmo dos programas e assim responder, satisfatoriamente, aos tao disputados (pelas emissoras) “pontos” de au- digncia. Afinal, como adverte Bettetini (1986, p. 67), toda pritica discursiva se desenvolve com uma intencionalidade, com um fim determinado, isso vale para todos os géneros da programacio televisiva, inclusive os informativos. A titulo de exercicio, e sem a pretensio de fazer generalizagdes, vamos procurar, neste traba- Iho, tentar identificar a intencionalidade de um video jornalistico, produzido especialmente para uma TV local, no Recife. Trata-se do video repor- tagem “Morte e Vida Severina - 40 anos depois: uma visio jornalistica”, de Gerson Camarotti, que recebeu, inclusive, 0 prémio Intercom/Unesco, em 1996. Esse trabalho nos atraiu por duas raz6e primeiro, porque trata da leitura, como o préprio. titulo ja diz, jornalistica de uma situagio tipica do Nordeste - a seca, tema amplamente explorado por diversos géneros artisticos, entre eles a pintu- ra, 0 cinema ¢ a literatura, aliés, é a partir da obra literdria de Jodo Cabral de Melo Neto que esse video revisita o Nordeste, jornalisticamente. O se- gundo motivo esti na estrutura do video que ora exibe marcas de um documentirio, ora apresenta ‘marcas estruturais de um telejornal, é como se ele repetisse os elementos que enunciam um noticié- rio televisivo. O video-reportagem foi produzido, executa- do ¢ exibido na TV Jornal/SBT, na véspera de Natal, para marcar a passagem dos 40 anos da obra literaria “Morte ¢ Vida Severina”, de Joao Cabral. Essa obra, por sinal, teve um percurso curioso: 20 autor foi encomendado um texto, por Maria Clara Machado, em 1954, para ser encenado no tablado. Joao Cabral escreveu, entio, um auto de Natal, mas Maria Clara Machado desistiu de fazer a monta- gem. A saida para o poeta pernambucano foi, en- ‘tao, retirar da obra as marcacdes de teatro e public la como poema no livro “Duas Aguias”, em 1956. © poema foi bem recebido pela critica literdria e pelo piiblico, cinco anos depois foi finalmente montado no teatro, dessa vez, com o poema musicado por Chico Buarque de Holanda, a peca foi um sucesso. No final dos anos 80, ele é exibido como um programa especial de fim de ano, na TV Globo. O video-reportagem (foto 01) aqui analisa- do tem 29 minutos ¢ trinta segundos de produgio, dividido em 3 blocos, para tornar possiveis os brakes, isto é, os intervalos comerciais necessirios a uma exibigio televisiva. ‘Como é um programa de carter jornalistico, os elementos puramente ficcionais da obra origi- nal desapareceram ou foram incorporados em per- sonagens veridicos, é o caso, por exemplo, da rezadeira no sertio, Contudo parte do poema, tre- chos do texto original de Cabral, foi mantida e in- terpretada, em off, por um ator. Falaremos desse recurso mais adiante. © texto original conta a histéria de um retirante do sertio pernambucano que parte em busca de melhores dias na capital. Ele segue roteiro de um rio, para nfo se perder. No percurso, 86 encontra miséria e morte. Guardadas as devidas proporcies, poderiamos dizer que esse personagem retirante, 0 Severino, é, de um certo modo, um repérter, afinal em cada parada ele descreve o lo- cal e ouve as conversas de quem vai encontrando ‘em seu caminho. O video-reportagem revisita esse mesmo roteiro, nao mais com um personagem ficcional, mas através de um discurso jornalistico, interessado em identificar os varios severinos e a condigio severina de vida, de que fala 0 poema, conseqiientemente, traga um comparativo do que aconteceu nesse cenério ao longo de quatro décadas. ‘A enunciagio do video envolve varios “su- jeitos falantes” (ator, repérter, locutor, entrevista- do, cinegrafista), mas lembramos que os sujeitos da enunciagio no sio em si o enunciador, 0 que constréi o enunciado a partir, justamente, do con- junto das enunciacdes mediadas por esses “sujei- tos”, do ritmo da edigio e da seqiiéncia organiza- da dos elementos pertinentes 4 narrativa. Um enun- ciado dirigido ao contracampo heterogéneo®, ou seja, um contracampo ocupado pelo espectador que est diante da tela de tevé. perfil jornalistico do video esta claro. Ele esté presente nas varias “falas” (sonoras), na fragmentagao das imagens ¢ do texto, na nar- PH Ano 5+ n° 2 julho-dezembro 2001 - 17 rativa linear, no relato com inicio, meio ¢ fim, com causas ¢ efeitos. Sem diivida, 0 relato é uma das principais caracteristicas da pratica informa- tiva, mesmo quando ele nio é realizado através de um texto em off do repérter, 0 caso do video Morte e Vida Severina, no qual, parte desse re- lato foi deslocada para as sonoras que compdem © video. O relato simplifica 0 universo de even- tuais referéncias, mas nfo se limita a transforma- Jo num discurso regido apenas por uma suces- sio cronoldgica e por uma rigorosa légica cau- sal, ele é na verdade, uma proposta, um ponto de vista em relagao a essa realidade. No conjunto ao longo do video, é possi- vel identificar, ainda, as provaveis respostas (em texto ¢ imagem) as insistentes perguntas, regras, nas redaci © qué? (a condigao de vida e morte severina), quem? (0s severinos), quando? (ao longo de quatro déca- das), onde? (no estado de Pernambuco), como? (através da constatagio da miséria, da exploracio do trabalho, da mortalidade infantil etc.) por qué? (por causa da seca, da falta de incentivos, da au- séncia de uma politica de reforma agriria, da ocu- Paco urbana desorganizada etc.). Quanto 4 estrutura do enunciado, ou me- Ihor, ao rumo dado pelo enunciador a esses cle- mentos jornalisticos, podemos observar que, de um modo geral, ele parece corresponder ao encami- nhamento do denominado “documentirio socio logico” (BERNARDET, 1985), Guardadas as de- vidas proporgdes e correndo o risco da ousadia, podemos dizer que o video-reportagem de Gerson Camarotti tenta seguir alguns passos de um tipo de documentatio, por exemplo, como Viramundo, de Geraldo Sarno. Assim como a obra de Sarno, o trabalho de Camarotti mostra 0 percurso do retirante, fala da dificil condigao de vida de quem deixa sua terra natal. As seqiiéncias sio ligadas de forma logica, cada etapa leva a seguinte a (seca leva a fome, que leva a falta de trabalho, que leva ao éxodo, que sai do sertio, vai para a cidade...). Essa seqiiéncia es, que tanto prezam nossos jornalista: obedece, na maior parte, proprio roteiro do poe- ma de Jodo Cabral. Por sua vez, fica claro que os entrevistados s6 falam porque lhes perguntaram ‘Mesmo quando a pergunta do repérter nio esti edi- Universidade Catdlica de Pernambuco -18 ias, Humanidades e Letras tada, € facil perceber a presenga dele junto aos mesmos. Os entrevistados falam na primeira pes- soa do singular ou na primeira pessoa do plural; assumem, portanto, seus discursos. Essas falas es- to sempre acompanhadas do som ambiente. Ji a voz off da locutora fala na terceira pessoa, 0 som é de estidio, asséptico, o discurso sai do particular para o geral. H4 ainda mais uma voz, a do ator, que nio aparece no video, s6 se escuta sua voz em off, cle interpreta, na sua narracio, 0 poema, mais especificamente alguns trechos do personagem Severino. Essa interpretagio é percebida pela entonagio da voz. O texto poético parece ter 0 dom da ambigitidade, ora fala de si, ora fala de to- dos, no emite um enunciado do autor do video, mas do autor do poema (mediado pelo seu Severino). Quanto as imagens, os planos mais ge- rais tratam de contextualizar o espectador no es- paco/tempo da enunciagao, os planos mais fecha- dos nos aproximam dos entrevistados. O enuncia- do é apresentado de forma clara, objetiva, orde- nando fragmentos em séries para uma atitude com- parativa, expressa através de um discurso concatenado, l6gico. Esse nos parece ter sido 0 caminho que Camarotti tentou empreender em seu video-reportagem, ‘Mas, 20 mesmo tempo, uma outra estrutu- ra nos chama a atencio. O video parece trazet em si o “boneco”, o “esqueleto” de um telejornal: pri- meiro a apresentacio da noticia, do tema, é como se estivesse dizendo para o espectador, “ci, vocé, vamos falar de tal questo agora”. O texto seria a “cabega da matéria” ~ lida pelo apresentador para, em seguida, ser exibida a reportagem, Essa seqiién- cia esta presente nos trés blocos do video e, por varias vezes, num mesmo bloco, tal como num telejornal. Nesse video-reportagem, 0 apresenta- dor no é exatamente 0 apresentador “convencio- nal” de tevé. Ele nio aparece na tela, portanto niio cria uma interpelagio visual explicita com 0 es- pectador. Estamos falando do personagem Severino, interpretado pelo ator Cliudio Ferris Se nio existe a imagem do ator na tela, a interpr tagio de Ferrario acaba evidenciando uma interlocugio sonora com o espectador, ele fala di- reto para quem escuta e vé (mesmo que cle nio possa ser visto), enquanto ele interpreta o texto, imagens, em planos gerais ¢ em alguns detalhes, vio contextualizando o ambiente e preparando 0 espectador para os relatos que vém a seguir. Qua- se sempre a miisica (ora em bg, ora sobe som) tam- bém o ajuda nessa tarefa. Isso acontece nos trés blocos: no primeiro, quando ele fala da dificuldade de trabalho no agreste/serto; no segundo bloco, na dura lida no canavial; ¢, no iltimo bloco, quan- do fala da miséria urbana. Seguidos do verso ou da miisica, surgem 0s relatos (aqui por nés identificados como as re- portagens), em certos momentos. Parte dos depoi- mentos (éudio) de alguns entrevistados fica em off a imagem passa a auxiliar ou a ilustrar essas falas. Quando os entrevistados aparecem na tela, nao é diretamente para o espectador que eles olham, 0 que nao deixa davidas de que eles nio estio acos- tumados a falar para as cimeras de tevé, eles se dirigem naturalmente para seu interlocutor mais préximo, o repérter, por isso mesmo o olhar dessas pessoas quase sempre est voltado para a direita ou para a esquerda dos limites do video, contracampo provavel do repérter. Mas a cimera esté declaradamente no plano frontal, plano tipico da tevé; é para o espectador que ela leva sua ima- gem, é pela mediacZo da imagem que o enunciador também se faz presente. Revela, de um certo modo, a intengio de “realismo natural” (BERNARDET, 1985) que tenta empregar a narrativa desse traba- Iho. Em outros momentos das entrevistas, a cimera € inquieta, no é fixa, passeia pelos corpos de seus entrevistados, mostra e, digamos assim, denuncia a emogio, a velhice precoce dessa gente (as rugas as céries numa mulher da zona da mata) ou os cortes que marcam a pele e os corpos dos traba- Ihadores da cana. Por meio dos planos dessa cimera, 0 enunciador também exibe seu relato. Do repérter s6 ouvimos a voz durante as perguntas, € a tinica vez em que ele aparece no video nao esta voltado frontalmente para 0 espec- tador, ele dirige seu corpo e olhar para um homem da zona canavieira a quem esta entrevistando. Mas essa aparigio nfo se da 4 toa, ela é proposital, e a imagem, sem diivida, tem destinatério certo: 0 es- pectador (foto 06). E para que ele perceba a dife- renga de estatura entre repérter e entrevistado: esse homem ficou conhecido no Brasil, em 1993, por _ RevistaSymposiuM ser vitima do nanismo provocado pela desnutri- cio. Uma caracteristica marcante, ainda, nas so- noras deste video, que também é forte caracteristi- ca dos nossos telejornais, é a presenca do drama. Requena (1995, p.45) denomina esse fendmeno de “docudrama: a conversao do drama intimo em exibigao ‘para 0 olhar do espectador” ‘Tem, ainda mais, uma sonora, que esti no terceiro bloco e que destoa de todas as outras. Ela é a mais longa, é a entrevista com 0 poeta Joao Cabral de Melo Neto (fotos 10 ¢ 11). A sonora é ambientada num espaco interior, a voz do repérter foi totalmente eliminada, ha insercao de caracteres durante a fala do entrevistado identificando os temas a que ele esta referindo-se, ¢ ele fala basicamente da sua obra e do que denominou de “condigéo severina”, poderia dizer que, praticamente, € um metadiscurso. Chegamos, finalmente, ao comentarista, ou melhor, a0 comentitio. Ele é flagrado em varios momentos do video, no discurso poético do Severino, trecho evidentemente selecionado a dedo pelo autor do video que esta presente no percurso das imagens, em especial, nos primeitos ¢ primeirissimos planos, Mas o momento em que 0 comentitio se faz mais presente, apesar de utilizar um pretenso discurso “neutro”, gramaticalmente correto ¢ até visualmente despretensioso, é nos “Niimeros Severinos” (foto 05). Acompanhados de vinhetas, cles trazem as estatisticas que compa- ram, refletem 0 quadro social da regio nessas tilti- mas quatro décadas. A exemplo do apresentador, © comentarista, nesse caso, também nao é a figura “convencional” da tevé, ele no aparece na tela. A voz off feminina (a voz é da jornalista Graga Arai- jo) € os “cartées” com caracteres passam para o espectador os dados estatisticos. A imagem é s6- bria, para niio dizer simples, fundo preto, letras (caracteres) brancas. Apesar de no assumir expli- citamente, € possivel perceber a presenga critica do enunciador ao apresentar, por meio da compa- racio incisiva dos ntimeros, a radiografia da regio. Relembrando, entio, os trechos do poema, escolhidos para 0 video-reportagem: apresentam ‘os temas, dio 0 gancho, iniciam a questio a ser tratada. Os depoimentos relatam mais detalhadamente ou ilustram, mais claramente, es- PR Ano 502 julho-dezembro 2001 - 19 ses temas ¢, finalmente, a conclusio é dada pelos “Nuimeros Severinos”. Esse conjunto de elemen- tos revela nao 6 0 comentirio, mas expée, de uma certa forma, 0 proprio enunciador: “a comentério se explicita, sobretudo, por meio das marcas téonicas deixa- das pelo trabalho de escrita do sujeito enunciador: as angulagies dos distintos enquadramentas, os movimentos de cismera, a classficagao dos planos, as edipdes, as rela- ies entre 0 som e 0 significante visual”. (BETTETINI, 1986, p. 72-73). E nesse percurso que podemos reconhecer 0 enunciador. No som que auxilia a edi- io, que mascara os cortes bruscos, que da a nar- rativa o “natural” estilo de continuidade, Também nao é qualquer som, ou miisica. © som ambiente presente neste trabalho, por exemplo, esté sempre integrado ao contexto, o carro de boi, as pessoas cortando cana € conversando ao longe, enquanto uma outra da entrevista. As misicas também mos- tram sintonia com o ambiente dos temas enfocados, a majoria das composigdes é armorial, estilo que tem tudo a ver com a regio retratada. Os elemen- tos que compéem o enunciado nio sio aleatérios. Sao imagens, planos, recursos editoriais que cor- roboraram para a contextualizagio do enunciado, histéria com imagens que podem captar ou captu- rar a vida. ‘A vida aparece para morrer a cada instan- te, O que a imagem captura € rapto da vida, Esta que & habitada pelo tempo e que se consuma como morte em cada dtomo de tem- po. Nao é preciso mencionar aqui o quanto estamos perto daquela supersticao primitiva de que a imagem rouba um pedaro da vida”, (Liicia Santaella) NOTAS Com este video, elaborado para atender as exi- géncias do projeto experimental de conclusio do curso de Jornalismo da UNICAP, na rea de te- levisio, Gerson Camarotti conquistou 0 prémio UNESCO/INTERCOM, em 1997, em Sao Paulo. Para Casetti, 0 termo enunciado é atribuido a qualquer resultado da enunciagio (Casetti. El Film y su Espectador, 1986: 42). Universidade Catélica de Pernambuco -20

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