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AS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS DE THOMAS KUHN (1922-1996)

Alexandre Marques

A teoria central de Kuhn é que o conhecimento científico não cresce de modo


cumulativo e contínuo. Ao contrário, esse crescimento é descontínuo, opera por
saltos qualitativos, que não se podem justificar em função de critérios de
validação do conhecimento científico. A sua justificação reside em factores
externos, que nada têm a ver com a racionalidade científica e que, contaminam
a própria prática científica. A importância atribuída por Kuhn, aos factores
psicológicos e sociológicos na organização do trabalho científico, constitui um
rude golpe na "imagem da ciência que se foi consolidando desde o século XVIII
e que tende a identificar a cientificidade com a racionalidade - senão com a
racionalidade «no seu todo», pelo menos com a racionalidade «no seu
melhor»."1 A obra de Kuhn desencadeou um autêntico terremoto na filosofia da
ciência e inaugura um discurso inovador, que privilegia os aspectos históricos e
sociológicos na análise da prática científica, desvalorizando os aspectos lógio-
metodológicos que ainda encontramos no discurso epistemológico popperiano.
Os saltos qualitativos preconizados por Kuhn, ocorrem nos períodos de
desenvolvimento científico, em que são questionados e postos em causa os
princípios, as teorias, os conceitos básicos e as metodologias, que até então
orientavam toda a investigação e toda a prática científica. O conjunto de todos
esses princípios constituem o que Kuhn chama «paradigma». Procurando ser
fiel ao autor, utilizamos o conceito de paradigma em dois sentidos
fundamentais. Num sentido lato, o paradigma kuhniano refere-se àquilo que é
partilhado por uma comunidade científica, será uma forma de fazer ciência,
uma matriz disciplinar. Uma comunidade científica caracteriza-se pela prática
de uma especialidade científica, por uma formação teórica comum, pela
circulação abundante de informação no interior do grupo e pela unanimidade
de juízo em assuntos profissionais. Em sentido particular, o paradigma é um
exemplar; é um conjunto de soluções de problemas concretos, uma realização
científica concreta que fornece os instrumentos conceptuais e instrumentais
para a solução de problemas. O paradigma é, neste sentido, uma «concepção
de mundo» que, pressupondo um «modo de ver» e de «praticar», engloba um
conjunto de teorias, instrumentos, conceitos e métodos de investigação; noutro
caso, o conceito é utilizado para significar um conjunto de «realizações
científicas concretas» capazes de fornecer "modelos dos quais brotam as
tradições coerentes e específicas da pesquisa científica". 2 "Assim, a descrição
de Newton do movimento dos planetas (Lei da Gravitação Universal), ou a
descrição de Franklin da garrafa de Leyden são, respectivamente, exemplos de
paradigmas para a prática da mecânica e para a ciência da electricidade. Kuhn
também designa estes «modelos concretos» como «modelos exemplares»".3
O desenvolvimento da ciência madura processa-se assim em duas fases, a
fase da ciência normal e a fase da ciência revolucionária. A ciência normal é a
ciência dos períodos em que o paradigma é unanimamente aceite, sem
qualquer tipo de contestação, no seio da comunidade científica. O paradigma
indica à comunidade o que é interessante investigar, como levar a cabo essa
investigação, impondo como que um sentido ao trabalho realizado pelos
investigadores e limitando os aspectos considerados relevantes da
investigação científica. O grupo limita-se a resolver um conjunto de
incongruências que o paradigma lhe vai fornecendo, toda a investigação é
realizada dentro e à luz do paradigma aceite pela comunidade. Nesta fase da
ciência normal, o cientista não procura questionar ou investigar aspectos que
extravasam o próprio paradigma, devemos dizer que a curiosidade não é
propriamente uma característica do cientista, este limita-se a resolver
dificuldades de menor importância que vão permitindo mantê-lo em actividade
e que possibilitam simultaneamente revelar a sua engenhosidade e a sua
capacidade na resolução dos enigmas. "Os problemas científicos transformam-
se em puzzles, enigmas com um número limitado de peças que o cientista -
qual jogador de xadrez - vai pacientemente movendo até encontrar a solução
final. Aliás, a solução final, tal como no enigma, é conhecida antecipadamente,
apenas se desconhecendo os pormenores do seu conteúdo e do processo para
a atingir".4 Deste modo, o paradigma que o cientista adquiriu durante a sua
formação profissional fornece-lhe as regras do jogo, descreve-lhe as peças a
utilizar e indica-lhe o caminho ou objectivo a atingir. É evidente que o cientista,
nas suas primeiras tentativas, pode cometer falhas, o que é perfeitamente
natural, no entanto, tal facto é sempre atribuído à sua impreparação ou inépcia.
Isto significa que as regras fornecidas pelo paradigma e o próprio paradigma,
não podem ser postas em causa, já que o paradigma é o sentido de toda a
investigação e o próprio enigma a investigar não existiria sem ele. Esta crença
exacerbada no paradigma demonstra-nos que "o trabalho do cientista exprime
uma adesão muito profunda ao paradigma"5. É evidente que uma adesão deste
tipo não pode ser posta em causa ou ser abalada levianamente. A própria
comunidade, na sua prática quotidiana, vai reforçando essa adesão a todo o
momento. O que a experiência claramente demonstra, é que o cientista,
individualmente ou em grupo, vai conseguindo resolver os enigmas, com maior
ou menor dificuldade, à luz do paradigma vigente. Neste sentido, não devemos
ficar admirados com a profunda resistência manifestada pela comunidade à
mudança de paradigmas. O cientista, não está minimamente interessado em
provocar um abalo, na estrutura do edifício que de certa forma o "alberga" e dá
sentido ao seu trabalho profissional. O cientista é humano; a protecção, a
confiança e de certo modo a segurança, são condições que todo o ser humano
deseja alcançar. Todas estas condições são fornecidas ao cientista pelo
paradigma. "O que eles defendem nessa resistência é afinal o seu modo de
vida profissional"6.
O decurso da ciência normal, não é feito só de êxitos, pois se assim fosse,
não poderíamos assistir às inovações profundas que têm lugar ao longo do
desenvolvimento científico e que, segundo Kuhn, ocorrem por mudança de
paradigmas. "Ao cientista «normal» pode suceder que o problema de que se
ocupa, não só não tem solução no âmbito das regras em vigor, como tal facto
não pode ser imputado à impreparação ou inépcia do investigador". 7 Esta
experiência pode ser partilhada por outros cientistas e para além disso, pode
acontecer que o número de incongruências seja cada vez mais significativo e a
dificuldade em solucioná-las aumente consideravelmente, ou até mesmo, o
cientista confrontar-se com incongruências de impossível solução à luz do
paradigma. "O efeito cumulativo deste processo pode ser tal que a certa altura
se entre numa fase de crise. Incapaz de lhe dar solução, o paradigma existente
começa a revelar-se como a fonte última dos problemas e das incongruências,
e o universo científico que lhe corresponde converte-se a pouco e pouco num
complexo sistema de erros onde nada pode ser pensado correctamente. Já
outro paradigma se desenha no horizonte científico e o processo em que ele
surge e se impõe constitui a revolução científica e a ciência que se faz ao
serviço deste objectivo é a ciência revolucionária".8
O novo paradigma irá redefinir os problemas e as incongruências até então
insolúveis, dando-lhes uma solução convincente, e é neste sentido que ele se
vai impondo junto da comunidade científica. Essa substituição não ocorre de
um modo rápido; o período de crise, caracterizado pela transição de um
paradigma a outro, pode ser bastante longo. É compreensível que assim seja,
já que cada um dos paradigmas estabelece as condições de cientificidade do
conhecimento produzido no seu âmbito, e essas condições podem ser
consideradas ridículas, triviais ou insuficientes, pelos defensores do velho
paradigma, ou seja, os cientistas claramente comprometidos e educados à luz
do paradigma anterior, que tudo fazem para impedir a substituição. Neste
período, o diálogo entre os cientistas é um diálogo de surdos, já que existe uma
clara incompatibilidade de paradigmas, utilizando a linguagem kuhniana, os
paradigmas são incomensuráveis. Estamos pois, na presença de duas visões
radicalmente diferentes do mundo, o que torna impossível uma solução de
compromisso, na tentativa de tornar compatível os dois paradigmas. Este
período de crise, evidencia claramente, que o espírito crítico e a audácia na
procura da verdade, não são características do cientista. Ao contrário daquilo
que era afirmado por Karl Popper, o cientista não passa a vida a pôr em causa
aquilo que aprendeu, pelo contrário, defende esse património de um modo
insistente e procura resistir a mudanças bruscas que acarretem uma
redefinição radical do trabalho até então realizado. A imagem do cientista, é a
de um sujeito profundamente conservador e que a todo o custo procura resistir
à mudança (princípio kuhniano da tenacidade).
"Mais ou menos tempo será necessário para o novo paradigma se impor,
mas, uma vez imposto, ele passa a ser aceite sem discussão e as gerações
futuras de cientistas são treinadas para aceitar que o novo paradigma resolveu
definitivamente os problemas fundamentais. Da fase da ciência revolucionária
passa-se de novo à fase da ciência normal e, portanto, ao trabalho científico
sub-paradigmático".9 Inicialmente o paradigma emergente será aplicado em
várias áreas, essa aplicabilidade será assumida sem ainda se ter feito qualquer
tipo de prova nesse sentido. É para estas áreas que a ciência normal se vai
orientar.

Em jeito de conclusão, podemos referir que a grande inovação do discurso


kuhniano no domínio da filosofia da ciência, passa por um lado, pela afirmação
de que o desenvolvimento científico não é cumulativo e, por outro lado, e é
neste ponto que reside, no nosso entender, a profunda inovação kuhniana, que
a escolha entre paradigmas alternativos não se fundamenta em aspectos
teóricos de cientificidade, mas em factores históricos, sociológicos e
psicológicos, ou seja, numa certa subjectividade e até mesmo numa
irracionalidade, que acaba por ter um papel decisivo e fulcral na imposição de
determinadas teorias em detrimento de outras. Essa imposição, não se deve ao
mérito científico das teorias, pelo contrário, devemos procurar as causas dessa
imposição, saindo do "círculo das condições teóricas e dos mecanismos
internos de validação e procurá-las num vasto alfobre de factores sociológicos
e psicológicos. O processo de imposição de um novo paradigma é um
processo retórico, um processo de persuasão em que participam diferentes
audiências relevantes, isto é, os diferentes grupos de cientistas. É necessário
estudar as relações dentro dos grupos e entre os grupos, sobretudo as
relações de autoridade (científica e outra) e de dependência. É necessário
também estudar a comunidade científica em que se integram esses diferentes
grupos, o processo de formação profissional dos cientistas, o treinamento, a
socialização no seio da profissão, a organização do trabalho científico, etc.
Nisto consiste a base sociológica da teoria de Kuhn".10
O discurso de Kuhn é inovador, na medida em que, desvalorizando os
aspectos lógico-positivistas, lógico-empiricistas, lógico-formais e racionais, que
claramente encontramos no discurso popperiano, e que permitem que a ciência
se explique exaustivamente pela sua lógica interna, traz para o debate, uma
base sociológica até então desvalorizada e esquecida, que poderá explicar,
"por que razão se comportam os cientistas muitas vezes como se estivessem
mais interessados em impedir o progresso científico do que em promovê-lo;
porque é que certas teorias não são aceites ao tempo da sua descoberta e só o
são muito mais tarde, dando-se como que a sua redescoberta; porque razão
são aceites teorias cuja obediência aos padrões estabelecidos está longe de
ser evidente; porque são negadas ou rejeitadas teorias assentes em
experimentação que satisfaz plenamente esses padrões".11
A neutralidade e a objectividade da ciência, características que desde sempre
o conhecimento científico reclamou e que nos levava a distinguir esse saber
das chamadas ciências humanas ou sociais, são claramente postas em causa
pela teoria dos paradigmas. "Kuhn abandonou de vez o terreno da
epistemologia tradicional e a sua pacífica imagem da ciência herdada do
iluminismo e reforçada pelo positivismo, lançando uma poderosa interrogação
sobre a actividade científica, os seus efectivos procedimentos intelectuais e
institucionais, as características das suas situações de sucesso e de crise,
operando uma funda ruptura na filosofia das ciências pelo destaque que assim
é dado à matriz histórica na compreensão de tais processos e fenómenos".12

________________
1
Carrilho, M., M., "O que é Filosofia", Lisboa, Difusão Cultural, 1994, p. 45.
2
Kuhn, T., "The Structure of Scientific Revolutions", Chicago, 2ª ed. Chicago
University Press, 1972, p. 30.
3
Baptista, J., M., "A Ideia de Progresso em Thomas Kuhn, no contexto da nova
filosofia da ciência", Porto, Ed. Afrontamento, 1996, p. 93.
4
Boaventura, S., S., "Da Sociologia da Ciência à Política Científica", in
separata de Biblos, Coimbra, 1977, p. 215.
5
Idem, o. c. 215.
6
Idem, o. c. 215.
7
Idem, o. c. 215.
8
Idem, o. c. 216.
9
Idem, o. c. 216.
10
Idem, o. c. 217.
11
Idem, o. c. 219.
12
Carrilho, M., M., o. c. p. 28.

Extraído do site: http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/kuhn1.htm

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