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Está lá, no mesmo lugar.

As árvores ao redor cresceram um pouco mais, é verdade,


desgastadas pelo tempo e pelos ventos da estação. Malditas rajadas, chuvas impiedosas. A
grama está um pouco molhada, por isso meus sapatos agora estão sujos de terra. Mas estou
aqui. Faz frio e venta um pouco. As nuvens, preparadas para precipitarem-se, seu suave
suicídio, a chuva que molha meu rosto. As gotas que fazem número às lágrimas. O caminho
não mudou nada, mas é estranho. O sol parece tímido, ou preguiçoso. Parece que aparecerá
a qualquer instante nesse fim de tarde, mas... não. Só as nuvens. E o vento. E o frio. Me
arrepiei por alguns instantes, quando senti o cheiro da nostalgia me entorpecendo. Enxergo
você aqui, comigo, de novo. É uma sensação agradável, mas irreal. Irreal como tudo.
Abraço a mim mesmo, o queixo tremendo. Esfria mais. Ventos de outros invernos me
atormentam, dormência para aqueles sentimentos. De certa forma, é até melhor. Me faz
esquecer onde eu estava. Me faz continuar. Neste local, testemunha de uma promessa que
será cumprida. Que seja das outras, vazio. Nada, mas minha lembrança e meu
comprometimento.
Com a marca quente da ousadia, marcada a ferro, queimando no tom do crepúsculo
em minha pele, vivi. O horizonte sempre aberto, os ombros dos gigantes quase tocando o
chão que eles beijavam, me reverenciando. Muitos foram meus contratempos, apenas
equiparados em número por minhas vitórias. Sim, eu lutei. Não brandi minha espada como
guerreiros passados, almas afogadas em trevas, não. Fiz de meu corpo, meu metal. Moldei-
o como a mais mortífera das lâminas. A ferro e a fogo. Você pode achar que é exagero; eu
admito, mas nego. Foi exatamente assim. A escolha do objetivo e sua perseguição.
Incansável. Insaciável fui. Onde os outros se embriagaram em suas distrações, perseverei,
me tornei forte, cresci. Fiz da minha escolha, minha vida. Teria sido o melhor, não fossem
os maus julgamentos daqueles que acompanhavam minha iluminação crescente, invejosos,
temerosos pelo nascimento de alguém que ofuscasse sua luz. Sua pífia, pútrida luz. Ainda
assim, não desisti. Me achavam indigno. Neguei. Fui preso, o cárcere de minha sanidade.
O Inferno. Cruzei-o sozinho. O inferno não é um bom lugar para se caminhar
sozinho, meu amor. Centenas de almas enlouquecidas, adoecidas, gritando por socorro, e
estava sozinho. Tanto quanto estava calado. Resisti às primeiras investidas, os primeiros
golpes. Tentei fugir, mas tudo era mais forte do que eu. Mais resistente. Mais ardiloso.
Adormeci incontáveis noites sob o veneno dos demônios. Sabia que para enfrentá-los,
precisava unir-me a eles antes, e assim o fiz. Cordialmente sorri e imitei seus atos, repeti
suas frases. Eu era deles, assim eles o imaginavam. Eventualmente, me foram soltas as
amarras que tiravam meus movimentos, que prendiam minhas asas. Algum tempo mais
dançando à sua música, fui liberado. Fui solto! Sem lutar mesmo uma batalha, sem
derramar sangue, graças à minha visão de tudo. Graças ao plano.
Saí e voltei à Terra, cantando as canções que tinha aprendido no inferno. Você não
acreditaria, mas os dois lugares têm canções bem parecidas. A mesma entonação, o mesmo
jeito de cantar, as mesmas danças. Possivelmente, um seja cria do outro, Terra e Inferno.
Qual, eu não ousaria dizer, apesar de estar mais próximo da verdade total que qualquer
outro aqui. Tentei me unir aos outros, acompanhar seus passos. Tentei me incorporar,
sobreviver, mas acabei frequentemente alvo de chacotas. A música mudava, era rápida,
agressiva, até mesmo deixava de ser harmônica. A melodia me deprimia, e cada vez mais
eu estava perdido. Admito que pela primeira vez em muitos anos, desde minha criação,
tremi, com medo. A escuridão era demais, até mesmo para este guerreiro. O silêncio não
me ajudaria mais. Precisava de outra estratégia. Precisava de mais força. Precisava de...
você.
Foi a primeira vez em que vi aqueles dois cristais, a nascente dentro deles, a luz que
irradiavam. Seus olhos. À distância, acompanhei você, minha bela. À distância, porque não
ousava me aproximar. O medo da música, de me perder em meio aos passos que todos
pareciam saber dançar tão naturalmente, tudo me afastou. Temia que você me julgasse
como os demais julgaram. Mas você... merecia qualquer esforço. Acompanhei-te à
distância, aproximando-me aos poucos. Perguntando se sua defesa estaria baixa para o
ataque desse romântico. Acredito que estaria, mas infelizmente notei que tinha proteção.
Nunca foram poucos. Homens altos, fortes, ameaçadores, demoníacos. Todos feios, como
as pessoas que encontrei no Inferno. Pareciam os cães de guarda daquele lugar! E todos
com você, sentindo seu abraço, seu toque, seu cheiro. Malditos! Nunca entendi o que fazia
seus olhos brilharem tanto. Talvez fossem todos eles, talvez alguma coisa em especial.
Recolhi minhas asas e guardei minha espada. Deixei meus olhos abertos. O suficiente para
notar como os seus brilhavam com flores. Sim, notei tudo, Está tudo aqui, comigo,
remexendo minha mente como os ventos de outros invernos. Está frio. É melhor assim.
Vi você aqui, você e o gigante de cabelos claros. Acho que vi uma asa nas costas
dele. Demônios. Dançando como você. Porque só eu não sabia os passos? As árvores
pareciam convidativas. Fazia calor. Você sorriu ao ver o que ele lhe entregava. Sua
preferida, você disse. O lírio carmesim. Vi você entregar-se aos braços do Inimigo, com a
flor presa atrás de sua orelha. Seu abraço, a espada dele atravessando meu corpo. Corri.
Chorei. Pelo lírio que não soube lhe dar. Mas ainda lhe daria. Voltei lá, o dia seguinte. Este
mesmo lugar, estas mesmas árvores. Arranquei outro e corri, corri para você, para seu
abraço. O lírio carmesim imponente, erguendo-se em minhas mãos, pronto para você.
Prontos para você. Você sorriu. Não. Você riu. Do lírio. De mim. Você me olhou como os
guardas do Inferno me olharam! Como os músicos me olharam! Como TODOS me
olharam! Mas o lírio seria seu. Prometi, e prometi para mim mesmo. E essa foi a maior de
minhas promessas.
Estou aqui, no mesmo lugar. O lírio carmesim morreu. Ele passou, também, a ser
meu favorito após aquilo. Fui rejeitado, como ele. Pela primeira vez depois do Inferno, me
abri com alguém. Com algo. Conversei com o lírio. Sabe o que aconteceu? Ele morreu.
Aqui vivem seus irmãos, tantos quanto você puder querer. Aqui você viveu, feliz, os olhos
reluzentes, o lírio em mãos e todos os homens a seu alcance. Aqui jaz você, o ventre
vermelho como a cor daquele lírio. Abraço a mim mesmo e sinto a escuridão me cercar.
Sinto o toque gelado da escuridão, minha alma em comunhão com o silêncio. Seu silêncio é
ainda mais lindo. Durma com seus lírios. Deixe-me com a noite. Silenciosa noite.

As sirenes começam a gritar, anunciando o fim. Conheço seu mensageiro. A lâmina


fria.

Vai doer.

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