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Diálogo entre as Cartas

Chilenas e textos/ideias
contemporâneas
AS CARTAS CHILENAS – TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA

Única obra satírica do Arcadismo brasileiro.

Critilo – Tomás Antônio Gonzaga


Doroteu – Cláudio Manuel da Costa
Fanfarrão Minésio – Luís da Cunha Meneses, Governador de
Minas Gerais
Chile – Minas Gerais
Santiago – Vila Rica , Ouro Preto
Espanha – Portugal

Versos decassílabos brancos


“Quid rides? mutato nomine,/de te Fabula narratur” (Horácio)
Por que ris? Mudado o nome, / a fábula fala de ti

Os costumes da cidade de Vila Rica são expostos de modo


caricato e impiedoso, sobretudo os atos grosseiros e os
desmandos da aristocracia. Seus temas se anunciam a cada
carta: a entrada de Fanfarrão no Chile; a fingida piedade inicial
deste a fim de angariar negócios; suas violências e injustiças; o
casamento do futuro rei D. João VI e Carlota Joaquina; as
desordens e brejeirices de Fanfarrão. Autor revolucionário em
certa medida, Gonzaga faz da literatura aqui um modo de
combate, um meio que julga capaz de transformar a ordem que

não lhe é conveniente.


As 13 cartas dizem a verdade, embora em forma caricatural,
sobre o Fanfarrão e seu comportamento: as violências, o arbítrio
no exercício do poder, o desrespeito às leis, a intromissão na
área do poder judicial, a falsa religiosidade, a venalidade, o
enriquecimento ilícito.

"Indigno, indigno chefe: Tu não buscas


o público interesse. Tu só queres
Mostrar ao sábio augusto um falso zelo,
poupando, ao mesmo tempo, os devedores,
os grossos devedores que repartem
contigo os cabedais que são do reino."
Não cuides, Doroteu, que vou contar-te

por verdadeira história uma novela

da classe das patranhas, que nos contam

verbosos navegantes, que já deram

ao globo deste mundo volta inteira.

Uma velha madrasta me persiga,

uma mulher zelosa me atormente

e tenha um bando de gatunos filhos,

que um chavo não me deixem, se este chefe

não fez ainda mais do que eu refiro.


Tem pesado semblante, a cor é baça,

o corpo de estatura um tanto esbelta,

feições compridas e olhadura feia;

tem grossas sobrancelhas, testa curta,

nariz direito e grande, fala pouco

em rouco, baixo som de mau falsete;

sem ser velho, já tem cabelo ruço,

e cobre este defeito e fria calva

à força de polvilho que lhe deita.


Ainda me parece que o estou vendo

no gordo rocinante escarranchado,

as longas calças pelo embigo atadas,

amarelo colete, e sobre tudo

vestida uma vermelha e justa farda.


Envia, Doroteu, vizinho chefe
Ao nosso grande chefe outro soldado,
Por vários crimes convencido e preso.
Lança--se o tal soldado de joelhos
Lança
Aos pés do seu herói, suspira e treme:
Não nega que ferira e que matara,
Mas pede que lhe valha a mão piedosa
Que tudo pode, que ele aperta e beija.
Pergunta--lhe o bom chefe se os seus crimes
Pergunta
Divulgados estão, e o camarada,
Com semblante já leve, lhe responde
Que suas graves culpas foram feitas
Em sítios mui distantes desta praça.
Então, então o chefe, compassivo,
Manda tirar os ferros dos seus braços,
Dá-
Dá-lhe um salvo
salvo--conduto, com que possa,
Contanto que na terra não se saiba,
fazer impunemente insultos novos.
Caminha, Doroteu, à força um negro,
Conforme as leis do reino bem julgado.
Tu sabes, Doroteu, que o próprio Augusto
Estas fatais sentenças não revoga
Sem um justo motivo, em que se firme
Do seu perdão a causa. Também sabes
Que estas mesmas mercês se não concedem
Senão por um decreto, em que se expende
Que o sábio rei usou, por motu-
motu-próprio,
Do mais alto poder que vem do cetro..
Agora, Doroteu, atende e pasma:
Por um simples despacho, manda o chefe
Que o triste padecente se recolha.
Assenta: vale tanto, lá na corte,
Um grande — El El--Rei — impresso, quanto vale
Em Chile, um — Como pede — e o seu garrancho.
POEMINHA DO CONTRA (Mário Quintana)
Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!

CÁLICE (Chico Buarque)


Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Os chefes, Doroteu, que só procuram
De barras entulhar as fortes burras,
Desfrutam juntamente as mais fazendas
Que os seus antecessores levantaram.
Nem deixam descansar as férteis terras
Enquanto não as põem em samambaias.
Aqui agora tens, meu Silverino,
O teu próprio lugar. Tu és honrado,
E prezas, como eu prezo, a sã verdade;
Por isso nos confessas que tu ganhas
A graça deste chefe, porque envias,
Pela mão de Matúsio, seu agente,
Em todos os trimestres, as mesadas.
Eu sei, meu Silverino, que quem vive
Na nossa infeliz Chile, não te impugna
Tão notória verdade. Porém deve
Correr estranhos climas esta história,
E, como tu não vás, também, com ela,
É justo que lhe ponha algumas provas.
A sábia lei do reino quer e manda
Que os nossos devedores não se prendam.
Responde agora tu, por que motivo
Concede o grande chefe que tu prendas
A quantos miseráveis te deverem?
Por que, meu Silverino? Porque largas,
Porque mandas presentes, mais dinheiro.
As mesmas leis do reino também vedam
Que possa ser juiz a própria parte.
Responde agora mais: por que princípio
Consente o nosso chefe que tu sejas
O mesmo que encorrente a quem não paga?
Por que, meu Silverino? Porque largas,
Porque mandas presentes, mais dinheiro.
Os sábios generais reprimir devem
Do atrevido vassalo as insolências;
Tu metes homens livres no teu tronco,
Tu mandas castigá-
castigá-los, como negros;
Tu zombas da justiça, tu a prendes;
Tu passas portarias ordenando
Que com certas pessoas não se entenda.
Por que, por que razão o nosso chefe
Consente que tu faças tanto insulto,
Sendo um touro, que parte ao leve aceno?
Por que, meu Silverino? Porque largas,
Porque mandas presentes, mais dinheiro.
Acorda, Amor (Julinho de Adelaide / Leonel Paiva - 1974)
Acorda, amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição
Era a dura, numa muito escura viatura
minha nossa santa criatura
chame, chame, chame, chame o ladrão
Acorda, amor
Não é mais pesadelo nada
Tem gente já no vão da escada
fazendo confusão, que aflição
São os homens, e eu aqui parado de pijama
eu não gosto de passar vexame
chame, chame, chame, chame o ladrão
Se eu demorar uns meses convém às vezes você sofrer
Mas depois de um ano eu não vindo
Ponha roupa de domingo e pode me esquecer
Acorda, amor, que o bicho é bravo e não sossega
se você corre o bicho pega, se fica não sei não
Atenção, não demora
dia desses chega sua hora
não discuta à toa, não reclame
chame, clame, clame, chame o ladrão
Apesar De Você (Chico Buarque – 1970) Quando chegar o momento
Hoje você é quem manda Esse meu sofrimento
Falou, tá falado Vou cobrar com juros. Juro!
Não tem discussão, não. Todo esse amor reprimido,
A minha gente hoje anda Esse grito contido,
Falando de lado e olhando pro chão. Esse samba no escuro.
Viu?
Você que inventou a tristeza
Você que inventou esse Estado
Ora tenha a fineza
Inventou de inventar
de “desinventar”.
Toda escuridão
Você vai pagar, e é dobrado,
Você que inventou o pecado
Cada lágrima rolada
Esqueceu-se de inventar o perdão.
Nesse meu penar.
Apesar de você
Apesar de você
amanhã há de ser outro dia.
Amanhã há de ser outro dia.
Eu pergunto a você
Ainda pago pra ver
onde vai se esconder
O jardim florescer
Da enorme euforia?
Qual você não queria.
Como vai proibir
Você vai se amargar
Quando o galo insistir em cantar?
Vendo o dia raiar
Água nova brotando
Sem lhe pedir licença.
E a gente se amando sem parar.
E eu vou morrer de rir
E esse dia há de vir
antes do que você pensa.
Apesar de você
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia.
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear, de repente,
Impunemente?
Como vai abafar
Nosso coro a cantar,
Na sua frente.
Apesar de você
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Você vai se dar mal, etc. e tal
Apenas, Doroteu, a noite chega,
Ninguém andar já pode, sem cautela,
Nos sujos corredores do palácio.
Uns batem com os peitos noutros peitos;
Outros quebram as testas noutras testas;
Qual leva um encontrão, que o vira em roda;
E qual, por defender a cara, fura,
Com os dedos que estende, incautos olhos.
Aqui se quebra a porta e ninguém fala;
Ali range a couceira e soa a chave;
Este anda de mansinho, aquele corre;
Um grita que o pisaram, outro inquire
"Quem é?" a um vulto, que lhe não responde.
Não temas, Doroteu, que não é nada,
Não são ladrões que ofendam, são donzelas
Que buscam aos devotos, que costumam
Fazer, de quando em quando, a sua esmola.
Chegam-se, enfim, as horas, em que o sono
Chegam-
Estende, na cidade, as negras asas,
Em cima dos viventes espremendo
Viçosas dormideiras. Tudo fica
Em profundo silêncio; só a casa,
A casa aonde habita o grande chefe,
Parece, Doroteu, que vem abaixo.
Fingindo a moça que levanta a saia
E voando na ponta dos dedinhos,
Prega no machacaz, de quem mais gosta,
A lasciva embigada, abrindo os braços;
Então o machacaz, mexendo a bunda,
Pondo uma mão na testa, outra na ilharga,
Ou dando alguns estalos com os dedos,
Seguindo das violas o compasso,
Lhe diz —"eu pago, eu pago"—
pago"— e, de repente,
Sobre a torpe michela atira o salto.
Cartomante (Ivan Lins)
Nos dias de hoje é bom que se proteja
Ofereça a face pra quem quer que seja
Nos dias de hoje esteja tranqüilo
Haja o que houver pense nos seus filhos
Não ande nos bares, esqueça os amigos
Não pare nas praças, não corra perigo
Não fale do medo que temos da vida
Não ponha o dedo na nossa ferida
Nos dias de hoje não lhes dê motivo
Porque na verdade eu te quero vivo
Tenha paciência, Deus está contigo
Deus está conosco até o pescoço
Já está escrito, já está previsto
Por todas as videntes, pelas cartomantes
Tá tudo nas cartas, em todas as estrelas
No jogo dos búzios e nas profecias
Cai o rei de Espadas
Cai o rei de Ouros
Cai o rei de Paus
Cai, não fica nada
André Abreu, Charge on line, 13.05.2010
MEU CARO AMIGO (Chico Buarque/Francis Hime, 1976)

Meu caro amigo me perdoe, por favor

Se eu não lhe faço uma visita

Mas como agora apareceu um portador

Mando notícias nessa fita

Aqui na terra tão jogando futebol

Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll

Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

Muita mutreta pra levar a situação

Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça

E a gente vai tomando e também sem a cachaça

Ninguém segura esse rojão


Meu caro amigo eu não pretendo provocar

Nem atiçar suas saudades

Mas acontece que não posso me furtar

A lhe contar as novidades

Aqui na terra tão jogando futebol

Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll

Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

É pirueta pra cavar o ganha-pão

Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro

E a gente vai fumando que, também, sem um cigarro

Ninguém segura esse rojão


Meu caro amigo eu quis até telefonar

Mas a tarifa não tem graça

Eu ando aflito pra fazer você ficar

A par de tudo que se passa

Aqui na terra tão jogando futebol

Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll

Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

Muita careta pra engolir a transação

E a gente tá engolindo cada sapo no caminho

E a gente vai se amando que, também, sem um carinho

Ninguém segura esse rojão


Meu caro amigo eu bem queria lhe escrever
Mas o correio andou arisco
Se me permitem, vou tentar lhe remeter
Notícias frescas nesse disco
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
A Marieta manda um beijo para os seus
Um beijo na família, na Cecília e nas crianças
O Francis aproveita pra também mandar lembranças
A todo o pessoal
Adeus
O "milagre econômico" é a denominação dada à época de excepcional

crescimento econômico ocorrido durante a Ditadura militar, ou anos de

chumbo, especialmente entre 1969 e 1973, no governo Médici. Nesse

período áureo do desenvolvimento brasileiro, em que, paradoxalmente,

houve aumento da concentração de renda e da pobreza, instaurou-se um

pensamento ufanista de "Brasil potência", que se evidencia com a

conquista da terceira Copa do Mundo de Futebol em 1970 no México, e a

criação do mote de significado dúbio: "Brasil, ame-o ou deixe-o".


As três vitórias na Copa do Mundo ajudaram a manter no ar um clima de

euforia generalizada, nunca antes vista, e daquilo que Elio Gaspari

apelidou de "patriotadas". O Brasil cantava:

"Noventa milhões em ação

Pra frente Brasil, no meu coração

Todos juntos, vamos pra frente, Brasil

Salve a seleção!!!

De repente é aquela corrente pra frente, parece que todo o Brasil

deu a mão!

Todos ligados na mesma emoção, tudo é um só coração!

Todos juntos vamos pra frente, Brasil!

Salve a seleção!
O Milagre Brasileiro e os Anos de Chumbo foram simultâneos. Ambos
reais, co-existiam negando-se. Passados mais de trinta anos,
continuam negando-se. Quem acha que houve um, não acredita (ou
não gosta de admitir) que houve o outro.

Crescimento, também, da miséria

A miséria no Brasil também sofreu um bom incremento com as


omissões da política de crescimento econômico adotada, segundo
dados da Fundação Getúlio Vargas:

A mortalidade infantil no estado mais rico da federação, São Paulo,


teve um incremento da ordem de 10%.
Registrou-se o aterrador número de 600 mil menores abandonados na
Grande São Paulo.
30 % dos municípios da federação não tinham abastecimento de água.
O Brasil teve o 9º Produto Nacional Bruto do mundo, mas em
desnutrição perdia apenas para Índia, Indonésia, Bangladesh,
Paquistão e Filipinas. Um estudo do Banco Mundial, feito em 1976,
mostrava que 70 milhões de brasileiros eram desnutridos ou
subnutridos, cerca de 64,5% da população da época.
Heringer, Charge on line, 13.05.2010

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