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Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você.

Mais de tardezinha que de manhã, mais


naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos e com mais força enquanto a noite
avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem
de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai ficar assim clack! e
quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Se não dormisse cedo nem estivesse
quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de
madrugada e eu me veria catando cacos de vidro entre os lençóis. Brilham, na palma da minha
mão. Num deles, tem uma borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a
linha do horizonte, onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho
só dela. Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas que são
bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada que eu penso de
você ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.

Daí penso coisas bobas quando, sentado na janela do ônibus, depois de trabalhar o dia inteiro,
encosto a cabeça na vidraça, deixo a paisagem correr, e penso demais em você. Quando não
encontro lugar para sentar, o que é mais freqüente, e me deixava irritado, descobri um jeito
engraçado de, mesmo assim, continuar pensando em você. Me seguro naquela barra de ferro,
olho através das janelas que, nessa posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas
calçadas, e procuro nos pés daquelas aqueles que poderiam ser os seus. (A teus pés, lembro.).
E fico tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em
alguma parada, alguma esquina. Nunca vejo você - seria, seriam?

Boas e bobas, são as coisas todas que penso quando penso em você. Assim: de repente ao
dobrar uma esquina dou de cara com você que me prega um susto de mentirinha como
aqueles que as crianças pregam umas nas outras. Finjo que me assusto, você me abraça e
vamos tomar um sorvete, suco de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer
lugar. Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta o meu pensamento e do outro
lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu também, mas não sei o que
falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito pudor de parecer
ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais.
Mas no que eu penso, penso também que somos meio tudo isso, não tem jeito, é tudo que
vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil como a voz de Olívia Byington
cantando Villa-Lobos, mais perto de Mozart que de Wagner, mais Chagal que Van Gogh, mais
Jarmush que Win Wenders, mais Cecília Meireles que Nelson Rodrigues.

Tenho trabalhado tanto, por isso mesmo talvez ando pensando assim em você. Brotam
espaços azuis quando penso. No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco
tolo, meio melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa
vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto
tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem
percebemos, no umbigo do universo. Você toca minha mão, eu toco na sua.

Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem dentro dos seus
olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão cristalinas que têm algas na superfície
ressaltadas contra a areia branca do fundo. Aqualouco, encontro pérolas. Sei que é meio
idiota, mas gosto de pensar desse jeito, e se estou em pé no ônibus solto um pouco as mãos
daquela barra de ferro para meu corpo balançar como se estivesse a bordo de um navio ou de
você. Fecho os olhos, faz tanto bem, você não sabe. Suspiro tanto quando penso em você,
chorar só choro às vezes, e é tão freqüente. Caminho mais devagar, certo que na próxima
esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente, mas penso tanto em você que
na hora de dormir vezemquando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da
sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos. Mas depois sou eu
quem dorme e sonha, sonho com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo do mar. Cl
ack! como se fosse verdade, um beijo.

Caio Fernando Abreu, em Um Provável Devaneio

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