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MITO E FILOSOFIA 1
Certa vez li um livro do poeta Louis Aragon (1897-1982), e uma frase sua despertou-
me a reflexão. A frase era: “o espírito do homem não suporta a desordem porque não
pode pensá-la” (ARAGON, 1996, p. 215 e 241). E várias perguntas povoaram meu
pensamento: o que é ordem? E a desordem? Ordem e desordem existem na
realidade ou são representações de mundo criadas pelo pensamento, imaginação ou
preconceito?
Ordem e Desordem
1
Texto produzido por Eloi Corrêa dos Santos e Osvaldo Cardoso para a Secretaria de Estado da Educação do Paraná.
Mito e Filosofia - CEAT – Filosofia – 1º Ano
O Mito de Édipo
Os mitos cumpriam uma função social moralizante de tal forma que essas narrativas
ocupavam o imaginário dos cidadãos da pólis grega direcionando suas condutas. Na
Atenas do século V a.C. existia também o espaço para as comédias que satirizavam
os poderosos e personagens célebres, e as tragédias que narravam as aventuras e
prodígios
dos heróis, bem como suas desventuras e fracassos. Haviam festivais em que os
poetas e escritores competiam elegendo as melhores peças e textos, estes festivais
eram muito importantes na vida da “pólis” grega, era por meio destes eventos sociais
que as narrativas míticas se difundiam.
O soberano consulta o Oráculo, o que era comum na cultura grega antiga. O Oráculo
afirma que seu primogênito irá desposar a própria mãe e assassinar seu pai, o Rei
Laio. Então, Laio manda que eliminem o menino, mas a pessoa encarregada não
cumpre a ordem e envia o menino para um reino distante onde ele se torna um grande
guerreiro e herói, numa de suas andanças ele encontra um homem arrogante e o
mata; chegando ao Reino de Jocasta, Édipo se apaixona e a desposa. Anos mais
tarde, Édipo descobre que ele próprio é o personagem da profecia, e num gesto de
desespero, arranca os próprios olhos e sai a vagar pelo mundo a fora. A profecia se
cumpriu, porque o rei se recusou a matar a criança.
Esta narrativa possui um fundo moral, o alerta para os desígnios dos deuses, que não
devem ser contrariados, e o percurso de Édipo, de toda sua saga, de ter vencido a
Esfinge e decifrado seu enigma, seu destino não o poupou. Contudo, um novo
pensamento se formava e a vida na pólis cada vez mais é direcionada pela política, e
aos poucos a moral estabelecida pelas narrativas míticas foram sendo substituídas
pela ética e pelos valores da cidadania grega. O cidadão grego cada vez mais
participativo não considerava a idéia de não controlar a própria vida. Na vida da pólis,
os homens livres manifestavam suas posições escolhendo entre iguais o
direcionamento das decisões e das ações da cidade-estado.
O Nascimento da Filosofia
O nascimento da filosofia pode ser entendido como o surgimento de uma nova ordem
do pensamento, complementar ao mito, que era a forma de pensar dos gregos. Uma
visão de mundo que se formou de um conjunto de narrativas contadas de geração a
geração por séculos e que transmitiam aos jovens a experiência dos anciãos. Como
narrativas, os mitos falavam de deuses e heróis de outros tempos e, dessa forma,
misturavam a sabedoria e os procedimentos práticos do trabalho e da vida com a
religião e as crenças mais antigas.
Nesse contexto, os mitos eram um modo de pensamento essencial à vida da
comunidade, ao universo pleno de riquezas e complexidades que constituía a sua
experiência. Enquanto narrativa oral, o mito era um modo de entender o mundo que foi
sendo construído a cada nova narração. As crenças que eles transmitiam ajudavam a
comunidade a criar uma base de compreensão da realidade e um solo firme de
Prof. Tony Mendes - 2
Mito e Filosofia - CEAT – Filosofia – 1º Ano
certezas. Os mitos apresentavam uma religião politeísta, sem doutrina revelada, sem
teoria escrita, isto é, um sistema religioso, sem corpo sacerdotal e sem livro sagrado,
apenas concentrada na tradição oral, é isso que se entende por teogonia. Vale
salientar que essas narrativas foram sistematizadas no século IX por Homero e por
Hesíodo no século VII a.C.
Ao aliar crenças, religião, trabalho, poesia, os mitos traduziam o modo que o grego
encontrava para expressar sua integração ao cosmos e à vida coletiva. Os gregos a
partir do século V a.C. viveram uma experiência social que modificou a cotidianidade
grega: a vivência do espaço público e da cidadania. A cidade constituía-se da união de
seus membros para os quais tudo era comum. O sentimento que ligava os cidadãos
entre si era a amizade, a filia, resultado de uma vida compartilhada.
Quando dizemos que a filosofia nasceu na Grécia, pontuamos que a Grécia do século
V a.C. não possuía um Estado unificado, mas era formada por Cidades-Estados
independentes, as chamadas pólis, que foram o berço da política, da democracia e
das ciências no ocidente. Transformaram a matemática herdada dos orientais em
aritmética, geometria, harmonia e lapidaram o conceito de razão como um pensar
metódico, sistemático, regido por regras e leis universais.
Os gregos eram um povo comerciante, propensos a navegação e ao contato com
outras civilizações. A filosofia nascera das adaptações que os pensadores gregos
regimentaram aos conhecimentos adquiridos por meio dessas influências, e da
superação do pensamento mitológico buscando racionalmente aliar essa nova ordem
de pensamento propriamente grega, a vida na pólis. Mas afinal, o que é a pólis? Como
se constituía?
Uma certa extensão territorial, nunca muito grande, continha uma cidade, onde havia o
lar com o fogo sagrado, os templos, as repartições dos magistrados principais, a
Ágora, onde se efetuavam as transações; e, habitualmente, a cidadela na acrópole. A
cidade vivia do seu território e a sua economia era essencialmente agrária.
Competiam-lhe três espécies de atividade: legislativa, judiciária e administrativa. Não
menores eram os deveres para com os deuses, pois a “pólis” assentava em bases
religiosas e as cerimônias do culto eram ao mesmo tempo obrigações cívicas
desempenhadas pelos magistrados. A sua constituição dependia da assembléia
A multiplicidade de idéias e vertentes que formam o mito pode aparecer, muitas vezes,
como desordem. A filosofia pode ser entendida como a tentativa de subordinar a
multiplicidade de expressões à ordem racional, de enfrentar a dificuldade de entender
os contrários misturados que povoam a vida. Entre mito e filosofia têm-se duas ordens
ou duas concepções de mundo e a passagem da primeira à segunda expressa uma
mudança estrutural da sociedade. Identificar ou pensar as várias ordens seria como
identificar as constelações na imensidão do céu.
As narrativas míticas tentavam responder as questões fundamentais, como: a origem
de todas as coisas, a condição do homem e suas relações com a natureza, com o
outro e com o mundo, enfim, a vida e a morte, questões que a filosofia desenvolveu no
decorrer de sua história. Mas aqui podemos formular outra questão: a filosofia nasceu
da superação dos mitos, mas foi uma superação gradual ou um rompimento súbito?
Para tanto, temos que primeiramente identificar algumas diferenças básicas entre os
mitos e a filosofia.
Mito e Lógos
Como as pesquisas atuais entendem o mito? Conforme Vernant (2001) parece que os
estudiosos do mito não conseguem definir seu objeto de estudo e o vêem desvanecer-
se:
(...) o tempo de reflexão – esse olhar lançado para trás sobre o caminho percorrido –
não marcaria, para o mitólogo, o momento em que, acreditando como Orfeu ter tirado
sua Eurídice das trevas, impaciente de contemplá-la na claridade da luz, ele se volta
para vê-la desvanecer e desaparecer para sempre a seus olhos? (VERNANT, 2001, p.
289)
O Mito Hoje
FriedrichNietzsche1844-1900.
O pensamento mítico é por natureza uma explicação da realidade que não necessita
de metodologia e rigor, enquanto que o logos caracteriza-se pela tentativa de dar
resposta a esta mesma realidade, a partir de conceitos racionais. Mas existe razão nos
mitos? Não seria também a racionalidade, um mito moderno disfarçado? Assim como
na antigüidade, o mito estava a serviço dos interesses da aristocracia rural e, portanto
não interessava à aristocracia ateniense, surgindo assim o pensamento racional ligado
à “pólis”, no mundo contemporâneo, não estariam o pensamento tecnicista e a ciência,
a serviço do capital e das elites que financiam a produção do conhecimento científico?
O homem moderno continua ainda a mover-se em direção a um valor que o apaixona
e só posteriormente é que busca explicitá-lo pela razão. Entende-se, pois, que o mito
manifesta-se por meio de elementos figurativos, enquanto que o logos utiliza-se de
elementos racionais, portanto é preciso deixar bem claro que não se pretende aqui
colocar o pensamento racional no mesmo plano do pensamento mítico, mas sim, que
a partir de uma releitura percebemos que o Iluminismo não deu conta nem mesmo de
realizar a tarefa de que se propôs: iluminar as trevas da ignorância; quanto mais
dissolver os mitos e anular a imaginação.
Referências: