Você está na página 1de 3

Para isso fomos feitos:

Para lembrar e ser lembrados


Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será nossa vida:

Uma tarde sempre a esquecer


Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito o que dizer:

Uma canção sobre um berço


Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos: Para a esperança no milagre


Para a participação da poesia
Para ver a face da morte
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

(Vinícius de Moraes)
NATAL

Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.


Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.

Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.


Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo


acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu
dia.
No teu sol acontecia.

Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia


nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E
acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de
água turva
na cidade agitada pelo vento.

Natal Natal (diziam). E acontecia.


Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de
poesia.

Manuel Alegre
Natal divino ao rés-do-chão humano,
Sem um anjo a cantar a cada ouvido.
Encolhido
À lareira,
Ao que pergunto
Respondo
Com as achas que vou pondo
Na fogueira.

O mito apenas velado


Como um cadáver
Familiar…
E neve, neve, a caiar
De triste melancolia
Os caminhos onde um dia

Vi os Magos galopar…

Miguel Torga

Você também pode gostar