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EDUCAÇÃO E FELICIDADE

Prof. Darley Miranda

Com raríssimas exceções, a queixa mais freqüente e justa daqueles que trabalham com
educação municipal no país inteiro se refere a salários e condições de trabalho. De um modo
geral, ganha-se mal, trabalha-se muito e em condições aquém das mínimas necessárias, faltam
funcionários, existem poucos recursos para capacitação e o modelo de gestão não valoriza,
nem reconhece ou incentiva a equipe. Por esses motivos, os pleitos do funcionalismo em
relação às essas duas dimensões – salários e condições de trabalho – são legítimos e devem ser
debatidos nos fóruns adequados.

Mas, o que fazer enquanto as demandas por melhorias substanciais nessas duas dimensões
não são atendidas? Como se comportar enquanto as coisas não melhoram? Vejamos a seguir a
carta de uma professora que trabalha na rede municipal e não vê mais possibilidade de
melhorias. A carta diz assim: “Já não agüento mais. Faz quase 10 anos que meu salário
praticamente estagnou. Trabalho numa escola que fica num bairro pobre, onde estudam
crianças sem estrutura familiar e os pais não estão nem aí para elas. A equipe está desfalcada,
a diretora é incompetente e a escola tem problemas de manutenção e segurança. Como é
possível trabalhar com empenho e satisfação? Admito que atualmente faço o mínimo
necessário. Mas, ainda assim acho que trabalho mais do que me paga esse salário ridículo”.
Com base nela, arrisco representar uma espécie de “engrenagem da infelicidade na
educação”, com as três condições necessárias para manter um contínuo mal-estar ligado ao
trabalho:

Essa professora me fez lembrar dos trabalhos do Dr. Viktor Frankl, psiquiatra vienense criador
da Logoterapia. Consta que ele, ao ouvir as queixas de pacientes que haviam perdido tudo na
guerra, lhes perguntava: “se está tudo tão ruim e sem sentido porque você não se mata?”

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Palestra “É possível ser feliz trabalhando com educação”
Obviamente sua intenção não era piorar o estado já lastimável das pessoas. Pretendia com isso
despertar no paciente a identificação de “razões para viver”. Pensando nisso, considerei
perguntar à nossa professora: “se as coisas estão desse jeito, porque você não pede demissão
e vai embora?”. Apesar de parecer rude e agressiva, a pergunta teria apenas a intenção de
ajudá-la a identificar as “razões para continuar trabalhando”. Respostas como: “eu gosto de
crianças”, “preciso ter alguma atividade fora de casa” ou “estou querendo fazer uma pós-
graduação” poderiam dar início a uma lista enorme de motivos até chegar àqueles que
confeririam sentido à permanência dela na escola. Essa lista garantiria sua disposição para
continuar se esforçando “apesar de tudo”. Com isso, os efeitos das circunstâncias sobre seu
estado de ânimo seriam menores. Os compromissos com “algo ou alguém no futuro”
descobertos pela professora ao elaborar sua lista seriam os motivos que a deixariam
estimulada para o trabalho, apesar de sua insatisfação com as condições do momento.

Mas, ainda assim os pequenos aborrecimentos do cotidiano continuariam perturbando nossa


professora podendo abalar a força dos seus motivos, a sua “motivação”. Para encarar esses
aborrecimentos com outra perspectiva, ela poderia seguir as recomendações do Dr. Gerald
Kushel, psicólogo americano criador de um método chamado “Centering” que ensina a
“escolher pensamentos eficazes”. Segundo o Dr. Kushel, independente do que aconteça “fora
de mim”, eu posso escolher como processarei os fatos “dentro de mim”. Posso escolher “como
pensarei” cada coisa que aconteça comigo de modo a ficar num estado que me permita agir de
forma eficaz. Então, a professora poderia escolher outros pensamentos para descrever a
situação que vive. Para começar, dentre outras coisas a professora poderia comparar seu
momento atual com situações bem piores que já viveu anteriormente ou que poderia estar
vivendo atualmente. Segundo um sem-número de estudos científicos recentes, usar a
tendência natural para a comparação pode ser um “truque” interessante desde seja feita em
relação a situações e características negativas. Além disso, ela poderia “escolher”
pensamentos como: “ao invés de focar em problemas sobre os quais não tenho controle,
estou me concentrando em melhorias possíveis no meu trabalho de sala de aula”, no lugar de
“as condições são tão ruins que não tenho o que fazer enquanto elas não melhorarem”.

Essas duas condições – “ter compromissos com algo ou alguém no futuro” e “escolher
pensamentos eficazes” – certamente aumentariam os sentimentos de bem-estar da nossa
professora e a deixariam mais predisposta a adotar comportamentos altruístas, generosos e
cooperativos na escola. Esse fato encontra explicação nos trabalhos de vários estudiosos que
identificaram relação de causa-efeito entre sentimentos de bem-estar e comportamentos
solidários. Mas para o sociólogo canadense Jacques Godbout , o “paradigma da dádiva” inverte
essa relação (ou mantém com ela uma espécie de “hierarquia entrelaçada”). Ou seja, “atos
gratuitos”, sem espera de retribuição e que não sejam praticados porque se ganha alguma
coisa com eles, produzem prazer e colocam em funcionamento o “ciclo virtuoso da dádiva”
(dar, receber, retribuir). O trabalho do Dr. Godbout demonstra que nem tudo na sociedade
pós-moderna pode ser pensado dentro do “paradigma do mercado” (tudo é mercadoria e tem
um preço) ou do “paradigma do estado” (tudo é uma questão de direitos e obrigações).
Algumas coisas continuarão sendo feitas não pelo seu valor de uso ou valor de troca, mas pelo
seu “valor de vínculo”. Assim, nossa professora ao invés de se sentir “explorada” porque nutre
sentimentos afetuosos pelas crianças e não ganha nada com isso, poderia agir mais
espontaneamente em relação a elas, “sem esperar nada em troca”. Arrisco dizer que em

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Palestra “É possível ser feliz trabalhando com educação”
atividades como saúde, educação e serviço social, é necessária uma atuação profissional
baseada na idéia de que “nem tudo tem um preço” e que “nem tudo é uma questão de
direitos e obrigações”. Assim, minha idéia de “engrenagem da felicidade na educação”,
baseada nos trabalhos de Viktor Frankl, Gerald Kushel e Jacques Godbout é a seguinte:

A questão toda então é saber o que a nossa professora poderia efetivamente fazer para
garantir os tão desejáveis sentimentos de satisfação pessoal independente das circunstâncias.
O esquema abaixo propõe o estabelecimento de uma relação entre “atitude mental”, “reação
diante da vida” e “estado interior”.

Como nossa atitude mental é resultado de condicionamentos, para mudá-la é necessário um


processo de treinamento contínuo com foco nos três “fundamentos profundos da felicidade na
educação”: a dádiva, o sentido e o centramento. Curiosamente, essa espécie de “treinamento
mental”, que poderia mudar a atitude das pessoas, não faz parte da programação de nenhuma
instituição que se dedique à capacitação de profissionais da educação.

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A ilustração abaixo apresenta o comportamento generoso, cooperativo e afetuoso na escola
como conseqüência do sentimento de contínuo de bem-estar experimentado pela equipe
escolar, a partir da disposição para doar-se sem esperar receber retribuição, do
estabelecimento de compromissos com algo ou alguém no futuro e pela habilidade de
escolher pensamentos eficazes.

Um treinamento capaz de produzir uma mudança de perspectiva como essa teria um valor
inestimável já que formaria equipes “dispostas a se sentirem felizes independente das
circunstâncias” e, por conseguinte, mais abertas, criativas e comprometidas com o trabalho.

Alguns certamente identificarão nessa ou qualquer outra proposta uma visão manipuladora e
conformista. Para esses vale a pena relembrar a necessidade de “não perder a ternura jamais”
– particularmente nas questões que envolvem as crianças, os pais e a comunidade, mesmo
que se “endureça o jogo” na luta legítima por melhores salários e condições de trabalho.

Referências bibliográficas

 Frankl, Viktor Emil, Em Busca de Sentido, 26ª edição, Petrópolis, Vozes, 2008.
 Godbout, Jacques T. O Espírito da Dádiva. 1ª. edição, Rio de Janeiro, FGV, 1999.
 Kushel, Gerald. Libertação Interior. 2ª. edição, São Paulo, Melhoramentos, 1982.

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