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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

INSTITUTO DE FÍSICA E FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TRADIÇÃO CULTURAL, CONTRASTE


ENTRE TEORIAS E ENSINO DE FÍSICA

Alexandre Custódio Pinto

João Zanetic (Orientador)

Dissertação apresentada ao
Instituto de Física e à
Faculdade de Educação
como parte dos requisitos
necessários à obtenção do
título de mestre em Ensino
de Ciências - Modalidade
Física.

Fevereiro de 2003
Ao que vive do meu pai em mim.
RESUMO

Partindo de perspectivas educacionais oriundas da epistemologia de Paul

Feyerabend, este trabalho apresenta a educação em ciência concebida como a

iniciação em uma tradição cultural. O contraste entre teorias é identificado como

um aspecto importante no Ensino de Física, imprescindível em uma abordagem

cultural. Compõe ainda o trabalho uma reflexão sobre as possíveis compreensões

do papel de especialistas implícitas no ensino de ciências. Um texto subsídio

ilustra alguns elementos da abordagem educacional apresentada com o estudo

da noção de inércia aplicada ao problema do movimento da Terra.


ABSTRACT

Starting of educational perspectives derived from Paul Feyrebend´s epistemology,

this work presents the education in science conceived as a initiation in a cultural

tradition. The confrontation between theories is identified as an important aspect in

physics teaching, indispensable in a cultural approaching. The work is still

composed of a reflection on the possible comprehension of the role of specialists

implicit in science teaching. A text subsidy illustrates some elements of the

educational approach presented with the study of the notion of inertia applied to

the problem of the movement of the Earth.


AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Professor e Amigo João Zanetic, pela Orientação não só na


realização deste trabalho, mas na condução da vida.

Ao Professores Manoel Robilotta e José Sérgio, pelas críticas e sugestões


que muito ampliaram minha compreensão.

Aos Colegas do corredor, em especial ao grupo de estudos do João, pelo


incentivo, questionamento e respeito às minhas idéias. Ao Zé e à Cris por
estimularem minha forma de escrever. À Erika e ao Cristian pela mecânica
relacional (mecânica 24 horas).

Aos meus Professores e Colegas do IFUSP, FEUSP e IQUSP, pela minha


formação. Em especial ao Luizão e ao Villani pela minha formação em mecânica
e relatividade.

Aos Companheiros e Companheiras da Fundação Florestan Fernandes -


FFF e do Centro de Educação, Estudos e Pesquisas - CEEP, em especial a
Moniquinha e a Nádia, por compartilharem de uma dupla missão. Ao Ferreira da
CTR/CUT pela atenção e valor dado a este trabalho.

A todos que foram meus alunos. Em especial a Simone, Paulão e Prado,


com quem aprendi mais que ensinei.

À minha esposa Cláudia, minha mãe Irene, meu filho Giordano Bruno e a
memória de meu pai Onofre, pela minha humanidade.

À memória do grande amigo Alexandre Antônio.

E, ao CNPq, pelo financiamento parcial desta pesquisa.


ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

... Toda descoberta da ciência pura é potencialmente subversiva: até a


ciência deve, às vezes, ser tratada como um inimigo possível. Sim, a própria
ciência.
Ciência? O Selvagem franziu a testa. Conhecia a palavra. O que
significava exatamente, porém, ele não o sabia. Shakespeare e os velhos do
pueblo nunca se haviam referido à ciência, e de Linda (sua mãe) ele recebera
apenas indicações muito vagas: a ciência era uma coisa com a qual se faziam
helicópteros, uma coisa que fazia com que a gente risse das Danças do Trigo,
uma coisa que impedia de ter rugas e de perder os dentes. Fez esforço
desesperado para compreender o que o Administrador queria dizer.
- Sim - continuou Mustafá Mond - essa é outra parcela no custo da
estabilidade. Não é somente a arte que é incompatível com a felicidade, também
o é a ciência. Ela é perigosa; temos de mantê-la cuidadosamente acorrentada e
amordaçada.
(...)
- E toda a propaganda da ciência que fazemos no colégio...
- Sim, mas que espécie de ciência? - perguntou sarcasticamente
Mustafá Mond. - Os senhores não receberam instrução científica, de modo que
não tem condições de julgar. Quanto a mim, fui um bom físico, no meu tempo.
Bom demais; bastante bom para compreender que toda a ciência é simplesmente
um livro de cozinha, com uma teoria ortodoxa de arte culinária que ninguém tem o
direito de contestar e uma lista de receitas às quais não se deve acrescentar
nada, salvo com autorização do cozinheiro-chefe. Sou eu cozinheiro-chefe agora.
Mas houve tempo em que eu era apenas um jovem lava-pratos cheio de
curiosidade. Pus-me a cozinhar um pouco a meu modo. Cozinha heterodoxa,
cozinha ilícita. Um pouco de ciência verdadeira, em suma.

TRECHO DA OBRA DE FICÇÃO CIENTÍFICA DE ALDOUS HUXLEY

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO - 1932


O Filosofo trabalhando – foto preferida de Feyerabend
Sumário
INTRODUÇÃO.................................................................................................................13

I - A HISTÓRIA DESTE TRABALHO ...............................................................................17

II - NOÇÕES EPISTEMOLÓGICAS DE PAUL FEYERABEND ........................................22


1. A CIÊNCIA COMO TRADIÇÃO CULTURAL ...........................................................27
2. PROPAGANDA, CONTRA-INDUÇÃO E MAIS .......................................................35
3. ANARQUISMO EPISTEMOLÓGICO ......................................................................40
4. INCOMENSURABILIDADE E INTERPRETAÇÕES NATURAIS .............................45
5. PROLIFERAÇÃO DE TEORIAS .............................................................................53
6. EM DEFESA DA RACIONALIDADE CIENTÍFICA...................................................60

III - PERSPECTIVAS EDUCACIONAIS ...........................................................................67


1. TODOS DEVEM SER IGUALMENTE INICIADOS NA TRADIÇÃO CIENTÍFICA?...70
2. CONHECENDO OS ESPECIALISTAS ...................................................................82
3. OBEDIÊNCIA VERSUS OUSADIA NA FORMAÇÃO CIENTÍFICA..........................96

IV - O PROBLEMA DA (I)MOBILIDADE DA TERRA......................................................104


1. A TERRA SE MOVE? ...........................................................................................105
2. CIÊNCIA, RELIGIÃO, MITOS E LENDAS .............................................................110
3. O ARGUMENTO DA TORRE................................................................................112
4. ONDE A PEDRA CAI? ..........................................................................................114
5. MAIS ARGUMENTOS...........................................................................................119
6. A NOÇÃO DE INÉRCIA ........................................................................................122
7. A NOÇÃO DE ESPAÇO ABSOLUTO ...................................................................131
8. ACHATAMENTO NA FORMA DA TERRA ............................................................134
9. O PÊNDULO DE FOUCAULT...............................................................................139
10. O PRINCÍPIO DE MACH.....................................................................................147
11. MECÂNICA RELACIONAL..................................................................................149

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................................158

BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................161
INTRODUÇÃO

A partir de limitações metodológicas do processo de construção do

conhecimento científico e do estudo de teorias alternativas presentes na

epistemologia de Paul Feyerabend, pretendemos, neste trabalho, identificar

algumas perspectivas educacionais para o Ensino de Física, bem como, fornecer

elementos para uma reflexão sobre a concepção de Ciência difundida

socialmente.

Tendo por fundamento as implicações educacionais da epistemologia de

Feyerabend apresentamos uma proposta para o Ensino de Física estruturada por

conflitos entre teorias.

Iniciamos o primeiro capítulo com algumas considerações sobre a história

deste trabalho, sua relação com o Ensino de Física e suas limitações. Optamos

por escrever este capítulo, ao invés de apresentarmos estes elementos na

introdução, por eles serem parte fundamental do trabalho e por permearem todas

as análises e discussões realizadas posteriormente.

No segundo capítulo, apresentamos uma descrição, segundo nossa

interpretação, dos principais elementos epistemológicos presentes na nossa

análise do Ensino de Física: a Ciência, ao invés de possuir um corpo de

conhecimentos perfeito e acabado, é apresentada com uma tradição cultural entre

outras (seção 1); a existência, na prática científica, de procedimentos conflitantes

com o método científico de um determinado período histórico, mas, no entanto,

fazendo progredir a Ciência (seção 2); a concepção de anarquismo

epistemológico como baliza do conhecimento científico (seção 3); a


Introdução 14

impossibilidade de redução total entre teorias sucessivas em conseqüência de

alguns aspectos incomparáveis em seus conceitos fundamentais e o vínculo

destes conceitos às diferentes formas de percepção fenomenológica (seção 4); e,

a interação entre teorias alternativas e aquelas estabelecidas por diferentes

grupos de pesquisa (seção 5).

Se consideradas fora de um amplo contexto, algumas das noções

epistemológicas de Feyerabend apresentar-se-ão inconsistentes ou até mesmo

contrárias a uma "verdadeira" descrição da prática científica. Atentos a este

problema, elaboramos, ainda no capítulo segundo, a seção 6: Em defesa da

racionalidade científica, contendo algumas críticas às idéias de Feyerabend. Com

isto, pretendemos esboçar alguns limites da epistemologia de Feyerabend e suas

implicações para a análise do Ensino de Física desenvolvida neste trabalho.

No terceiro capítulo, passamos a discutir as lições epistemológicas

aprendidas com o estudo das concepções sobre a Ciência expressas no capítulo

anterior e suas conseqüências para a educação: concebendo a educação escolar

como um processo de iniciação de pessoas (crianças, jovens e adultos) nas

tradições culturais, atentando ao desenvolvimento de uma prática da tolerância e

considerando a Ciência como uma tradição cultural dentre outras, começamos por

nos perguntar se todos devem ser rígida e igualmente iniciados na tradição

científica durante a formação básica (seção 1); a seguir, e em decorrência da

primeira seção, indicamos alguns elementos para a reflexão sobre o Ensino de

Ciências no nível básico apoiados na prática da (transform)ação social por

professores e alunos frente aos peritos ou especialistas de diferentes tradições

culturais (seção 2); por fim, deslocando a discussão para o nível superior de

Ensino, justificamos porque mesmo os aspirantes a físicos (ou a professores de


Introdução 15

Física) devem conviver com diferentes visões de mundo, uma variedade de

modelos epistemológicos e, principalmente, participar da prática de diferentes

grupos de pesquisa (seção 3).

Como subsídio para a utilização e aprofundamento de nosso trabalho em

situações de Ensino elaboramos um texto didático sobre a noção de Inércia

tratando especificamente do problema do movimento da Terra (capítulo IV).

Nosso trabalho pode contribuir:

- aos professores de Física, como uma introdução à leitura de Paul

Feyerabend, permitindo-lhes ampliar suas concepções da

Ciência e refletir sobre as conseqüentes implicações

educacionais aqui apresentadas;

- aos pesquisadores da Ciência e do seu Ensino, como reflexões

sobre suas próprias pesquisas, possibilitando-lhes um primeiro

passo na direção de explorar e reconhecer os limites de seus

trabalhos de investigação como pertencentes a uma determinada

tradição de pesquisa; e,

- aos professores e estudantes da Física em geral, por meio da

problematização da noção de inércia, exemplificando uma

abordagem do Ensino de Física apoiada em contrastes.

Auxiliando-os no desafio de estudar a Física, seguir seus

métodos e procedimentos, buscar sua racionalidade e


Introdução 16

objetividade, e, ao mesmo tempo, estar atento aos seus aspectos

humanos e à coexistência de teorias e modelos alternativos que

possibilitam explicitar os limites do conhecimento e flexibilizar

suas verdades.
I - A HISTÓRIA DESTE TRABALHO1

Com o intuito de permitir uma maior compreensão do conteúdo dos

capítulos seguintes, descrevo inicialmente duas experiências de vida

fundamentais para justificar a origem e a natureza deste trabalho. A primeira

refere-se a uma crise vivida por mim (ACP) enquanto estudante de Física em

minha relação pessoal com o que acreditava ser o "verdadeiro" significado do

conhecimento científico; e a segunda vem de minha atividade como professor de

Física com uma postura intolerante, na ocasião, frente ao "aprendizado" da

Ciência.

A primeira experiência ocorreu nos primeiros anos da minha graduação na

licenciatura em Física entre 1994 e 1997. Nasci de uma família pobre, meus avós

eram trabalhadores rurais e meus pais vieram para a cidade com o intuito de

sobreviver às transformações sociais de sua época. Meu pai, natural do município

de Ubá, Minas Gerais, nunca foi à escola e fico admirado com o modo como

conseguia sobreviver aos "tempos modernos"; possuía uma incrível habilidade de

efetuar operações matemáticas fundamentais "de cabeça" e uma surpreendente

capacidade de fazer previsões em jogos de dominó; de onde talvez venha minha

inspiração para as "exatas"; desde os meus quatro anos de idade jogávamos

dominó e, com o jogo, juntos ganhávamos dinheiro em apostas; ele sempre

incentivou meus estudos, sem o seu esforço e sacrifício eu não poderia estar

escrevendo hoje estas palavras; minha interação com ele não se dava no âmbito

do discurso, quase não conversávamos, mas fazíamos muitas coisas juntos; ele

1
Em primeira pessoa.
A história deste trabalho 18

morreu prematuramente em 1997, deixando uma vida em que a Física não

existia.

Minha mãe, natural de Itabuna - Bahia, estudou até a quarta série do

primário, e, paradoxalmente, sempre questionou meus estudos. Talvez guiada por

um instinto de proteção, reclamava quando eu ficava muitas horas lendo - você

vai ficar louco - ela dizia. Foi contra minha atitude de abandonar o emprego como

eletricista industrial para estudar Física. Até hoje meu irmão ainda ganha muito

mais dinheiro nesta área do que eu em Ensino. Mas ela é responsável pela

segunda componente do conflito aqui descrito, por sua religiosidade e incansável

busca da "verdade". Em sua vida passou por diferentes igrejas e eu sempre a

acompanhei, de onde talvez venha minha postura tolerante para com as diversas

concepções culturais e religiosas.

Em 1994 ingressei no curso de licenciatura em Física na Universidade de

São Paulo e no mesmo ano passei a freqüentar uma instituição "religiosa"

denominada Movimento Gnóstico, ou Gnose. Essa instituição fundamenta seus

estudos em fragmentos filosóficos de antigas tradições como a alquimia e

elementos da cultura oriental, entre outras, e possui técnicas e métodos próprios

de investigação da "realidade" do conhecimento, inclusive para a "realidade" do

mundo físico. Ela me forneceu, na época, um "modelo" muito interessante de

"verdade".

O avanço no estudo em Física, e principalmente as idéias da Teoria da

Relatividade, causou em mim um profundo conflito entre estas duas formas de

enxergar o mundo. O desacordo entre a Física e a Gnose gerava um mal estar,

inclusive orgânico. Isso me levou diversas vezes a pensar em abandonar a Física.


A história deste trabalho 19

Creio que só não o fiz por causa de minha mãe. Precisava convencê-la de que

estudar Física e seu Ensino me traria um futuro promissor.

Foram os três anos mais angustiantes de minha vida. O problema só se

revolveu em 1997 quando nasce uma das principais inspirações para este

trabalho. Nesse ano comecei a participar de um projeto de iniciação científica2

com o meu atual orientador (JZ), e, dentre outras atividades, realizávamos

encontros semanais para debater a leitura de livros sobre a História e a Filosofia

da Ciência. Minha primeira participação foi no estudo do livro Contra o método, de

Feyerabend, pondo fim ao que na época consistia, para mim, quase uma doença

gerada pelo conflito entre a Física e a Gnose.

A visão de Ciência, presente na epistemologia de Feyerabend, funcionou

como um remédio me libertando da busca da "verdade". Passei a gostar muito

mais da Física e a apreciar com maior respeito seus princípios, métodos e

equações. O estudo de Feyerabend trouxe paz e tranqüilidade para minha vida

como estudante de Física e foi um elemento fundamental para que eu não

desistisse dos estudos da Física e de me tornar um de seus professores.

O segundo evento desenrolou-se em minha atuação como professor.

Comecei a ensinar Física a partir do meu segundo ano de licenciatura e, no início,

guiava minha prática na imitação de meus antigos professores do segundo grau.

Em meu primeiro ano tinha 24 horas/aula por semana: 12 aulas de Física

para dois primeiros anos, dois segundos e dois terceiros, e 12 aulas de

matemática para as antigas sexta e sétima séries. As aulas eram "tradicionais",

elaborava longas listas de exercícios, a maioria de vestibulares, falava a aula

inteira, não deixando os alunos "interromperem" e "atrapalhar" o Ensino, dava


A história deste trabalho 20

uma prova por semana, além de enormes listas para casa chegando até a

elaborar um trabalho de matemática para as "férias" com mais de 100 exercícios

de álgebra para os alunos da sexta e sétima séries. Acreditava que os alunos só

aprenderiam por meio do esforço e do cansaço. Quase todos os meus alunos

detestavam e repudiavam a Física, ou melhor, aquilo dito, através de minha

prática, ser ela. Quanto à matemática eles também a detestavam, mas pareciam

conformados de sua importância. Parece existir um "consenso" social, superior às

opiniões individuais, segundo o qual aprender matemática é um inevitável

sacrifício ao qual todos devem se submeter.

Naquela época, ainda era possível reprovar um grande número de alunos e

eu o fiz. Daqueles que conseguiram sobreviver até o final do ano, tentei reprovar

a maioria. Mas, pressionado pelo "conselho de classe", tive de reconsiderar

alguns casos. Dentre os alunos reprovados, um especial (R) era considerado por

mim, na época, como o pior aluno, não só por entregar quase todas as provas em

branco, não prestar atenção na aula, desrespeitar minha autoridade de professor

ou copiar os trabalhos dos colegas, mas, principalmente, por interromper as aulas

com perguntas "depreciativas" tais como: "Por que preciso aprender isso?", "Para

que serve a física?", "Qual o sentido desta aula?"...

No ano seguinte R não voltou mais à escola. Certamente ele desistiu dos

estudos por causa de minhas aulas, da minha matemática. Há alguns meses o

encontrei, ao sair de uma estação do metrô, "trabalhando" como trocador de

passes de ônibus. Tentei caminhar em sua direção, mas, ao me ver, ele

rapidamente abaixou a cabeça, e, como quem vê um fantasma, fugiu

escondendo-se na multidão. Nunca mais fui o mesmo. Receio que, as "minhas

2
É possível levar a Física Quântica para o segundo grau? Com bolsa de iniciação científica, PIBIC/CNPq
A história deste trabalho 21

Ciências" tenham contribuído para a destruição de sua vida. E só não abandonei

a missão de professor por assumir o "projeto socrático" aprendido com

Feyerabend de mostrar aos professores a existência de limites nos métodos da

Ciência, tornando-os mais flexíveis e tolerantes com aqueles que não

"conseguem" ou que verdadeiramente não "desejam" olhar para o mundo por uma

"realidade suprema" - a da Física.

A Física, a matemática e qualquer outra elaboração da mente humana

devem ser ensinadas como tais e a vida e o desejo das pessoas devem ser

respeitados acima de quaisquer "postulados algorítmicos" ou "resultados de

pesquisas experimentais".

As idéias de Feyerabend, associadas a outras, contribuíram para uma

revisão dos limites de minha concepção da Física e principalmente de seu Ensino.

São exatamente alguns dos resultados dessa minha busca os constituintes dos

capítulos seguintes e às vezes, como nos exercícios de Física, seus "efeitos"

foram intencionalmente "exagerados", mas só assim podemos visualizá-los e

compreendê-los um pouco melhor.

São estas as duas principais experiências da relação entre minha vida e o

saber da Física no encontro com as idéias de Feyerabend, uma como estudante e

outra como professor, que devem ser consideradas na leitura dos capítulos

seguintes.
II - NOÇÕES EPISTEMOLÓGICAS DE PAUL FEYERABEND

Estes devem ser os últimos dias. Nós os sorvemos


um por um. Minha última paralisia veio de algum
sangramento dentro do cérebro. Eu queria que
depois de minha partida ficassem algumas coisas
minhas, não escritos, não declarações finais, mas
amor. (...) Isto é o que eu gostaria que
acontecesse, a sobrevivência não intelectual, mas
do amor.1

Paul Karl Feyerabend (1924-1994), um destacado pensador austríaco:

pesquisou eletrodinâmica clássica na Universidade de Viena onde obteve seu

doutorado em Física; estudou Filosofia em Cambridge, orientado por Karl Popper,

um dos mais famosos filósofos da Ciência; especializou-se em teatro tornando-se

assistente de Bertolt Brecht; praticou canto com Adolf Vogel; e, recebeu o título de

doutor honoris causa em Letras e Humanidades pela Universidade de Chicago.

Da formação de Feyerabend destacamos o contato com a filosofia de Ernst

Mach, quando ainda muito jovem, e a influência de professores de personalidade

forte como Hans Thirring e Felix Ehrenhaft, em Física. Sobre seu convívio com

Ehrenhaft, quando era estudante em Viena, em 1947, ele lembra

1
As últimas palavras escritas por Feyerabend, em um hospital, ao lado de sua esposa, a física Grazia Borrini.
Ao casar-se com Grazia, Feyerabend casou-se também com a noção de "tradições históricas", ampliando
significativamente os exemplos de limites da abordagem científica em sua "filosofia". São devidos a Grazia
também os elementos de astrologia, vodu e medicina alternativa presentes em seu livro Adeus à Razão. Cf.
Paul K. FEYERABEND, Matando o tempo, p. 197; e Adeus à Razão, p. 369.
Noções epistemológicas de Paul Feyerabend 23

... não era pouco o que tínhamos que engolir. A relatividade e a teoria
quântica eram rejeitadas à partida como especulações quase
evidentemente ociosas. A este respeito a atitude de Ehrenhaft estava
muito próxima da de Stark e Lenard, que citou mais de uma vez
aprovadoramente. Mas ele ia mais longe e criticava igualmente os
fundamentos da Física Clássica. A primeira coisa a pôr de parte era a
lei da inércia: era de supor que os objetos que não sofressem
interferências em vez de seguirem uma linha reta se moviam em
hélice. Começava depois um ataque cerrado contra os princípios da
teoria eletromagnética e especialmente contra a equação div B = 0. Em
seguida eram demonstradas propriedades novas e surpreendentes da
luz - e assim por diante. Cada demonstração era acompanhada por
algumas observações delicadamente irônicas sobre a "Física Escolar"
e sobre os "teóricos" que constroem castelos no ar sem levar em conta
as experiências que Ehrenhaft improvisava e continuava a improvisar
em todos os campos e que produziam uma pletora de resultados
inexplicáveis.2

Feyerabend cresceu ao lado de importantes cientistas notando que seus

trabalhos se sustentavam por si mesmos, não necessitando de legitimações

externas, conviveu em toda sua vida de estudante com visões antagônicas da

realidade apoiadas na Física. Esse pode ter sido um dos motivos a levá-lo a uma

postura anarquista3 frente aos métodos da Ciência.

Como professor inspirou sua prática pedagógica nas aulas de Karl Popper

ao deixar que os estudantes apresentassem seminários sobre temas livres.

2
Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 348.
3
Voltaremos a considerar essa influência ao explicar a concepção "anarquista" de Feyerabend sobre o
processo de construção do conhecimento científico na seção 3 deste capítulo.
Noções epistemológicas de Paul Feyerabend 24

Qualquer assunto era possível desde que fosse exposto com clareza e tivesse

consistência. Para o professor Feyerabend esse procedimento "é certamente

melhor que o método de se concentrar num tópico fixo, com toneladas de

bibliografia distribuída de antemão".4

De suas experiências didáticas Feyerabend sofreu grande influência

quando, em conseqüência de novas políticas educativas, negros, mexicanos e

índios entraram na universidade. Esses novos alunos

sentavam-se, em parte curiosos, em parte desdenhosos, em parte


simplesmente confusos, esperando receber "educação". Que
oportunidade para um profeta em busca de seguidores! Que
oportunidade, disseram-me os meus amigos racionalistas, de
contribuir para a difusão da razão e do progresso da humanidade! Que
maravilhosa oportunidade de uma nova onda de esclarecimento!5

Contudo o mais importante é o modo como Feyerabend, diferentemente de

seus colegas, percebeu a situação. Ele adotou uma perspectiva diferente:

Compreendi então que os argumentos complicados e as histórias


maravilhosas que havia contado à minha assistência mais ou menos
sofisticada, poderiam não passar de sonhos, reflexos da presunção de
um grupo pequeno que conseguira escravizar toda a gente com as suas
idéias. Quem era eu para dizer a estas pessoas o que e como pensar?
(...) Seriam sofisticações sem interesse que os filósofos haviam
conseguido acumular ao longo dos anos e que os liberais tinham
rodeado de frases cheias de sentimentalismo para serem agradáveis, o

4
Paul K. FEYERABEND, Matando o tempo, p. 99.
5
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 368.
Noções epistemológicas de Paul Feyerabend 25

mais indicado para oferecer às pessoas que haviam sido despojadas da


sua terra, da sua cultura, da sua dignidade e que se esperava que
fossem agora absorver pacientemente e repetir depois as idéias
anêmicas dos porta-vozes dos captores tão humanos?

(...)

Foram estas as idéias que me vieram à mente ao olhar a minha


assistência e me fizeram ter uma revulsão e recuar de terror em face da
missão que devia efetuar. Quanto a essa missão - tornou-se-me agora
bastante clara - era a de um condutor de escravos muito requintado e
muito sofisticado. E isso eu não queria ser.6

Como Filósofo, Feyerabend escreveu sua mais importante obra, Contra o

Método - para provocar Lakatos que morreu antes de poder responder - criticando

as análises da natureza da Ciência usualmente propostas, principalmente

quando se referem à exclusão das características humanas do fazer científico.

Neste sentido, ele não desenvolveu uma metodologia da pesquisa científica, mas

procurou apontar as limitações, as exceções e principalmente o dogmatismo de

alguns seguidores destas propostas metodológicas. O ponto de vista subjacente à

sua obra

não resulta de uma operação do pensamento solidamente planejada,


mas de argumentos descobertos ao fio de encontros ocasionais. A ira
perante a destruição insensata de realizações culturais com as quais
muito poderíamos ter aprendido, perante a segurança arrogante com
que certos intelectuais interferem na existência das pessoas, e o
desprezo pelo fracasso melífluo de que se servem para embelezar as

6
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 368.
Noções epistemológicas de Paul Feyerabend 26

suas malfeitorias foram e continuam a ser a força que me moveu neste


livro".7

Impulsionados por essa mesma força e tendo em mente essas

experiências da vida de Feyerabend passamos a discutir, na seção seguinte,

alguns elementos de sua epistemologia.

7
Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 343.
1. A Ciência como tradição cultural

a "ciência" ortodoxa é uma instituição entre


muitas, e não o único repositório de informação
válida. As pessoas podem consultá-lo; podem
aceitá-lo e utilizar sugestões científicas - mas não
sem que antes tenham sido consideradas as
alternativas locais e muito menos ainda como
algo que se espera já.1

À margem da Filosofia, muitas pessoas, dentre elas, professores, cientistas

e historiadores, crêem que o conhecimento científico é verdadeiro por

comprovação metodológica. Este equívoco apóia-se na falsa suposição de que os

dados científicos, ou seja, os resultados das observações e dos experimentos

geram uma base verdadeira, suficiente e inequívoca para escolhas sem

ambigüidade entre hipóteses divergentes. A não validade dessa suposição

ingênua é um dos pontos de consenso entre os modernos filósofos da Ciência.2

Ainda no século XVIII, David Hume abalou de forma irreparável a certeza

do conhecimento científico ao analisar o problema da indução3. Popper - um dos

mais importantes filósofos da Ciência, reconhecido por desenvolver uma nova

lógica para a investigação científica, de fundamental importância histórica por

permitir uma "solução" para o problema de Hume - mostra que a Ciência não

1
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 39.
2
Cf. Larry LAUDAN e outros, mudança científica, p. 20.
3
Hume, ao questionar o uso do método indutivo na ciência, queria dizer que podemos argumentar sobre a
probabilidade de que algo venha a suceder novamente no futuro como vinha acontecendo no passado, porém,
não podemos provar logicamente, sem apelo direto à experiência, que essa forma de proceder seja válida.
Com essa crítica, Hume criou dificuldades para o pensamento racional do século XVIII instaurando o
ceticismo, isto é, colocando em dúvida as relações de causalidade, bases do saber científico.
A ciência como tradição cultural 28

corresponde a uma verdade final e absoluta, mas antes a um conjunto de

conhecimentos sempre provisórios. Para ele o saber científico

não é, precisamente, um saber seguro. É revisável. Baseia-se em


conjecturas comprováveis; na melhor das hipóteses, em conjecturas
muito rigorosamente comprováveis, mas, em qualquer caso, sempre só
em conjecturas. É sempre um saber hipotético, um saber conjectural.4

Diversos modernos filósofos da Ciência abordaram o problema de pontos

de vista diferentes e construíram sofisticados sistemas lógicos ou sociológicos

para tentar recuperar a supremacia racional do saber científico. Uma solução

bastante polêmica adotada por Feyerabend, que é o objeto de estudo dessa

seção, de certo modo vai na contra-mão desta tendência consiste em abrir mão

da superioridade científica frente às outras formas de resolução de problemas

tradicionalmente estabelecidas. Neste sentido, a Ciência ortodoxa é considerada

por ele como uma instituição do saber entre muitas, e não como a única, ou a

mais importante fonte de conhecimentos válidos na solução de problemas da vida

humana e na investigação ou explicação dos fenômenos da natureza.

Esta concepção está de acordo com a visão de que as teorias científicas

não são frutos da natureza, mas sim construções humanas, ou seja, uma teoria

científica não pode ser colhida diretamente de dados observacionais ou

experimentais. Em seu conjunto, as teorias constituiriam a Ciência que deveria

ser considerada apenas como uma dentre muitas tradições culturais. Não

existiriam razões objetivas e absolutas para preferir a ciência e o racionalismo

4
Karl POPPER, Tolerancia y responsabilidad intelectual, p. 151.
A ciência como tradição cultural 29

ocidental a outras tradições humanas, pois mesmo para os outros modernos

filósofos da Ciência,

não possuímos um quadro geral bem confirmado de como a Ciência


funciona, nem uma teoria da Ciência que mereça assentimento geral.
Tivemos, certa vez, uma posição filosófica bem desenvolvida e
historicamente influente, a saber, o positivismo ou empirismo lógico,
que agora se encontra efetivamente refutada.5

Feyerabend critica também a idéia do conhecimento científico ser obtido

independentemente de vontades pessoais e circunstâncias culturais, e em seu

lugar, propõe que

a maneira como os problemas científicos são abordados e resolvidos


depende das circunstâncias em que surgem, os meios (formais,
experimentais, ideológicos) disponíveis na altura e os desejos
daqueles que com eles trabalham. Não existem condições duradouras
que limitem a investigação científica. 6

A concepção feyerabendiana da Ciência como uma tradição cultural não

difere da prática científica como ela é hoje exercida nas instituições de pesquisa e

Ensino de Ciências. Sua compreensão faz notar a Ciência livre de influências

externas como a de uma lógica soberana, de uma verdade absoluta ou da

racionalidade suprema; valores estes mutáveis no decorrer da história e de

significação diversa em diferentes culturas. Com isso, a Ciência é "posta em seu

lugar como uma forma interessante, mas de modo algum exclusiva de

5
Larry LAUDAN e outros, mudança científica, p. 7.
6
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 354.
A ciência como tradição cultural 30

conhecimento, possuidora de muitas vantagens, mas também de muitos

inconvenientes".7

A existência de possíveis "efeitos colaterais" da apropriação indevida do

progresso científico, ou melhor, os malefícios de sua utilização para o

fortalecimento da imposição ideológica/cultural/comercial/tecnológica pelos

detentores da produção científica, são inegáveis.8 Afetaram desde esferas mais

psicológicas, com a destruição dos valores espirituais que davam significado às

vidas humanas até esferas antropológicas, com irreparáveis prejuízos materiais.

Por exemplo, o desprezo do saber das tradições milenares de tribos e povos

"primitivos" cuja interferência, em nome da Ciência, da tecnologia e do progresso,

levaram quase ao extermínio. No entanto, não podemos ignorar a anterior

existência de povos "primitivos" desprovidos de um aparato equivalente à Ciência,

mas que também provocaram em outros povos muitas mazelas. Assim, estamos

ressaltando não a Ciência em si como a vilã nos conflitos entre os povos, nações

e culturas, mas o uso que se faz dela como elemento de validação da "verdade" a

ser difundida. Quanto ao trabalho de extensão da Ciência, sem levar em conta as

tradições culturais dos "selvagens", apoiado nos estudos de Lévi-Strauss,

Feyerabend faz notar sobre as tribos "primitivas"

sabiam como fazer face às catástrofes naturais como pragas,


inundações, secas - possuíam um "sistema imunológico" que lhes
permitia superar uma enorme variedade de ameaças do organismo
social. Em épocas normais, exploravam o seu meio envolvente sem o

7
Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 214.
8
Lembramos aqui que a ciência não é em si só a causa de mazelas sociais, mas fornece instrumentos que
permitem ampliar vertiginosamente o poder de destruição humano, como por exemplo, no caso da Segunda
Guerra e na Guerra Fria que a sucedeu.
A ciência como tradição cultural 31

danificar, aplicando os conhecimentos de propriedades de plantas,


mudanças climáticas e interações ecológicas que estamos a recuperar
muito lentamente. Estes conhecimentos foram gravemente afetados e
parcialmente destruídos, primeiro pelos gangsters do colonialismo e
depois pelos humanitários do auxílio para o desenvolvimento. A
conseqüente incapacidade de grande parte do chamado Terceiro
Mundo é o resultado da, não uma razão para a, interferência do
exterior. 9

Por outro lado, a concepção da Ciência como tradição cultural e o

conseqüente respeito às outras tradições podem trazer grandes contribuições

com as quais não só os cientistas mas toda a humanidade podem se beneficiar.

Como exemplo mencionamos os contributos de tradições resistentes ao efeitos

colaterais da racionalização científica ortodoxa como a arte do período paleolítico

e a eficácia de sistemas médicos não ocidentais.

Apesar do crescente reconhecimento da Ciência se beneficiar da interação

com outras tradições culturais, Feyerabend foi, por esse mesmo motivo, tachado

de "o pior inimigo da Ciência" (Nature, 1987). Por quê?

Porque eu dizia que abordagens não ligadas a instituições científicas


podiam ter algum valor. Eram tais abordagens heresias profanas? Os
cientistas por certo não pensaram sempre deste modo. Darwin prestou
atenção nos criadores de animais e naturalistas; Descartes, Newton,
Thomson, Joule, Whewell deram razões religiosas para algumas de
suas suposições mais básicas; profissionais do campo do ambiente e
desenvolvimento aprenderam e ainda aprendem de populações locais,
enquanto os antropólogos descobrem que a abordagem objetiva que

9
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 346.
A ciência como tradição cultural 32

eles seguiam como óbvia lhes fornecia caricaturas - e assim por


diante.10

Ao considerar a Ciência como uma tradição cultural Feyerabend não está

dando às outras tradições o caráter de "científicas" ou "racionais" mas, ao

contrário, está mostrando a Ciência, como qualquer outra tradição, dentro de um

amplo contexto histórico e cultural11. A Ciência consiste em um modo diferente de

conhecer o universo e os fenômenos naturais, essa é a essência de seu caráter

de tradição cultural.

Enfatizamos a idéia de Ciência como uma tradição cultural corresponder a

uma descrição da prática científica como ela é hoje exercida nos grandes centros

de pesquisa; as Ciências, como a Física, a Química ou a Biologia, não estão

livres do compromisso com a descrição dos fenômenos naturais, ou da utilização

de procedimentos metodológicos, ou da estruturação ou modelagem matemática

e, nem tão pouco, estão dispensadas da crítica conceitual.

Difundir a concepção de Ciência como uma tradição cultural, dentre as

outras tradições já intimamente incorporadas na vida das pessoas, pode facilitar o

rompimento do atual distanciamento e descomprometimento da maior parte da

sociedade frente às questões da Ciência.

A sociedade contemporânea parece simplificar e conviver tranqüilamente

com grandes problemas e conflitos da vida e do mundo contemporâneos,

inclusive aqueles advindos de conhecimentos mais elaborados, como a Ciência.

Falamos da Ciência do "Outro" e quase nunca da "Nossa" Ciência; cozinhamos

com o microondas, submetemo-nos a exames por meio de tomografias

10
Paul K. FEYERABEND, Matando o tempo, p. 154.
A ciência como tradição cultural 33

computadorizadas ou ressonância nuclear magnética, e nos comunicamos por

meio do microcomputador, mas estamos cada vez mais afastados dos

fundamentos científicos, da construção desse conhecimento, das possíveis

implicações éticas de sua utilização, de sua real serventia, da nossa participação,

envolvimento e responsabilidade com essa tradição humana. Assim,

paradoxalmente não "digerimos" o microondas, não "examinamos" o tomógrafo

nem nos "comunicamos" com o computador. Aceitamos, muitas vezes, esses

produtos tecnológicos como "milagres" que só aos "santos" é permitido

compreender.12

Faz-se necessário, ao conceber a Física como uma tradição cultural,

incorporar a essa maneira de olhar o mundo suas reais dimensões hoje ausentes

das escolas, das revistas de divulgação, dos livros, dos jornais, da mídia, da vida

das pessoas... Atuar contra uma mistificação do poder da "Ciência do Outro", é

difundir exemplos da relação entre a Ciência e o poder; é disseminar a idéia de

que apesar de estarmos longe do objetivo de "aliviar a canseira da existência

humana"13 a tradição científica, assim como outras tradições sobreviventes no

mundo contemporâneo, também contribuiu para um "potencial bem estar" da

humanidade. A Ciência é uma instituição social. Ela se relaciona com muitas

outras instituições sociais. A responsabilidade social do cientista deve ser

problematizada em um complexo contexto sócio-econômico-cultural bastante

amplo.

11
Esse é um dos principais equívocos das críticas à concepção de ciência como tradição defendida por
Feyerabend. Esse e outros equívocos serão discutidos na seção final deste capítulo.
12
Voltaremos a esta questão ao discutir a função dos peritos e especialistas na sociedade contemporânea, na
segunda seção do próximo capítulo.
13
Trecho de uma fala de Galileu na peça "Vida de Galileu", de Bertolt Brecht, pg. 165.
A ciência como tradição cultural 34

Enfim, considerar a Ciência como uma tradição cultural entre muitas

permite enxergar o conhecimento e a produção científica como frutos de um

processo dinâmico da construção humana; significa compreender a existência de

rupturas conceituais e de mudanças na prática científica; implica em reconhecer a

presença de crenças, de mitos e princípios "inquestionáveis", muitas vezes

implícitos, nos conceitos fundamentais da formulação das teorias científicas;

impõe a presença de dúvidas, incertezas, erros e outros atributos humanos na

prática científica; corresponde a apropriar-se do conhecimento científico, não

como algo absoluto e inquestionável dado pela natureza, mas como uma

elaboração proveniente dos físicos, químicos, biólogos..., que são humanos antes

de serem cientistas.
2. Propaganda, contra-indução e mais

Os fatos, operações e resultados que constituem


as ciências não têm uma estrutura comum; não
há elementos que se verifiquem em todas as
investigações e só nelas.1

Na seção anterior, apresentamos a natureza cultural da Ciência

principalmente por uma perspectiva externalista, ou seja, analisamos as relações

da Ciência com outras instituições do saber procurando mostrar a inexistência de

razões objetivas e absolutas que justifiquem uma superioridade do saber científico

sobre as outras maneiras de solucionar problemas e de dar respostas às

inquietudes da mente humana.

Passamos, agora, a analisar a prática científica de um ponto de vista mais

internalista, isto é, nesta seção, pretendemos problematizar a não existência de

uma unidade definida rigidamente como Ciência, seja no decorrer da história, ou

atualmente, entre os diversos grupos de pesquisa científica. Buscamos explicitar

a existência de procedimentos metodológicos e ideológicos conflitantes, em

certos momentos, indispensáveis para o processo da Ciência.

Em seu mais famoso livro, Contra o Método, Feyerabend apresenta como

tese principal uma crítica à existência de uma estrutura comum para toda a

prática cientifica constituída seja por fatos históricos, operações metodológicas ou

resultados experimentais. As investigações científicas, segundo essa sua tese,

não possuem um conjunto de elementos capazes de as definirem

inequivocamente. E como principais conseqüências:


Propaganda, contra-indução e mais 36

os êxitos científicos não podem ser explicados de maneira simples...


[e] ...o sucesso da "ciência" não pode ser usado como argumento para
a abordagem de problemas ainda por resolver de acordo com um
modelo-padrão. Isso só seria possível se houvessem modos de
proceder que pudéssemos extrair das situações particulares da
investigação e cuja presença fosse de molde a garantir o sucesso.2

Como já mencionamos, a ilusão da correspondência entre o saber

científico e uma verdade absoluta deve-se à crença, de muitos, na existência do

que poderíamos identificar como "o método cientifico". As duas principais regras

metodológicas de "o método científico", em uma versão contemporânea, que se

mantêm ligadas às suas raízes no empirismo e no indutivismo são:

(+1) só aceitar hipóteses que se ajustem a teorias confirmadas ou


corroboradas, e;
(+2) eliminar hipóteses que não se ajustem a fatos bem estabelecidos. 3

Para mostrar os limites da utilização de regras metodológicas desta

natureza e verificar a possibilidade de fazer avançar a Ciência agindo em

oposição ao "método científico", Feyerabend, no capítulo 2 de Contra o Método, a

partir do estudo de acontecimentos históricos, mas também de uma análise

abstrata da relação entre idéia e ação, propõe, a título de exemplo, as contra-

regras:

(-1) introduzir hipóteses que conflitem com teorias confirmadas ou


corroboradas;

1
Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 11.
2
Cf. Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 12.
3
Cf. Anna C. K. P. REGNER, Feyerabend e o pluralismo metodológico, p. 235.
Propaganda, contra-indução e mais 37

(-2) introduzir hipóteses que não se ajustem a fatos bem


estabelecidos.4

Nesse estudo, Feyerabend fundamenta as idéias na História da Ciência

analisando o modo como Galileu divulga a doutrina copernicana e a maneira

como cria uma nova Física de contribuição fundamental para o avanço do

conhecimento científico. De sua perspectiva, Galileu seguiu por um caminho

contrário "ao método científico" estabelecido em sua época, apoiando seu fazer

científico em regras de natureza contra-indutiva.

As contra-regras são apenas, e tão somente, exemplos de limites

metodológicos da prática científica, ou seja, não podem ser simplesmente

incorporadas ao "método científico". A utilização de regras contra-indutivas

associadas às regras indutivas não garante o avanço da Ciência e elas também

não constituem um padrão metodológico absoluto.

A utilização de propaganda na conquista de adeptos às novas teorias

científicas é um outro elemento analisado por Feyerabend. A propaganda depõe

contra a noção de uma ciência absoluta e racionalmente construída.

Novas teorias conquistam seguidores e passam a fazer parte da tradição

científica não por serem testadas, ou testáveis, ou apoiadas de modo melhor que

as antigas rivais, mas, sobretudo pela propaganda de seus defensores.

A propaganda presente na proposição de uma teoria aspirante à tradição

científica não deve ser concebida (em quase todos os casos) em seus aspectos

4
Anna C. K. P. REGNER, Feyerabend e o pluralismo metodológico, p. 237.
Propaganda, contra-indução e mais 38

nocivos, como em algumas maquiavélicas estratégias de merchandising. Dessa

forma os escritos de Galileu constituem

uma obra que com freqüência esteve associada à propaganda - e que


por certo foi propaganda. Mas a propaganda deste tipo não é um
aspecto marginal acompanhando meios supostamente mais
substanciais de defesa, e devendo talvez ser evitada por "cientistas
profissionais honestos". Nas circunstâncias que estamos a considerar,
a propaganda faz parte da essência das coisas.5

Além de pecadores por contrariarem "o método científico" e de oportunistas

por utilizarem propagandas para convencer os oponentes de suas idéais, os

cientistas, segundo Feyerabend, não são neutros culturalmente, ou seja, não

podem se libertar das crenças não científicas a que são submetidos durante sua

formação.

Segundo Laudan, no que se refere às influências culturais sobre as

escolhas científicas, também há consenso entre os modernos filósofos da Ciência

ao admitirem que

fatores metafísicos, teológicos e outros fatores não científicos


desempenham um importante papel na avaliação de teorias científicas.
A avaliação é mais do que uma simples questão de relacionar a teoria
com a evidência.6

Além de sugerirmos conceber a Ciência como uma tradição cultural dentre

outras, acrescentamos agora a idéia de não existir uma unidade, uma só Ciência,

5
Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 159.
Propaganda, contra-indução e mais 39

uma só Física ou uma só Química, que poderíamos chamar rigorosamente de "a

tradição científica", mas diversos grupos de pesquisa formando distintas tradições

científicas.

Cada grupo atua em pesquisas envolvendo o conhecimento científico

enraizado em seu fazer por elementos culturais que influenciam suas escolhas

entre teorias ou procedimentos metodológicos disponíveis. Dentre estes

elementos destacamos: a compatibilidade com crenças metafísicas culturalmente

compartilhadas; a exposição às propagandas e promessas de novas teorias ou

procedimentos experimentais; e mesmo o desejo individual de cada integrante do

grupo de ser reconhecido por seus pares em um sempre pequeno-grande feito, e

às vezes o de, violando inconscientemente "o método científico", desenvolver

novas teorias ou procedimentos experimentais, para alimentar novos grupos de

pesquisa... e assim, manter a tradição.

O reconhecimento desses elementos na prática científica leva a uma nova

e frutífera maneira de olhar para o conhecimento científico, suas teorias e

prescrições metodológicas: a Ciência como Tradição Cultural.

6
Larry LAUDAN e outros, mudança científica, p. 20.
3. Anarquismo epistemológico

A unanimidade da opinião pode servir a uma


igreja, às vítimas aterradas ou ávidas de um
(antigo ou moderno) mito, ou os seguidores
fracos e voluntários de um tirano. A variedade de
opiniões é necessária ao conhecimento objetivo.
E um método que encoraja a variedade é também
o único método compatível com uma perspectiva
de humanidade.1

A concepção de uma prática científica relativamente livre de regras lógicas

absolutas ou princípios epistemológicos rígidos não é algo novo, está presente

em escritos de diversos cientistas, dentre eles Boltzmann, Mach, Duhem,

Einstein, e Bohr; e também em filósofos como Mill e Wittgenstein.

Einstein, por exemplo, critica os esforços dos filósofos "racionais" e

"sistemáticos" apresentando o fazer científico independente de regras fixas ou

metodologias rígidas. Ele nos faz notar que o epistemólogo, ao

procurar um sistema claro, abriu o seu caminho nesse tal sistema, e já


se sente inclinado a interpretar o conteúdo ideológico da ciência na
acepção do seu sistema. O cientista, porém, não pode dar-se ao luxo
de levar tão longe a sua luta pela sistematicidade epistemológica...: as
condições exteriores que lhe são impostas pelos fatos da experiência
não lhe permitem deixar-se limitar na construção do universo
conceitual aderindo a um sistema epistemológico. Deve, por

1
Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 50.
Anarquismo epistemológico 41

conseguinte, apresentar-se ao epistemólogo sistemático como um tipo


de oportunista sem o menor escrúpulo.2

Feyerabend, influenciado principalmente pelas idéias de Mach, pelo

estudo de Mill, e pelo convívio com Thirring e Ehrenhaft, adotou, dentre os

modernos filósofos da Ciência, uma postura autodenominada de anarquismo

epistemológico.

Em sua concepção, a função da epistemologia da Ciência não é a de

fornecer um sistema único sob o qual o cientista deve guiar rigidamente ou limitar

sua prática; nenhum modelo epistemológico pode produzir padrões e elementos

estruturais úteis a todas as atividades científicas; quando confrontados com um

problema concreto de investigação, os cientistas podem se servir de diferentes

referenciais filosóficos, muitas vezes conflitantes, mas sempre, consideram, acima

destes modelos, as peculiaridades da situação em que estão atuando. Assim, o

melhor que um filósofo da Ciência, de longe, pode fazer para os cientistas é

enumerar métodos práticos, dar exemplos históricos, apresentar casos


estudados que contenham processos diversos, demonstrar a inerente
complexidade da investigação e prepará-los, deste modo, para o
atoleiro em que estão prestes a entrar. Ao ouvirem a nossa história, os
cientistas ficarão sensibilizados para a riqueza do processo histórico
que querem transformar, sentir-se-ão impelidos a pôr de lado
infantilidades como regras lógicas e princípios epistemológicos e
começar a pensar em formas mais complexas - e mais não podemos
fazer devido à natureza do material.3

2
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 223.
3
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 328.
Anarquismo epistemológico 42

É importante salientar que o anarquismo epistemológico de Feyerabend

difere, fundamentalmente, tanto do ceticismo como do anarquismo político (ou

religioso). Como indicado por Regner, "anarquismo"

significa, antes, oposição a um princípio único, absoluto, imutável de


ordem, do que oposição a toda e qualquer organização. Na sua
tradução metodológica, não significa, portanto, ser contra todo e
qualquer procedimento metodológico, mas contra a instituição de um
conjunto único, fixo, restrito de regras que se pretenda universalmente
válido, para toda e qualquer situação - ou seja, contra algo que se
pretenda erigir como "o" método, como "a" característica distintiva,
demarcadora do que seja "ciência".4

O anarquismo epistemológico, na forma como o estamos descrevendo, não

pretende ser apenas uma prescrição metodológica. Ele, ao contrário, é

efetivamente uma descrição de como historicamente o conhecimento da Ciência

evoluiu.5

Para justificar como a Ciência pode avançar sem um plano racionalmente

organizado, Feyerabend compara sua descrição epistemológica do progresso do

conhecimento científico com a teoria de evolução de Darwin. Em suas palavras:

Antes de Darwin, era costume considerar os organismos como objetos


de criação divina e, por conseguinte, soluções perfeitas para o
problema da sobrevivência. Darwin chamou a atenção para inúmeros
"erros": a vida não é uma realização cuidadosamente planejada e
meticulosamente efetuada de objetivos claros e definidos; não tem
razão de ser, é devastadora, produz uma imensa variedade de formas e

4
Anna C. K. P. REGNER, Feyerabend e o pluralismo metodológico, p. 233.
5
Esta idéia é defendida por Feyerabend em Consolando o especialista.
Anarquismo epistemológico 43

deixa a cargo de uma determinada fase que alcançou (e das


envolventes naturais existentes na altura) a definição dos insucessos. 6

Partindo da influência Darwiniana, Feyerabend tece uma analogia com o processo

de evolução das Ciências ilustrando sua concepção de anarquismo

epistemológico. Segundo sua leitura, esta concepção está implícita nas idéias de

Mach, Boltzmann e outros ao demonstrarem que

o desenvolvimento do conhecimento não é um processo bem


planejado e que decorre normalmente; também ele se apresenta
devastador e cheio de erros; também ele precisa de muitas idéias e
procedimentos para se manter em curso. Leis, teorias, padrões básicos
de pensamento, fatos, inclusive os mais elementares princípios
lógicos, são resultados transitórios, não propriedades definidoras do
processo. Deste modo, os cientistas não são escravos obedientes que
ao entrarem no Templo da Ciência procuram ansiosamente adaptar-se
às suas regras; não perguntam "o que é a ciência?" ou "o que é o
conhecimento?" ou "como procede um bom cientista?" adaptando
depois a sua investigação às limitações contidas na resposta; seguem
em frente e redefinem constantemente a ciência (e o conhecimento e a
lógica) através do seu trabalho.7

O anarquismo epistemológico não implica o abandono de toda e qualquer

forma de pensar a prática científica, e, também não proíbe os filósofos de

refletirem sobre as atividades dos cientistas, produzindo conceitos que os

permitam compreender e justificar. Mas significa antes que o epistemólogo, ao

selecionar os "fatos históricos" ou "componentes lógicos" de seu modelo, deve

6
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 221.
7
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 221.
Anarquismo epistemológico 44

sempre referir suas conclusões aos exemplos analisados, limitando, desta forma,

seus conceitos às situações as quais eles se aplicam.

A noção de anarquismo epistemológico combate a imposição de princípios

absolutos e regras lógicas que se pretendam universalmente válidos, ou, pior, o

que se possa fazer inadvertidamente em nome deles.

Ao reconhecer a existência de limites em sua metodologia de pesquisa o

cientista (e o filósofo da Ciência que tenta compreender os seus procedimentos)

estará mais atento a problemas éticos, estéticos, políticos, gnosiológicos, em

meio a tantos outros, que seu trabalho pode gerar se considerado por um ponto

de vista dogmático. Se estiver consciente deste aspecto da natureza de sua

prática, o cientista terá maior oportunidade (o que não implica necessariamente

que o fará) de explorar seus pressupostos, questionando as balizas de seu

exercício, com o intuito de contribuir para seu alargamento e qualificação.

Enfim, a concepção de anarquismo epistemológico, aqui apresentada,

constitui uma descrição mais humana da produção do conhecimento científico, ao

considerar uma pluralidade de métodos e o convívio de teorias contrastantes na

formação e na prática dos cientistas e professores de Ciências. Um cientista

interessado em ampliar a compreensão de seus resultados experimentais ou

proposições teóricas adotará uma perspectiva mais pluralista, comparará teorias

com outras teorias e valorizará os momentos de conflito entre seus elementos de

trabalho como oportunidades de aprimorar seu conhecimento.


4. Incomensurabilidade e interpretações naturais

As descobertas importantes, não são como a


descoberta da América, em que a natureza geral
do objeto descoberto já é conhecido. Ao
contrário, elas são como reconhecer que se
estava sonhando.1

Uma questão muito debatida pelos modernos filósofos da Ciência é a da

natureza da mudança de constituição do conhecimento científico. A busca por

tentar entender como ocorre a mudança científica entre teorias sucessivas e a

forma como são estabelecidos vínculos entre seus princípios têm levado à

formulação de numerosas idéias sobre o significado do conhecimento científico.

As noções de incomensurabilidade e interpretação natural, presentes na

epistemologia de Feyerabend, fazem parte desse esforço por tentar descrever

como se relacionam entre si os conceitos de teorias sucessivas ou concorrentes

e, como esses conceitos sucessivos ou concorrentes são analisados nas

respectivas metodologias de trabalho adotadas por diferentes defensores ou

articuladores de diferentes teorias.

A incomensurabilidade deve-se à suposição da existência de diferentes

padrões conceituais e metodológicos entre teorias distintas. Um conceito

claramente definido numa teoria, quando analisado em uma teoria rival ou

sucessiva, freqüentemente não pode ser redefinido sem uma drástica mudança

em seu significado conceitual.

1
Paul K. FEYERABEND, Matando o tempo, p. 100.
Incomensurabilidade e interpretações naturais 46

Noções incomensuráveis são aquelas que, apesar de referirem-se a um

mesmo fenômeno, serem expressas, muitas vezes, por uma mesma palavra e

apresentarem expressões matemáticas equivalentes, possuem significados

profundamente diferentes na passagem da formulação de uma teoria à outra. Por

exemplo, na teoria da relatividade, Einstein introduziu a noção de espaço-tempo

com significado distinto das noções de espaço e tempo da mecânica newtoniana;

Galileu aprendeu a ver o pêndulo onde Aristóteles via uma queda forçada para o

lugar natural; e, Lavoisier passou a enxergar o oxigênio onde antes se via ar

deflogistizado.

Feyerabend, ao apresentar a noção de incomensurabilidade, desenvolve

três teses centrais a seu favor. A existência de:

(1) esquemas de pensamento incomensuráveis entre si;


(2) estágios incomensuráveis no desenvolvimento da percepção no
indivíduo (reportando-se a Piaget); e,
(3) princípios ontológicos condicionantes das ideologias subjacentes a
culturas diversas que impedem, tornam sem sentido, determinados
sistemas conceituais e que agem à base das cosmovisões encerradas
nas nossas teorias científicas.2

Quanto à existência de estruturas de pensamentos incomensuráveis entre

si, podemos considerar a diferença inconciliável entre as formas de pensamento

ocidental e oriental; e, um outro exemplo bem ilustrativo e muito importante em

nosso mundo contemporâneo é a indeterminação da tradução, ou seja, a idéia de

que não é possível traduzir-se, termo a termo, os elementos de uma linguagem a

outra. Problemas de indeterminação surgem claramente nas tentativas de


Incomensurabilidade e interpretações naturais 47

tradução entre termos próprios de uma língua à outra, por exemplo, do Português

ao Japonês ou Inglês e vice-versa.

O escritor norte-americano contemporâneo Paul Auster sempre utiliza, em

seus livros, jogos de palavras que servem para exemplificar a característica

incomensurável da tradução entre línguas. A seguinte citação de um trecho de um

dos livros deste autor, juntamente com uma nota de rodapé do tradutor, ilustra

bem a indeterminação contida na estrutura da linguagem:

(...) ao escrever a palavra "escolar", ele se lembra de si mesmo aos


oito ou nove anos, e a súbita sensação de poder que experimentou em
si mesmo quando descobriu que era capaz de brincar com as palavras
dessa forma - como se houvesse acidentalmente descoberto um
caminho secreto para a verdade: a verdade absoluta, universal e
inabalável que repousa escondida no centro do mundo.3 Em seu
entusiasmo de estudante, é claro, ele não havia considerado a
existência de outras línguas além do inglês, a grande Babel de língua
zumbindo e se entre chocando no mundo externo à sua vida escolar. E
como pode a verdade absoluta e inabalável mudar de língua para
língua?4

Feyerabend questionou a proposição de que as teorias sucessivas não

passam por variações em seus significados lingüísticos. Neste sentido, faz notar

que quando novas teorias surgem, as declarações da linguagem anterior se

alteram, ampliando o sentido conferido aos fatos. 5

2
Anna C. K. P. REGNER, Feyerabend e o pluralismo metodológico, p. 242.
3
"Aqui há mais um jogo de palavras do autor: 'the ... truth that lies hidden at the center of the world'. 'Lies'
pode significar tanto 'repousa' quanto 'mente' (do verbo mentir). Outra leitura da frase seria 'a verdade ... que
mente escondida no centro do mundo". cf. Nota do tradutor
4
Paul Auster, O inventor da solidão, p. 166.
Incomensurabilidade e interpretações naturais 48

Quanto à existência de estágios incomensuráveis no desenvolvimento da

percepção, a partir das idéias de Piaget sobre o desenvolvimento infantil,

Feyerabend tece uma analogia entre o processo de constituição da linguagem em

uma criança e o processo de desenvolvimento de uma nova teoria por um

cientista:

Tal como uma criança que começa a servir-se das palavras antes de as
ter compreendido, que soma cada vez mais fragmentos lingüísticos
por compreender na sua atividade lúdica, só descobre o princípio de
atribuição de sentido depois de agir desse modo durante muito tempo -
sendo a atividade de jogo um pressuposto necessário do florescer
posterior do sentido -, assim também o inventor de uma nova visão do
mundo (e o filósofo da ciência que tenta compreender o seu
procedimento) tem que ser capaz de dizer coisas sem sentido até que o
sem sentido criado por ele e pelos seus amigos atinja as dimensões
suficientes para atribuir sentido a todas as partes da nova concepção.6

No que diz respeito à existência de princípios ontológicos condicionantes

das ideologias subjacentes a culturas diversas que impedem determinados

sistemas conceituais e sua impregnação da língua, a única maneira possível para

desvelar seus significados é vivenciando-os. Neste sentido, Feyerabend propõe

que o cientista, frente a uma nova visão dos fenômenos com os quais está

habituado a descrever por sua teoria (língua), proceda:

como um antropólogo ao estudar a cosmologia de uma tribo: aprende


sua linguagem e informa-se dos seus hábitos sociais; investiga as
relações desses com outras atividades, mesmo as que pareçam

5
Euclides A. MANCE, O Filosofar como Prática de Cidadania.
Incomensurabilidade e interpretações naturais 49

irrelevantes; procura identificar as idéias-chave e, então, entendê-las,


interiorizando-as, sem buscar "traduções" prematuras; completando
seu estudo com o conhecimento da sociedade nativa e de seu próprio
desenvolvimento pessoal, pode estabelecer comparações entre, por
exemplo, o modo de pensar europeu e o nativo, e decidir acerca da
possibilidade ou não de reproduzi-lo na linguagem ocidental7

Tomar consciência da existência de conceitos incomensuráveis entre

teorias distintas sobre um mesmo fenômeno natural possibilita um constante

questionamento da validade de nossas percepções. A partir dela, notamos que os

proponentes de uma teoria científica vêm o mundo com óculos conceituais

diferentes e somos levados a considerar nossa percepção aparentemente natural

como uma dentre outras interpretações possíveis para o fenômeno analisado.

Esses óculos conceituais constituem a segunda noção abordada nessa seção, as

chamadas interpretações naturais.

Interpretações naturais podem ser entendidas como "idéias tão

intimamente associadas à observação que se torna necessário um esforço

especial para nos darmos conta da sua existência e para determinarmos o seu

conteúdo".8 Feyerabend identifica a presença de conceitos similares à sua noção

de interpretação natural em importantes filósofos e na prática dos cientistas; em

Bacon, como os preconceitos ou ídolos que devem ser removidos antes do início

de uma análise séria do fenômeno; em Kant, como as pressuposições

necessárias (a priori); em Galileu, surgem de maneira diferente, não consistindo,

de forma absoluta, nem em um obstáculo, nem em apoio à percepção do

6
Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 256.
7
Anna C. K. P. REGNER, Feyerabend e o pluralismo metodológico, p. 242.
8
Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 79.
Incomensurabilidade e interpretações naturais 50

fenômeno observado. Galileu não realiza juízos globais sobre a observação, mas

ao contrário, "ele insiste numa discussão crítica a fim de decidir quais as

interpretações naturais podem ser conservadas e quais devem ser substituídas".9

Segundo o modo de proceder de Galileu, não devemos acreditar

cegamente em todas as evidências dos sentidos, - ou fornecidas por outros

instrumentos experimentais que são prolongações dos sentidos,

acrescentaríamos - por outro lado, não podemos nunca nos livrar de todas as

interpretações naturais pois,

se eliminarmos todas as interpretações naturais, eliminaremos também


a capacidade de pensar e perceber... é evidente que uma pessoa que
enfrentasse um campo de percepções sem uma única interpretação
natural ao seu dispor ficaria completamente desorientada e nem sequer
poderia começar a tratar de ciência.10

Um exemplo bastante interessante utilizado por Galileu para denunciar a

contaminação da evidência empírica é a falácia do gato, a partir da qual

se pode descobrir quão facilmente qualquer um pode ser enganado


pela simples aparência, ou digamos que pelas impressões dos sentidos.
Esse acontecimento é a aparência para aqueles que se deslocam ao
longo de uma rua durante a noite e que são seguidos pela Lua, com
passos iguais aos seus, quando a vêem cintilar ao longo dos beirais
dos telhados. Aí a Lua surge-lhes do mesmo modo que um gato que
realmente corresse por cima das telhas e os arrastasse atrás de si; uma

9
Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 84.
10
Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 87.
Incomensurabilidade e interpretações naturais 51

aparência que, se a razão não intervier, iludirá de modo demasiado


óbvio os nossos sentidos.11

Diferentes interpretações naturais são como o olhar com diferentes óculos

ou de diferentes perspectivas para um mesmo fenômeno. Toda e qualquer

interpretação natural possui em sua natureza íntima a característica básica de nos

conectar de forma sempre parcial ao fenômeno observado. Em outras palavras,

não há nenhuma forma de se observar fenômenos livre de interpretações; nada

permite espelhar totalmente o fenômeno na mente de uma pessoa, mas somente

representá-lo ou conceituá-lo parcialmente.

As descrições fenomenológicas não são apreendidas diretamente da

relação com a observação, mas, ao invés disso, dependem, principalmente, da

tradição de interpretadores a que pertencemos. Assim, nossa maneira de olhar

não é somente nossa maneira de olhar, mas também deve-se ao caldo cultural no

qual estamos imersos, ou seja, a existência de interpretações naturais justifica-se

dada a "contaminação" histórica e fisiológica da evidência.12

Toda teoria é, portanto, limitada por interpretações naturais em sua relação

com os fenômenos. E toda teoria tem um significado mais amplo contido na

tradição cultural sobre a qual foi formulada. Assim, os membros de uma tradição,

como os químicos analíticos, por exemplo, possuem finalidades ou pré-

compreensões que definem as interpretações naturais surgidas em seu fazer

científico levando-os a escolher certas peculiaridades dos fenômenos

considerados.

11
Dialoque; p.126. Citado em Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 81.
12
Cf. Anna C. K. P. REGNER, Feyerabend e o pluralismo metodológico, p. 237.
Incomensurabilidade e interpretações naturais 52

Existem laboratórios farmacológicos realizando pesquisas em plantas com

o intuito de isolar substâncias ativas e formalizar, sob os cânones da Ciência

contemporânea, os conhecimentos milenares de tribos indígenas sobre

determinadas ervas utilizadas em rituais de cura. Remédios são produzidos e

comercializados originando-se, assim, de conhecimentos milenares elaborados e

transmitidos sob outra interpretação natural. Enquanto os remédios se propõem a

reagir quimicamente alterando os processos biológicos e proporcionando a defesa

do organismo contra bactérias e vírus os seres elementais contidos nos chás

indígenas, durante o ritual de cura, intentam expulsar os maus espíritos

causadores das doenças. Trata-se de duas tradições diferentes, a farmacológica

e a indígena, utilizando as mesmas substâncias, e, embora se expressem de

formas distintas, ambas permitem operar de maneira equivalente ao solucionar o

problema a que se propõem: curar determinada doença.

A existência de conceitos incomensuráveis entre teorias sucessivas ou

concorrentes, a noção de interpretação natural e a idéia de que as evidências

empíricas são aprendidas dentro de uma tradição cultural completam nossa

concepção de Física como uma tradição cultural dentre outras. Apesar de

existirem muitas interpretações naturais, de diversas tradições culturais, sobre os

mesmos fenômenos, e embora elas pareçam muito diferentes entre si, todas

podem, contudo, ser consideradas valiosas se proporcionarem uma intervenção

consciente sobre os próprios fenômenos alcançando os propósitos previstos pela

tradição em que foram elaboradas e são elementos importantes para o

aprendizado e desenvolvimento científico.


5. Proliferação de teorias

servir-se da ciência para denegrir e talvez mesmo


eliminar todas as alternativas, significa servir-se
de uma reputação bem merecida para manter um
dogmatismo contrário ao espírito daqueles que o
conquistaram.1

A última e uma da mais importantes noções da epistemologia de Paul

Feyerabend, consideradas neste trabalho, é a de proliferação de teorias. Ela

implica na constatação de que os cientistas desenvolvem e sustentam teorias

alternativas, mesmo quando estas conflitam com "fatos" ou "resultados

experimentais" amplamente confirmados e estabelecidos.

Feyerabend considera as idéias de John S. Mill, ao analisar a diversidade

de perspectivas da Ciência, destacando que para a proliferação de idéias Mill

indica quatro diferentes motivos:

Primeiro, porque uma pessoa pode ter razões para rejeitar uma
perspectiva e esta ser mesmo verdadeira; negá-lo é assumir a nossa
própria infalibilidade. Em segundo lugar, porque uma perspectiva
problemática pode conter e normalmente contém, uma parte de
verdade; e, como a opinião geral e predominante de qualquer assunto
muito raramente ou nunca é toda a verdade, só com o choque de
opiniões contrárias é que a restante verdade tem oportunidade de
intervir. Em terceiro lugar, um ponto de vista que é totalmente
verdadeiro, mas não contestado, será considerado como um
preconceito, com pouca compreensão ou sentimento em relação aos
seus motivos racionais. Em quarto, nem sequer se entenderá o seu

1
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 47.
Proliferação de teorias 54

sentido, e aceitá-lo será uma mera confissão formal, a menos que se


verifique um contraste com outras opiniões, e mostre em que consiste
o seu significado.2

Quanto à proposição de não existirem garantias das teorias atualmente

estabelecidas corresponderem a uma verdade definitiva, temos uma lição a

aprender com a história da Ciência. Nos referimos à postura dos físicos no final

do século XIX quando se admitia a investigação em Física ter chegado ao seu

fim. A aplicação bem sucedida das leis de Newton em diversos problemas do

universo mecânico mostrava o poder de validade da Física Clássica que parecia

incontestavelmente estabelecida. Um professor de Física de Max Planck chegou

a afirmar-lhe certa vez "A física acabou, meu jovem. É uma rua sem saída".3 E o

aconselhou a optar pela carreira de pianista. Como sabemos Planck entrou nesta

rua "sem saída" e abriu uma pequena passagem para uma cidade muito maior e

inexplorada - a Física Quântica. David Bohm relata que também Lord Kelvin,

um dos físicos de renome da época, expressou a opinião que o esboço


básico das teorias físicas estava muito bem estabelecido e que
restavam somente "duas pequenas nuvens" no horizonte, a saber, os
resultados negativos da experiência de Michelson-Morley e a falha da
lei de Rayleigh-Jeans em predizer a distribuição da energia radiante
num corpo negro. Deve-se admitir que Lord Kelvin soube escolher
bem suas "nuvens", uma vez que esses foram precisamente os dois
problemas que eventualmente produziram as mudanças
revolucionárias na estrutura conceitual da Física que ocorreram no

2
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 46.
3
Cf. Nick, HEBERT, A realidade quântica, p.47.
Proliferação de teorias 55

século vinte em conexão com a teoria da relatividade e a teoria


quântica.4

Muitas vezes corremos o risco de negar uma teoria alternativa e esta se

mostrar "verdadeira" mais tarde, como ocorreu com a proposta de Aristarco para o

movimento da Terra em torno do Sol que ficou esquecida por muitos num longo

período por contrariar as "evidências" dos sentidos fornecidas em conformidade

com a Física Aristotélico-Ptolomáica. Neste exemplo, as "evidências" da

imobilidade da Terra estavam articuladas de tal modo que só puderam ser

contestadas, após o advento da teoria heliocêntrica de Copérnico, a partir do

contraste com as interpretações fornecidas por teorias alternativas desenvolvidas

por Galileu em suas Duas Novas Ciências.

Impedir Galileu de estudar e divulgar as novas Ciências, por elementos

externos à prática científica, como a inquisição, por exemplo, significaria coibir a

proliferação de teorias retardando o avanço da Ciência.

No que diz respeito à existência de preconceitos implícitos na prática

científica e a oportunidade de explicitá-los a partir do contraste com uma teoria

alternativa, Feyerabend faz notar que:

os ingredientes ideológicos do nosso saber e, em especial, das nossas


observações, são descobertos com o auxílio de teorias que os
refutam... na eventualidade de uma contradição entre uma teoria nova
e interessante e uma coleção de fatos firmemente estabelecidos, o
melhor procedimento, portanto, é não abandonar a teoria mas

4
David BOHM, Causality and chance in modern physics, p. 68.
Proliferação de teorias 56

servirmo-nos dela para a descoberta dos princípios ocultos


responsáveis pela contradição.5

Esta é a característica da proliferação de teorias com maior implicação para

nosso trabalho, ou seja, a oportunidade de contrastar os "fatos" que fundamentam

as teorias cientificas tradicionalmente estabelecidas por grupos de pesquisa

consolidados com jovens teorias alternativas, para que se possa entender e

ampliar o sentido ou significado de suas proposições básicas e princípios

fundamentais. Essas Jovens Teorias Alternativas quase sempre se inspiram em

antigas teorias alternativas que haviam sido desconsideradas pelos setores

representativos da Ciência, como foi o caso da teoria heliocêntrica de Copérnico

que foi formulada a partir da proposta de Aristarco.

O contraste permite que os fundamentos de ambas as teorias (a

tradicionalmente estabelecida e uma jovem teoria opositora) sejam fortalecidos

com uma substancial melhora na compreensão de ambas, para além de uma

apropriação meramente formal e dogmática dos resultados das equações

matemáticas.

Para ampliarmos a compreensão conceitual de uma teoria não podemos

analisá-la de 'dentro'. Precisamos de um modelo 'exterior' de crítica, de um

conjunto organizado de suposições alternativas.

Um aspecto importante da interação entre teorias rivais descrito por

Feyerabend reside na consideração de que a proposta de uma nova teoria nunca

é imediatamente incorporada pelos grupos de pesquisa. Teorias alternativas não

são incorporadas e aceitas quando novas idéias teóricas são criadas, ou mesmo

5
Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 89.
Proliferação de teorias 57

dados empíricos são descobertos, mas só quando toda uma nova visão de mundo

toma seu lugar.

No processo de incorporação de uma teoria alternativa não só os

elementos racionais entram em jogo mas todo um conjunto de atributos

essencialmente humanos6. Nesse sentido há a necessidade de dar tempo para

que novas teorias alternativas da Física superem suas imperfeições iniciais e

consigam se estabelecer, pois

É evidente que uma nova visão do mundo tomará algum tempo até se
manifestar e que nunca teremos êxito na tentativa de a formularmos na
sua plenitude... Esta necessidade de "esperar" e "ignorar" grandes
massas de observações e medições críticas quase nunca é analisada
pelas nossas metodologias. Sem levarmos em conta a possibilidade de
que uma nova Física ou uma nova Astronomia possam ter que ser
julgadas segundo uma nova teoria do conhecimento, requerendo
verificações inteiramente novas, os cientistas de tendência empirista
confrontam de imediato a nova ciência com o "status quo" e anunciam
triunfantemente que ela "não está de acordo com os fatos e princípios
admitidos".7

Por exemplo, uma teoria alternativa que negue a constância da velocidade

da luz, ou que se choque frontalmente contra as verificações da hipótese do Big

Bang - fatos bem estabelecidos e aparentemente "comprovados" - não deve ser

combatida por isso só. Será preciso também, à luz de seus novos princípios

teóricos, rever os procedimentos experimentais utilizados para medir a velocidade

da luz até então realizados e revisar os "fatos" que fundamentam a idéia do Big

6
Como os contraditórios procedimentos contra-indutivos e o uso de propagandas descritos na seção 2 deste
capítulo
Proliferação de teorias 58

Bang. Só então, será possível, denunciar com convicção os equívocos da teoria

alternativa proposta ou, o que é também possível, romper as fronteiras das teorias

estabelecidas.

Mas, rever experimentos e rediscutir princípios básicos exige por parte dos

proponentes das teorias alternativas verbas, empenho, vontade e capacidade de

convencer e conquistar novos adeptos (até com uso legítimo de propagandas) e,

por parte dos defensores das teorias estabelecidas, tolerância, respeito e

interesse de fortalecer suas idéias denunciando erros conceituais e falsas

interpretações de dados empíricos. O mais importante é que nunca existirá, e

nem desejamos que exista, consenso entre todos os grupos de pesquisa.

Poderíamos perguntar: se novas teorias alternativas são problemáticas, por

que os cientistas se envolvem com elas? O que os leva a questionar "fatos"

amplamente estabelecidos? Ou por quê dialogar com uma teoria que de imediato

não nos oferece nada de novo?

Para responder essas questões recorremos a uma interessante analogia

entre Ciência e arte como tradições culturais de natureza semelhante à

constituição do conhecimento e ao progresso

... uma vez que se tenha compreendido que um ajustamento empírico


estrito não tem grande valor e que deve ser afrouxado em tempos de
mudança, então o estilo, a elegância da expressão, a simplicidade da
apresentação, a tensão entre a intriga e a narração, a qualidade
sedutora do conteúdo, passam a ser traços importantes do que
conhecemos. Dão vida ao que é dito e ajudam-nos a vencer a
resistência do material observacional.8

7
Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 152.
8
Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 159.
Proliferação de teorias 59

Podemos conceber uma parte da prática científica - aquela que está além

da "evidência empírica" - como um processo de produção artística, com a

diferença de o material ser o pensamento e a matemática e não a tinta, ou o

mármore, ou o metal, ou sons melodiosos...

A proliferação de teorias entendida aqui como a interação entre teorias

bem estabelecidas e teorias alternativas não implica em uma ruptura conceitual

da noção de racionalidade científica. Os atores da Ciência, como sempre fizeram,

continuam trabalhando em uma dada teoria, em sua tradição. Cada cientista,

corretamente segue seu grupo de pesquisa e defende-o tenazmente.

Cabe ainda lembrar que as proposições de novas teorias sempre partem

de cientistas de dentro de grupos de pesquisa bem estabelecidos. Ou seja, para

construir uma teoria rival, é necessário conhecer tão bem, se não melhor, a teoria

que está sendo questionada.

A noção de proliferação permite notar ocorrências ocasionais de rupturas

em alguns grupos e justifica o modo como essa ruptura gera novos grupos.

Diferentes grupos discutem entre si, sem necessariamente (ou quase nunca)

chegar a um acordo, se opõem e conflitam entre si.


6. Em defesa da racionalidade científica

Não sou contra uma ciência assim entendida.


Essa ciência é uma das mais maravilhosas
invenções do espírito humano. Mas sou contra as
ideologias que se servem do nome da ciência
como arma de extermínio cultural.1

Esboçamos a seguir algumas considerações sobre nossa interpretação da

obra de Feyerabend, sua crítica, seus limites e uma nova concepção para a

racionalidade científica como concebida por Regner2. No entanto, alertamos que

não caberia neste trabalho uma justificação extensiva das críticas à filosofia por

ele desenvolvida.

Na seção 3, ao apresentarmos a noção de anarquismo epistemológico,

procuramos distinguir essa abordagem do anarquismo político e religioso. Neste

sentido reafirmamos que as idéias de Feyerabend exploradas neste trabalho não

implicam em uma metodologia da pesquisa científica bem definida. Mas antes, os

elementos da epistemologia aqui estudados, pretendem explicitar a existência de

limites nas filosofias da Ciência que procuram descrever ou fazer prescrições

sobre o modo como o conhecimento científico avança.

Entendemos as idéias de Feyerabend não como um conjunto de regras

(epistemo)lógicas rígidas, mas sim, como limitações de princípios e regras dessa

natureza, que, muitas vezes, se encontram envolvidas por uma "racionalidade" e

isolada de "atributos humanos" e da efetiva prática científica sobre as quais se

1
Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 15.
Em defesa da racionalidade científica 61

fundamentam. Sobre as implicações de sua epistemologia para a vida das

pessoas em geral e dos cientistas em particular, Feyerabend escreveu:

a minha preocupação não é nem a racionalidade, nem a ciência, nem a


liberdade - abstrações desta natureza revelam-se mais prejudiciais do
que benéficas - mas a qualidade da vida dos indivíduos. Esta
qualidade deve ser conhecida por intermédio de experiência pessoal
antes de poderem ser apresentadas quaisquer sugestões. Por outras
palavras: as sugestões para a mudança devem provir de amigos, e não
de "pensadores" longínquos.3

Feyerabend, em nossa interpretação, não desenvolveu uma lógica da

pesquisa científica, não criou uma estrutura das revoluções científicas e não

explorou uma formação do espírito científico4. Sua epistemologia não é um novo

sistema filosófico ou um conjunto de premissas lógicas que devem compor

argumentos e ser analisados pela razão, mas antes, um conjunto de regras

práticas que podem ser vivenciadas por aqueles que delas se interessarem:

... comentários vagos e imprecisos que fiz sobre o estado, a ética, a


educação e a máquina da ciência deverão ser analisados pelas pessoas
a que se destinam. São opiniões subjetivas e não diretrizes "objetivas";
devem ser testados por outros sujeitos, não por critérios "objetivos" e
receberem poder político apenas depois de todas as pessoas
interessadas os terem considerado: o consenso daqueles a quem se
dirigem, e não os meus argumentos, é que acabarão por decidir a
questão.5

2
Anna C. K. P. REGNER, Feyerabend e o pluralismo metodológico
3
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 27.
4
Estamos parafraseando aqui três grandes epistemólogos contemporâneos: Popper, Kuhn e Bachelard, nesta
ordem
5
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 357.
Em defesa da racionalidade científica 62

As principais críticas às idéias de Feyerabend referem-se a ele como um

relativista radical ou um anarquista ingênuo6, ao interpretarem como implicação

imediata de suas idéias o preceito de que todas as regras e critérios científicos

seriam inúteis, irracionais e deveriam ser postos de lado. Isso por Feyerabend ter

escrito em seu Contra o Método que "tudo vale". Essa não é a interpretação de

nosso trabalho. Ao dizer "tudo vale" ele simplesmente pretendia mostrar que

todas as regras e critérios têm seus limites e que não devem ser mantidos a todo

custo.

A interpretação que estamos justificando é compartilhada por Anna

Carolina Regner. Sobre o "tudo vale" ou "qualquer coisa serve" ser lido como o

princípio filosófico fundamental da epistemologia de Feyerabend ela nos alerta

para o fato de que:

Não cabe aqui a crítica de que este princípio seria auto-destrutivo.


Entendido como um meta-princípio, poderia compreender sob si o
princípio nem tudo vale como princípio de ordem inferior, atinente a
um particular contexto, enquanto tudo vale seria o único princípio que
se aplicaria a todos os contextos. Cabe igualmente ressaltar que a
análise da ciência feita por Feyerabend, com a crítica que elabora
contra o "racionalismo", não depende da prévia aceitação desse
princípio ou de qualquer princípio que fosse universalmente válido,
não pretendendo uma nova "teoria da ciência" ou da "racionalidade". 7

O "tudo vale" é um bom exemplo do estilo irônico e dos muitos gracejos

presentes nos escritos de Feyerabend. Isso sim constitui realmente uma

6
Veja por exemplo Alan SOKAL & Jean BRICMONT. Imposturas Intelectuais. pg. 84-91
Em defesa da racionalidade científica 63

dificuldade na leitura de seus textos. "O principal problema quando se lê

Feyerabend é saber quando levá-lo à sério".8 Contudo, esse problema, se por um

lado dificulta a compreensão de suas idéias, por outro, torna muito mais

desafiante, prazerosa e, por que não, humana sua leitura e estudo. Além disso,

seus escritos são ricamente fundamentados, com referências em trabalhos

reconhecidos da história e filosofia da Ciência, como também do próprio

conhecimento da Física, Química, Biologia...

No prefácio à 2a edição inglesa de Against Method de 1988, Feyerabend

escreve ao justificar a dedicatória de seu livro a Lakatos:

Imre Lakatos gostava de embaraçar os seus opositores sérios com


gracejos e ironias, pelo que, também eu, de vez em quanto, adotei uma
escrita de estilo irônico. Exemplo disso é o final do Capítulo 1:
"qualquer coisa serve" [ou "tudo vale"] não é um "princípio" que eu
sustente - não penso que possam ser utilizados e produtivamente
discutidos os "princípios" fora da situação concreta de investigação
que supomos que afetam - mas a exclamação apavorada de um
racionalista que observa a história um pouco mais de perto. Ao ler as
muitas críticas sérias, de grande fôlego, amplas e amplamente
equivocadas que me foram feitas após a publicação da primeira edição
inglesa do livro, lembrei-me muitas vezes do meu convívio com Imre;
como teríamos rido os dois lendo juntos semelhantes efusões.9

Apesar desse seu estilo irônico e humorístico Feyerabend em sua atuação

como professor - como todo professor - muitas vezes se sentiu angustiado pela

falta de ressonância de suas idéias entre os alunos e pelo mal estar gerado na

7
Anna C. K. P. REGNER, Feyerabend e o pluralismo metodológico, p. 235.
8
Alan SOKAL & Jean BRICMONT. Imposturas Intelectuais. pg. 86.
9
Cf. Anna C. K. P. REGNER, Feyerabend e o pluralismo metodológico, p. 235.
Em defesa da racionalidade científica 64

maioria de seus ouvintes ao chocarem-se com suas idéias. Feyerabend desistiu

de um curso em Yale após se aborrecer a ponto de chorar ao final de um

seminário:

"Isto é culpa sua", disseram meus amigos. "Primeiro você denigre a


razão e depois espera que as pessoas digam algo interessante". Eu via
as coisas de outro modo. Nunca "denegri a razão", seja isto o que for,
mas apenas algumas de suas versões petrificadas e tirânicas.
Tampouco eu supunha que minha crítica pudesse ser o fim da questão.
Era um começo, um começo difícil - do quê? De uma melhor
compreensão das ciências, de uma melhor organização da sociedade,
de melhores relações entre os indivíduos, de um teatro melhor, de
filmes melhores e assim por diante (...) Mas as pessoas que encontrava
pareciam privadas de idéias concretas que lhes fossem próprias. Com
apenas algumas exceções, elas concordavam com minha crítica;
contudo, ao invés de mudar, ficavam sentadas chorando.10

E é esse um dos principais efeitos nocivos de uma interpretação

descontextualizada das idéias de Feyerabend11 - algo importante a ser

considerado neste trabalho. Como indicado na seção 3, as idéias de Feyerabend

não constituem uma filosofia da Ciência entendida como um conjunto de regras

metodológicas rígidas ou de princípios lógicos, mas ao invés disso, noções que

permitem questionar os limites de sistemas epistemológicos e de suas

interferências, em nome da "verdadeira" prática científica nas esferas econômica,

política, cultural e da educação, dentre outras.

10
Paul K. FEYERABEND, Matando o tempo, p. 141.
11
O Professor do Instituto de Física da USP, Manoel Robilotta, que participa da comissão avaliadora desta
dissertação, costuma contar uma história em que, certa vez, alguns de seus alunos ficaram tão aborrecidos
que chegaram a abandonar o curso de física após uma leitura de Contra o Método.
Em defesa da racionalidade científica 65

Neste trabalho interpretamos a filosofia de Feyerabend de modo que o ato

de dar Adeus à Razão e a tentativa de agir Contra o método12, não diminuem a

racionalidade científica, mas ao contrário, fortalece-a, tornando-a mais flexível e

humana. Anna Regner, ao adotar uma postura semelhante em seus escritos, nos

pergunta se o desvelamento da Ciência exposto por Feyerabend não conduziria a

uma nova racionalidade, a uma razão contextualizada:

Expondo-a [a Ciência] em seus mecanismos irracionais, à luz das


regras do racionalismo, acaba sendo o meio pelo qual qualquer
decisão pela Ciência seja muito mais racional, calcada na visão
esclarecida e sopesada de razões, do que tem sido. E conclui
Feyerabend seu Contra o método, dizendo: "a racionalidade de nossas
crenças se verá consideravelmente acentuada".13

Apresentamos assim uma concepção interacionista da razão e da prática

científica. Para resumir e finalizar nossa abordagem das noções epistemológicas

de Feyerabend exploraremos uma analogia entre a razão e o mapa de uma

cidade.

O cientista possui um mapa (razão) para percorrer uma cidade (prática).

Mas a cidade tem atividade humana e está em constante modificação, desta

forma ele deve agir ora modificando sua prática (atuando na cidade), ora

redesenhando o mapa (mudando sua razão). Mas, aqui também é preciso estar

atento aos limites da analogia, que deve ser vista como tal. A distinção entre a

razão (o mapa) e a prática (a cidade) deve considerar duas entidades diferentes

mas não disjuntas.

12
Para parafrasear os dois principais livros estudados.
13
Anna C. K. P. REGNER, Feyerabend e o pluralismo metodológico, p. 244.
Em defesa da racionalidade científica 66

O "Adeus à Razão" significa que o cientista guiado por sua prática (o

caminhar pela cidade) pode apagar e redesenhar a razão (o mapa) ao perceber

sua inadequação. Por outro lado, agir "contra o método" significa violar sua

prática (modificar a cidade, construir uma nova avenida) a partir de uma nova

razão ou um projeto interessante de pesquisa (um novo mapa).

Em nenhum momento as idéias de Feyerabend significam que o

conhecimento científico pode avançar sem uma interação entre uma razão e uma

prática. Agimos assim, em defesa da racionalidade científica.


III - PERSPECTIVAS EDUCACIONAIS

A melhor educação consiste na imunização das


pessoas contra tentativas sistemáticas de
1
educação.

Nesse capítulo, passamos a discutir as lições epistemológicas aprendidas

com o estudo das concepções sobre a Ciência expressas no capítulo anterior e

suas implicações para a educação em geral e para o Ensino de Física em

particular.

Antes de iniciarmos a apresentação de considerações sobre as possíveis

perspectivas educacionais das noções esboçadas no capítulo anterior é

importante explicitar que compreendemos o Ensino de Ciências, dentro da

educação geral, como algo que vai além da mera transmissão de conceitos. Cabe

enfatizar a contextualização do Ensino científico dentro da instituição de Ensino

em que se insere - a escola. A educação escolar, tendo a científica incluída em

seu bojo, pretende perpetuar, além de saberes: hábitos, valores e crenças

socialmente estabelecidos como importantes.

As perspectivas educacionais aqui apresentadas não devem ser vistas

como princípios metodológicos ou sistematizações de práticas pedagógicas de

modo a constituírem-se em objetivos ou num referencial para que professores de

Ciência ou de Física possam organizar suas aulas, mas ao contrário, elas

compõem um conjunto de reflexões sobre os ideais, objetivos e valores

1
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 366.
Perspectivas Educacionais 68

associados aos processos educativos em Ciências que podem contribuir para a

elucidação de questões que permitam aos atores da educação, e em especial

professores de Física, avaliarem sua própria prática.

Não se trata de uma transposição das noções epistemológicas de

Feyerabend para a fundamentação de uma teoria de Ensino ou para aprimorar as

práticas educativas, mas sim de propiciar o uso de seu modo de pensar - sua

filosofia - para analisar questões especificas da educação. Não estamos propondo

uma teoria que careça de validação empírica ou diretrizes metodológicas para

organizar o Ensino, mas procurando contribuir com noções que funcionem como

limitadores na elaboração de ações educativas, justificação de certas escolhas e

estabelecimento de objetivos e valores para o Ensino no contexto das instituições

escolares. 2

As noções educacionais desenvolvidas neste trabalho apresentam uma

natureza predominantemente programática em detrimento de uma formulação

prescritiva ou de uma fundamentação descritiva. Assim toda a justificação se

fundamenta muito mais em escolhas valorativas que em dados empíricos e seu

sentido é muito mais o de orientar que conduzir ações da prática educativa. No

entanto, vivências e casos particulares são explorados como sintomas de

situações limites que em maior ou menor grau permeiam todas as relações

educacionais.

Ao apresentar perspectivas educacionais tendo por base a filosofia de

Feyerabend não pretendemos, em momento algum, desenvolver referenciais para

uma forma mais rápida, uma didática eficiente, ou um modo mais simples ou fácil
Perspectivas Educacionais 69

de educar. Visamos sim, a consideração dos valores prioritários, socialmente

estabelecidos, com predominância na escolha de métodos, conteúdos e práticas

de Ensino.

Na concepção subjacente a este trabalho a educação não é uma Ciência, é

algo mais parecido com uma arte-prática. As noções educacionais que serão

apresentadas podem subsidiar mas não conduzir as ações de professores e

outros agentes de Ensino inseridos em instituições escolares com contextos

específicos. Nosso trabalho não terá valor nenhum se for considerado como ponto

de partida para a elaboração de um projeto de Ensino, mas pode fornecer

elementos importantes caso se deseje refletir sobre o modo como as práticas são

desenvolvidas. Se pensadas fora de um contexto escolar específico as noções

discutidas fornecerão uma visão exterior e meramente abstrata da prática escolar.

Nesse sentido nosso trabalho só estará concluído quando seus leitores o

vincularem a situações reais de Ensino.

2
Quanto à dimensão institucional da educação escolar, geralmente estar ausente das pesquisas específicas de
ensino de ciências, compartilhamos das idéias de José Sérgio Fonseca de Carvalho. (ver: CARVALHO.
Construtivismo: uma pedagogia esquecida da escola)
1. Todos devem ser igualmente iniciados na tradição científica?

“Buda estava reunido com os seus discípulos certa manhã, quando um


homem se aproximou. - Deus existe? - perguntou. - Existe - respondeu
Buda. Depois do almoço, aproximou-se outro homem. - Deus existe? -
quis saber - Não, não existe - disse Buda. No final da tarde, um
terceiro homem fez a mesma pergunta: - Deus existe? - Você terá que
decidir - respondeu Buda. - Mestre, que absurdo! - disse um dos seus
discípulos. - Como é que o senhor pode dar respostas diferentes para a
mesma pergunta? - Porque são pessoas diferentes - respondeu o
Iluminado. - E cada uma aproximar-se-á de Deus à sua maneira:
através da certeza, da negação e da dúvida.” Maktub

A partir da idéia de que a Ciência é uma tradição cultural dentre outras nos

perguntamos: como a Física deve entrar na formação básica? Todos devem ser

igualmente iniciados na tradição científica?

Respondemos a essas questões sugerindo que a Ciência deve ser

ensinada como uma maneira de ver entre muitas outras e não como a única via

que leva à "verdade" ou à "realidade".

Para pensar a Ciência como uma tradição cultural tivemos de admitir a

existência na prática científica de vontades pessoais e escolhas que dependem

das circunstâncias culturais sob as quais atuam os diversos grupos de pesquisa.

Também na educação básica devemos considerar o Ensino de Ciência como uma

importante componente do conhecimento socialmente estabelecido e que deve

compor os currículos escolares - de modo que ninguém pode ser-lhe indiferente -

mas não como a única, ou a melhor, ou mesmo a pior fonte da sabedoria. É

preciso levar em conta as condições dos grupos locais, ou seja, é imprescindível

conhecer, respeitar e valorizar as outras tradições que já fazem parte da vida dos
Todos devem ser igualmente iniciados na tradição científica? 71

educandos. A Ciência deve ser inserida entre estas tradições e conquistar seu

valor próprio e lugar na vida das pessoas.

No contexto educacional, as atividades de Ensino estão subordinadas ao

compromisso essencial para a constituição das instituições escolares e tem a

missão de difundir e preservar algumas tradições culturais publicamente

consideradas como preciosas para a humanidade.

O que o professor faz quando ensina é permitir que o aluno reconheça-se

no espelho das realizações humanas tradicionalmente organizadas pelo que

conhecemos como disciplinas escolares e suas técnicas. Essas disciplinas, como

a Física, a Química, a Antropologia ou a Geografia, são tradições públicas com

séculos de acumulações e detentoras dos saberes desenvolvidos a partir de toda

uma conjuntura social por nossos antepassados e que precisam ser valorizadas e

respeitadas, nas quais as pessoas precisam ser educadas.

Cada uma das disciplinas escolares constitui parte de tradições culturais e

deve ser vista como muito mais que um conjunto de conteúdos ou uma lista de

habilidades a serem alcançadas por um aluno individualmente. As disciplinas são

vivas e compõem-se, além de conteúdos, de elementos associados aos valores e

procedimentos dos espaços institucionais em que são desenvolvidas. O professor

tem um compromisso não só com o aluno, mas também com a instituição de

Ensino a que pertence, e ainda, com o conhecimento que transmite, sendo

responsável por sua perpetuação, neste sentido, ele professa também em favor

da tradição a que corresponde e de certo modo reproduz e mantém vivo um saber

que herdou, garantindo-lhe a preservação e a continuidade.

Ao afirmar que nem todos devem ser igualmente iniciados na tradição

científica não estamos afirmando que a Ciência no mundo contemporâneo, ou


Todos devem ser igualmente iniciados na tradição científica? 72

mais especificamente no Brasil, domina o cotidiano das pessoas de modo a

impedir a manifestação de outras tradições culturais. Ao contrário, estamos

dizendo que, o conhecimento científico está tão afastado do público em geral que,

por isso mesmo, contribui para o estabelecimento de uma falsa cientificidade. Tão

perigoso como atribuir à Ciência uma excessiva carga de verdade propiciando

seu mau uso por parte de um discurso autoritário (não só vinculado à miopia

científica mas também de outras esferas sociais como a religião, a economia, a

política, etc) é negar a uma pessoa a oportunidade de compreender e utilizar os

conhecimentos da Ciência para melhorar sua compreensão do mundo.

A tentativa de destruir, o desrespeito, o desprezo e principalmente o fato de

ignorar outros modos de conhecimento concorrentes ao científico corresponde, a

nosso modo de ver, a um dos principais equívocos da inserção do saber científico

na educação básica em geral. Não considerar a cultura dos estudantes gera um

conflito entre os conhecimentos de diferentes tradições culturais pertencentes às

suas vidas e aqueles da Ciência que se pretende ensinar e que precisam ser

explicitados nas atividades de ensino.

Por exemplo, um agrônomo extensionista precisa conhecer as crenças

mágicas dos agricultores com os quais vai dialogar; estas crenças mágicas não

devem ser simplesmente ignoradas, como indica Paulo Freire,

o pensamento mágico não é ilógico nem é pré-lógico. Tem sua


estrutura lógica interna e reage, até onde pode, ao ser substituído
mecanicamente por outro. Este modo de pensar, como qualquer outro,
está indiscutivelmente ligado a uma linguagem e a uma estrutura
como a uma forma de atuar [a uma tradição]. Sobrepor a ele outra
forma de pensar, que implica noutra linguagem, noutra estrutura e
noutra maneira de atuar [noutra tradição] lhe desperta uma reação
Todos devem ser igualmente iniciados na tradição científica? 73

natural. Uma reação de defesa ante o "invasor" que ameaça romper


seu equilíbrio interno.1

Em um exemplo, bastante interessante uma professora de Física da rede

pública de Ensino do estado de São Paulo, conta que:

um professor de Biologia da escola em que leciono, ao explicar


evolução das espécies, entrou em atrito com uma aluna evangélica e a
mesma disse que não assistiria mais suas aulas e pediria para seu pai,
que era pastor, vir conversar com ele. O professor, nervoso, respondeu
para ela, que o que estava ensinando era científico e verdadeiro e o
que o pai dela sabia era "papo furado". E completou: - Eu aprendi isso
na faculdade e o seu pai? - Isso gerou muita polêmica na escola e a
diretora junto com o conselho de escola decidiu que a aluna não
precisaria mais assistir as aulas de Biologia. Eu penso que essa não
foi a melhor solução, mas é muito difícil mudar a forma das pessoas
pensarem.2

Nesse caso, ambas as posições estão, segundo entendemos, equivocadas

por acharem-se detentoras da "verdade absoluta". E a "solução" encontrada pelo

Conselho de Escola, e assumida pela Diretora, foi autoritária e a pior possível. A

situação descrita corresponde a um exemplo de confronto entre discursos

autoritários bastante presente em escolas e geralmente impregnados em diversas

esferas de atuação no cotidiano contemporâneo. Para solucionar o conflito entre

dois discursos autoritários (a " Ciência" autoritária do professor x a "religião"

1
Paulo FREIRE, Extensão ou comunicação? p. 31.
2
Declaração de uma professora da rede oficial de ensino do Estado de São Paulo, com escola localizada na
Cidade de Itapevi.
Todos devem ser igualmente iniciados na tradição científica? 74

autoritária da aluna) foi tomada uma medida mais autoritária ainda (de uma

"educação" autoritária) – e, pior, por membros de um Conselho de Escola.

Esse conflito entre "verdades" é um sintoma limite de um processo que

está presente, em maior ou menor grau, na relação de todos os estudantes com a

realidade do conhecimento científico vivida nos cursos de Física.

Uma educação apoiada na concepção de Ciência como tradição cultural

que pretenda ir na contra-mão da educação autoritária precisa ser entendida

sempre em dois aspectos complementares: tolerância versus oportunidade.

O primeiro, a tolerância por parte da instituição de Ensino, do professor, do

currículo e dos agentes escolares às idéias de outras tradições pertencentes à

vida dos alunos, da comunidade na qual a escola está inserida, significando que a

Ciência não deve ser imposta como a verdade única ou maior. O aluno deve

conhecê-la, mas precisa realizar sozinho todas as escolhas em que ela seja

significativa e ser capaz de dirigir sua própria vida.

O segundo aspecto é a oportunidade de "pertencer" à tradição científica. O

conhecimento científico é inegavelmente uma das mais importantes construções

da humanidade e proibir-lhe o acesso em "razão" desta ou daquela tradição

cultural é igualmente um grande erro.

Tolerância e oportunidade são os dois pilares fundamentais de uma

educação científica que pretenda superar o discurso autoritário ao qual a

civilização contemporânea, e em particular o povo brasileiro, está imerso.

Por isso, entendemos que nem todos devem ser igualmente iniciados na

tradição científica. Devem antes possuir, em maior ou menor grau, o que

poderíamos designar como cultura científica básica, permitindo-lhes relacionar


Todos devem ser igualmente iniciados na tradição científica? 75

matematicamente grandezas simples presentes em seu dia-a-dia, fazer uma

estimativa, ler uma notícia sobre Ciência, apropriar-se ao seu modo dos conceitos

científicos ou conseguir encontrar uma informação importante sobre determinado

fenômeno estudado; assim como, nem todos precisam dominar e se interessar

por investigações sobre semântica, lingüística ou literatura, mas, certamente,

necessitam ser educados de forma a utilizar a língua como instrumento básico e

serem capazes de decodificar textos importantes para sua vida; o que não impede

de alguns, porém, fazerem da lingüística uma de suas tradições.

Dessa maneira a Física até o nível médio do Ensino contribuiria de forma

diferente para cada cidade, para cada comunidade, para cada escola, para cada

classe de aula, para cada um dos alunos, contrariamente ao Ensino da Ciência

única, verdadeira e soberana. A educação científica não pode ser construída

somente em prol dos interesses de produzir cientistas mas sim de fornecer às

pessoas a possibilidade de ampliarem seus domínios de pensamento, ação e

emoção.

Identificamos a educação neste trabalho com o que preferimos chamar de

iniciação à tradição científica a termos como treinamento, instrução, por serem

estes termos muito específicos. A educação científica para o grande público em

geral pode se dar sem que ocorram rigorosamente estas atividades específicas e

estas ainda podem ocorrer sem que satisfaçam todos os critérios implicados pela

educação científica.

Estamos preocupados com a educação em Ciência como algo mais amplo

do que as definições econômica ou sociológica permitem conceber. Uma

educação maior na qual a aquisição de saberes está associada à atribuição de

valores ao conhecimento, como na perspectiva de Peters:


Todos devem ser igualmente iniciados na tradição científica? 76

O conceito de "educação" [como iniciação] não privilegia qualquer


tipo particular de processos, como o treinamento, por exemplo, ou de
atividades, como fazer preleções; sugere, antes, critérios aos quais os
processos, como o de treinamento, devem se adaptar. Um destes
critérios é o de que algo valioso deve se manifestar. Daí, é possível
que estejamos educando alguém enquanto o treinamos, mas não
necessariamente.3

A educação em Ciências como uma iniciação à tradição científica

pressupõe uma progressiva tomada de consciência sobre a aquisição de

conhecimentos. Isto significa que, ao estudarem a Física juntos, a escola e a

comunidade, o professor e o aluno serão iniciados na prática da Física e em seus

procedimentos de forma consciente e de forma a se envolverem no que estão

fazendo sempre de modo a perceberem que algo valioso está ocorrendo em suas

vidas.

Dessa perspectiva o conhecimento científico precisa ser apresentado como

um valioso produto humano e não como uma verdade superior. A instituição de

Ensino, o professor e o programa escolar precisam respeitar as idéias oriundas da

cultura local e trazidas pelos alunos e não utilizar a autoridade conferida a eles

para impor suas "verdades" de modo intolerante.

Uma educação que tolera o convívio do conhecimento científico com o de

outras tradições e que procura transmitir o saber como algo valioso, fruto da

elaboração humana ao invés de uma verdade eterna, só se estabelece com uma

política educacional e um processo apropriado de formação de professores para

que eles simultaneamente eduquem e sejam educados, gostem da Física, saibam


Todos devem ser igualmente iniciados na tradição científica? 77

Física, entendam como se faz Física e sejam formados em Física, tenham vivido

e ainda acompanhem, de algum modo, a tradição da Física, porque:

um homem pode ser condicionado a fugir de cachorros ou ser


induzido a fazer algo por sugestão hipnótica. Mas, não entenderíamos
isso como "educação", se ele não soubesse o que estava aprendendo,
enquanto aprendia [ou ensinado enquanto ensinava, acrescentamos].
Algumas formas de exercícios também podem ser excluídas, pelo
mesmo motivo: como, por exemplo, a que exige do aluno a repetição
interminável de atos estereotipados que participam de séries limitadas.
Para que alguma coisa seja considerada como educação, ela deve
conter um mínimo de compreensão.4

Assim, nesta concepção da educação científica é fundamental que o

professor de Física, só para dar um exemplo, seja formado em Física e tenha

conhecido físicos. É importante também que ele se mantenha informado da

Física de seu tempo. Sendo um "missionário" de sua "tradição" deve entender

minimamente suas descobertas, inovações e "alterações" em seus procedimentos

e métodos. Para compor um corpo docente que intermedie a relação entre as

tradições científicas e os valores da instituição escolar, ao professor de Física é

preciso ser ofertada a possibilidade de ler sobre Física e conversar sobre Física.

Assim, ele não é visto como uma enciclopédia especializada de Física, ou a fonte

de respostas aos problemas de um livro didático, ou mesmo alguém que

consegue desvendar os misteriosos fenômenos que estão por trás do

funcionamento de aparelhos tecnológicos do cotidiano, mas, é visto como um elo

3
R. S. PETERS, Educação como iniciação, p. 107.
4
R. S. PETERS, Educação como iniciação, p. 113.
Todos devem ser igualmente iniciados na tradição científica? 78

de ligação entre a escola e a comunidade, os seus alunos e os físicos, entre suas

aulas e essa tradição culturalmente representada pela Física.

Respeitar o aluno é ensinar do melhor modo possível os conhecimentos

tradicionalmente acumulados como Ciência. Tanto a doutrinação em uma

tradição, como a privação do aluno desse conhecimento são em igual intensidade

um ato de irresponsabilidade e desrespeito, tanto para com o aluno como para a

tradição científica a qual o professor deveria representar, e, também, para com a

instituição a que ele pertence, pois

... embora seja possível que um professor ensine sem recorrer ao


respeito mútuo, não é possível que ele respeite seus alunos - pelo
menos como alunos - , sem que os ensine e sem que seu Ensino reflita
as responsabilidades institucionais da instituição escolar, como o zelo
pelos conhecimentos, pela hierarquia e pelos valores característicos
dessa instituição social.5

Uma aula de Física deve permitir mais que memorizações ou anotações de

fórmulas ou termos conceituais sem sentido. Os alunos precisam conhecer e viver

a Física como uma tradição cultural. Para isso os livros, os textos, os gráficos e as

anotações são apenas acessórios e não o material de estudo em si. O verdadeiro

conteúdo do estudo está no envolvimento com o professor e com o programa6 da

disciplina, com a instituição escolar que agrega os valores sociais aos saberes

científicos.

5
José Sérgio Fonseca de CARVALHO, Construtivismo: uma pedagogia esquecida da escola, p. 83.
6
Agradecemos ao prof José Sérgio pela elucidação da natureza programática desse trabalho em detrimento
de uma prerrogativa prescritiva.
Todos devem ser igualmente iniciados na tradição científica? 79

Iniciar-se na tradição científica é mais que aprender algumas leis,

conceitos, experimentos, explicações de fenômenos ou princípios da Ciência. É

caminhar sobre sua história; é discutir filosoficamente seus princípios e métodos;

é reconhecer seus erros; é conversar com seus personagens; é apropriar-se de

seus valores. Neste sentido, a Física como uma tradição cultural exige uma

educação baseada em peças de teatro, em letras de música, em romances e em

histórias em quadrinhos, só para mencionar alguns exemplos possíveis,

expressando mais facilmente a natureza humana do conhecimento científico.

Com isto não estamos dizendo que a lógica, o raciocínio, a observação de

fenômenos, os experimentos e os modelos matemáticos são menos importantes,

pelo contrário, eles são elementos essenciais e imprescindíveis em uma aula de

Física por transmitirem uma compreensão estrutural tanto do que é a Ciência

como de seus conceitos.

Para concluir, consideremos a visita de um estrangeiro a uma cidade

desconhecida. Seremos seus guias, vamos levar o estrangeiro nos diversos

setores da cidade, apresentá-lo às pessoas e explicar o que elas estão fazendo;

traduzir algumas das palavras que estão usando e explicar seus costumes.

Devemos mostrar diversos locais da cidade, teatros, museus, centros culturais e

os principais pontos turísticos; principalmente aqueles locais que mais gostamos e

deixar o estrangeiro escolher onde quer ficar por mais tempo durante a visita. É

importante fazê-lo compreender e participar da vida na cidade. Mas não devemos

enganar o estrangeiro mostrando só o que há de bom, vamos mostrar-lhe as

dificuldades, os problemas de infra-estrutura, de política, da economia, da

criminalidade, etc em que ele terá que se envolver se quiser, um dia, se tornar um

cidadão. Terminada a visita estaremos satisfeitos se o estrangeiro ficar com uma


Todos devem ser igualmente iniciados na tradição científica? 80

boa lembrança do passeio, se tiver o desejo ou a necessidade de voltar algum dia

sozinho e não se perder e, mais ainda, se ele resolver fixar morada em nossa

cidade ou tornar-se um de seus guias turísticos.

Analogamente, a concepção de educação como iniciação, na formação

básica, pode ser entendida como a visita de um aluno à cidade da Física. Nós, os

professores, orientados pelos objetivos das instituições escolares, seremos seus

guias. Vamos caminhar com o aluno pelas diversas áreas da Física, contar-lhes

quem são os físicos, se possível conhecer algum e explicar o que eles fazem;

traduzir alguns dos conceitos e equações da Física, e explicar as atividades de

diferentes grupos de pesquisa. Devemos utilizar, além do discurso e dos textos,

outras formas de interação com o conhecimento que possam despertar o

interesse de diferentes alunos: peças de teatro, letras de música, museus de

Ciência, material de divulgação científica e explicar-lhes os principais problemas

estudados pela Física; principalmente aqueles que mais gostamos e que

permitem maior relação com os valores que devemos trabalhar, e deixar, de

algum modo, o aluno escolher aquilo em que quer se aprofundar. É importante

fazê-lo compreender e imitar o processo de construção do conhecimento, ele

deve se sentir em algum momento como um físico ou um professor de Física.

Mas não devemos enganar ou iludir o aluno mostrando apenas exemplos

didáticos simples e fáceis, vamos mostrar-lhe as dificuldades experimentais e

teóricas, explicitar as muitas aproximações que adotamos para simplificar os

problemas e indicar-lhe a destreza em álgebra, geometria, cálculo, montagem de

experimentos, etc que ele precisará desenvolver se quiser, um dia, se tornar um

físico. Terminadas as aulas de Física estaremos satisfeitos se o aluno valorizar os

conhecimentos que lhe transmitimos, souber explicar alguns fenômenos utilizando


Todos devem ser igualmente iniciados na tradição científica? 81

a Física, conseguir utilizar a matemática para relacionar grandezas Físicas de seu

cotidiano, tiver o desejo e a capacidade de ler algo mais sobre Física.

Por outro lado, no outro extremo das diferentes aptidões e vontades

manifestadas pelos alunos, a Física trabalhada como tradição cultural poderá

inspirar a sua utilização em ensaios críticos sobre a realidade vivenciada ou em

poemas românticos ou realistas, em construções artísticas, literárias, etc. A Física

como tradição cultural comunica-se com um contingente variado de leitores

inteligentes do mundo contemporâneo.


2. Conhecendo os especialistas

o patrão sustenta, o café o almoço, o jornal


comenta um rapaz tão moço. O calor aumenta, a
família cresce, o cientista inventa uma flor que
parece a razão mais segura p’ra ninguém saber,
de outra flor que tortura.1

Considerando que nem todos devem ser igualmente iniciados na tradição

científica e tendo em mente a inexistência de uma única tradição que poderíamos

chamar de "a" Física, passamos a analisar seu papel na formação básica (até o

nível médio) a partir das relações que podem ser estabelecidas entre alunos e

cientistas das diversas tradições culturais: físicos, químicos, biólogos, geólogos,

astrônomos; também, engenheiros, farmacêuticos, médicos e outros profissionais

que apóiam suas práticas no conhecimento científico. Ao discutir esta relação

estaremos analisando a função dos cientistas como intermediadores entre a

sociedade e o conhecimento científico estabelecido e nos referindo a eles como

especialistas ou peritos.

Nos dias de hoje, a relação entre os cidadãos comuns e o conhecimento

científico é cada vez mais dependente de especialistas. Mesmo as escolas

contam, cada vez mais, com um número crescente de "peritos": além dos

professores existem os inspetores, coordenadores pedagógicos, assistentes

sociais, psicólogos educacionais, diretores, supervisores, secretários,

conselheiros, ministros, etc... que, ao seu modo e autorizados por suas

1
Trecho da letra da música "Pois é, pra que?" de Sidnei Miller.
Conhecendo os especialistas 83

credenciais estipulam, definem e controlam, a partir de noções educacionais em

geral abstratas, a maneira como o Ensino deve ocorrer.

O conhecimento vem sendo tratado como um produto comercial e a figura

do antigo mestre tem dado lugar à do professor entendido como um "vendedor"

de conhecimentos, como denuncia Majid Rahnema:

as Culturas e as Civilizações foram formadas, enriquecidas e


transmitidas por milhões de pessoas que estão a aprender vivendo e
fazendo, para quem viver e aprender eram sinônimos, tal como tinham
de aprender para viver e aprendiam o que quer que pudesse interessar-
lhes, bem como à comunidade a que pertenciam. Antes de ser
instituído o atual sistema educativo, durante milhares de anos, a
educação não foi uma mercadoria escassa. Não foi o produto de
algumas fábricas institucionais, cuja posse poderia conferir a uma
pessoa o direito de lhe chamarem educada. (...) os velhos tempos... em
que "cada adulto, um mestre" acabaram. Agora, só aqueles que
possuírem um diploma do sistema educativo, segundo os critérios por
ele próprio estabelecidos, poderão ter o direito de ensinar. Deste
modo, a educação foi transformada num bem escasso.2

Uma educação dogmática, que esvazia o conhecimento científico de suas

dimensões histórica, filosófica, sociológica e cultural e que desconsidera a

natureza humana impregnada no saber, corresponde a uma das principais causas

de distanciamento entre as pessoas e o conhecimento científico. Um Ensino de

Física sem tais dimensões torna inconcebível a possibilidade de mudança

científica, transmitindo, implicitamente, a noção de que o conhecimento científico

é uma verdade incontestável. O distanciamento é maior ainda ao considerarmos a


Conhecendo os especialistas 84

grande parcela da população que é excluída da educação (sem a formação do

ensino fundamental e menos ainda do médio) no caso de nosso país.

Os próprios cientistas responsáveis por grandes mudanças na Ciência

estão, em muitos casos, contaminados pela tendência em admitir a Ciência como

um conjunto de conhecimentos que aumenta continuamente em direção à

"verdade". Isso pode ser evidenciado pela maneira como descrevem seus

próprios trabalhos e reinterpretam o trabalho de seus antecessores de forma a

tornar invisível as rupturas científicas e manter o poder atribuído aos especialistas

como "donos da verdade.

O poder proveniente da ilusão de que a Ciência é superior às outras

tradições por sua cumulatividade e sua inter-relação com o Ensino da Ciência

contrário a uma noção mais ampla da realidade dentro de um contexto mais geral

(histórico-socio-cultural) constitui a principal fonte do equivoco da extensão por

meio da capacitação de líderes ou especialistas, como bem compreendeu Paulo

Freire:

o equivoco de não ver a realidade como totalidade. Equívoco, que se


repete, por exemplo, quando se tenta a capacitação dos camponeses
com uma visão ingênua do problema da técnica. Isto é, quando não se
percebe que a técnica não aparece por casualidade; que a técnica bem
acabada ou "elaborada", tanto quanto a ciência de que é uma aplicação
prática, se encontra, como já afirmarmos, condicionada histórico-
socialmente. Não há técnica neutra, assexuada.3

2
Majid Rahnema, Education for Exclusion or Partipation?, manuscrito, Stanford, 16 de Abril de 1985, Citado
em Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 347.
3
Paulo FREIRE, Extensão ou comunicação? p. 34.
Conhecendo os especialistas 85

É importante explicitar que não pretendemos negar a importância dos

peritos, lideres ou especialistas na sociedade contemporânea, mas propomos

elementos que permitam (re)pensar o valor e o poder atribuído a eles na

educação em Ciência no nível básico de Ensino. Neste sentido, encontramos em

Feyerabend uma interessante investigação da função e dos valores atribuídos aos

peritos em outras culturas por estarem elas livres dos problemas, mitos e

preconceitos dos debates modernos:

os peritos foram algo de natural no Egito, na Suméria, na Babilônia e


na Assíria, entre os hitits, os hurritas, os fenícios e muitos outros
povos que ocuparam o antigo Próximo Oriente. Desempenharam um
papel importante na astronomia e na matemática da Idade da Pedra, o
qual tem vindo a ser descoberto ao longo dos anos. A primeira
discussão sobre os problemas do conhecimento especializado de que
há registro teve lugar na Grécia, nos séculos V e IV a.C., entre os
sofistas, e depois com Platão e Aristóteles (...) Podemos aprender com
estes velhos pensadores, com os seus argumentos e as suas
perspectivas.4

Sobre as decisões de quem deve governar a cidade e a interação dos

peritos com o restante da sociedade, na Grega Antiga (Atenas, século V a.C.),

segundo Feyerabend, foram formuladas duas opiniões sobre o papel dos peritos.

Segundo a primeira opinião:

(+A) um perito é alguém que produz conhecimentos importantes e


possui técnicas importantes. Os seus conhecimentos não devem ser

4
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 71.
Conhecendo os especialistas 86

postos em causa ou alterados pelos leigos. Devem ser assumidos pela


sociedade precisamente da forma sugerida pelos peritos. 5

Nesta perspectiva reis, sacerdotes, arquitetos, médicos quase nunca (ou

nunca) discutiriam as suas funções ou o modo como o conhecimento que

produzem interagiriam com a vida da sociedade. Na Grécia Antiga esta posição

era objeto de chacota e escárnio.

A segunda opinião, concebida pelos gregos sobre a função dos peritos na

sociedade, se contrapunha frontalmente à primeira e os representantes dessa

visão fizeram notar que:

(-A) os peritos ao chegarem aos seus resultados, limitavam a sua


visão. Não estudam todos os fenômenos, mas apenas aqueles de um
campo especial; e não examinam todos os aspectos dos fenômenos
especiais, apenas aqueles que esporadicamente se relacionam com os
seus interesses bastante limitados. Seria, por conseguinte, disparatado
considerar as idéias dos peritos como 'verdadeiras', ou 'reais' (...) E,
seria igualmente disparatado apresentá-las à sociedade sem terem a
certeza de que os objetivos profissionais dos peritos estão de acordo
com os objetivos da sociedade.6

Poderíamos nos perguntar: qual dessas duas (ou qual outra?) concepções

decorrem da formação científica em nossas atuais escolas de formação básica?

Ou ainda, que visão da função dos peritos predomina em nossa sociedade?

Antes de esboçarmos uma resposta a estas questões, a exemplo das

situações indicadas no capítulo 1 e do relato de uma professora mencionado na

primeira seção deste capítulo, apresentamos, como sintoma de um problema

5
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 71.
Conhecendo os especialistas 87

muito mais complexo, uma breve descrição de um acontecimento vivido e descrito

por (ACP):

certa vez fui com minha prima levar sua filha ao médico e fiquei
surpreso com o que ela muito irritada me disse após sair do
consultório: "O médico me perguntou o que ela (sua filha) tinha!" e,
surpreendentemente, confessou-me seu desejo reprimido de
responder: "não é o senhor que é o médico? Como posso eu saber o
que ela tem? Se soubesse não precisaria estar aqui!". Fiquei em
silêncio e me perguntei o que teria acontecido se ela respondesse
dessa forma ao médico? E, porque não o fez?

Esse "medo" perante os especialistas (no caso, indicado pela repressão

em se opor ao médico) e a incompreensão dos procedimentos técnicos

elementares aos quais somos submetidos em nosso convívio diário (no caso, o

fato do diagnóstico médico se fundar no histórico do paciente mais que em

resultados de testes ou exames) são os sintomas que nos permitem responder as

questões formuladas recorrendo à primeira concepção (+A) da relação entre os

peritos e a sociedade apresentada pelos gregos antigos. Ou seja, parece que nos

tempos atuais os peritos, como os médicos ou os biólogos com os quais estão

relacionados, por exemplo, produzem conhecimentos; seus conhecimentos não

são postos em causa, criticados, questionados ou alterados pelos leigos; os

conhecimentos científicos parecem alterar as vidas das pessoas em função de

interesses que não beneficiam a maioria da sociedade, os conhecimentos são

assumidos pela sociedade precisamente da forma sugerida. Esse exemplo ilustra

6
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 71.
Conhecendo os especialistas 88

mais uma vez o autoritarismo presente em nossa sociedade e na educação

contemporânea.

O pior é admitir as recomendações dos peritos sem compreender

minimamente seus significados. Em nossa sociedade contemporânea é cada vez

mais dessa maneira que os conhecimentos da Ciência e os cidadãos comuns se

relacionam,

os cidadãos recebem a mensagem dos peritos e não de um pensamento


autônomo. É o que atualmente se considera "ser racional". Partes cada
vez maiores da vida dos indivíduos, famílias, [escolas,] aldeias,
cidades estão a ser ocupadas pelos especialistas. E breve, uma pessoa
não poderá dizer "estou deprimida" sem ter de ouvir a objeção, "com
que então acha-se psicólogo?" Kant escreveu há muito tempo: "Se eu
tiver um livro que deduza por mim, um clérigo que tenha consciência
por mim, um médico que decida a minha dieta e assim
sucessivamente, não preciso de me preocupar comigo. Não preciso
pensar, basta que pague - os outros prontamente aceitarão a fastidiosa
tarefa por mim."7

Estaria desse modo terceirizada a experiência de viver?

Uma educação como iniciação, apoiada na noção de Ciência como

tradição cultural e na concepção (-A) da função dos peritos na sociedade, implica

que não devemos mostrar tão somente as grandes conquistas da Ciência sem

contrapor a elas suas eventuais conseqüências ruins; devemos valorizar os

personagens, peritos, especialistas ou grandes nomes da Ciência enfatizando sua

7
Paul K. FEYERABEND, Adeus à razão, p. 21.
Conhecendo os especialistas 89

natureza humana, denunciando seus conflitos, suas incertezas, suas angústias...

e sempre estando atentos para o domínio de validade dos conceitos da Ciência.

Uma educação científica geral apoiada nesses princípios possibilita aos

alunos distinguir e limitar as noções estudadas aos domínios em que são

formuladas. É importante para um cidadão comum entender, por exemplo, que as

leis da Física ou os princípios da Biologia são fundamentalmente e

estruturalmente diferentes das "Leis do livre Mercado" ou dos "princípios da nova

ordem mundial".

É importante valorizar as citações de Einstein, por exemplo, como um

grande físico, mas somente no que diz respeito aos seus trabalhos em

eletrodinâmica ou relatividade e não considerá-lo um "gênio" em todo e qualquer

assunto, como em política, economia ou estratégia militar, por exemplo.

Ao enfrentarem conflitos gerados por novos conhecimentos, os estudantes,

parecem adquirir percepções instáveis. Não só encaram o conflito em relação ao

conhecimento que estão estudando, mas generalizam rapidamente para toda uma

nova maneira de enxergar e se relacionar com o mundo e a vida. Esses

momentos de instabilidade são condição necessária para o aprendizado e

devemos respeitá-los não impondo nossas próprias opiniões como "verdades

científicas" mas deixando sempre a eles as escolhas finais.

Parece-nos que não é dessa maneira que a educação ocorre nas escolas

de formação básica. Ao contrário, a concepção implícita de que os especialistas,

incluindo ai o professor ou o autor do livro didático, são os donos da "verdade"

castra de imediato essa incerteza e instabilidade produzida pelo conflito entre


Conhecendo os especialistas 90

conhecimentos e "resolve" autoritariamente de forma antecipada e dogmática

todas as escolhas importantes.

Mas não é tarefa simples abdicar de fazer as escolhas pelos outros quando

estamos de posse da autoridade conferida à função de professor. Ao

apresentarmos novas concepções, conceitos ou conhecimentos aos estudantes

nunca conseguimos nos libertar totalmente da impregnação de uma verdade

potencial embutida em nossos argumentos. - o que o professor diz parece

absurdo; mas ele é o professor; logo deve ser verdade; é melhor ficar do lado

dele! - pensa o aluno. Aqui cabe menção a outra ilustrativa situação de

experiência pessoal, descrita por ACP:

lembro-me que quando estava na quarta série do antigo primeiro grau


uma professora de ciência entrou certo dia em nossa classe, um pouco
mal humorada, e começou a explicar coisas sobre a ciência que me
pareceram muito estranhas e contraditórias. Levantei a mão e ela
disse-me para ficar quieto. Fiquei surpreso e angustiado, pois ela era a
professora que eu mais gostava. Ao final de longos trinta minutos a
professora irritada comunicou-nos que a aula havia sido um "blefe" e
as coisas que ela disse eram absurdas frente ao que vínhamos
estudando. Lembro-me do imenso esforço que realizei naquele dia
para acompanhar as idéias expostas a ponto de ficar com uma
tremenda dor de cabeça. Atualmente em minhas aulas incorporei essa
atividade8 (incluir defesas absurdas e incoerentes em algumas de
minhas exposições) o que me parece trazer bons resultados. Os alunos
são levados sempre a desconfiar do que eu estou dizendo e, de certo
modo, ficam um pouco mais livres e atentos para analisar minhas
idéias. Pena que alguns, muitas vezes, recorrem a livros e outros

8
Por exemplo, em minhas aulas, ao incluir o argumento da torre na discussão sobre a imobilidade da Terra
defendo enfaticamente que a Terra não se move contrariando a informação corrente sobre a mobilidade da
Terra.
Conhecendo os especialistas 91

professores mais "honestos" para resolver meus embustes, mas a


maioria dos alunos parece gostar do jogo. O esforço de convencê-los
com argumentações recorrentes e utilizar a Física para esse processo,
além de desenvolver um forte senso crítico corresponde a uma
interessante estratégia de Ensino.

Mostrar a eventual falibilidade dos especialistas e peritos e tentar diminuir a

rigidez da autoridade do conhecimento durante a educação científica no nível

básico de Ensino possibilita uma maior distinção entre a força lógica e o efeito

material do conhecimento científico, ou seja, permite evitar que:

tal como um cachorro bem ensinado obedecerá ao seu dono por mais
confuso que se sinta e por mais urgente que seja a adoção de novos
critérios de comportamento, do mesmo modo um racionalista [ou um
aluno que se prenda à razão do professor] bem ensinado obedecerá à
imagem mental de seu "mestre", observará os modelos de
argumentação que aprendeu, aderirá a esses modelos por muito
confuso que se sinta, e será incapaz de se dar conta de que aquilo que
considera como a "voz da razão" é apenas um efeito causal posterior
do Ensino que lhe foi ministrado. Será incapaz de descobrir que o
apelo da razão a que cede tão prontamente não passa de uma
"manobra política".9

Quanto à escolha de valores, atitudes, conteúdos e elaboração das

atividades a serem objeto do Ensino de Ciências e da Física na escola básica,

para ampliar a relação entre a concepção social de especialista e a educação

científica, cabe ainda acrescentar outros elementos da dimensão externa ao

conhecimento científico propriamente dito. É preciso lembrar que a Física está

9
Paul K. FEYERABEND, Contra o Método, p. 32.
Conhecendo os especialistas 92

presente junto com a Biologia, a Química e as outras disciplinas Humanas e

Sociais e mais ainda, que não compete somente aos professores, coordenadores,

diretores ou qualquer dos outros especialistas da educação definir o que se deve

ensinar, ou como se deve ensinar. Toda instituição de Ensino está imersa em

uma comunidade e seu contexto sócio-cultural que deve ser explicitado e

discutido por todos os agentes e atores do processo de Ensino.

Os currículos, planejamentos, objetivos e outros parâmetros para a

organização da educação escolar devem dialogar sempre, em primeiro lugar, com

a realidade da comunidade a que se destinam. Caso contrário, as propostas de

especialistas em educação não se ajustarão ao contexto de uma instituição

escolar específica e, por esse motivo, serão artificiais e enganadoras.

Muito mais adequado que um conjunto qualquer de valores, conteúdos,

parâmetros, ditados de forma autoritária sobre os professores é a definição pela

escola de seu projeto político pedagógico envolvendo não só os professores,

orientadores educacionais e outros agentes da escola, mas também, e

fundamentalmente, a comunidade em que a escola está inserida.

Também um monitoramento rigoroso ou uma sistematização exaustiva do

processo educativo ou ainda a limitação a um sistema pedagógico rígido pode

matar as reais oportunidade de Ensino. Que fazer quando um aluno traz uma

questão não considerada no planejamento das aulas mas de fundamental

relevância para a continuidade de estudos de um determinado assunto? Ou como

agir frente a um acontecimento inesperado seja, por exemplo, o ataque ao World

Trade Center ou a inundação de parte da escola pelas chuvas recentes?

Quem melhor para decidir, em última instância, os detalhes finais de como

ensinar a resolução de problemas em matemática, ou a incorporação de regras


Conhecendo os especialistas 93

gramaticais na escrita, ou a contextualização histórica de um fato se não os

professores envolvidos diária e arduamente nesta tarefa?

Um professor de matemática ao ensinar subtração, por exemplo, pode ser

surpreendido, e muitas vezes o é, por várias maneiras diferentes de resolver as

contas. E por que não aproveitar o procedimento trazido pelo aluno e estimulá-lo

a apresentar ao restante da classe?

Existirão referenciais absolutos que justifiquem “teorias educacionais

oficiais”, "modelos pedagógicos gerais" ou "parâmetros curriculares nacionais"

para a organização de uma dada aula sem levar em conta as reais necessidades

dos alunos que compõem uma classe dentro de uma determinada escola?

A prática de cada especialista tem suas peculiaridades próprias no

contexto social e institucional no qual está inserido. Ao médico cabe curar e

orientar para a saúde, ao professor cabe educar e ensinar, ao jardineiro cabe

cuidar do jardim, e assim por diante.

Mas também em educação, não estamos propondo a eliminação dos

especialistas. Em nossa concepção, a função das pesquisas em educação não é

a de estabelecer um referencial preciso sob o qual o professor deve guiar-se

rigidamente ou limitar sua prática de atuação; nenhum modelo de Ensino pode

produzir padrões e elementos estruturais absolutos que sirvam a todas as

situações de Ensino; quando confrontados com um problema concreto em sala de

aula, os professores podem se servir de diferentes pesquisas em educação,

muitas vezes conflitantes, mas sempre devem considerar as peculiaridades da

situação em que estão atuando, da instituição a que pertencem, das

necessidades de seus alunos.


Conhecendo os especialistas 94

É preciso ainda garantir a formação e o acesso permanente à informação

oferecidos aos professores, em muitos casos, enriquecer os programas das

licenciaturas, permitir fórum de debate entre professores de áreas afins ou

simplesmente garantir a assinatura de revistas e jornais pela biblioteca escolar

são "medidas pedagógicas" significativas.

Assim, o melhor que um trabalho de investigação em Ensino de Ciência

pode fornecer para os professores é explicitar contextos institucionais, resgatar os

valores socialmente estabelecidos para a escola, enumerar atividades práticas,

organizar exemplos históricos, apresentar casos estudados que contenham

processos diversos, demonstrar a complexidade das relações de Ensino e

prepará-los, deste modo, para as dificuldades de que só eles poderão decidir

como enfrentar. Ao estudarem nossos trabalhos teóricos ou experimentais, ao

ouvirem a nossa história, os professores e os outros atores do processo educativo

ficarão sensibilizados para a riqueza desse processo e as peculiaridades do

Ensino de Ciência. Se quiserem promover avanços e transformar seu modo de

Ensino, sentir-se-ão impelidos a pôr de lado as "teorias educacionais da moda" e

os "princípios psico-pedagógicos rígidos" e começar a pensar em formas próprias,

mais criativas, humanizantes e determinadas por uma proposta político

pedagógica coletiva. E, é somente assim que podemos ajudá-los.

A educação científica no âmbito escolar deve representar uma componente

importante de um projeto político pedagógico livrando-se da rigidez de

procedimentos pedagógicos pré determinados, parâmetros curriculares gerais ou

pretensas teorias educacionais modernas, e contribuir para envolver a

comunidade escolar na escolha do modo de trabalhar, desde que sejam

respeitados certos valores sócio-culturais discutidos e estabelecidos no âmbito da


Conhecendo os especialistas 95

instituição de Ensino a que pertence e desde que esta instituição de Ensino esteja

de acordo com uma política de conscientização crítica, libertação ideológica e

valorização da cultura agregando ou questionando valores representativos da

sociedade na qual ela se insere.

Esse modo de organizar a orientação de professores pode afligir alguns

teóricos e especialistas da educação por estarem preocupados em melhorar a

pretensa eficácia dos procedimentos de ensino, mas esta aflição não é legítima

da perspectiva dos professores e de outros atores educacionais nas instituições

de ensino que são aqueles que têm as reais condições de, em cada aula, em

cada momento de uma aula, para cada situação, decidir a forma de ensinar.

A função dos especialistas em educação, diretores, coordenadores ou

assistentes pedagógicos no que se refere as práticas em sala de aula, é

disponibilizar um máximo possível de recursos, experiências e espaços de troca

entre professores, alunos e a comunidade. Para que eles, os professores, como

representantes de tradições culturais oriundas do saber que lhes cabe ensinar, e,

de acordo com a proposta político pedagógica das instituições que compõem,

possam a cada instante decidir.


3. Obediência versus Ousadia na formação científica

O entendimento é capaz de ser instruído e


abastecido por regras, mas a faculdade de julgar
é um talento particular que não pode ser
ensinado, mas somente exercitado.1

Passamos a analisar, nesta seção, algumas perspectivas educacionais

para a formação em Física no nível Superior de Ensino. Estamos interessados na

relação do estudante de Física do nível superior (aspirante a físico ou a professor

de Física) com os métodos científicos, os modelos epistemológicos e

principalmente com o convício na prática de diferentes grupos de pesquisa.

Na seção anterior ao discutir a função do "especialista" na sociedade

contemporânea, na educação básica e no Ensino de Física, já indicamos algumas

peculiaridades de sua atuação como tal. Tendo em mente esses elementos,

passamos a analisar a formação científica dos especialistas em Física,

especialmente no que se refere ao conflito entre aprender e obedecer às regras

metodológicas nas quais são inseridos ao longo de sua formação e duvidar e

ousar ou questionar essas mesmas regras e preceitos. Insistimos no fato de

considerarmos que a formação desses profissionais só pode ocorrer em um

ambiente de pesquisa com uma máxima diversificação de grupos estabelecidos e

1
Immanuel KANT, Crítica da razão pura. p. 102.
Obediência Versus Ousadia na Formação Científica 97

atuantes possibilitando, assim, a vivência, o debate e a discussão da Física e de

seu Ensino entre os estudantes.2

Já mencionamos anteriormente que os estudantes não são

conceitualmente neutros, ou seja, ao chegarem à escola trazem conhecimentos

adquiridos em outras tradições de sua experiência de vida e das relações

desenvolvidas de todo seu convívio no mundo que o cerca. Nas atividades de

sala de aula e de estudo individual surgem conflitos entre o conhecimento trazido

pelo estudante e o conhecimento da Física - pelo menos nas séries iniciais, antes

dos estudantes cederem à autoridade do discurso do professor. Nas situações de

conflito costuma-se simplesmente ignorar o conhecimento prévio do aluno em

favor do saber científico. É o que normalmente acontece no Ensino de Física,

conforme denuncia Villani:

... o conhecimento científico adquirido na escola é apresentado, com a


autoridade do professor e do livro-texto, numa forma já final, abstrata
e sistematizada, corroborada, na melhor das hipóteses, de exemplos
apropriados.3

Com uma concepção de conhecimento definitivo e autoritário ficam

eliminadas algumas dimensões importantes da constituição e natureza do saber

científico. Desse modo, a Física escolar acaba por ficar alijada das dimensões

filosófica e histórica que conferem à Ciência o caráter de tradição cultural.

2
Com essa ressalva estamos restringindo nossa discussão à formação realizada nas universidades que
associam pesquisa e ensino em oposição às muitas "escolas de ensino superior" que têm surgido
recentemente no Brasil.
3
Alberto VILLANI, Ensino de Física: dos fundamentos à prática. p.19
Obediência Versus Ousadia na Formação Científica 98

Encontramos várias situações na história da Ciência em que o confronto

entre idéias concorrentes ao invés de inibir permitiu uma interação construtiva e

contribuiu para o avanço da compreensão Física dos fenômenos envolvidos. Um

exemplo interessante foi a oposição entre as teorias ondulatória e corpuscular

para a natureza da luz. Os cientistas oscilaram (ou saltaram?) entre uma

descrição e outra em diferentes períodos históricos sem, contudo, implicar em

uma completa superação de uma teoria sobre a outra; outro exemplo é a luta

entre as visões heliocêntrica e geocêntrica do mundo, sem uma "vitória final" de

uma sobre a outra.4

Manter o confronto entre as concepções prévias dos estudantes,

aprendidas pelos alunos antes do estudo escolar, e as noções científicas, além de

sua importância didática, possui um valor fundamental para a vida e ainda para a

própria Ciência - se concebida como uma tradição cultural: a constatação dessas

idéias prévias serem as fontes iniciais de intuições para o conhecimento científico.

Este ponto também é discutido por Villani ao sugerir que essas idéias

não têm somente um papel negativo. Além de ter um valor prático,


auxiliando às vezes a solução rápida de problemas cotidianos, elas têm
também um valor teórico, como possíveis alternativas ao saber
científico atual, na medida que expressam de maneira rudimentar
intuições básicas sobre a natureza que poderão substituir as imagens
básicas atualmente utilizadas pela ciência.5

4
Este exemplo será analisado em detalhes na seção seguinte. Refere-se ao importante resultado, de acordo
com os princípios da mecânica relacional, dessas duas visões de mundo serem ainda hoje totalmente
equivalentes como na dualidade onda-partícula.
5
Alberto VILLANI, Ensino de Física: dos fundamentos à prática. p.23
Obediência Versus Ousadia na Formação Científica 99

Cabe ressaltar que as noções trazidas pelos alunos não surgem

naturalmente e são fruto de conhecimentos de outras tradições, ou mesmo de

fragmentos de conceitos da Física difundidos nos ambientes familiar e outros

espaços sociais freqüentados pelos alunos. Essas idéias são de grande

importância em situações em que existam conflitos com o saber científico.

Quando identificados devem ser aprofundados pelos alunos de modo a serem

considerados e não ignorados e de alguma forma respeitados durante o Ensino.

Para esclarecer esse aspecto positivo da sobrevivência do conflito entre

concepções prévias e teorias científicas para o desenvolvimento da Ciência,

Villani cita um exemplo muito interessante de uma criança de quatro anos que, ao

ser interrogada sobre o que era a luz, respondeu:

A luz é como a chuva, feita de pingos muito pequenos que passam por
todos os buracos, mesmo os mais finos. 6

A partir da análise desse caso, Villani propõe uma postura mais equilibrada

frente aos conflitos de conhecimentos em sala de aula ao atribuir um valor

precioso aos conhecimentos prévios dos alunos, como faz notar ao afirmar que:

Certamente no final do século passado um professor teria achado esta


idéia poética [a da luz em forma de pingos], mas muito distante e
oposta à idéia científica reinante de que a luz é uma onda
eletromagnética continua. Entretanto, no começo deste século [-refere-
se ao séc. XX] Einstein [que poderia ter sido aquele menino com sua
visão poética da natureza] propôs, e com boas razões, a idéia de que a
luz, em última análise, é constituída de "pingos" de energia, muito
Obediência Versus Ousadia na Formação Científica 100

pequenos, capazes de entrar no interior dos materiais e interagir com


seus átomos (...) a percepção de que muitas das idéias espontâneas
[melhor dizendo, concepções prévias] sobre o mundo físico
constituíram a base inicial do conhecimento científico do passado e de
que, muitas vezes, o progresso científico se deu retomando imagens
simples do passado [e de que a ciência é uma tradição histórica e não
uma verdade acabada], poderá ajudar professores e estudantes a ter
uma posição mais equilibrada sobre o valor do conhecimento
espontâneo [ou conhecimento prévio].7

A idéia de que as concepções prévias têm algum valor para a Ciência e

sua associação com a compreensão de que as verdades científicas são

provisórias constitui o elemento principal da análise que estamos desenvolvendo

nesta seção. A formação científica não pode eliminar as concepções prévias dos

estudantes mas, ao contrário, precisa estimular o aprendizado da Ciência a partir

do esclarecimento dessas concepções em debate "aberto" com as noções da

Ciência. Caberá sempre, ao estudante, e não ao professor, a tarefa de optar pelo

saber científico em detrimento de suas intuições prévias tornando-se assim

senhor do seu saber e não (re)transmissor de idéias alheias.

Não estamos com isso propondo que os estudantes não devem aprender

Ciência e ficar com seus próprios modelos, ou que não devem ser avaliados

quanto ao aprendizado do saber científico, mas ao contrário, que eles precisam

aprender a conviver com o conflito entre suas concepções prévias e as noções

6
Alberto VILLANI, Ensino de Física: dos fundamentos à prática. p.23
7
Cf: Alberto VILLANI, Ensino de Física: dos fundamentos à prática. p.24. Utilizamos a expressão
concepção prévia para os conhecimentos acumulados pelos alunos antes do início do ensino escolar de
ciência, ao invés de expressões como conceitos intuitivos ou concepções espontâneas por considerar que
estas últimas transmitem a idéia de conhecimentos do mundo natural passíveis de serem inferidas de
experiências puramente empíricas do cotidiano, naturalmente existentes de forma latente e intuitiva ou que
surgiriam em manifestações espontâneas.
Obediência Versus Ousadia na Formação Científica 101

científicas, de modo a compreender melhor a ambas; e ainda, que devem ser

avaliados e se avaliarem, de maneira a perceber a forma como suas concepções

permeiam as respostas dadas aos problemas propostos pelo professor e pela

vida.

Na formação científica é preciso considerar as duas "faces do jogo":

conhecer o "outro" para reconhecer o "eu"; obedecer para saber ousar; imitar para

desenvolver a criatividade; estar atento para aproveitar as oportunidades; admitir

o ódio, o medo e a dúvida para identificar a paixão, a coragem e a certeza;

superar a indiferença para manter o entusiasmo... compreender as noções

científicas para imprimir-lhes nossas concepções.

Além da natural inserção neste processo de duas faces, quando se

estabelece contato com uma comunidade diversificada de pesquisadores,

consideramos fundamental ao longo da formação em Física um refletir sobre esse

processo de inserção. Por isso, em algum momento da formação (melhor seria

ao longo de toda ela), é fundamental a apresentação de modelos

epistemológicos, como os de Popper, Kuhn, Bachelard, Laudan, ou outros, para

assim propiciar um refletir sobre esse processo.

Conceber a formação científica como jogo entre obediência e ousadia dá

maior fôlego aos estudantes naqueles momentos em que atuam nas tarefas mais

chatas e entediantes que antecedem a compreensão da Física. A possibilidade

latente de transgredir as regras acrescenta um "tempero" especial permitindo

manter o entusiasmo frente às tarefas corriqueiras. Suspeitar que os erros e

dificuldades do aprendizado são conseqüências do conflito entre uma intuição

mais profunda sobre a natureza e aquela oferecida pela Física pode facilitar, ou

pelo menos estimular, um aprofundamento dos conceitos estudados.


Obediência Versus Ousadia na Formação Científica 102

Enfatizamos a importância de incluir aspectos da história (inclusive com

teorias que foram tradicionalmente superadas pela Ciência estabelecida), das

filosofias da Ciência (mais de uma para que não se torne uma diretriz dogmática)

e, quando possível, dos debates atuais sobre os limites e as fronteiras do

conhecimento científico (contemplando propostas alternativas ou polêmicas)8 em

aulas, seminários e debates da formação em Física. Um maior entendimento do

conteúdo de uma dada teoria científica só pode ser obtido com o seu confronto

com outras teorias, e as teorias para o contraste devem ser procuradas onde quer

que estejam disponíveis, tanto no presente como no passado.

O objetivo da formação científica não pode ser o de destruir as

concepções prévias dos estudantes sobre o mundo físico chocando-as

autoritariamente com as idéias da Física. Neste sentido é que entendemos as

idéias de Feyerabend contra a excessiva simplificação do Ensino das Ciências

com a eliminação de seus aspectos histórico, religioso, metafísico e humano.

Enfatizamos que a existência de grupos de estudos ou pesquisa e a

"obediência" ao professor ou orientador é indiscutivelmente importante para a

formação científica. A resistência oferecida pelo grupo frente às idéias individuais

gera o primeiro "campo de batalha" que novas teorias têm de enfrentar se

quiserem substituir os padrões científicos amplamente estabelecidos. Nessa

ocasião, serão resolvidas as maiores dificuldades entre os conflitos do

conhecimento e outras ainda surgirão em função do reconhecimento mútuo de

8
Cabe mencionar aqui que parece ter sido esse o caso quanto à mecânica relacional. O professor André Assis
disse em um seminário realizado na USP ter sido estimulado à busca de uma mecânica alternativa pela
incompreensão do referencial sobre o qual se descrevia a força de Lorentz. Isso, teria ocorrido, segundo ele,
ainda quando estudante de graduação.
Obediência Versus Ousadia na Formação Científica 103

idéias entre os membros do grupo. Somente concepções capazes de resistir ao

debate interno ao grupo sairão para o confronto com outros grupos. Nestes

últimos casos tornar-se-ão importantes elementos como a propaganda e a

utilização de procedimentos contra-indutivos, como discutimos na segunda seção

do capítulo anterior. Mas é preciso, além de tenacidade, ter paciência e cautela,

pois, ao desenvolver novas idéias, antes de questionar com maior voracidade

uma noção científica, é preciso compreendê-la em profundidade ou contar com o

respaldo de quem já tenha uma firme reputação e experiência estabelecida.

Enfim, esperamos ter completado, a partir da análise do conflito entre

obediência e ousadia, concepções prévias e noções científicas, a visão de

Ciência como tradição cultural e suas implicações também para o Ensino em nível

superior. Ilustraremos as idéias aqui apresentadas por meio do estudo da noção

de inércia aplicada ao problema do movimento da Terra.


UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

INSTITUTO DE FÍSICA E FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TEXTO - SUBSÍDIO

IV - O Problema da (I)mobilidade da terra

Alexandre Custódio Pinto

João Zanetic (Orientador)

IV Capítulo da Dissertação:
Tradição Cultural, Contraste
entre Teorias e Ensino de
Física, apresentada ao
Instituto de Física e à
Faculdade de Educação
como parte dos requisitos
necessários à obtenção do
título de mestre em Ensino
de Ciências - Modalidade
Física.

Dezembro de 2002
105

1. A Terra se Move?

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Vamos juntos fazer uma viagem pelo Universo da Física, explorando as

muitas formas possíveis de responder à questão do movimento da Terra:

A Terra se move? Como podemos nos certificar?

Apresentamos no texto que segue várias concepções conflitantes sobre

essa questão. É importante entendermos juntos cada uma delas. Para isso será

preciso, além da leitura, um esforço de evitar pré-concepções; a realização das

atividades sugeridas; a realização das pesquisas e a leitura dos textos sugeridos

para aprofundamento.

Vamos lá?

O Sistema Geocêntrico de Mundo

Durante o dia ao olhar para o céu observamos o Sol nascer de um lado,

chamado Nascente ou Oriente, mover-se por sobre nossas cabeças e ao final da

tarde se por do outro lado do céu na região chamada de Poente ou Ocidente.

Em um período complementar ao dia observamos a noite. No lugar do Sol

são as estrelas que navegam no céu do Nascente ao Poente. Ao observarmos

esse movimento das estrelas não descobrimos a princípio nenhuma modificação

nas posições de uma estrela em relação às outras, ou seja, elas giram todas

juntas ao redor da Terra e por isso em seu conjunto foram batizadas de estrelas-

fixas (em observações modernas verifica-se que estas estrelas não são

exatamente fixas entre si). Grupos de estrelas fixas associadas, com um pouco de
106

imaginação, formaram o que chamamos de constelações. Noite após noite

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


observamos o conjunto das estrelas-fixas aparentemente girarem ao redor da

Terra.

Há, no entanto, algumas "estrelas" que não obedecem de igual modo esse

movimento noturno nos céus e foram batizadas de "astros errantes" ou "planetas".

Os planetas, além de não acompanharem o movimento das outras estrelas, em

determinadas épocas do ano, chegam até a deslocarem-se no céu em sentido

contrário. Esse movimento em sentido contrário ao conjunto das estrelas-fixas é

chamado de movimento retrógrado.

Todas essas observações ao longo de milênios preocuparam os homens e

os levaram a especular sobre a estrutura do Mundo. Considerando que

observamos nitidamente o movimento do Sol de dia e das estrelas à noite em

torno da Terra, parece razoável, inicialmente, propor o mais "simples" dos

sistemas de mundo: o Geocentrismo.

Segundo o Geocentrismo, a Terra ocupa uma posição central no universo

e todos os corpos giram ao seu redor. Essa proposta foi sistematizada pelo Grego

Ptolomeu no segundo século depois de Cristo. Em alguns casos, quando

realizamos medidas do céu a partir da Terra (Astrometria e Mecânica Celeste),

ainda hoje, é muito conveniente adotar um sistema de coordenadas em que nós

estamos sobre a Terra e juntos com ela em repouso no centro do Universo

(Observação Topocêntrica). Por exemplo, para a localização em alto mar utiliza-

se o movimento das estrelas com o auxílio de mapas astronômicos.

A descrição geocêntrica não é a única possível.


107

O Sistema Heliocêntrico

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Quando estamos em um veículo que se move com velocidade constante

(um trem, uma carroça, um automóvel, etc) observamos árvores, pessoas, casas,

postes e tudo o mais que está à beira da estrada se deslocar da frente para trás

do veículo. Sabendo que estamos em um veículo, nos acostumamos a utilizar a

observação do movimento dos objetos externos como indicador de que nós é que

estamos nos movimentando.

De igual modo, para as observações do movimento das estrelas e do Sol,

podemos ainda levar em conta uma segunda concepção de mundo com uma

descrição um pouco mais abstrata: o sistema Heliocêntrico do Mundo, ou seja,

passamos a considerar o Sol parado e a Terra girando ao seu redor.

Durante o dia ao olhar para o céu observamos o movimento aparente do

Sol. Ele parece nascer de um lado (Nascente), mover-se por sobre nossas

cabeças e ao final da tarde se pôr do outro lado do céu (no Poente). No entanto,

sabendo que a Terra se move, constatamos que esse é somente um movimento

aparente, como no caso do movimento das árvores que observamos dentro de

um carro em movimento.

Também à noite, observamos as estrelas aparentemente se deslocando no

céu entre o Nascente e o Poente. Mas, como sabemos, é a Terra que está

girando, e, por esse motivo, é que observamos esse movimento aparente do

conjunto das estrelas.

A concepção heliocêntrica do mundo permite para alguns problemas

simplificar bastante a descrição do movimento. Por exemplo, no caso da

determinação da órbita dos planetas, praticamente evitamos o movimento de vai-


108

e-vem no céu (movimento retrógrado). No sistema heliocêntrico, a Terra não

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


ocupa uma posição central no universo. Essa posição privilegiada passa a ser

ocupada pelo Sol. Esse sistema foi aprimorado pelo polonês Copérnico, no

século XVI, que se inspirou nas concepções de antigos gregos, dentre eles

Aristarco, e do cardeal medieval Nicolau de Cusa.

Velocidade de rotação cinemática

A partir das observações astronômicas medimos o período (T) de um dia

como sendo de aproximadamente 24 horas (86.400 segundos) e assim podemos

calcular a rotação cinemática da Terra (ωk):


ωk = ≈ 7 × 10 −5 s −1
T

Esse cálculo vale tanto para o sistema Geocêntrico como para o

Heliocêntrico, com a diferença de considerarmos a rotação das estrelas-fixas ou

da Terra respectivamente.

Essa velocidade é denominada cinemática por ter sido obtida apenas a

partir das posições e dos tempos ocupados pela Terra.

Além da rotação relativa entre a terra e o conjunto das estrelas-fixas

conhecida desde Ptolomeu, hoje em dia, dispomos de duas outras formas de

observar a rotação cinemática da Terra e, conseqüentemente, obter o valor de ωk:

a rotação da Terra em relação ao conjunto de Galáxias distantes e a mais

moderna das rotações cinemáticas para a Terra, sua rotação em relação à

radiação cósmica de fundo - CBR (sigla de Cosmic Background Radiation).


109

A radiação cósmica de fundo é bastante isotrópica, isto é, ela é igualmente

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


distribuída em todas as direções do céu. Mas, como a Terra gira em torno de si

mesma, segundo uma concepção heliocêntrica ampliada, ou o universo como um

todo responsável pela radiação, gira em torno da Terra, segundo a concepção

geocêntrica, surgem desvios Doppler que podem ser detectados e medidos para

a determinação de ωk.

Equivalência cinemática entre os sistemas de mundo

Nenhuma das quatro formas de medir o movimento de rotação da Terra

(movimento relativo em relação ao Sol, movimento relativo em relação às

estrelas-fixas, movimento relativo em relação ao conjunto das Galáxias distantes

e movimento relativo em relação à radiação cósmica de fundo) permite escolher

entre os sistemas heliocêntrico ou geocêntrico do mundo.

O geocentrismo, o heliocentrismo ou qualquer outro sistema que se baseie

apenas em grandezas cinemáticas são equivalentes para descrever a aparência

do movimento dos céus.

Não é possível responder a questão da (i)mobilidade da Terra a partir de

descrições astronômicas puramente cinemáticas.

Assim, verificamos que não é possível resolver o problema da (i)mobilidade

da Terra a partir das observações do movimento aparente das estrelas-fixas ou

de outra descrição cinemática e astronômica. Escolher entre o sistema

geocêntrico e o heliocêntrico, tendo por base somente estas observações, é mera

questão de gosto, ou de simplificação dos dados.

Até aqui não há definição para a resposta do movimento da Terra.


110

2. Ciência, Religião, Mitos e Lendas

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Vamos explorar uma segunda forma de responder a questão do movimento

da Terra, a partir da realização de uma atividade de pesquisa.

Com o propósito de investigar as mais diferentes fontes de informação

possíveis, sugerimos uma atividade de pesquisa e estudo. Essa atividade será

tanto melhor quanto mais pessoas puderem participar e quanto mais fontes

disporem.

1) Busque em fontes não científicas (folclóricas, religiosas, místicas,

lendas, contos, letras de música, textos literários, tradições indígenas, ficções

científicas, etc...) informações que ajudem a responder a questão do movimento

da Terra. Além das respostas procure identificar quais são seus pressupostos, ou

seja, em que se baseiam as informações e a forma como foram obtidas.

2) De posse das informações organize-as em grupos. Primeiro, quanto à

resposta propriamente dita (a Terra move-se ou não?); a seguir, quanto à forma

como foi obtida a resposta à questão do movimento da terra nas fontes

pesquisadas (observação, experimentação, analogia, revelação, etc).

3) Troque suas informações, relate e registre suas impressões sobre o

maior número possível de respostas disponíveis.

4) Guarde sua produção e reveja-a durante e ao final da leitura deste texto.


111

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


5) Aprecie o poema Canção da Janela Aberta, de Mario Quintana,

reproduzido a seguir, identificando as estrofes que se referem ao movimento da

Terra ou das Estrelas em torno dela.

Canção da Janela Aberta

Passa nuvem, passa estrela,


Passa a lua na janela.
Sem mais cuidados na terra,
Fico olhando para o Céu...
E o quarto, assim, pela noite
Imensa e triste, navega...
Deito-me ao fundo do barco...
Que silêncio faz o Céu!
Adeus, Cidade Maldita
que lá se vai o teu Poeta.
Adeus para sempre, Amigos...
Vou sepultar-me no Céu!...
112

3. O Argumento da Torre

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Passamos a estudar um argumento histórico favorável à resposta de que a

Terra não se move. A Terra está parada no centro do Universo?

Conhecer episódios da História da Ciência nos permite investigar a origem

do modo como atualmente a Ciência concebe seus conceitos e responde suas

grandes questões. Mais que entender uma noção científica, é preciso fazer o

esforço de se colocar no lugar dos personagens e no tempo em que ela se

originou para compreendê-la de forma mais ampla e aceitar sua legitimidade.

Ao contrário do que costuma ser difundido, a física aristotélica, defendida à

época de Galileu, não era em nada simplista. Era uma física altamente refinada e

fortemente apoiada em dados empíricos. Os aristotélicos desenvolveram

sofisticados argumentos contrários ao movimento da Terra, totalmente coerentes

com a visão reinante em sua época.

Não podemos simplesmente, à luz das concepções aceitas atualmente,

interpretar de forma parcial ou desrespeitar os escritos dos filósofos geocentristas

que se opuseram à imposição do sistema heliocêntrico do mundo. Os argumentos

contrários ao heliocentrismo não foram resolvidos em confrontos lógicos e

racionais. Eles foram vencidos pela propaganda de uma nova ciência, como

veremos mais adiante, que minou as forças dos defensores da concepção

geocêntrica do mundo.

Com o intuito de ilustrar um desses argumentos contrários ao movimento

da Terra, descrevemos o Argumento da Torre, utilizado pelos ptolomáicos para

justificar o repouso do nosso planeta.


113

O Argumento da Torre:

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


a observação mostra que os corpos graves caindo de cima tomam uma
linha direta e vertical até à superfície da Terra. Tal é um argumento
considerado irrefutável em favor da imobilidade da Terra. Porque, se
ela tivesse a rotação correspondente diária, uma torre de cujo topo
deixássemos cair uma pedra, sendo transportada pelo girar da Terra,
viajaria muitas centenas de jardas para leste durante o tempo que
demorasse a queda da pedra, e a pedra atingiria a Terra a essa mesma
distância da base da torre. (GALILEU, Dialogue, p.126)

Esse argumento propõe um experimento que corresponde a deixar cair do

alto de uma torre ou prédio uma pedra e verificar a que distância da linha vertical

a pedra se desvia para o lado leste. Segundo essa idéia, caso a pedra se desvie

será possível determinar, a partir da medida do desvio, a velocidade de rotação

da Terra. Caso contrário, ou seja, a pedra não se desvie durante seu movimento

de queda, será preciso aceitar que a Terra não está em movimento.

Esse argumento é bastante forte e seu resultado, baseado em dados de

observação, convenceu muitas pessoas à época dos geocentristas.

Mas, antes de prosseguirmos nossa viajem e revelarmos qual o desfecho

dessa história, é preciso responder com convicção a pergunta: onde a pedra

realmente cai?
114

4. Onde a Pedra cai?

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Considerando válido o argumento da Torre, é possível calcular o desvio

que uma “pedra” sofreria durante sua queda de um prédio devido ao movimento

leste-oeste da Terra?

Sim. Então vamos calcular!

A pedra é solta de uma altura h do alto de um prédio. Vamos considerar

três valores para a altura h (ver figura1): h, h' e h".

Figura 1

Segundo o Argumento da Torre, se a Terra estivesse parada a pedra cairia

perpendicular ao prédio, no entanto, e admitindo que a Terra possui movimento

diário de rotação, a pedra deve ser desviada de uma certa distância (d, d' e d") de

sua posição original por conta do movimento da Terra. Quanto maior h maior será

d. Assim na figura 1: d é maior que d' que é maior que d". Para o caso da Terra

não possuir movimento de rotação d esperado deveria ter valor nulo (d = zero).
115

Vamos calcular qual deve ser o valor de d em função de h? Como

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


podemos a partir da altura do ponto em que a pedra é solta obter o valor do

desvio esperado devido ao movimento da Terra?

Em primeiro lugar, precisamos obter o tempo de queda da pedra.

Admitindo uma aceleração da gravidade g constante e que a pedra foi

abandonada em repouso no alto do prédio, teremos um movimento

uniformemente acelerado dado por:

h − ho = v o t + 1 2 at 2 (1)

onde: h – ho = h é a altura do prédio (h, h’ e h”)

vo é a velocidade inicial da pedra (no caso nula)

a é a aceleração da gravidade local (g de aproximadamente 9,8 m/s2)

t é o tempo de queda da pedra

Ficamos então com:

h= 1
2 gt 2 (2)

2h
t= (2)
g

Vamos utilizar a equação (2) para calcular o possível deslocamento da

pedra, devido ao movimento da Terra.


116

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


figura 2

O período de rotação da Terra em volta de seu eixo é de 24 horas ou

86.400 segundos. A velocidade de deslocamento na direção leste-oeste de um

ponto P da superfície da Terra (ver figura 2) pode ser obtida por:

r r r
V = ω × RT (3)

r
Com, V : Velocidade do ponto P

r 2π
ω : Velocidade angular da Terra: ≅ 7,3 × 10 − 5 s −1
86.400
r
RT : Posição do ponto P (Raio da Terra = 6.370 Km)

Podemos obter o módulo dessa velocidade dado por:

V = ω ⋅ RT ⋅ sinθ (4)
117

O ângulo θ corresponde a Colatitude (90o - Latitude).

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Para a Cidade de São Paulo, a Latitude é de 23o 33' ou 0,4 rad, e a

Colatitude é dada por θ = 66o 27' ou 1,2 rad.

Substituindo os valores na equação 4, obtemos a velocidade de

deslocamento leste-oeste para um ponto da superfície da Terra, localizado na

Cidade de São Paulo:

V = ω ⋅ RT ⋅ sinθ

V = 7,3x10-5 s-1 . 6,4x106 m . sin(1,2)

V = 430 m/s

Finalmente, obtemos a equação do desvio da pedra multiplicando a

velocidade V pelo tempo de queda t obtido na equação 2:

2h
d= ⋅V ≅ 193 ⋅ h m (5)
g

O valor 193 corresponde a uma constante para a Cidade de São Paulo

2
obtida pelo produto de (com g = 9,8 m/s2) pela velocidade V de 430 m/s.
g

Assim, obtemos a relação entre a altura em que a pedra é solta e o valor

esperado para o desvio da pedra na direção leste-oeste:

d ≅ 193 ⋅ h m
118

Vamos realizar uma atividade para nos certificar dos resultados:

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


1) Escolha três prédios próximos ao local onde você se encontra.

2) Estime o valor da altura h de cada um deles.

3) Calcule qual deve ser o desvio d na direção leste-oeste de uma pedra

abandonada do alto de cada um dos três prédios, considerando o argumento

aristotélico da torre. (Atenção caso você não esteja na Cidade de São Paulo!)

4) Responda à questão: O desvio de uma pedra abandonada do alto de um

prédio na Cidade de Natal, deve ser menor, igual ou maior que o desvio de uma

pedra que cai do alto de um prédio de mesma altura localizado na Cidade de

Florianópolis? Por quê?

5) Obtenha a equação de desvio para uma pedra que cai de uma altura h

na superfície da Lua.

6) Faça a comprovação. Suba ao local mais alto a que tenha acesso com

segurança, solte uma pedra e confira o valor esperado para o desvio. É

importante usar uma pedra o mais redonda possível, para evitar a resistência do

ar e primar pela segurança. (Cuidado para não cair do prédio ou acertar a cabeça

de algum passante!).

7) Analise seus resultados.

8) Segundo o Argumento da Torre e de posse dos dados observados e

cálculos efetuados o que se pode concluir quanto ao movimento da Terra?


119

5. Mais argumentos...

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


O Argumento da Torre é bastante convincente e por isso um importante

instrumento para instigar a busca por mais explicações, para além de uma

aceitação dogmática do movimento da Terra. A ciência está repleta de

argumentos e exemplos históricos que aparentemente nos levam a situações de

conflito do conhecimento, mas que, se adequadamente explorados, podem fazer

avançar nossa compreensão. É o caso dos paradoxos na Teoria da Relatividade,

por exemplo.

Para o estudo do movimento da Terra, e ainda considerando sua pretensa

imobilidade, propomos uma atividade para encontrar mais argumentos...

1) Tomando por base o Argumento da Torre imagine outras situações

conflituosas que se originariam do movimento da Terra (por exemplo, a

dificuldade de um pássaro reencontrar seu ninho, ou...).

2) Pergunte a outras pessoas, de diferentes níveis de escolaridade, se

conhecem argumentos que coloquem em dúvida a afirmação de que a Terra se

move. Registre suas respostas.

3) Colecione os argumentos. Organize-os. Troque-os com outros. Registre

suas impressões.

4) Classifique os argumentos encontrados quanto à forma como são

obtidos, segundo as mesmas categorias usadas na atividade ciência, religião,

mitos e lendas: observação, experimentação, analogia, revelação, etc...

5) Qual a diferença entre seus registros na atividade ciência, religião, mitos

e lendas e nos seus novos registros desta atividade (mais argumentos...)?

6) Guarde todos os seus registros para uma retomada mais à frente.


120

7) Aprecie e discuta, considerando os argumentos até agora encontrados,

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


o texto O mais Barato Meio de Transportes do interessante livro Aprenda Física

Brincando de J. PERELMAN, pgs 249 e 250. (SUGESTÃO: Você também pode

usar alguns de seus argumentos para produzir histórias ou contos de ficção que

tentem justificar a imobilidade da Terra.)

O mais Barato Meio de transportes

Na sua satírica História dos Estados Lunares (1652), o espirituoso


escritor francês do século XVII, Cyrano de Bergerac descreve um fato
espantoso que supostamente lhe teria acontecido. Ao realizar uma
experiência certo dia, foi suspenso no ar com todas as suas retortas.
Ao aterrissar algumas horas mais tarde, surpreendeu-se em não mais
se encontrar em seu solo pátrio, a França, e nem mesmo na Europa,
mas no Canadá. Embora pareça estranho, Cyrano de Bergerac
acreditou completamente na possibilidade de seu vôo transatlântico,
argumentando que enquanto estava suspenso no ar, a terra continuara
a girar no sentido do Leste, motivo pelo qual aterrissara na América
do Norte, partindo da França.
Eu diria que é um meio muito barato e simples de viajar! Basta subir e
permanecer suspenso alguns minutos para pousar num local
totalmente diferente e muito mais a Oeste. Por que cansar com viagens
pelo mundo? Simplesmente eleve-se a alguns metros do solo e espere
até que o lugar de destino chegue até você.
Infelizmente, isto é apenas ficção. Em primeiro lugar, quando nos
alçamos no ar, na realidade, não nos separamos da mãe Terra.
Permanecemos ainda atados, porque estamos suspensos no envólucro
de ar que também participa da rotação axial da Terra. O ar - ou
melhor, suas camadas mais densas - giram junto com o planeta,
arrastando consigo todas as coisas - nuvens, aeronaves, pássaros e
insetos. Afinal de contas, se o ar não girasse com o planeta,
sofreríamos o impacto de um vento com força tão terrível que
121

comparado a ele o pior dos ciclones pareceria uma brisa suave (um

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


ciclone ou furacão move-se com a velocidade de 40 m/s ou 144 km/h:
na latitude de Leningrado, por exemplo, a Terra nos transportaria pelo
ar com a velocidade de 230 m/s ou 828 km/h).
Não haveria diferença alguma, se permanecêssemos imóveis no ar em
movimento, ou se o ar permanecesse imóvel enquanto nos
movêssemos nele. Em ambos os casos, sentiríamos o mesmo vento
vigoroso. Um motociclista correndo a 100 km/h enfrenta diretamente
uma formidável massa de ar mesmo nas condições atmosféricas mais
calmas. Por isso, mesmo que pudéssemos ascender ao topo da
atmosfera ou se a Terra não tivesse absolutamente invólucro algum de
ar, não poderíamos nos beneficiar com o barato método de viajar
imaginado pelo humorista francês. De fato, quando nos separamos da
superfície da Terra em rotação, continuamos por inércia a nos mover
com a mesma velocidade - isto é, com a velocidade com que a Terra
se move abaixo de nós. É o mesmo que dar um salto dentro do vagão
de trem em movimento. Saltamos e descemos novamente no mesmo
lugar. Na verdade, por causa da inércia, nós executamos um
movimento retilíneo (segundo uma tangente), enquanto a Terra, a
nossos pés, traçaria um arco. Em pequenos intervalos de tempo,
contudo, este fato pode ser desprezado.

Mas então, o que é Inércia?

É o que precisamos ter uma noção.

Vamos lá?
122

6. A Noção de Inércia

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Desde criança aprendemos das outras pessoas e nos acostumamos a

observar que os objetos, ao se movimentarem, parecem tender ao repouso.

Quando empurramos uma cadeira, um carro, uma bola, ou qualquer outra coisa,

notamos logo uma tendência, aparentemente natural, da diminuição na

velocidade do objeto até o completo fim do movimento. Essa constatação

observacional é de grande importância para muitas situações práticas vivenciadas

por todos nós. Treinados pelos outros e acostumados a tais observações

admitimos que os movimentos, na verdade interrompidos por causas que

ignoramos, chegam a um fim por conta própria. Por isso, parece-nos natural que

os objetos em movimento tendam ao repouso.

Essa constatação, de modo muito mais complexo e sofisticado, é a base

da Física Aristotélica que vigorou por mais de dois mil anos.

Aristóteles organizou o mundo em dois tipos de movimentos: o terrestre

(imperfeito), em que os objetos tendiam naturalmente ao repouso e o celeste

(perfeito), em que os astros (o Sol, a Lua, as Estrelas) permaneciam

indefinidamente em movimento.

No sofisticado modelo aristotélico muitas noções complementares foram se

agregando para complementar as explicações. É o caso, por exemplo, da noção

de impetus usada para explicar o movimento de um projétil (uma pedra atirada no

ar). O projétil armazenaria sob a forma de impetus a força inicialmente aplicada

para lançá-lo, esse se gastaria com o movimento, até que, ao seu fim, o projétil

atingiria a situação de repouso.


123

Podemos assim expressar a explicação aristotélica para o movimento

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


terrestre: quando há força, há movimento, e só há movimento quando há força.

Estamos lembrados que para se contrapor ao geocentrismo exploramos o

heliocentrismo alterando nosso ponto de vista (Reveja o exemplo do carro

seguindo em uma estrada. Apesar de observarmos as árvores em movimento,

sabemos que somos nós que nos movemos). Precisamos agora, mais uma vez,

mudar nosso ponto de vista quanto às observações dos movimentos terrestres

que nos parecem tão naturais.

Uma noção que permite uma nova visão do movimento é a noção de

inércia. Ela inverte a justificação aristotélica introduzindo novos elementos.

A Inércia é um princípio oposto à concepção de movimento de Aristóteles.

Na concepção inercial, quando não há força atuando sobre o objeto, ele

mantém seu estado de movimento ou de repouso inalterado. Significa que, se um

objeto está em movimento, sua tendência natural é permanecer em movimento, a

menos que algo atue sobre ele imprimindo-lhe uma força. Também, se um objeto

está em repouso, assim permanecerá, a menos que algo externo imprima uma

força sobre ele.

Mas, como explicar as nossas observações cotidianas cristalizadas desde

a mais tenra idade?

Considerando a noção de inércia no caso dos objetos que empurramos,

(uma cadeira, um carro, uma bola) eles tendem ao repouso, não de modo natural

mas, por meio de outras forças ocultas que lhe são impressas, aqui, as chamadas

forças de atrito que existem no contato dos objetos e a superfície sobre a qual se

apóiam. Na ausência de atrito os objetos permaneceriam indefinidamente em

movimento e não parariam. Esse fato pode ser melhor observado ao diminuirmos
124

o atrito com uma superfície: é mais fácil empurrar um objeto em um piso encerado

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


que em um piso áspero e sujo.

Quando usamos a Noção de Inércia para explicar o lançamento de

projéteis, não precisamos mais da noção de impetus. Assim, pela inércia: o objeto

lançado permanece em movimento e devia mesmo permanecer assim

naturalmente, só tende ao repouso por conta de forças que atuam sobre ele, no

caso, a atração gravitacional responsável por sua trajetória parabólica e a

resistência do ar. Não fosse a resistência do ar e a atração da gravidade terrestre,

o movimento se estenderia para sempre e em linha reta. É exatamente essa a

situação dos astros celestes, são como projéteis que nunca caem e ficam em

movimento indefinidademente, a trajetória elíptica é devida a força de atração

gravitacional e a natureza perpétua do movimento em função da ausência de

forças de resistência como a resistência do ar, atrito, etc.

Note que a separação aristotélica entre movimento celeste-perfeito e

movimento terrestre-imperfeito também se desfaz por conta da introdução da

noção de inércia. Esse fato tem implicações profundas na maneira como as

pessoas olham para os astros e para o céus, influenciando pensares religiosos,

místicos, culturais etc. Por esse motivo dizemos que a noção de inércia e outras

da Física Clássica pertencem a uma nova visão de mundo, diferente da visão

aristotélica.

A noção ou princípio de inércia pode ser enunciado de forma mais elegante

como a propriedade segundo a qual a matéria não pode por si própria alterar seu

estado cinético. O estado cinético é a condição de movimento ou repouso de um

dado objeto. Segundo a noção de inércia é preciso tanta ação para gerar o
125

movimento, como para atingir o repouso. Assim, a dificuldade de pôr um carro em

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


movimento não é diferente da de fazê-lo parar.

Para efetuar curvas um objeto também precisa de forças externas que

exercem acelerações modificando a direção de seu movimento. Desse modo, na

ausência de forças externas além de manter sua velocidade constante um objeto

permanecerá em movimento em linha reta.

É importante destacar que estamos discutindo a noção de inércia dentro do

contexto da Física e que existem outros contextos possíveis com outros

significados para a palavra inércia.

No nosso dia-a-dia, por exemplo, a palavra inércia costuma ser

exclusivamente relacionada ao repouso e expressa um sentido de preguiça,

moleza ou apatia. Mas, no sentido da Física Clássica com incorporação das obras

de Descartes, Galileu e Newton, além da tendência a permanecer parado na

ausência de forças externas, igualmente há a tendência de continuar em

movimento, quando já em movimento, na ausência de forças externas.

A significação da Física Clássica pode tornar ambígua (com duplo sentido)

a expressão: a inércia do sistema judiciário. Do ponto de vista da inércia da Física

a expressão deveria ser entendida como: enquanto os processos estão parados

tendem a ficar parados, mas se começam a andar é difícil pará-los. No entanto, é

melhor adotar no cotidiano, segundo o contexto dado, a palavra inércia tal qual

vem sendo utilizada desde os escolásticos para designar tendência exclusiva ao

repouso.
126

Para complementar nossa apresentação da noção de inércia, propomos

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


mais uma atividade.

1) Dadas as situações a seguir, explique cada uma delas segundo a

concepção aristotélica de movimento natural e segundo o princípio da inércia.

De acordo com De acordo com


Situação a ser analisada a concepção a concepção
aristotélica da inércia
a) lançamento de projéteis
b) movimento da Lua em volta da Terra
c) patinação no gelo
d) puxar uma toalha de sobre a mesa sem
derrubar copos, pratos e talheres
e) justificativa do uso do cinto de segurança
f) movimento de foguetes

2) Leia o texto a seguir, composto por trechos dos diálogos dos Dois

sistemas de mundo, de Galileu Galilei1, em que os personagens Salviati, Simplício

e Sagredo discutem sobre o movimento de uma bola sobre uma superfície.

Represente (por desenho) cada uma das situações apresentadas no texto,

indicando a condição cinética resultante da bola e explicando-a.

Diálogos Sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo

SALV.: ... Diga-me agora: Suponhamos que se tenha uma superfície


plana lisa como um espelho e feita de um material duro como o aço.
Ela não está horizontal, mas inclinada, e sobre ela foi colocada uma
bola perfeitamente esférica, de algum material duro e pesado, como o
bronze. A seu ver, o que acontecerá quando a soltarmos?

1
Galileu não formulou precisamente o princípio da inércia. Mais a frente, em seus diálogos ele explica que a
superfície lisa e horizontal considerada neste exemplo pode ser a superfície da água do mar, que como
sabemos ajusta-se à forma redonda da Terra. Por esse motivo Alexandre Koyré e Allan Frankin defende que
Galileu definiu somente a inércia circular.
127

SIMP.: Não acredito que permaneceria em repouso; pelo contrário,

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


estou certo de que rolaria espontaneamente para baixo. ...
SALV.: ... E por quanto tempo a bola continuaria a rolar, e quão
rapidamente? Lembre-se de que eu falei de uma bola perfeitamente
redonda e de uma superfície altamente polida, afim de remover todos
os impedimentos externos e acidentais. Analogamente, não leve em
consideração qualquer impedimento do ar causado por sua resistência
à penetração, nem qualquer outro obstáculo acidental, se houver.
SIMP.: Compreendo perfeitamente, e em resposta a sua pergunta digo
que a bola continuaria a mover-se indefinidamente, enquanto
permanecesse sobre a superfície inclinada, e com um movimento
continuamente acelerado ...
SALV.: Mas se quiséssemos que a bola se movesse para cima sobre a
mesma superfície, acha que ela subiria?
SIMP.: Não espontaneamente; mas ela o faria se fosse puxada ou
lançada para cima.
SALV.: E se fosse lançada com um certo impulso, qual seria seu
movimento, e de que amplitude?
SIMP.: O movimento seria constantemente freiado e retardado, sendo
contrário à tendência natural, e duraria mais ou menos tempo
conforme o impulso e a inclinação do plano fossem maiores ou
menores.
SALV.: Muito bem, até aqui você me explicou o movimento sobre
dois planos diferentes. Num plano inclinado para baixo, o corpo
móvel desce espontaneamente e continua acelerando, e é preciso
empregar uma força para mantê-lo em repouso. Num plano inclinado
para cima, é preciso uma força para lançar o corpo ou mesmo mantê-
lo parado, e o movimento impresso no corpo diminui continuamente
até cessar de todo. Você diria ainda que, nos dois casos, surgem
diferenças conforme a inclinação do plano seja maior ou menor, de
forma que um declive mais acentuado implique maior velocidade, ao
passo que, num aclive, um corpo lançado com uma dada força se
move tanto mais longe quanto menor o aclive.
128

Diga-me agora o que aconteceria ao mesmo corpo móvel colocado

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


sobre uma superfície sem nenhum aclive nem declive.
SIMP.: Aqui preciso pensar um instante sobre a resposta. Não
havendo declive, não pode haver tendência natural ao movimento; e,
não havendo aclive, Não pode haver resistência ao movimento.
Parece-me portanto que o corpo deveria naturalmente permanecer em
repouso. Mas eu me esqueci; faz pouco tempo que Sagredo me deu a
entender que isto é o que aconteceria.
SALV.: Acredito que aconteceria se colocássemos a bola firmemente
num lugar. Mas que sucederia se lhe déssemos um impulso em alguma
direção?
SIMP.: Ela teria que se mover nessa direção.
SALV.: Mas com que tipo de movimento?
Seria continuamente acelerado, como no declive, ou continuamente
retardado, como no aclive?
SIMP.: Não posso ver nenhuma causa de aceleração, uma vez que não
há aclive nem declive.
SALV.: Exatamente. Mas se não há razão para que o movimento da
bola se retarde, ainda menos há razão para que ele pare; por
conseguinte, por quanto tempo você acha que a bola continuaria se
movendo?
SIMP.: Tão longe quanto a superfície se estendesse sem subir nem
descer.
SALV.; Então, se este espaço fosse ilimitado, o movimento sobre ele
seria também ilimitado? Ou seja, perpétuo?
SIMP.: Parece-me que sim, desde que o corpo móvel fosse feito de
material durável. (Moysés, Mecânica, pgs 67 e 68)

3) Utilize o princípio da inércia para explicar porque o Experimento da

pedra que cai de uma torre (Argumento da Torre) não é adequado para provar

que a Terra não está se movendo.


129

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


4) Retome sua lista/coleção de argumentos em favor da imobilidade da

Terra obtida nas atividades anteriores, identifique e explique os argumentos que

podem ser descartados segundo o princípio da inércia.

5) Leia e discuta o texto Contudo ela se move extraído do interessante livro

Aprenda Física Brincando, de J. PERELMAN, Pg 12.

Contudo ela se move

Os jornais de Paris publicaram, certa vez, um anúncio oferecendo um


agradável e pouco dispendioso modo de viajar, pelo preço de 25
centavos. Numerosos simplórios enviaram, pelo Correio, a
importância pedida. Cada um deles recebeu, mais tarde, uma carta
com o seguinte teor: "Senhor, fique tranqüilo em sua cama e lembre-se
de que a terra está girando. À altura do paralelo 49 - o de Paris - o
senhor estará viajando a mais de 25.000 km por dia. Se desejar uma
bela vista, abra as cortinas de sua janela e admire o céu estrelado".
O homem que enviou essas cartas foi preso e processado por fraude.
Conta a história que, depois de ouvir silenciosamente o veredito e de
ter pago pesada multa, o réu, assumindo uma pose teatral, repetiu
solenemente as famosas palavras de Galileu: "Contudo, ela se move".

Até aqui a noção de inércia parece eliminar vários argumentos contrários

ao movimento da Terra. Mas, quais são os novos argumentos em favor do


130

movimento da Terra? Mostrar não existir nada que prove que a Terra está parada

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


não significa aceitar que ela esteja em movimento. Não é?

Vamos continuar nossa viagem visitando mais uma nova noção da Física

Newtoniana e buscando elementos para responder a nossa questão sobre o

movimento da Terra.
131

7. A Noção de Espaço Absoluto

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Para continuarmos estudando o problema da (i)mobilidade da Terra

precisamos ampliar nossa compreensão descrevendo melhor o cenário no qual a

Terra está inserida. Assim, encontramos em Newton a noção de espaço absoluto.

Segundo a mecânica de Newton, o espaço absoluto seria o “palco”, não

acessível aos nossos sentidos, onde a natureza “representaria” os fenômenos

físicos. O espaço absoluto seria aquele que está realmente em repouso e em

relação ao qual todos os movimentos devem ser descritos.

Na linguagem atual da ciência, nos livros e artigos de física, a noção de

espaço absoluto, introduzida por Newton, foi substituída por uma noção mais

genérica denominada referencial inercial.

Um referencial inercial é um sistema de referência no qual são válidas as

leis da mecânica de Newton, inclusive o princípio da inércia. É o palco adequado

para descrever as experiências.

A noção de referencial inercial é mais geral que a noção de espaço

absoluto por incorporar, além de um referencial que esteja absolutamente em

repouso, qualquer referencial que se desloque com velocidade constante e em

linha reta em relação ao espaço absoluto.

Decorre que um referencial qualquer que se mova com velocidade

constante e em linha reta em relação a um referencial inercial é também inercial.

Se encontrarmos um referencial inercial, logo, teremos uma infinidade de outros

referenciais inerciais.

Mas há uma dificuldade. Como encontrar um referencial verdadeiramente

inercial? Ou como determinar o espaço absoluto?


132

Na verdade, não podemos. Ou melhor, não precisamos.

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Apesar de nunca podermos acessar o espaço absoluto ou os referenciais

inerciais concretamente, para cada situação, é correto utilizarmos aproximações

materiais para resolver os problemas. Por exemplo, para o movimento de

pequenas massas sobre a Terra, a própria Terra pode ser considerada o

referencial (aproximadamente) inercial; já para o movimento da Lua entorno da

Terra, usualmente adotamos o referencial das "estrelas-fixas" como

(aproximadamente) inercial e assim por diante.

Não há problema em não dispormos de referenciais verdadeiramente

inerciais. Com as aproximações mencionadas é possível obter medidas para os

resultados experimentais bastante precisas.

Nos referenciais inerciais e somente nesses referenciais são válidas as leis

da mecânica de Newton, a saber:

1) a lei da inércia, ou princípio da inércia, como já estudamos;

r r
2) o princípio fundamental da dinâmica: F =m⋅a
r
a força resultante sobre um corpo F é igual ao produto da sua massa inercial m
r
pela sua aceleração a , em relação a um referencial inercial. A força e a

aceleração são grandezas vetoriais, isso é, para serem corretamente definidas

além de seu valor (módulo) necessitam de uma direção e um sentido; e,


133

r r
3) lei de ação e reação: F12 = − F21

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


a toda ação de uma força corresponde uma reação com mesmo módulo, mesma

direção e sentido oposto.

Antes de prosseguir, para aprender mais sobre as leis de Newton e a

correta utilização dos referenciais inerciais é fundamental estudar alguns capítulos

e resolver os problemas de livros didáticos de Física. (sugestões: Mecânica do

GREF, Física Básica de Nussenzveing, Física volume 1 do Tipler e Física de

Eisberg.)

Tendo compreendido as Leis de Newton, a noção de inércia, a noção de

espaço absoluto e a noção de referencial inercial, podemos avançar em nossa

viagem conhecendo agora dois novos argumentos que utilizam as Leis de Newton

em favor do movimento da Terra, a saber:

1) O achatamento na forma da Terra, e;

2) O pêndulo de Foucault

Vamos lá?
134

8. Achatamento na Forma da Terra

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Uma observação interessante descrita por Newton no seu célebre livro

Principia, para justificar o movimento da Terra, diz respeito ao achatamento na

forma da mesma devido a efeitos centrífugos.

Nosso planeta não tem a forma de uma esfera perfeita. Ele possui, na

verdade, uma forma elipsoidal, ou seja, tem um diâmetro menor nos pólos que no

equador, por isso dizemos que a Terra é achatada.

A descrição desse efeito de achatamento dos planetas em função de seu

movimento de rotação foi realizada pela primeira vez por Newton:

os eixos dos planetas são menores do que os diâmetros


perpendiculares aos eixos. A gravitação igual das partes sobre todos
os lados daria uma forma esférica aos planetas, não fosse por suas
revoluções diurnas num círculo. Devido a este movimento circular
acontece de as partes que se afastam do eixo tentam subir do equador;
e, portanto, se a matéria está num estado fluído, por sua subida em
direção ao equador ela vai aumentar os diâmetros de lá e por sua
descida dos pólos ela vai diminuir o eixo... se nossa Terra não fosse
mais alta ao redor do equador do que nos pólos, os mares abaixariam
ao redor dos pólos e, subindo em direção ao equador, colocariam
todas as coisas sob a água. (Isaac NEWTON, Principia, Livro III,
Proposição 18. Teorema 16. Ver também proposição 19, problema 3
em que Newton calcula a partir de sua lei da gravitação a proporção
do eixo de um planeta para os diâmetros perpendiculares a ele)
135

Newton calcula a razão entre o diâmetro da Terra no equador e o

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


diâmetro de pólo a pólo e obtém o valor:

230
229

Mas qual o agente causador deste achatamento? Por que a Terra fica

achatada?

Sabemos que a Terra não é um referencial inercial e, portanto, para

estudar seu movimento de rotação em torno de si mesma não podemos utilizar

diretamente as leis de Newton. Uma solução possível para continuar estudando o

achatamento da Terra com a mecânica newtoniana é introduzir no referencial da

Terra uma força imaginária denominada força centrífuga.

Essa força é uma força fictícia e não possui, segundo a mecânica de

Newton, uma existência real. No entanto, com a criação dessa força pode-se

utilizar corretamente as leis da Mecânica Newtoniana e determinar as equações

de movimento para a Terra.

A força centrifuga a ser introduzida é dada por:


r
Fcentrifuga = −m ⋅ ω 2 ρρˆ

Em que: ω é a velocidade angular de rotação da Terra em relação a um

referencial inercial, ou ao espaço absoluto; e ρρˆ é o vetor posição em

coordenadas esféricas dos pontos sobre a superfície da Terra.

Para calcular a razão entre o diâmetro da Terra no equador e o diâmetro

de pólo a pólo que expressa o achatamento na forma da Terra é preciso integrar a

força gravitacional acrescida da força centrífuga para um elipsóide (esfera

achatada).
136

Não apresentaremos aqui o desenvolvimento matemático completo que,

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


para uma compreensão mais aprofundada, pode ser estudado nos capítulos 6 e 7

do livro Mecânica, de K. R. Symon (ver especialmente exercícios 6.17, 6.21 e

7.10)

O resultado obtido no cálculo para a razão entre os raios da terra no

equador e entre os pólos, obtido a partir da introdução da força centrífuga nas leis

de Newton, é expresso por:

Requador 5ω 2 R 3
=1+ (6)
R pólos 4GM

Em que: Requador é o raio da Terra no equador

Rpólos é o raio da Terra entre os pólos

R é o raio médio da Terra = 6,36 x 106 m

G é a constante de gravitação universal = 6,67 x 10-11 N m2/ kg2

M é a massa da Terra = 6 x 1024 kg

ω é a velocidade angular de rotação da Terra

Adotando para o valor da razão entre os raios o resultado obtido por

Newton e que está bem próximo das modernas observações experimentais

(230/229 ≈ 1,0044) podemos calcular, por considerações dinâmicas, a velocidade

angular de rotação da Terra:

4GM  Requador 
ω=  − 1 (7)
5R 3  R 
 pólos 

ω = 7,4 x 10-5 s-1


137

Esse valor para a velocidade de rotação da Terra é praticamente o mesmo que

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


calculamos por observações astronômicas e considerações cinemáticas, levando-


se em conta a rotação de um dia (24 horas): ω k = ≈ 7,3 × 10 −5 s −1
T

Obtivemos assim dois valores iguais para a velocidade de rotação da

Terra: o primeiro ωk a partir de considerações cinemáticas e o segundo ω a partir

de equações da dinâmica de Newton.

Como vimos, a velocidade de rotação cinemática não permite afirmar que é

a Terra que está girando, uma vez que, tanto no heliocentrismo como no

geocentrismo, obtemos a mesma velocidade relativa entre a Terra e o conjunto de

estrelas-fixas. Tanto faz a Terra girar em volta de si mesma, ou todo o resto do

universo girar em volta da Terra, teremos uma mesma situação do ponto de vista

de uma descrição cinemática, ou seja, que considera apenas as velocidades e as

posições entre os corpos.

O achatamento na forma da Terra permite-nos calcular a rotação dinâmica

da Terra. Mas esse efeito, diferentemente da situação cinemática, possibilita

afirmar que é a Terra que está girando sobre si mesma e não o restante do

universo que gira ao redor da Terra. Isto porque o giro do universo ao redor da

Terra, segundo as leis de Newton, não produziria o achatamento na forma do

nosso planeta e ele teria uma forma perfeitamente esférica.

Podemos dizer que no primeiro caso (análise cinemática) há uma simetria

entre a mobilidade e a imobilidade da Terra. Já no segundo caso (análise

dinâmica) não se verifica a mesma simetria, e por isso, podemos afirmar, de

acordo com esse novo argumento, que a Terra realmente está em movimento!
138

Assim como os defensores da Física Aristotélica e da imobilidade da Terra

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


se apoiaram no Argumento da Torre e convenceram inumeráveis mentes

humanas, os defensores da Mecânica de Newton se utilizam agora do Argumento

do Achatamento na Forma da Terra para convencer de que ela se move.


139

9. O pêndulo de Foucault

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Vamos explorar mais um fantástico argumento em favor do movimento da

Terra: O experimento do Pêndulo de Foucault.

Em 1851, o físico francês Jean Baptiste Leon Foucault inventou outra

simples e interessante maneira de se obter a velocidade de rotação dinâmica da

Terra (ωd) e assim comprovar seu movimento de rotação. A criação de Foucault é

até hoje a melhor "prova" do movimento de rotação da terra porque independe de

medidas astronômicas, ou seja, pode ser realizada em uma sala fechada sem se

olhar para o céu ou considerar as grandes distâncias das dimensões terrestres

como no efeito do achatamento da Terra.

Um pêndulo é um sistema constituído por uma massa pendurada em uma

linha e que oscila de um lado para o outro de modo regular.

Um fato interessante da oscilação pendular é que o plano de oscilação do

pêndulo é definido pelas condições iniciais em que a massa é posta em

movimento. Se o pêndulo fosse montado sobre uma base giratória, mesmo que a

base girasse, ele permaneceria oscilando sempre em um mesmo plano.

Admitindo que o planeta Terra é uma base gigante e está girando para

qualquer pêndulo, Foucault pode determinar a rotação da Terra a partir do estudo

da variação do plano de oscilação de um pêndulo. Assim, ele construiu um novo

argumento em favor do movimento da Terra.

A experiência proposta por Foucault é relativamente simples e para

realizá-la basta observar o movimento de um longo pêndulo oscilando por um

grande período de tempo. Na mais famosa de suas demonstrações, Foucault

pendurou seu pêndulo na enorme abóbada do Panthéon, em Paris. Nessa


140

ocasião, ele usou um comprimento de 67 metros e a massa suspensa era uma

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


esfera oca de cobre, cheia de chumbo com massa total de 28 Kg.

Em seu experimento com o pêndulo, Foucault observou, como ele já

esperava, que o plano de oscilação do pêndulo mudava lentamente com o tempo

em relação à superfície da Terra.

Mas como explicar a mudança no plano de oscilação do pêndulo de

Foucault utilizando as leis da Mecânica Newtoniana?

Lembrando mais uma vez que a Terra não é um referencial inercial,

sabemos, por isso, que não podemos simplesmente utilizar as leis de Newton. A

solução então, para continuar estudando o movimento do pêndulo é introduzir no

referencial da Terra uma nova força imaginária (Outra. Diferente da que explica a

forma da terra. Aqui continua existindo a força centrífuga, mas ela não é

responsável pela alteração no plano de oscilação do pêndulo). Essa nova força foi

descoberta em 1831 por Coriolis e por isso ficou conhecida como Força de

Coriolis.

A força de Coriolis é, segundo a concepção newtoniana, também uma

força fictícia devida ao movimento de rotação da Terra em relação ao espaço

absoluto (ou a um referencial inercial).

A força de Coriolis pode ser escrita como:


r r r
FCoriolis = −2mω d × v (8)

Em que:

m é a massa em movimento;

v é a velocidade da massa em movimento; e,

ωd é a velocidade angular da Terra em relação ao espaço absoluto ou a

um sistema de referência inercial.


141

O caso mais simples para o experimento do pêndulo de Foucault ocorre

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


para oscilações em um dos pólos terrestres. Nessa situação, o pêndulo vai ficar

oscilando sempre em um mesmo plano em relação a um sistema inercial, ou ao

espaço absoluto. Um observador colocado no pólo, entretanto, verá exatamente o

oposto, ou seja, o plano de oscilação modificando-se com o passar do tempo.

Como a Terra está girando exatamente sob o pêndulo, após aproximadamente 24

horas o plano de oscilação vai estar na mesma posição, em relação à Terra, que

estava no início do experimento.

No equador, o pêndulo de Foucault não modifica seu plano de oscilação

em relação à Terra porque o produto vetorial da velocidade de rotação da Terra


r r
pela velocidade de oscilação é igual a zero: ω d × v = 0 .

Para qualquer posição entre o equador e o pólo a variação de direção no

plano de oscilação do pêndulo pode ser obtida por:

ω d sinα

Em que ωd é a velocidade angular da Terra em relação ao espaço

absoluto ou a um sistema de referência inercial e α é a Latitude no local do

experimento.

Propomos mais uma breve atividade:

1) Calcule a variação de direção no plano de oscilação do pêndulo de

Foucault para a Cidade de Paris com latitude igual a 48o 51'.

2) Calcule a variação de direção no plano de oscilação do pêndulo de

Foucault para a Cidade de São Paulo.


142

3) Compare as experiências do Pêndulo de Foucault e da Pedra que cai

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


da Torre. Em que elas são semelhantes? Em que diferem?

4) Leia e discuta o texto O Pêndulo de Foucault do livro de Umberto Eco,

transcrito a seguir.

O Pêndulo de Foucault - Umberto Eco

A esfera, móvel na extremidade de um longo fio fixado à abóbada do


coro, descrevia suas amplas oscilações em isócrona majestade.
Eu sabia - mas quem quer que o tivesse advertido no encanto daquele
plácido respirar - que o período era regulado pela correlação entre a
raiz quadrada do comprimento do fio e a do número π, o qual, embora
irracional para as mentes sublunares, relaciona, por alguma razão
divina, a circunferência ao diâmetro de todos os círculos possíveis - de
modo que o oscilar de uma esfera de um pólo a outro decorre de uma
arcana conspiração entre a mais intemporal das medidas, a unidade do
ponto de suspensão, a dualidade de uma dimensão abstrata, a natureza
terciária do π, o tetrágono secreto da raiz e a perfeição do círculo.
Sabia também que na vertical do ponto de suspensão, na base, um
dispositivo magnético, transmitindo sua atração a um cilindro oculto
no cerne da esfera, garantia a permanência do movimento, artifício
disposto para contrabalançar a resistência da matéria, mas que não se
opunha às leis do Pêndulo, antes lhes permitia manifestarem-se,
porque no vácuo qualquer ponto material pesado, suspenso da
extremidade de um fio inextensível e sem peso, que não sofresse a
resistência do ar nem o atrito com seu ponto de apoio, teria oscilado
de modo regular por toda a eternidade.
A esfera de cobre emitia pálidos reflexos cambiantes sob a incidência
dos últimos raios de sol que penetravam pelos vitrais. Se, como
outrora, sua ponta estivesse roçando uma camada de areia úmida
espalhada sobre o pavimento de coro, teria desenhado a cada oscilação
um leve sulco no solo, e o sulco, mudando infinitesimalmente de
143

direção a cada instante, ter-se-ia alargado sempre em forma de brecha,

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


de vala, deixando adivinhar uma simetria radiada - como um esqueleto
de mandala, a estrutura invisível de um pentáculo, de uma estrela, de
uma rosa mística. Não melhor talvez a peripécia, registrada na
extensão do deserto, dos traços que deixaram caravanas infinitas e
erráticas...
Naquele momento, às quatro da tarde de 23 de junho, o Pêndulo
amortecia a própria velocidade numa extremidade do plano de
oscilação, para recair indolente em relação ao centro, readquirir
velocidade a meio do percurso e desferir seus golpes de sabre
confidentes no quadrado oculto das forças que o destino lhe apontava.
Se eu permanecesse muito tempo, resistente ao passar das horas, a
fixar aquela cabeça de pássaro, aquele ápice de lança, aquele elmo
emborcado, enquanto desenhava no vazio as suas diagonais, aflorando
os pontos opostos de sua astigmática circunferência, teria sido vítima
de uma ilusão fabulatória, pois o Pêndulo me levaria a crer que o
plano de oscilação teria realizado uma rotação completa, tornando ao
ponto de partida, em trinta e duas horas, descrevendo uma elipse
achatada - elipse que girasse em torno de seu próprio centro com uma
velocidade angular uniforme, proporcional ao seno da latitude. Como
teria girado se o ponto fosse fixado ao alto da cúpula do Templo de
Salomão? Talvez os Cavalheiros tivessem experimentado também lá.
Talvez o cálculo, o significado final, não houvesse modificado. Talvez
a igreja abacial de Saint-Martin-des-Champs fosse o verdadeiro
Templo. Contudo, a experiência só teria sido perfeita no Pólo, único
lugar em que o ponto de suspensão incide sobre o prolongamento do
eixo de rotação da Terra, no qual o Pêndulo realizaria seu círculo
aparente em vinte e quatro horas.
Mas não era este desvio da Lei, que de resto a própria Lei previa, não
era esta violação da medida áurea que tornava menos admirável o
prodígio. Eu sabia que a Terra estava rodando, e eu com ela, e Saint-
Martin-des-Champs e Paris inteira comigo, e juntos rodávamos sob o
Pêndulo que na realidade não mudava jamais a direção do próprio
144

plano, porque lá em cima, de onde pendia, e ao longo do infinito

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


prolongamento ideal do fio, para o alto em direção às mais remotas
galáxias estava, imóvel por toda a eternidade, o Ponto Eixo.
A Terra girava, mas o lugar onde o fio estava ancorado era o único
ponto fixo do universo.
Por isso, não era propriamente à Terra que o meu olhar se dirigia, mas
ao alto, lá onde se celebrava o mistério da imobilidade absoluta. O
Pêndulo dizia-me que, embora tudo se movesse, o globo, o sistema
solar, as nebulosas, os buracos negros e todos os filhos da grande
emanação cósmica, desde os éons primitivos à matéria mais viscosa,
um único ponto permanecia, eixo, cavilha, engate ideal, deixando que
o universo se movesse em torno dele. E eu participava agora daquela
experiência suprema, eu que embora me movesse com tudo e com o
todo, eu podia ver o Quid, o Não-Movente, a Rocha, a Garantia, a
caligem luminosíssima que não é corpo, não tem figura forma peso
quantidade ou qualidade, e não vê, não sente, não é apreendido pela
sensibilidade, não é um lugar, nem um tempo ou um espaço, não é
alma, inteligência, imaginação, opinião, número, ordem, medida,
substância, eternidade, não é treva nem luz, não é erro nem verdade.
Sacudiu-me um diálogo, preciso e desenvolvido, entre um rapaz de
óculos e uma jovem que infelizmente não os tinha.
"É o pêndulo de Foucault", dizia o moço. "Foi primeiro
experimentado numa cave em 1851, depois no Observatoire, e em
seguida sob a cúpula do Panthéon, com um fio de sessenta e sete
metros e uma esfera de vinte e oito quilos. Finalmente, desde 1855
está aqui, em formato reduzido, e pende daquele furo, na travessa da
abóbada".
"E para que serve, só para ficar balançando?"
"Serve para demonstrar a rotação da Terra. Se considerarmos que o
ponto de suspensão permanece fixo..."
"Mas por que permanece fixo?"
"Porque um ponto... como direi... no seu ponto central, quer dizer todo
ponto que esteja no meio dos pontos que você vê, bem, aquele ponto -
145

o ponto geométrico - você não vê, não tem dimensão, e portanto não

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


tendo dimensão não pode mover-se nem à esquerda nem à direita, nem
para baixo nem para cima. Conseqüentemente, não gira. Entendeu? Se
um ponto não tem dimensão, não pode sequer girar em torno de si
mesmo. Nem mesmo este si mesmo existe..."
"Nem com a Terra girando?"
"A Terra gira, mas o ponto não. Se lhe agrada, é assim, se não, dane-
se. Está bem?"
"Problema dele."
Miserável. Tinha sobre a cabeça o único lugar estável do cosmo, o
único ponto resgatado da danação do panta rei, e pensava que fosse
problema Dele, e não dela. Mas logo em seguida o casal se afastou -
ele, tendo estudado nesses manuais que lhe obnubilaram as
possibilidades de maravilhar-se, ela inerte, inacessível ao arrepio do
infinito, ambos sem terem registrado na memória a experiência
terrificante daquele seu encontro - primeiro e último - com o Uno, o
En-sof, o Indizível. Como não cair de joelhos diante do altar daquela
certeza? (Umberto ECO, O pêndulo de Foucault, pg 9 à 12)

A velocidade de rotação do plano de oscilação pendular obtida por

Foucault é precisamente a mesma velocidade de rotação da Terra, ou seja

ω d = 7,3 × 10 −5 s −1 . Este resultado confirma de forma brilhante o movimento da

Terra!

Mais uma vez verifica-se a coincidência entre o valor da velocidade de

rotação dinâmica (ωd) obtida a partir do experimento de Foucault e os valores

apresentados anteriormente, tanto pelas descrições cinemáticas como pela

descrição dinâmica a partir do achatamento da Terra.

O resultado da experiência de Foucault, assim como o achatamento na

forma da Terra, diferentemente da situação cinemática, permite afirmar que é a


146

Terra que está girando sobre si mesma e não o restante do universo que gira ao

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


redor da Terra. Isto porque, o giro do universo ao redor da Terra, segundo as leis

de Newton, não produziria nenhuma alteração no plano de oscilação do pêndulo.

Encontramos uma nova assimetria entre a mobilidade e a imobilidade da

Terra. Por isso, podemos afirmar, de acordo com o Argumento do Pêndulo de

Foucault, que a Terra realmente está em movimento!

Novas mentes humanas podem ser convencidas com esse simples e

brilhante argumento de Foucault que confirma a Mecânica de Newton e comprova

que a Terra não está imóvel.

* * * * * * * * *

Chegamos ao fim de nossa viagem? Está respondida a questão que nos

colocamos? Podemos considerar definitivamente válida a afirmação de que a

Terra se move?

Podemos, como diz Umberto Eco, cair de joelhos diante do altar daquela

certeza?

Por sorte, nem todas as mentes humanas são facilmente convencidas e

novas visões de mundo nos fazem repensar nossos argumentos, por mais sólidos

que eles nos pareçam de início.

Vamos prosseguir um pouco mais o caminho e ouvir novos personagens.

Convém conhecer os argumentos daqueles que não se convenceram com os

mais claros e simples argumentos em favor do movimento da Terra.


147

10. O Princípio de Mach

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Há dois detalhes da Física Newtoniana que já apresentamos e que

parecem não ter sido totalmente resolvidos: o primeiro é a impossibilidade de se

encontrar um referencial que seja verdadeiramente inercial; o segundo é o fato da

simetria para descrições cinemáticas não se verificar em descrições dinâmicas.

Será possível existir uma Mecânica, baseada em novos argumentos, que

não se utilize da noção de espaço absoluto, nem de referenciais inerciais e que

restabeleça a simetria entre as descrições dinâmicas e cinemática do movimento?

Muitas das críticas à concepção de espaço absoluto (ou de referencial

inercial) já haviam sido formuladas no início do Século XVIII, por parte de filósofos

como Leibniz e Berkeley. As grandes conquistas da Mecânica Newtoniana e seu

sucesso no campo da astronomia, no entanto, ofuscaram essas críticas por mais

de 150 anos.

Em 1883 a contestação da noção de espaço absoluto ressurge nos

trabalhos do Físico austríaco Ernst Mach. Para contestar as noções newtonianas

de inércia e espaço absoluto, Mach, formulou em sua obra The Science of

Mechanics o seguinte princípio:

Para mim só existem movimentos relativos. Não vejo, neste ponto,


nenhuma diferença entre translação e rotação. Obviamente não
importa se pensamos na Terra como em rotação em torno de seu eixo,
ou em repouso enquanto as estrelas fixas giram em torno dela. O
Princípio da Inércia deve ser concebido de tal forma que a segunda
suposição leve exatamente aos mesmos resultados que a primeira.
Torna-se então evidente que, na sua formulação, é preciso levar em
148

conta as massas existentes no Universo. (Daniel Gardelli, Origem da

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Inércia, Cad. Cat. Ens. Fis., vol.16, n1. pg48)

Para Mach é preciso, à luz de seu Princípio, rever a Noção de Inércia e

conseqüentemente as demais leis da Mecânica Newtoniana.

Segundo essa nova concepção de inércia proposta por Mach, a massa

inercial de um objeto se originaria da interação entre a massa desse objeto com

todas outras massas do universo inteiro. Assim, em um universo vazio não

haveria inércia. Esse princípio choca-se com a Mecânica Newtoniana que atribui a

inércia a uma propriedade intrínseca da matéria e não a uma interação com as

outras massas do universo.

Apesar da importância de sua crítica, Mach não desenvolveu uma

formulação quantitativa para seu princípio, fato que não lhe deu popularidade no

meio científico. A tarefa de implementar quantitativamente o princípio de Mach

para a reformulação das leis de Newton foi iniciada e abandonada sem sucesso

por grandes nomes da ciência dentre os quais Einstein, o pai da Relatividade, e

Schrödinger um dos principais fundadores da Mecânica Quântica.

A Mecânica Relacional, apresentada a seguir, retoma as críticas de Mach à

Física Newtoniana implementando-as quantitativamente em termos do formalismo

da física contemporaneamente aceita e consolidando o princípio de Mach como

um novo Argumento para discutir a questão da (i)mobilidade da Terra.

Vamos conhecê-la?
149

11. Mecânica Relacional

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Finalizando nossa viagem, vamos apresentar um breve resumo da

Mecânica Relacional, uma proposta alternativa à mecânica de Newton que

pretende explicar os fenômenos da dinâmica e gravitação há muito conhecidos.

Essa nova Mecânica foi desenvolvida pelo Físico brasileiro André K. T.

Assis, professor livre-docente do Instituto de Física da Universidade de Campinas,

e retoma a discussão crítica sobre as noções de espaço-absoluto e inércia

implementando quantitativamente as idéias de E. Mach.

É importante esclarecer que nosso intuito neste trabalho não é discutir a

validade dessa proposta teórica, mas o de utilizá-la do ponto de vista da

ampliação do conhecimento. Uma nova concepção da mecânica pode servir de

fonte para novas argumentações alternativas e fornecer-nos elementos de

contraste para uma compreensão mais profunda dos princípios implícitos na

discussão sobre a inércia e o problema da (i)mobilidade da terra, como vimos até

aqui discutindo.

Assim como o estudo do Argumento da Torre traz contribuição para

entendermos a Noção de Inércia, o Princípio de Mach, na formulação da

Mecânica Relacional, aumenta nossa compreensão dos fenômenos inerciais.

Como sugerido por Mach, na proposta da Mecânica Relacional não há a

necessidade de admitirmos a existência do espaço absoluto (ou referencial

inercial), não existem forças fictícias, ou seja, todas as forças são descritas em

termos de interações reais entre os corpos, obedecendo a lei de ação e reação e,

o mais importante para nossa discussão, todas as descrições cinematicamente


150

equivalentes para a (i)mobilidade da Terra tornam-se dinamicamente

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


equivalentes, são restabelecidas as simetrias.

Nessa nova proposta todas as forças são baseadas em interações entre os

corpos materiais, ou seja, não há força entre qualquer corpo e o “espaço vazio”.

Como acontecia nas forças de Coriolis e Centrípetas.

Não faz sentido, segundo a Mecânica Relacional, falar de movimento de

um único corpo em um Universo completamente vazio de outros corpos materiais.

O sistema mais simples que poderíamos considerar é aquele composto de duas

partículas.

Para a implementação das idéias de Mach, no estudo da interação

gravitacional entre os corpos em movimento, a Lei da Gravitação Universal deve

ser modificada de modo a assumir uma forma análoga à força de Weber2 para

cargas elétricas, com termos dependentes da velocidade e da aceleração

relativas entre os corpos interagentes.

O potencial de interação entre duas cargas elétricas, q1 e q2, separadas por

uma distância relativa r12, que se movem com uma velocidade relativa r&12 e

aceleração relativa &r&12 na formulação de Weber, é dado por

q1q 2 1  r& 2 
U 12 = 1 − 122  (9)
4πε o r12  2c 

(εo é a constante de permissividade no vácuo e c é a velocidade da luz).

Desse potencial obtemos a força de Weber

2
Para uma justificação detalhada ver: A. K. T. Assis. Weber’s Electrodynamics. Kluwer Academic
Publishers, Dordrecht, 1994. e, A. K. T. Assis. Eletrodinâmica de Weber – Teoria, Aplicações e Exercícios.
Editora da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Campinas, 1995.
151

r dU 12 q1q 2 rˆ12  r&122 r12 &r&12 


F21 = −rˆ12 =  1 − + 2  (10)
4πε o r122  2c 2

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


dr12 c 

Analogamente a energia de interação entre duas massas gravitacionais,

mg1 e mg2, separadas por uma distância relativa r12, considerando o princípio de

Mach, pode ser escrita como

m g1m g 2  r&122 
U 12 = G 1 − ξ 2  (11)
r12  2c 

(G é a constante de gravitação universal e ξ é um parâmetro cosmológico).

A partir dessa expressão para o potencial, obtém-se uma nova expressão para a

força de interação gravitacional

r dU 12 rˆ  ξ  r& 2 
F21 = − rˆ12 = Gm g1m g 2 122 1 − 2  12 + r12 &r&12   (12)
dr12 r12  c  2 

Além da modificação da Lei da Gravitação Universal, na Mecânica

Relacional, para uma correta implementação do princípio de Mach, são

apresentados os seguintes postulados ou axiomas:

1) a força é uma quantidade vetorial que descreve a interação entre


corpos materiais;
2) a força que uma partícula pontual A exerce sobre uma partícula
pontual B é igual e oposta à força que B exerce sobre A e é
direcionada ao longo da linha reta conectando A até B; e,
152

3) a soma de todas as forças de qualquer natureza (gravitacional,

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


elétrica, magnética, elástica, nuclear,...) agindo sobre qualquer corpo é
sempre nula em todos sistemas de referência.3

Esses três postulados, em termos de Energia, podem ser expressos em

apenas um:4

1) A soma de todas as energias de interação (gravitacional, elétrica,


elástica...) entre qualquer corpo e todos os outros corpos no Universo
é sempre nula em todos os sistemas de referência.5

O princípio de Mach é implementado quantitativamente quando calculamos

o potencial e a força gravitacional, utilizando as expressões (11) e (12), entre

uma partícula teste e o restante do universo.

Considerando a simetria esférica, esse problema equivale a encontrar o

potencial gravitacional e a força de interação de uma partícula movendo-se no

interior de infinitas cascas esféricas concêntricas constituídas pelas estrelas. Os

resultados precisam coincidir com a situação oposta: as cascas esféricas se

movendo em relação a uma partícula fixa em seu interior.

Não apresentaremos os desenvolvimentos matemáticos que devem ser

examinados em: ASSIS, mecânica relacional , pág 207.

Como resultados são obtidos:

3
André K. T. ASSIS, Mecânica Relacional, p.200
4
Na Mecânica Relacional derivamos a energia cinética como uma energia de interação gravitacional, de
mesma natureza que qualquer outro tipo de energia potencial (Ver, André K T Assis, Mecânica Relacional, p.
218)
5
André K. T. ASSIS, Mecânica Relacional, p.200
153

a) para o cálculo do potencial: uma expressão equivalente à energia

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


cinética somada a energia de repouso relativística. Dando um significado de

interação com o restante do universo a essas duas energias. (13)

b) para o cálculo da força: uma expressão equivalente à segunda lei de

Newton somada a três expressões de forças equivalentes ao que chamamos de

forças fictícias (centrífuga, de Coriolis e outra sem nome). (14)

c) como subproduto é deduzida uma relação fundamental entre as

constantes cosmológicas descoberta por Dirac em 1930. (15)

Com a formulação matemática da Mecânica Relacional é igualmente fácil

resolver todos os problemas anteriormente resolvidos pela mecânica newtoniana,

como o movimento retilíneo uniforme, movimento com força constante,

movimento oscilatório, movimento circular uniforme, etc... A mecânica Relacional

permite ainda explicar problemas que vão além do que a física newtoniana

alcançava, como a precessão do periélio dos planetas, a anisotropia da massa

inercial e o movimento de partículas em alta velocidade.

Existem também já alguns testes experimentais que corroboram resultados

previstos pela mecânica relacional e outras propostas experimentais ainda em

vias de serem desenvolvidas.

A característica principal da Mecânica Relacional, e o que a diferencia da

teoria clássica de Newton e da teoria da Relatividade de Einstein, é a equivalência

dinâmica entre movimentos equivalentes do ponto de vista cinemático. Essa

equivalência fornece um novo argumento em favor do movimento de rotação da

Terra ao permitir enxergar com novos olhos os casos do Pêndulo de Foucault e

do achatamento na forma da Terra.


154

a) Achatamento na forma da Terra: segundo o desenvolvimento da

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Mecânica Relacional , utilizando os resultados descritos em (14) a Terra

seria achatada em função de uma interação sua com o restante das

estrelas e demais astros do universo. Assim, tanto faz girar o planeta,

como girar todo o resto em torno dele, obtém-se o mesmo efeito, com o

mesmo valor numérico calculado para o achatamento. (ver detalhes em:

ASSIS, mecânica relacional , pág 265)

b) Pêndulo de Foucault: de acordo com a Mecânica Relacional,

utilizando os resultados descritos em (14), a mudança de direção no

plano de oscilação do pêndulo de Foucault é devida a uma interação

deste com as demais massas do universo. Assim, se a Terra

permanecesse imóvel e todo o restante do universo girasse ao seu

redor, o pêndulo continuaria igualmente mudando a direção do seu

plano de oscilação. (ver detalhes em: ASSIS, mecânica relacional , pág

266)

Assim, seguindo as idéias de E. Mach, Assis questiona as descrições dos

experimentos sobre a forma da Terra e do pêndulo de Foucault que alegam

serem provas de que a interpretação heliocêntrica é melhor, ou mais precisa que

a geocêntrica.

Verifica-se quantitativamente a suposição de Mach, "se a situação

cinemática é a mesma, então os efeitos dinâmicos também têm de ser os

mesmos.".
155

Como fica então a resposta a nossa questão inicial quanto ao movimento

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


da Terra?

Segundo a mecânica relacional, ambas as concepções de mobilidade e

imobilidade para a Terra são igualmente válidas e corretas. Por esse motivo, nós

utilizamos a palavra "(i)mobilidade" (com o i entre parênteses) para expressar o

estado de movimento e/ou repouso da Terra desde o início deste trabalho. Essas

duas visões de mundo, com a nova argumentação aplicada aos resultados

experimentais, são completamente equivalentes e ainda mais, qualquer outro

sistema de referência será também equivalente, como explica Assis:

... qualquer sistema de referência é igualmente válido. Qualquer


pessoa ou sistema de referência pode-se considerar realmente em
repouso enquanto que todo o universo move-se ao redor desta pessoa
de acordo com sua vontade. E isto não apenas cinematicamente como
sempre se soube, mas também dinamicamente. Todas as forças locais
atuando sobre a pessoa serão contrabalançadas pela força exercida
pelo universo distante, tal que sua própria velocidade e aceleração
sejam sempre nulas.6

Como vimos os sistema geocêntrico e heliocêntrico são cinematicamente

equivalentes já na mecânica clássica. E escolher entre um sistema e outro é uma

questão puramente de gosto ou de simplicidade prática, não havendo nenhuma

razão física mais profunda. O que acontece na Mecânica Relacional é uma

ampliação desta equivalência também para a descrição dinâmica do movimento

de rotação da Terra.

6
André K. T. ASSIS, Mecânica Relacional, p.230.
156

Assim sugerimos, a partir do Princípio de Mach e da formulação da

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Mecânica Relacional, para o conflito entre o geocentrismo e o heliocentrismo uma

solução análoga à dada ao conflito entre a natureza ondulatória e corpuscular da

luz: a dualidade onda-partícula que junta, paradoxalmente em uma mesma teoria,

aspectos totalmente antagônicos.

De igual modo, as descrições geocêntrica e heliocêntrica para o movimento

de rotação da terra, segundo a mecânica relacional, podem ser concebidas como

descrições complementares de um mesmo fenômeno físico: a (i)mobilidade da

Terra. Uma vez escolhida uma forma de descrever o fenômeno a outra deixa de

ser válida.

* * * * * * * * *

Como atividade final propomos a elaboração de um quadro síntese

resumindo todas as respostas quanto ao movimento da Terra, as concepções em

que se apóiam, os argumentos e todas os experimentos estudados a partir deste

texto.

Argumento Concepção de mundo Experimento Resposta

* * * * * * * * *

A resposta à nossa questão quanto ao movimento da Terra fica assim

indeterminada por esse nosso último e fabuloso argumento.


157

Sobram-nos questões:

(i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra – (i)mobilidade da Terra


Quais dos argumentos estudados não são válidos? Quais são?

Quais novos argumentos surgirão?

Poderemos um dia, garantir com certeza se a Terra está móvel ou imóvel?

O que podemos afirmar com certeza é que jamais devemos ignorar os

argumentos, por mais simples que nos pareçam. E, se quisermos compreender

cada vez mais, não podemos nos perder da História da Ciência e nem desprezar

boas teorias alternativas.


Considerações Finais

De tudo, ficaram três coisas:


A certeza de que estamos
sempre começando...
A certeza de que
precisamos continuar...
A certeza de que seremos
interrompidos antes
de terminar....
Portanto devemos:
Fazer da interrupção
um caminho novo ...
Da queda um passo de dança...
Do medo, uma escada...
Do sonho, uma ponte...
Da procura, um encontro...
(Fernando Pessoa).

Neste trabalho apresentamos algumas perspectivas para a análise do

ensino de ciências, e do ensino de física em particular, a partir do encontro com

noções da epistemologia de Paul Feyerabend. Apresentamos também, em função

dessa perspectiva analítica, uma proposta alternativa de ensino relacionada ao

movimento da Terra e ao conceito de Inércia.

Desenvolvemos uma concepção da ciência como tradição cultural que

incorpora aspectos como a compatibilidade do conhecimento científico com

crenças metafísicas culturalmente compartilhadas; o uso legítimo de

propagandas; a pluralidade metodológica; a existência de conceitos


Considerações Finais 159

incomensuráveis entre teorias sucessivas ou concorrentes; a contaminação da

observação por diferentes interpretações naturais e a compreensão de que as

evidências empíricas são aprendidas dentro de uma cultura específica.

Como resultado do olhar sobre a Educação desenvolvemos uma

abordagem cultural que, opondo-se às restrições de uma pedagogia distante ou

autoritária, recupera a natureza de arte-prática do processo educativo; cumpre o

papel de difundir as tradições culturais e respeita as diferentes aptidões e

vontades manifestadas por alunos, professores e comunidade em que a escola

está inserida.

Tendo em vista que a filosofia de Feyerabend se propõe a apresentar

somente limitações aos sistemas metodológicos, não consistindo em uma

metodologia sistemática da pesquisa científica, seria bastante interessante

associar este trabalho a um conjunto síntese completo das epistemologias de

outros filósofos da ciência como Popper, Bachelard, Kuhn, Laudan, Lakatos,

etc... para uma compreensão mais ampla das idéias aqui discutidas.

No que se refere ao conflito obediência versus ousadia, na formação

científica de nível superior, seria muito apropriado, em continuidade à nossa

pesquisa, que se investigasse a dinâmica de trabalho e as relações coletivas de

diferentes grupos de pesquisa e estudo de Física.

Como continuidade desse trabalho propomos, ainda, explorar outros temas

da Física a partir de teorias contrastantes e por uma abordagem cultural. A

dualidade onda-partícula, a noção de espaço-tempo ou as leis do

eletromagnetismo são tópicos da Física que poderiam ser abordados segundo as

perspectivas educacionais que desenvolvemos. As propostas alternativas, para o

contraste, podem ser obtidas de teorias novas, como no exemplo da Mecânica


Considerações Finais 160

Relacional, ou de teorias há muito superadas, como a teoria do éter, a teoria do

calórico, dentre muitas outras possibilidades.

Também é de fundamental importância verificar em situação de ensino a

resposta ao uso do texto subsídio aqui proposto. Os resultados das atividades e

as impressões de alunos e professores sobre a abordagem proposta podem

consistir em um rico material de análise que permitiria complementar, enriquecer

ou se opor às nossas observações quanto ao Ensino da Física.

O aprofundamento e a qualificação das nossas idéias sobre a visão da

função dos especialistas, implícitas no ensino de ciências e na sociedade,

poderiam também ser ampliados com investigações mais específicas.

Por fim, cabe enfatizar que as idéias resultantes deste trabalho podem

subsidiar mas não conduzir a prática de pesquisadores, professores e estudantes

de Ciências. Mas há que se considerar sempre o contexto em que as idéias

serão discutidas e a decisões nunca podem ser antecipadas. Como recomendou

um outro poeta a um caminhante, o caminho se faz ao andar.


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