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O Senhor do Repuxo

No lago em frente ao pavilhão estava uma jogadora de hóquei em patins a


molhar as pernas. Talvez procurasse um pouco de calma, talvez tentasse
encontrar o seu destino. Estava só. Molhava as pernas até ao joelho, sentada à
beira-lago. A água era castanho-esverdeada como os seus olhos e tinha folhas
mortas das árvores que alouravam de Outono o lago. A Jogadora olhava a
distância. Lá ao fundo, passeavam as suas companheiras de equipa,
distraídas, rindo para a vida como se a juventude fosse uma verdade
irrefutável. Mas ela estava só. Procurava o seu ser no espelho baço da água.
Água da cor da terra, parada como ela. A água parecia suja, parecia não
condizer com a Beleza que o Homem inventa naquilo que faz, ou naquilo que
escreve. O mundo é uma enorme tela, onde o Homem se desenha não como é,
mas como se projecta ser, por isso é que as crianças aprendem que a beleza é
harmonia e que a Natureza é harmónica. Mas esta Natureza não era
harmónica, havia um travo de imperfeição, de uma qualquer coisa que, se eu
pudesse, alterava para poder ficar melhor. Todavia, a Jogadora achava bonito;
talvez por desta forma ser mais real. Procurava ser como a beleza do lago:
Será que te amam? De certeza que sim. Tu és tão real, és transparente no que
tens para mostrar. Por isso apaixonam-se por ti! A Jogadora balanceava as
pernas, fazendo pequenas ondas que passavam por baixo dos patos. Eles
navegavam como heróis, descobrindo novos recantos do lago todos os dias. A
sua casa era numa ilha e de lá partiam à aventura para dar novos mundos ao
mundo. Aventureiros, vieram pesquisar aquelas ondas desconhecidas. O
timoneiro era um pato preto e os marinheiros eram brancos. Na ilha, ficaram a
acenar, tristes, as fêmeas, as crias e os que já não podiam navegar. A
Jogadora via-os na distância… E balanceava as pernas, sentindo o macio da
água acarinhar-lhe a pele. Os patos aproximam-se e roçam as penas pelas
pernas dela. Ela não recua, permanece sentada na margem do rio a balancear
docemente as pernas. E tu que fazes aqui tão sozinha? Era o Pato Preto que
falava. As minhas companheiras foram para ali passear e eu vim para aqui
esperar... Esperar? Sim, esperar que apareça alguém. Os outros patos
passavam suavemente por suas pernas, fazendo-lhe cócegas ternas. Pato

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Preto, como é que vocês conseguem andar sempre tão juntinhos? O pato toma
um ar senhorial, como que preparando-se para uma grande revelação, os
outros ignoram-no, circum-navegam pelas pernas macias e bem desenhadas
da Jogadora: Na nossa sociedade há Igualdade, Honra e Justiça, é por isso
que me dá prazer liderá-la. Os olhos do Pato Preto enterneciam-se e havia um
qualquer sorriso impossível no seu bico. Lidero. Lidero como um dever para
com a sociedade, não como uma posição da qual deva tirar partido. Lidero com
a imagem de um Futuro que se prolonga para além da minha morte, porque o
que importa não sou eu, mas a sociedade a que pertenço... Os restantes patos
enfastiados talvez pelo diálogo ou por estarem fartos de sentirem a beleza das
pernas da Jogadora, começaram a afastar-se. Vendo isto, o Pato Preto
despede-se e coloca-se rapidamente à frente dos restantes, como um
verdadeiro líder. A rapariga suspira: Como eu gostava de amar assim...
Os patos passam. Vão procurar novas aventuras no desconhecido. Talvez
um dia possam descobrir uma Índia aqui no lago. Mas onde seria? É sempre
tão difícil encontrar o que ainda não se sabe! A Jogadora, se soubesse o
caminho, dir-lhes-ia, mas ela não sabe, por isso está calada a olhar a distância,
esperando que algo lhe seja revelado.
No centro do lago havia um repuxo que subia quase até ao céu, por cima
de uma luz que vinha desde as profundezas da água. O céu era morno de um
final de tarde de Outono. Havia poucos pássaros nas árvores que circundavam
o lago. Algumas pessoas estavam sentadas na relva ao fundo e as crianças
jogavam à bola. No centro do lago havia um repuxo que lançava a água até às
estrelas e depois, quando esta caía, levantava sons de palavras elementares.
A Jogadora ouvia-as de dentro do seu silêncio.
Estou tão só… Diz-me, Senhor do Repuxo, o que é o amor? A água
jorrava desde o lago para o céu como se a energia da luz a elevasse. Gostava
tanto de amar... Inesperadamente, o senhor do Repuxo diz-lhe: O amor é o
sentimento mais belo que o homem já inventou. Surpresa, ela contesta: Mas
eu não sou capaz de amar! Algo espantado, o senhor do Repuxo pergunta:
Porquê? Porque os homens são maus… Sabes, querida, olhar para nós faz-
nos tanto mal. Por vezes, é demasiado duro saber; por vezes, é demasiado ver
o que os homens fazem aos homens. É tão triste perceber. Querida, não olhes
para mim que estou tão sujo de todas as maldades que o homem fez. Não

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olhes para mim, peço-te! Tu és tão jovem… ainda não precisas de saber. Ainda
não precisas de perceber a vaidade, a cobiça, a inveja… não, ainda não… Ela
continuava: Não sei porquê, mas na minha equipa, ninguém quer saber de
ninguém. É estranho, estão sempre a dizer mal umas das outras. Parece
que… Apaga-se a luz do repuxo. Já é quase noite e o parque está escuro. Não
se vêem as crianças a brincar na relva e as suas colegas de equipa são
silhuetas esbatidas na escuridão. O senhor do Repuxo reflecte e murmura: Já
fizeram queixa de ti? Sim. O que disseram? Disseram que tinha a mania que
era muito boa. Silêncio. A água já não se eleva aos céus. Sabes, tu és
lindíssima. Infelizmente nem todos os homens são assim. Mas eu não tenho
culpa! A Jogadora comove-se e os seus olhos enchem-se de água. Pois não...
Mas nem todos têm a tua sorte e aqueles que a não tiveram querem roubá-la a
quem a tem. Porquê? O senhor do Repuxo levanta-se das profundezas do
lago. Os patos recolhem-se às suas casas, na ilha, atemorizados. Há um que
de costas para o Repuxo, ensina aos restantes que aquilo era uma
manifestação demoníaca que os iria punir pelos seus pecados e que eles
deveriam ouvir as suas palavras para se salvarem da morte anunciada. Não
era o Pato Preto que falava. Não ouvia o que esse profeta dizia; ele olhava o
lago e o monstro que se erguia como uma adversidade a superar. E ele ali
estava. De frente. Voltado para o lago. Esperando a invasão. De frente.
Sempre, como um idealista. Sempre, como os que amam. Preparado para
morrer, defendendo a sua comunidade de amigos...
Mas não. O Senhor do Repuxo não iria destruir a civilização dos patos.
Ele iria apenas sentar-se ao lado da jogadora de hóquei em patins que
molhava docemente as pernas nas suas águas.
Minha pequena, a Natureza é imperfeita. Se houvesse perfeição, os
astros não bateriam uns nos outros; se houvesse perfeição a Terra era
realmente redonda, mas ela não é e, repara, é bonita assim também. Os
homens, amiga, são parte da Natureza e, por isso, são, como ela, imperfeitos.
Por isso é que tu sentes que eles são maus. Mas, vê bem, não serão eles
belos assim. O senhor Repuxo já tinha vivido muitas eras, observando o
Homem, estudando a Natureza, mas nunca tinha saído do fundo do lago. Era
enorme e da cor da terra, tinha os olhos verdes e lodo por todo o seu corpo. Os
seus gestos, embora medidos, mostravam um certo nervosismo. Ele nunca

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saíra dali. Não sabia como ou se tocar a rapariga para a confortar. Não queria
magoá-la ou magoar-se. Queria explicar-lhe a Vida, mas era difícil: não se
sabia comportar à superfície do lago. Desajeitado, continua: Ouve, tal como
este lago é belo na imperfeição que tu lhe vês, as pessoas também são bonitas
nos erros que cometem. Deves tentar perceber que, se o fazem, muitas vezes,
não é por mal, mas porque pertencem à forma de ser homem. Deves amá-las
entretanto, não aspirando a que elas se melhorem até à perfeição, mas pelo
que elas são de verdade...
O senhor Repuxo não podia ficar mais tempo fora do local a que fora
destinada a sua vida. É assim... E regressa ao fundo do lago.
Entretanto, a Jogadora é chamada para o pavilhão de desporto. Havia um
jogo a fazer.
No final, ela foi considerada pelo júri a melhor em campo. O treinador,
abraçando-a, sentencia: Estiveste muito bem! Parabéns, Vitória! Todavia, as
companheiras sussurravam: Tens mesmo a mania que és a melhor, não tens?
A Jogadora tomou banho, cabisbaixa, pensava: Senhor do Repuxo, diz-
me como posso amar, porque não sei…

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