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O menino na estrada

Está um menino na estrada a olhar as estrelas. Está só. É tão tarde, as


pessoas dormem aconchegadas na cama quente. Mas ele não tem casa. Está
na estrada, deitado por cima de umas caixas de papelão que já não são caixas
e ainda não são cama. Olha as estrelas para desenhar o sorriso do pai e ouvir
a canção da mãe. Nunca teve pais, conhece-os, quando vê outros meninos de
mão dada com adultos. Mas agora não passa ninguém, por isso dá a mão às
estrelas para que elas o aqueçam durante a noite. Está frio, embora seja
Verão. O clima está a mudar conforme a tristeza do menino cresce. Sente o
vento frio por entre a roupa suja e rota. Deram-lha na igreja quando já não tinha
uso e ele vestiu-a desde a infância à adolescência. Mas hoje está frio, mais frio
do que os buracos da camisola podem suportar. Talvez devesse cosê-los,
porém não tinha agulha, nem conhecia ninguém que lha pudesse emprestar.
Não conseguia dormir. Na casa ao lado, há luz e música e dois vasos com
jasmim no parapeito da janela. O jasmim sorri com a sua flor branca, na timidez
de um sonhador solitário. E o menino não pode dormir: há muita alegria ainda
para gastar naquela noite. A alegria dos outros. Sempre essa. É por ela que
sabe o que é ser feliz. A música… É um samba? Devem dançar por cima da
injustiça, dançar abraçados a este sistema que esqueceu o menino. Mas ele
não dorme. Há muita alegria e os seus olhos brilham de saudade do que nunca
viu. É possível? Não sei. É como o mar que surge no leito de morte daquele
homem que viveu sempre na montanha.
Está frio cá fora, mas ninguém sabe. Há sempre mais um pedaço de
tecido para comprar o que a Natureza não pode dar. Não consegue dormir. A
noite está pesada e as estrelas escondem-se com medo. Não há ninguém na
rua. Estão todos na casa ao lado. O menino está só, como aquele comboio
parado na estação que já não trabalha. É uma estação velha, parada como o
seu relógio. Já ninguém viaja. Resta apenas um comboio parado. Às vezes,
durante a tarde, o menino resgata-o da morte e guia-o para longe. Como
daquela vez em que foi à praia e comprou o direito de mergulhar no mar. Era o
maquinista a controlar a automotora pela loucura dos carris. Eram manómetros,
botões e alavancas, tudo a mexer para o sonho poder ser mais real do que a

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realidade. E foi ao mar e descobriu o que era o sal e o calor da areia fina nos
pés… Mas é noite e, como o comboio não tem luz, o menino não se arrisca a
viajar. Está deitado ali, recolhendo nos caixotes os restos do calor do dia.
Ao longe, como um facho de luz, sobe a rua, ao fundo da encosta, uma
menina. Desce tranquila pela margem esquerda da estrada. Olha as montras,
iluminando-as com o seu olhar. Chega devagar; medindo cada passo numa
aritmética anterior ao Homem. Ela vem como a maior estrela do firmamento.
Que fazes acordado a esta hora? Não consigo dormir. E tu? Perguntou o
menino surpreendido. Costumo passar por aqui todos os dias. A esta hora?
Sim, mais ou menos. Costumo ver-te aqui. Mas estavas sempre a dormir. Ela
sorri para o sorriso íntimo que o menino guardava. Trouxe-te um presente!
Retira do bolso um saquinho de cabedal e entrega-o nas mãos do menino. Ele
segura-o, tremendo e abre-o de imediato. E toca ferozmente o seu interior. E
invade-se do presente com toda a euforia. Era um saquinho de areia do mar.
A menina, nesse momento, começa a afastar-se. O menino, em pânico,
grita: Espera! Onde vais? Como te chamas? Aurora. Porquê que estás a
chorar, Aurora?

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