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O BRASIL DE HOJE: A POLÍTICA E A AGENDA SOCIAL*

Fábio Wanderley Reis**

I. Democracia, capitalismo e a feição brasileira do problema da igualdade

Tempos atrás, os teóricos do processo de desenvolvimento do estado-nação moderno


falavam de três problemas articulados que seria necessário enfrentar e resolver: o problema da
identidade, o da autoridade e o da igualdade.1 O problema da identidade, que se refere à
dimensão propriamente “nacional” do trinômio “estado-nação moderno”, tem a ver com os
aspectos de natureza sociopsicológica ou cultural por meio dos quais a definição da
identidade pessoal dos indivíduos vem a ser condicionada em medida importante pela
inserção na coletividade nacional, que pode, assim, esperar contar com a lealdade de cada
qual. O problema da autoridade diz respeito à edificação da aparelhagem administrativa e
simbólica do estado, tornando-o capaz de presença e de ação efetivas junto à coletividade. Já
o problema da igualdade, que representaria a face mais especificamente “moderna” da questão
geral, refere-se ao desafio da plena incorporação político-social da população, em particular
dos estratos populares, envolvendo a acomodação “constitucional” (em sentido
sociologicamente denso da expressão, que não deixa de incluir aspectos legais) do convívio
entre as classes sociais e a neutralização do potencial de conflitos nele contido.
Este último aspecto se desdobra no tema delicado das relações entre a democracia e o
capitalismo no processo que se dá em cada país. A grande questão há muito situada por aquilo
que os teóricos mecionados designam como o problema da igualdade era a de se a
incorporação popular poderia ocorrer de forma conseqüente sem que a mobilização produzida
pelo capitalismo junto às estruturas sociais tradicionais desaguasse em disposições
revolucionárias capazes de ameaçar a sobrevivência do próprio capitalismo. As alternativas
históricas de solução estável e bem sucedida do problema assim posto pareciam, até há pouco,
compreender dois tipos de experiência: a dos países de capitalismo avançado, em que o
próprio amadurecimento do capitalismo teria vindo viabilizar os mecanismos institucionais de
democracia política e de incorporação social, em contraste com a suposição marxista do
agravamento das contradições e da eventual ruptura revolucionária (viabilização esta que se
deu mais cabalmente, embora não só, num modelo político-organizacional assumidamente
socialdemocrático); e a dos países que passaram por revoluções socialistas, com a
acomodação buscando-se em termos da supressão dos fundamentos capitalistas da divisão da
sociedade em classes sociais.
A presença da questão social na agenda político-institucional do Brasil se dá há muito
em termos do que pode ser descrito como o problema constitucional não resolvido, ou
resolvido insatisfatoriamente. O decisivo lastro negativo a se ter em conta no fracasso da
incorporação social no Brasil e na manutenção do quadro de enorme desigualdade social é,
sem dúvida, a longa experiência escravista do país. Algo que permite ver o que será talvez a
essência, em termos de psicologia coletiva, do problema representado pela herança escravista
brasileira se tem com matéria jornalística de alguns anos atrás. A propósito da virada de
século e de milênio pela qual passamos recentemente, o jornal O Estado de São Paulo
republicou, em 31 de dezembro de 1999, um editorial aparecido no mesmo jornal no dia 1 o. de
janeiro de 1901 sob o título de “Um século”. Tratando-se de um momento que distava apenas
alguns anos da abolição da escravatura, o interesse da republicação consiste em que, na
candura com que o autor do editorial, ao discutir os eventos do século 19, manifesta o espírito
da época, marcado por aberto racismo e por clara perspectiva eurocêntrica, algo mais fica
evidente: na percepção do editorialista (e provavelmente do establishment brasileiro que ele
presumivelmente pode ser tomado como representando), a ampla população negra então há
pouco liberta com certeza não fazia parte propriamente do povo brasileiro. A imagem do
Brasil que transparece é antes a de um país europeu que acontecia ter recorrido às
conveniências da mão-de-obra escrava africana – e agora a via transformada num problema.
Não admira, por exemplo, na perspectiva que aí se tem, que cerca de 50 anos mais tarde, em
meados do século 20 (para tomar um ponto de referência usado em comparações realizadas na
imprensa brasileira a propósito de dados educacionais negativos divulgados há pouco pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o país ainda não tivesse despertado para a
necessidade de investimentos maciços em educação – educar “essa gente”? Pondere-se que na
Argentina o analfabetismo deixou de existir já no século 19, enquanto no Brasil continuamos
às voltas com ele ainda no século 21.
Posto em outros termos, o que o Brasil do século 20 herdou é inequivocamente uma
sociedade de castas.2 Por certo, as grandes transformações econômicas e estruturais
experimentadas pelo país ao longo do século, com a industralização, a intensa urbanização e
seus correlatos, resultaram em mudanças importantes também no plano da psicologia coletiva,
e é mesmo provavelmente legítimo reconhecer (ainda que com reservas quanto a visões mais
benignas e exageradas)3 certa “inclusividade” do Brasil da atualidade: tomem-se, por
exemplo, a música popular e os esportes, especialmente o futebol, onde as chances de êxito
sem dúvida não dependem de características raciais ou de um background social mais
favorável. Além disso, as mudanças estruturais se fizeram também acompanhar de extensa
incorporação no plano eleitoral, com consequências políticas de monta.4 Mas a desigualdade
econômica e social continua enorme, e não há dúvida de que o famoso “fosso social”
brasileiro segue existindo.5 De sorte que, na dialética entre desigualdade, incorporação e
exclusão, o problema constitucional brasileiro acaba por assumir a feição do contraste (e da
tensão) entre duas categorias que o jornalista Marcos Sá Corrêa foi o primeiro a contrapor: os
eleitores e os contribuintes. Se tomamos os contribuintes como aqueles que têm rendimentos
suficientes para deverem pagar imposto de renda, o Brasil dos contribuintes se situa em torno
de 10 milhões de pessoas; com reservas para as variações mais ou menos circunstanciais de
alíquotas, temos com ele, de toda forma, cerca de um décimo do Brasil dos eleitores.
A projeção político-institucional dessa situação pode ser descrita em termos da
prevalência de um quadro geral de instabilidade “pretoriana”, categoria utilizada em análises
clássicas de Samuel Huntington para indicar a situação em que, dada a fragilidade das
instituições políticas e sua incapacidade de processar adequadamente o jogo dos interesses,
cada “força social” usa diretamente na arena política os recursos de qualquer natureza de que
disponha, donde resulta o protagonismo dos militares pela peculiaridade dos recursos que
controlam, os instrumentos de coerção física.6 Huntington distingue tipos de pretorianismo –
oligárquico, radical e de massas –, e a categoria do “pretorianismo radical”, associada por ele
à afirmação política das classes médias, pode provavelmente aplicar-se à movimentação
militar de princípios do século 20 no Brasil, em particular ao chamado Movimento Tenentista.
Seja como for, nas várias décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial, trata-se sem dúvida
do “pretorianismo de massas”, cujo foco reside na afirmação política das massas populares –
e, no contexto dos confrontos e tensões da Guerra Fria, o protagonismo dos militares (que se
dá normalmente com o beneplácito de outros setores das elites do país, especialmente o
empresarial) assume inequívoco significado de resistência à ameaça de subversão
revolucionária e socializante. Essa ameaça, quaisquer que fossem os erros de avaliação das
“condições objetivas”, era efetivamente sentida como tal pelo establishment, imbuído de uma
espécie de “complexo de sublevação”, e o pretorianismo brasileiro do último meio século tem
um claro sentido “marxista” de enfrentamento social. Nesse enfrentamento, o Brasil dos
contribuintes (ou a parte “Bélgica” e próspera da “Belíndia” que Edmar Bacha há tempos
enxergou no país, parte esta na qual acontecem cotidianamente as decisões de importância
econômica) tendia a ver com suspeita o próprio processo eleitoral como tal (onde decisões
potencialmente de crucial relevância econômica são entregues à nossa vasta “Índia” eleitoral).
II. Ingovernabilidade e “hobbesianismo”

A instabilidade pretoriana do problema constitucional não resolvido nada tem de


peculiar ao Brasil. Na verdade, vistas numa óptica planetária, as formas de “solução” do
problema indicadas acima, envolvendo ou a prosperidade capitalista com acomodação
socialdemocrática ou a revolução socialista, são antes excepcionais: a regra somos nós, isto é,
os países subdesenvolvidos da periferia do sistema capitalista mundial, a nos debatermos na
prolongada condição de instabilidade institucional e de experimentos autoritários mais ou
menos freqüentes. Mas há novidades e matizes nesse quadro. Por um lado, o colapso recente
do socialismo em plano mundial, na esteira da experiência de autoritarismo político
especialmente rígido e, ao cabo, de ineficiência econômica que marcou os países socialistas,
sugere que não cabe contar com estabilidade real sem democracia (ainda que a repressão
possa garantir a longa duração da forma autoritária de organização) e que a solução real
estaria na combinação de prosperidade e democracia que se tornaria possível com o
capitalismo avançado. Por outro lado, os processos econômico-sociais ligados à dinâmica
recente da globalização vêm colocar em xeque o “compromisso social” da socialdemocracia
(envolvendo keynesianismo, welfare state e composições “neocorporativas” entre o estado e
associações empresariais e sindicais)7 e trazer a possibilidade de eventual reabertura do
problema constitucional até nos países de maior tradição de estabilidade democrática –
embora essa ameaça se dê em circunstâncias nas quais a lógica mesma dos mecanismos em
jogo debilita alguns dos principais atores que protagonizavam o compromisso político e social
anterior e torna precárias as perspectivas imediatas de reação conseqüente, por parte deles, às
novas condições.
De qualquer modo, o colapso do socialismo mundial tem também o efeito de
neutralizar o papel da ameaça da revolução socialista no jogo político, ao eliminar o eventual
respaldo internacional para iniciativas que pretendessem orientar-se nessa direção e ao
esvaziar em grande medida a idéia mesma do socialismo como opção atraente e
eventualmente viável. No Brasil, como provavelmente em outros países, isso tem o efeito de
fazer arrefecer o “complexo de sublevação” mencionado e melhorar, por este aspecto, as
perspectivas de estabilidade democrática (comparem-se, por exemplo, o intenso temor
suscitado entre os empresários brasileiros pela campanha presidencial de 1989, quando
lideranças empresariais importantes brandiam a ameaça de maciça saída de empresários do
país na hipótese da vitória de Lula, com a relativa tranquilidade dos contatos de Lula com o
mundo empresarial brasileiro em 2002, apesar das suspeitas no plano internacional,
especialmente nos meios financeiros). Mas as novidades na cena econômica e política
mundial, primeiro com a crise do welfare state desde os anos 70 e em seguida com a
intensificação da globalização e de seus mecanismos próprios, introduzem na cena política a
questão da “governabilidade”, que vem a ocupar intenso espaço nas discussões políticas
brasileiras em seguida ao colapso do regime de 1964.8
Por certo, o próprio pretorianismo de que se falou acima pode ser visto como
representando a forma mais clássica de ingovernabilidade em tempos modernos. A ele pode
ser acrescentada a forma em torno da qual o tema da governabilidade se introduziu nas
ciências sociais da atualidade, com participação decisiva do mesmo Huntington que antes se
ocupara do pretorianismo: aquela forma que se poderia designar, ressaltando o ponto focal das
análises desse autor, como a “ingovernabilidade de sobrecarga”. Ocorrendo num quadro de
crise fiscal do estado e de demandas crescentes a ele dirigidas, cumpre destacar que se trata
aqui de uma condição que contrasta fortemente, por um aspecto central, com a
ingovernabilidade pretoriana da precária capacidade de processamento institucional do
confronto dos interesses, pois a ingovernabilidade de sobrecarga se enraíza na existência e na
institucionalização de um estado aberto e sensível à multiplicidade dos interesses, o qual
supostamente se destempera a certa altura diante do excesso de demandas (o “destempero
democrático”, na expressão de Huntington).9
Mas as novas condições mundiais, associadas à exasperação de certos traços que há
muito acompanham a desigualdade e as deficiências sociais brasileiras, expõem com força o
Brasil a uma terceira forma, que se poderia chamar de “ingovernabilidade hobbesiana”. Trata-
se, neste caso, da deterioração difusa do tecido social, da criminalidade e da violência urbana
crescentes, do surgimento de espaços onde a autoridade estatal não tem condições de se fazer
valer de modo efetivo – e, assim, do comprometimento da capacidade de ação do estado no
plano da própria manutenção da ordem pública e da segurança coletiva. Na verdade, seria
possível dizer que esse comprometimento faz emergir o problema constitucional em sentido
mais comezinho e básico, transformando-o no problema, de que se ocupou Hobbes, da
constituição ou preservação da autoridade capaz de garantir o anseio fundamental por
segurança e ordem.
Naturalmente, o “hobbesianismo” representa uma importante face nova da presença do
social na agenda político-institucional. É bem claro que ele ocorre mesmo nos países de
capitalismo avançado, com a crise do keynesianismo e do estado de bem-estar e a
perversidade social da globalização, o desemprego, a informalização e a precarização do
trabalho redundando em desigualdade crescente, incremento da violência urbana e,
especialmente nos Estados Unidos, a “hipercriminalização” e a explosão da população
carcerária.10 Com respeito ao Brasil, porém, podem destacar-se dois aspectos articulados em
razão dos quais os fenômenos correlatos assumem características e significado especiais.
Em primeiro lugar, a peculiaridade brasileira a respeito é indicada pelo fato simples de
que analistas interessados na deterioração social e na desigualdade que vêm penetrando os
países economicamente avançados têm se referido ao Brasil para a própria caracterização de
tais processos: tratar-se-ia, como sugere Goran Therborn, da “brasilização do capitalismo
avançado”,11 em que a desigualdade que há muito nos distingue passaria a manifestar-se
também naqueles países, com a substituição do componente social da cidadania e dos
“direitos sociais” pelas asperezas do mercado. Ora, para o Brasil, fatalmente inserido ele
próprio na dinâmica nova a operar em escala mundial, isso indica com clareza que as
deficiências sociais tradicionais do país se vêem cumuladas pelas consequências sociais
negativas do mundo novo da globalização, com o risco de que seus efeitos sejam
potencializados.
Por outro lado, o caráter sombrio e especialmente perverso do hobbesianismo
brasileiro se liga a algo mais. Trata-se de que, dadas as dimensões do fosso social brasileiro, o
processo de transformação estrutural por que passou o país, se por um lado altera em sentido
benigno e incorporador a psicologia coletiva das elites e das camadas médias (o racismo
afirmativo do editorialista de 1901 seguramente não corresponde às disposições hoje
dominantes, mesmo se merece reservas a idéia da “democracia racial” como descrição
adequada das nossas relações raciais), por outro lado não pode deixar de alterar também em
direção mais agressiva e reivindicante o conformismo e a passividade próprios das relações de
castas. Fernando Henrique Cardoso dizia há algum tempo, quando presidente da República,
que o Brasil não é mais um país subdesenvolvido, mas sim um país injusto. À parte os dados
objetivos que permitem constatar a manutenção da desigualdade brasileira, e da “injustiça”
nesse sentido, a observação do ex-presidente se revela certa num sentido especial: o de que o
Brasil se vem tornando um país subjetivamente injusto, em que o sentimento de injustiça
penetra aos poucos as camadas mais pobres da população, submetidas aos deslocamentos e às
condições novas de uma sociedade de grandes aglomerações urbanas e de intensa exposição
aos meios de comunicação de massas, especialmente a televisão. E cabe acrescentar que,
nesse contexto, nem mesmo as melhorias resultantes de políticas sociais relativamente bem
sucedidas são razão para esperar que as consequências sociais negativas venham a ser
atenuadas. Pois as melhorias podem não representar de pronto, para muitos, senão a
oportunidade para tomar consciência mais aguda da precariedade de sua condição e para o
aparecimento de disposições aguerridas e inconformistas. Mas um importante matiz a
ponderar é o de que, dada a combinação das circunstâncias estruturais novas e velhas com a
limitação quanto aos recursos intelectuais das parcelas amplamente majoritárias da população,
resultante das deficiências que se mantêm na estrutura educacional brasileira, dificilmente se
poderia esperar que o surgimento e a difusão do inconformismo viessem a tomar
predominantemente um rumo político e construtivo (que não é tampouco estimulado pela
nova dinâmica econômica): não obstante avanços como o crescimento bastante intenso de
certo associativismo e a proliferação de organizações não-governamentais, 12 a manifestação
mais clara e dramática do inconformismo consiste antes na intensa expansão da violência
criminosa e da insegurança que caracterizam a forma hobbesiana de ingovernabilidade. Daí
que o Brasil da última geração, ao mesmo tempo em que presenciava avanços como a queda
acentuada do analfabetismo, a redução da mortalidade infantil e da pobreza absoluta e o
acesso dos menos favorecidos ao consumo de coisas como geladeiras, televisores e mesmo
automóveis, tenha se tornado também o país dos sequestros, dos vidros dos automóveis
fechados contra a ameaça dos pivetes, dos carros blindados, das chacinas corriqueiras na
periferia das grandes cidades, das guerras de traficantes nas favelas, do linchamento de
crianças tomadas pelo estado sob sua tutela, das banais rebeliões nos presídios.

III. Brasil, Argentina e a política

Se consideramos a questão de como Brasil e Argentina se comparam na perspectiva


dos problemas gerais indicados, é bastante evidente, naturalmente, que os dois países
compartilham a experiência do pretorianismo e que essa experiência pode ser vista como
envolvendo o mesmo significado básico de enfrentamento social. Contudo, as importantes
diferenças no que se refere ao avanço social que a Argentina soube conquistar há muito
tempo, em comparação com a herança escravista e a desigualdade brasileiras, têm
ramificações também importantes do ponto de vista político-eleitoral. O que não impede que
surjam indagações quanto às consequências institucionais dessas ramificações, que parecem
equívocas.
O aspecto decisivo tem a ver com o fato de que a população argentina é, de longa data,
certamente muito mais atenta, sofisticada e mobilizada politicamente do que a brasileira. Para
usar dados do começo da década de 1970, que tenho à mão, no Brasil de então era necessário
ir ao nível mais alto entre cinco categorias de escolaridade (a categoria correspondente a curso
secundário completo ou curso universitário) para se alcançar uma porcentagem (39 por cento)
de pessoas capazes de perceber a relevância do governo nacional para sua vida cotidiana
comparável à que podia ser encontrada na Argentina, na mesma época, entre as pessoas de
classe baixa (39,9 por cento, em classificação que incluía ainda a classe “média” e a classe
“alta”).13 Dados recentíssimos do Latinobarómetro, relativos ao ano de 2002, indicam a
persistência de padrões de significado geral análogo: assim, enquanto no Brasil a
porcentagem dos entrevistados em amostra nacional que declaram não saber ou simplesmente
não respondem à pergunta “Que significa a democracia?” alcança o nível de 63 por cento (a
proporção mais alta, por ampla margem, entre 17 países latino-americanos estudados), a
porcentagem correspondente na Argentina não vai além de 12 por cento;14 além disso, os
argentinos manifestam, de maneira que se mostra claramente correlacionada com as
diferenças educacionais, muito maior apoio geral à democracia do que os brasileiros, muito
menor disposição geral a admitir reservas à operação da democracia em razão de
circunstâncias “difíceis” ou de problemas econômicos e muito maior congruência entre as
disposições reveladas quanto às diferentes dimensões que aí transparecem (por exemplo, no
que diz respeito à admissão, entre os que se declaram “democratas”, de restrições à
democracia ou do recurso circunstancial ao autoritarismo).15
Como quer que seja, o alheamento político das camadas populares do eleitorado do
Brasil e as inequívocas deficiências correlatas no plano das disposições e atitudes são um
aspecto marcante do cenário político do país. Cumpre ressaltar que essas características não
resultam em total falta de consistência do eleitorado popular, que viesse a fazer dele um
eleitorado passível de ser submetido a manipulações sem limites. O conjunto de traços
exibidos pelo eleitorado popular brasileiro, com suas nuances e ambiguidades, pode
descrever-se em termos de certa mescla, que rotulei às vezes de “síndrome do Flamengo”, em
alusão à mais popular equipe de futebol do país. Essa mescla contém, por uma parte, certa
“consistência populista”, correspondente à tendência dos estratos menos favorecidos a
estruturar o universo político em termos de imagens singelas (que envolvem apenas a
contraposição tosca entre o popular e o elitista, os “pobres” e os “ricos”) e a identificar-se
reiteradamente com figuras ou partidos políticos percebidos como correspondendo ao lado
“popular” (o “Flamengo”); por outra parte, há também o componente errático decorrente de
que, na carência de sofisticação intelectual e ideológica e da orientação para issues ou
questões específicas de qualquer tipo, não se pode contar com que esses estratos do eleitorado
venham a encontrar o rumo que os norteia de maneira “objetivamente” consistente em
circunstâncias em que o ambiente político-eleitoral em que atuam se mostra ele próprio
cambiante e fluido (ou seja, o “Flamengo” pode assumir formas variadas e eventualmente
surpreendentes se consideradas à luz de categorias como esquerda e direita).16 Por certo, o
elemento correspondente à peculiar consistência populista é o que responde, nessa síndrome,
pela existência de limites à manipulação (que ficaram claros, de modo especialmente
significativo, nas dificuldades deparadas pelo antipopular regime ditatorial de 1964 para
legitimar-se no plano eleitoral, não obstante as muitas manobras legais). Por outro lado, é esse
mesmo elemento de apego difuso ao “popular” que se articula, na percepção do
establishment, com o populismo e suas incertezas, em particular com a idéia de “massas
manipuláveis” eventualmente propensas a se deixarem transformar em instrumentos de
projetos de “subversão”, e com a deslegitimação conseqüente do próprio processo eleitoral.
Não obstante o componente de paranóia contido em tal visão, bem como seu aparente
arrefecimento nas novas condições do panorama internacional, não há como negar a afinidade
da síndrome em questão com o que há de mais negativo no populismo – é bom lembrar,
afinal, que ainda há pouco foi possível a um Collor empolgar o poder no país com alguns
truques de marketing. E os perigos persistentes do substrato sociopsicológico do populismo
que aí se tem, o qual ameaça comprometer a idéia de uma democracia capaz de operar
institucionalmente de forma estável, são indicados com nitidez nos dados de um projeto
brasileiro executado alguns anos atrás: somente entre os entrevistados de nível universitário
não se encontrava, nesses dados, a concordância da ampla maioria com um item de
questionário de claro ânimo antiinstitucional, e mesmo autoritário, em que se desqualificavam
os partidos políticos e se afirmava que, em vez deles, o que o país necessita é “um grande
movimento de unidade nacional dirigido por um homem honesto e decidido” (e registre-se
que até entre os entrevistados de nível universitário a proporção de concordância alcançava
ainda os 36 por cento).17 Naturalmente, torna-se difícil pretender atribuir maior consistência à
preferência declarada pela democracia, já de si comparativamente pequena (os dados do
Latinobarómetro acima mencionados mostram o Brasil, em 2002, como o país latino-
americano com menor proporção de respostas – 37 por cento – em que se declara preferir a
democracia a qualquer outra espécie de regime), em circunstâncias em que basta a alusão a
traços ou ocorrências que tendem a ser percebidos de maneira positiva (honestidade,
capacidade de decisão, união nacional) para que as pessoas se revelem dispostas a abrir mão
de requisitos institucionais dela em favor de lideranças pessoais “fortes”.18
Se voltamos à comparação entre Brasil e Argentina, esta teve, obviamente, suas
próprias e marcantes experiências populistas, especialmente com Perón. Mas a resiliência e a
durabilidade do próprio peronismo podem provavelmente ser ligadas ao caráter
comparativamente mais alerta e intenso do envolvimento político da população argentina. Se
é bem claro o sentido em que esse caráter representa algo preferível relativamente à situação
brasileira, a contrapartida (na qual se introduzem os aspectos equívocos a que se aludiu acima
quanto às ramificações políticas do avanço social argentino com respeito ao Brasil) reside no
fato de que a maior capacidade de mobilização política, que vimos de novo manifestar-se com
vigor na crise econômica recente, torna o próprio pretorianismo argentino muito mais
dramático do que o brasileiro: ele tem mais nitidamente a feição de “guerra interna”, a
experiência autoritária apresenta traços mais feios, a “guerra suja” assume proporções bem
mais trágicas. Numa perspectiva algo cínica, talvez fosse possível explorar a idéia de uma
espécie de gullibility theory of democracy, ou de visão na qual, ao menos na ausência de
prosperidade sustentada que permita um jogo em que todos ganhem, a estabilidade
democrática dependeria de certa candura ou ingenuidade (o que naturalmente se liga com
velhas idéias em que a democracia é associada com certo grau de apatia ou passividade da
população)19: nessa perspectiva, o contra-exemplo talvez mais claro seria justamente o caso
argentino, onde os níveis europeus de prosperidade alcançados precocemente não puderam
depois ser mantidos.20 E o que poderia ser visto como surpreendente (ou talvez como algo a
corroborar de novo os traços positivos que lastreiam a relevância que a política adquire aos
olhos dos argentinos) é a penetração relativamente limitada da forma “hobbesiana” de erosão
social, não obstante sua intensificação recente.

IV. Vantagens do atraso?

No Brasil, em contraste, teríamos podido nos beneficiar de certas “vantagens do


atraso”. A “síndrome do Flamengo” de que se falou acima, em vez de um eleitor inteiramente
“volátil”, está antes associada com a tendência do eleitor popular a criar identificações ou
antagonismos estáveis com lideranças ou partidos que operem de maneira continuada e
adquiram suficiente visibilidade. Nessa perspectiva, pode-se sustentar que um aspecto
relevante das dificuldades políticas brasileiras nas últimas décadas tem a ver com a fluidez do
sistema partidário que decorre, não da “volatilidade” do eleitorado popular em expansão
acelerada, mas da manipulação institucional produzida no confronto político como resposta às
consequências sobre o processo político-eleitoral de algo em que se revelam antes as
tendências mais constantes daquele eleitorado: vejam-se o crescimento eleitoral continuado
do PTB no período 1945-64 (certamente um dos fatores da crise que leva ao golpe no fim do
período), a afirmação eleitoral do MDB no momento em que, em 1974, os embaraços do
regime ditatorial permitem a esse partido uma mensagem aguerrida de tonalidades populares,
a gradativa e firme penetração do PT no novo período democrático, culminando com a vitória
nas eleições presidenciais de 2002. Um desafio crucial, assim, seria o de se criarem condições
que, em vez da permanente turbulência do quadro partidário, permitam a essa propensão às
identificações de cunho popular assumir a forma de identidades partidárias estáveis, de modo
a canalizar institucionalmente a participação político-eleitoral das massas e a mitigar ou
neutralizar a atração exercida por lideranças de tipo propriamente populista ou personalista.21
A ambivalência dos traços dessa síndrome tem implicações relevantes para a
experiência que o país vive agora com a afirmação do PT e o acesso de Lula à Presidência.
Um primeiro aspecto é o de que o êxito eleitoral do partido dificilmente poderia ser visto
como significando o apoio da massa popular às idéias radicais e socializantes que o marcaram
em sua origem. Assim como ocorreu com o PTB associado a Getúlio Vargas, o “pai dos
pobres”, e com o MDB de 1974, que a percepção popular passou a identificar como o “partido
dos pobres”, como mostraram as pesquisas,22 assim também, descontadas certas “vanguardas”
de maior informação e envolvimento políticos, o apoio trazido a um “partido dos
trabalhadores” certamente se deve, em boa medida, às próprias deficiências do eleitorado
popular de que se nutre há muito o populismo.23
Isso não impede, porém, que se destaquem as peculiaridades da experiência que se dá
em torno do PT. Temos com ele, para começar, um esforço que, apesar da importância da
figura de Lula e outras lideranças, se orientou desde o início não em bases personalistas, mas
antes pelo empenho de construção de uma instituição partidária sólida, em que o debate
interno e o incentivo à militância não impedissem a disciplina e a atuação eficaz. Além disso,
os traços que conformaram o partido resultam na combinação de fatores “populistas” de
atração eleitoral (incluindo a figura de Lula e seu carisma pessoal, não obstante o que ela tem
de peculiar, por sua origem mais autenticamente popular, diante da posição social privilegiada
das lideranças populistas típicas) com maior apego a idéias e princípios, justificando a
expectativa de que o êxito eleitoral, e consequentemente a perspectiva de que o partido
chegue a representar um instrumento efetivo de canalização da participação política popular,
venha a ocorrer com preservação mais adequada da consistência institucional e do
compromisso popular do que em outros casos na história dos partidos brasileiros. Finalmente,
a afirmação mais cabal do PT, com o acesso à Presidência da República, dá-se em
circunstâncias em que o necessário aprendizado de realismo eleitoral se associa com o
aprendizado de realismo também quanto ao exercício do governo e à administração do país,
imposto pelo mundo novo da globalização e do pós-socialismo e pelo cenário econômico
adverso no plano internacional com que o partido se defronta ao deparar a oportunidade real
de assumir o poder.
As consequências disso do ponto de vista do processo político-institucional brasileiro
e das perspectivas que se abrem para a democracia no país podem ser de grande importância.
Pois o acesso da “esquerda” ao poder (há muito o foco mesmo dos temores que se davam em
torno de nosso problema constitucional não resolvido) acaba ocorrendo em circunstâncias em
que se torna possível o desarmamento dos espíritos e a eventual convivência institucional
consolidada entre setores de opinião e focos de interesse que sempre se viram com suspeita ou
hostilidade. Surge, assim, a possibilidade de que venhamos a repetir, por aspectos relevantes,
a trajetória seguida pela socialdemocracia em diversos países europeus (não obstante os
obstáculos que ela enfrenta agora internacionalmente), e de que, sejam quais forem os êxitos
ou dificuldades administrativas e os eventuais avanços sociais obtidos, possamos passar com
sucesso pelo teste crucial de ver chegar a bom termo institucional o governo de um partido
ainda há pouco percebido como a face nova da antiga e inaceitável ameaça de subversão, com
a entrega da faixa presidencial ao sucessor em condições de normalidade. Em tal
eventualidade, seria com certeza possível falar de perspectivas favoráveis à consolidação da
própria democracia brasileira, com a superação de nossa longa instabilidade pretoriana. Resta
esperar que as muitas turbulências que o governo Lula seguramente terá pela frente, dadas as
incertezas do quadro político e econômico mundial e os embaraços da dinâmica interna do
partido e da difícil superação de inexperiências e velhos sectarismos, não cheguem a
comprometer as perspectivas institucionais mais positivas. E, na melhor das hipóteses, que a
caminhada difícil a ser empreendida possa resultar em pelo menos deflagrar um processo
mais consistente e conseqüente rumo à condição em que nossa democracia política venha a
ser a expressão (e o instrumento) de uma sociedade autenticamente pluralista, justa e
igualitária.
Se presumimos condições favoráveis quanto aos aspectos mencionados, a grande
reserva tem a ver com coisas que se ligam ao quadro de deterioração hobbesiana assinalado e
suas conexões com a grande desigualdade e a herança escravista do país. O subtítulo de nossa
sessão fala de “novas formas de representação”, tema que remete a novidades que emergem
em correspondência com categorias como a “sociedade civil” e a chamada “democracia
participativa”. É certo que o Brasil experimentou recentemente, como se disse, grande
crescimento do associativismo, além de alguma experimentação com formas de democracia
participativa, como o envolvimento de cidadãos em conselhos setoriais que se articulam com
a aparelhagem do estado. Mas não há como deixar de registrar a significação ainda limitada
de experimentos como esses diante dos obstáculos que a herança da desigualdade continua a
colocar. Os dados do projeto brasileiro anteriormente mencionado trazem, a respeito, algumas
indicações de significado potencialmente grave.24
Assim, quando se examinam, nesses dados, as disposições da população brasileira
relativamente à garantia dos direitos civis fundamentais, expressa em termos da opinião a
respeito de temas dramáticos como a ação dos “esquadrões da morte” na periferia das grandes
cidades, do linchamento de bandidos pela população e do recurso à tortura pela polícia, vê-se
não só que, em comparação com o que se dá quanto ao apoio em abstrato à democracia
(especialmente entendida em termos político-eleitorais), há forte queda no nível geral de
apoio às posições ou opiniões que se presumiriam “democráticas”, mas também que o
desapreço pelos direitos civis penetra fortemente mesmo os setores educados e sofisticados,
também em contraste com o que ocorre quanto à democracia político-eleitoral, que apresenta
mais intensa correlação positiva com educação. A categoria geral dos altamente favoráveis à
defesa dos direitos civis das pessoas não ultrapassa o nível dos 18 por cento, contra níveis
como 31 e 42 por cento em categorias análogas (de opinião altamente positiva) no que se
refere ao apoio à democracia político-eleitoral. Observadas as distribuições por escolaridade,
vamos encontrar, por exemplo, nos níveis inferiores dessa variável (até ensino fundamental
completo, ou seja, oito anos de estudos ou menos), proporções que variam de 51 a 59 por
cento concordando, de maneira mais ou menos qualificada, com as chacinas praticadas pelos
esquadrões da morte ou com o linchamento de bandidos, concordância esta que alcança ainda
a proporção de 30 por cento mesmo entre os entrevistados de nível universitário.
No que se refere às disposições dos estratos menos educados, tais observações talvez
se devam, em parte, ao crescimento da criminalidade e da violência, cujas vítimas principais
se encontram justamente dentre a população mais pobre e menos educada, possivelmente
levando-a a certa propensão especialmente intensa a identificar a garantia dos direitos civis
com indevida proteção a bandidos. Mas, se a violência dos bandidos talvez justificasse essa
avaliação, que dizer da ação criminosa e da violência da própria polícia, que também atinge
sobretudo os setores mais carentes?
A melhor explicação talvez esteja em algo mais, que permite integrar as observações
sobre direitos civis com o maior apoio que, bem ou mal, é dado à democracia político-
eleitoral. A democracia político-eleitoral se tornou parte de uma cultura convencional no
mundo de hoje e também, certamente, na parcela mais educada da própria população
brasileira. Esse caráter convencional torna mais fácil a adesão a ela mesmo nos estratos
populares e intelectualmente pouco sofisticados, criando, em algum grau, a tendência à pronta
verbalização dos valores democráticos. Mas, nas circunstâncias de uma sociedade elitista e de
pesada herança escravista, a idéia de direitos civis a serem garantidos igualmente para todos
está longe de integrar a cultura convencional – o que é claramente corroborado pelo próprio
fato de que o descrédito dos direitos civis ocorre também nos níveis médios da estrutura
social e até nos estratos mais altos (pondere-se a indiferença com que a sociedade em geral se
inteira das notícias sobre as chacinas corriqueiras entre os cidadãos de segunda classe do país:
cabe duvidar de que ficaríamos todos chocados, e de que o estado seria dramaticamente
mobilizado, se algo semelhante começasse a ocorrer regularmente nos Jardins de São Paulo
ou em Ipanema?). Daí que se torne uma proeza intelectualmente e moralmente mais exigente,
e em consequência mais difícil para os estratos populares, a de apreciar devidamente o
significado dos direitos civis. E, apesar das crescentes minorias aguerridas e prontas à ação
até mesmo violenta e criminosa, nas disposições que os dados revelam parece sobreviver,
entre aqueles que integram o Brasil dos mais pobres, um elemento de deferência que pertence
antes às relações de castas e em razão do qual eles se mostram pouco propensos a afirmar sua
própria dignidade e sua condição de cidadãos autênticos.
Autores que se têm dedicado ao tema do desenvolvimento moral, como Lawrence
Kohlberg e Jürgen Habermas, falam da moralidade convencional e de sua superação na
condição de autonomia moral de todos.25 Numa sociedade marcadamente desigual, porém,
superar a moralidade convencional envolve o desafio mais difícil de superar formas de
dominação social.
*
Preparado para apresentação no Seminário Brasil-Argentina - A Visão do Outro, intitulado "Sobre a Questão Social" e
realizado nos dias 13 e 14 de novembro de 2003, em Buenos Aires, sob o patrocínio da Asociación Argentina de Políticas
Sociales (AAPS), do Instituto para la Integración de América Latina y el Caribe (BID-INTAL), da Fundação Alexandre
Gusmão (FUNAG) e da Fundación Centro de Estudios Brasileiros (FUNCEB).
**
Cientista político, Professor Emérito da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil. E-mail: fabiowr@uai.com.br
1
Um exemplo da literatura que se ocupava dos problemas indicados se tem com Dankwart A. Rustow, A World of Nations:
Problems of Political Modernization, Washington, D.C., The Brookings Institution, 1967.
2
Pode-se acrescentar outra observação, como ilustração adicional disso: a de que, na obra de Machado de Assis, grande
mestre da literatura brasileira que retrata finamente o Rio de Janeiro do século 19 (e ele próprio mulato), simplesmente não
há negros, a não ser pela menção ocasional à figura de um ou outro escravo. Tratando-se dos ocupantes do porão da
sociedade, supostamente não eram de interesse como tema literário.
3
Um exemplo recente é o best-seller de Domenico de Masi, O Ócio Criativo, Rio de Janeiro, Editora Sextante, 2000, onde
há insistentes referências a um Brasil idealizado de maneira claramente desfrutável.
4
“De 1945 a 2000, a população passou de 46 milhões para quase 170 milhões de habitantes, com um aumento de 268,58%,
enquanto o eleitorado, que era de 7,4 milhões em 1945, passou a 115 milhões em 2002, com um crescimento, no período, de
1453,7%; em 1945, somente 16,10% da população estavam inscritos para votar, enquanto (...) tomando-se o eleitorado
inscrito em 2002 como proporção da população em 2000 verifica-se que 67,88% dos brasileiros têm cidadania eleitoral”.
Veja-se Mônica M. M. de Castro, “Eleitorado Brasileiro: Composição e Grau de Participação”, em Lúcia Avelar e Antônio
Octávio Cintra (orgs.), Sistema Político Brasileiro: Uma Introdução, São Paulo, Fundação Konrad Adenauer/Editora
UNESP, 2004.
5
Para ilustrar com dados referidos ao eleitorado, de relevância direta para aspectos a serem considerados adiante, veja-se
também Mônica M. M. de Castro, artigo citado: “(...) 33% dos homens e 31% das mulheres têm somente até 3 anos de
estudo e, portanto, não completaram nem mesmo o antigo curso primário; 60,43% dos homens e 56,95% das mulheres têm
até o ensino fundamental incompleto, e somente 21,18% e 24,59% respectivamente têm o ensino médio completo ou grau
mais alto de escolaridade. Os dados indicam que a grande maioria do eleitorado brasileiro tem grau baixo de escolaridade.
Somente uma minoria [4,79% entre os homens e 5,01% entre as mulheres] tem educação de nível superior, com 15 ou mais
anos de estudo.”
6
Veja-se Samuel Huntington, Political Order in Changing Societies, New Haven, Yale University Press, 1968,
especialmente capítulo 4, “Praetorianism and Political Decay”.
7
Sobre o compromisso socialdemocrático, vejam-se, por exemplo, Adam Przeworski, Capitalism and Social Democracy,
Nova York, Cambridge University Press, 1985; e J.-A. Bergougnoux e B. Manin, La Social-Démocracie ou le Compromis,
Paris, PUF, 1979.
8
Cabe notar que o debate em torno da governabilidade se cerca (não só no Brasil) de impropriedades e confusões, a
começar por impropriedades semânticas em que a expressão é tomada para indicar uma característica da aparelhagem do
estado (sua eficiência ou capacidade governativa), omitindo-se o fato de que o atributo de ser mais ou menos governável é
um atributo daquilo que é governado, ou seja, da sociedade. Mas, entendida a expressão em termos de eficiência
governativa, o desiderato da mal chamada “governabilidade” não envolve senão o problema “técnico”, e de certa forma
banal, de manejar adequadamente os meios disponíveis para a realização de fins tomados como dados. Do ponto de vista da
democracia, que supõe fins múltiplos de numerosos atores e de conciliação problemática, a capacidade governativa só
interessa na medida em que se ligue com o desafio de criar governabilidade no sentido próprio: o de criar a sociedade que
seja governável por boas razões, vale dizer, aquela em que os diferentes interesses e correntes de opinião reconheçam no
estado, em grau significativo, o agente autêntico de todos. Nesse plano é que estamos diante de problemas substantivos e
propriamente políticos.
9
Samuel Huntington, “The Democratic Distemper”, em N. Glazer e I. Kristol (eds.) The American Commonwealth, Nova
York, Basic Books, 1976, versão abreviada do capítulo de Huntington sobre os Estados Unidos no relatório para a Comissão
Trilateral preparado por ele em colaboração com Michel Crozier e Joji Watanuki sob o título The Governability of
Democracies.
10
Veja-se, por exemplo, Jonathan Simon, “Governing through Crime”, manuscrito, janeiro, 1997.
11
Veja-se Goran Therborn, “The Two-Thirds, One-Third Society”, em Stuart Hall e Martin Jacques (eds.) New Times: The
Changing Face of Politics in the 1990s, Londres, Lawrence & Wishart, 1989.
12
Veja-se, por exemplo, Wanderley Guilherme dos Santos, “A Democracia e seu Futuro no Brasil”, em João Paulo dos Reis
Velloso (org.) Como Vão o Desenvolvimento e a Democracia no Brasil?, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 2001.
13
Os dados argentinos são tomados de Jeane Kirkpatrick, Leader and Vanguard in Mass Society, Cambridge, Mass., MIT
Press, 1971, pág. 159. Os dados brasileiros correspondem a pesquisa amostral executada por Philip Converse, Peter
McDonough e Amaury de Souza, em 1973, sobre “Representação e Desenvolvimento no Brasil” (veja-se Fábio W. Reis,
Political Development and Social Class: Brazilian Authoritarianism in Perspective, tese de doutorado não publicada,
Harvard University, 1974, especialmente pág. 331, tabela 6.9).
14
Dados de informes divulgados pelo Latinobarómetro e publicados na imprensa internacional.
15
Essas observações resultam de manipulações dos dados feitas pelo próprio autor, a convite do Latinobarómetro, em
análises ainda não publicadas. Quanto ao último aspecto destacado (o da congruência entre as várias dimensões), uma
ressalva necessária parece relacionar-se com a grande crise econômica argentina dos últimos anos e seus efeitos no ânimo
político da população: trata-se da alta insatisfação, entre os argentinos, com a maneira como opera a democracia. Apesar de
que a feição geral dos dados sugira certa convergência argentina com a tendência internacional ao aumento do que alguns
têm chamado de “democratas insatisfeitos” (veja-se Hans-Dieter Klingemann, “Mapping Political Support in the 1990s: A
Global Analysis”, em Pippa Norris [ed.], Critical Citizens: Global Support to Democratic Governance, Oxford, Oxford
University Press, 1999), a insatisfação, na Argentina, não só cresce com o crescimento do nível educacional (de modo algo
peculiar em confronto com outros países latino-americanos, incluído o Brasil), como também resulta em que a congruência
de opiniões nos níveis educacionais mais altos se reduza, criando, nesses níveis, certa “contaminação” em que mesmo os
que se declaram satisfeitos com a operação da democracia se mostram, surpreendentemente, mais prontos do que os de
níveis educacionais mais baixos a manifestar reservas quanto à democracia ou a admitir o autoritarismo em razão de
problemas econômicos.
16
Para uma apresentação sintética das verificações relevantes com respeito ao eleitorado brasileiro, veja-se Fábio W. Reis,
“Institucionalização Política (Comentário Crítico)”, em Sergio Miceli (org.), O Que Ler nas Ciências Sociais Brasileiras
(1970-1995), São Paulo, Editorial Sumaré/Anpocs, 1999.
17
Trata-se de dados produzidos pelo projeto “Pacto Social e Democracia no Brasil”, coordenado pelo autor, cujo trabalho de
campo foi executado em 1991-92 junto a uma amostra da população de Belo Horizonte e a amostras especiais de
trabalhadores dos estados de Minas Gerais e de São Paulo. Para a descrição do projeto e a análise de diversos aspectos
relevantes dos resultados obtidos, veja-se Fábio W. Reis e Mônica M. M. de Castro, “Democracia, Civismo e Cinismo: Um
Estudo Empírico sobre Normas e Racionalidade”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 16, Nº 45, fevereiro, 2001,
págs. 25-46.
18
Vale a pena notar que o item sobre “homem honesto e decidido” foi introduzido no questionário de nosso projeto, ao lado
de outros, com a intenção de se obter um teste preliminar de certas sugestões de Guillermo O’Donnell sobre a idéia de
“democracia delegativa” (parte do projeto contou com a colaboração de O’Donnell e sua equipe de então no Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento). Apesar de que os dados relativos a outros indicadores não sustentem a idéia da
suposta propensão “delegativa” por parte do eleitorado brasileiro (como os que indicam a inexistência de uma preferência
majoritária no sentido de que o presidente da República seja deixado em paz pelos demais poderes para governar como
quiser), isso não impede que o fraseado da pergunta em questão seja suficiente para que se tenha o apoio difundido à idéia
de uma liderança pessoal forte e capaz de afirmar-se fora da órbita partidária e institucional.
19
Para a retomada mais recente de teses análogas a propósito da análise de dados canadenses, veja-se David J. Elkins,
Manipulation and Consent: How Voters and Leaders Manage Complexity, Vancouver, University of British Columbia
Press, 1993.
20
Uma evocação pessoal é talvez de algum interesse a esse respeito. Passando por Buenos Aires há mais de 40 anos, em
dezembro de 1963, quando estudante da FLACSO em Santiago do Chile, lembro de haver participado, na companhia de
Fernando Henrique Cardoso, de um almoço com cientistas sociais argentinos. O tema dominante da conversação foi, já
então, a crise argentina, e a interpretação que prevaleceu a vinculava à idéia de que o país, demasiado bem ajustado à
divisão internacional do trabalho própria de fins do século 19 e começos do século 20, não soubera adaptar-se às mudanças
que sobrevieram na economia mundial.
21
Cabe registrar que há aqui uma espécie de jogo dialético, pois a identificação popular mais intensa e extensa com os
partidos é ela própria um fator importante de que eles venham a adquirir maior consistência. Lembre-se, a respeito, como o
“troca-troca” partidário de que tanto se fala presentemente, em que os parlamentares mudam de um partido a outro de
acordo com conveniências momentâneas, não existiu com intensidade sequer remotamente parecida durante o período
1945-64. Talvez pelos enfrentamentos em torno da figura de Getúlio Vargas e a referência popular que ela representava, não
era permitido aos políticos jogar de maneira inconseqüente com as identidades de “pessedista” (adepto do PSD, varguista),
“udenista” (adepto da UDN, antivarguista) e, depois, “petebista” (adepto do PTB, também criação de Vargas), sob pena de
se arriscarem à punição eleitoral. Aliás, mesmo agora a porcentagem de reeleição entre os políticos que mudam de legenda é
bem menor do que a que ocorre entre os que permanecem fiéis aos seus partidos de origem.
22
Veja-se, por exemplo, Fábio W. Reis, “As Eleições em Minas Gerais”, em B. Lamounier e F. H. Cardoso (orgs.), Os
Partidos e as Eleições no Brasil, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975.
23
Dados relativos às eleições de 1982 mostram, por exemplo, que, nos níveis inferiores de renda, os eleitores da cidade de
São Paulo que se declaravam identificados com o PT incluíam grandes proporções cujas posições quanto a vários itens de
opinião (participação política dos militares, apoio a greves como recurso político etc.) eram o oposto do que se esperaria
com base no perfil ideológico do partido. Veja-se Fábio W. Reis e Mônica M. M. de Castro, “Regiões, Classe e Ideologia no
Processo Eleitoral Brasileiro”, em Fábio W. Reis, Mercado e Utopia: Teoria Política e Sociedade Brasileira (ed.) São
Paulo, Edusp, 2000.
24
Veja-se Reis e Castro, “Democracia, Civismo e Cinismo”, artigo citado, para a análise mais detida do material pertinente.
25
Veja-se, por exemplo, Jürgen Habermas, “Moral Development and Ego Identity”, em J. Habermas, Communication and
the Evolution of Society, Boston, Beacon Press, 1979.

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