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Conto Sobre Nada
Conto Sobre Nada
Ele,este pronome com cara de bolacha amolecida, está com jeito de quem
comeu e não gostou daquilo que comeu.Está assim deste jeito meio sem jeito
em jeito algum.Está meio barro meio tijolo ou mesmo qualquer coisa em coisa
alguma.Está com a tal cara triste, um tanto cabisbaixo, um tanto esquisito, um
tanto de alguma coisa e tanto mais.Ele está estranho em estranho em cara
estranha em expressão meio estranha e tanto mais.
Ele decide que vai comer o que encontrar pela frente.Começa pelas tais
geléias de morango que invadem a sua boca vermelha de sangue
castelhano.Ele se imagina frente a frente com um touro imenso.Ele está na
iminência de ser atirado pelos ares.Ele e aquele touro impiedoso frente a
frente em qualquer que seja o lugar.Ele pensa no Minotauro. Ele,que sabe que
surgiu do coito entre Parsifae e aquele animal , agora o olha daquele jeito.
Ele quer agora correr,mas não consegue.Quer ficar,mas não consegue.Ele
fecha os olhos e as cortinas daquele quarto.Fecha as portas e as janelas e a
caixa repleta de moedas fora de circulação.Fecha o álbum de fotografias e
dirige-se à cozinha indiferente daquele flat.
Ele come e mastiga e come mais e mais e mais e mais.Come os
sanduíches de mortadela importada, come tantas muitas latas de sardinha
portuguesa, come os chuviscos feitos por uma avó qualquer, come o resto de
salada que estava na geladeira,come,do verbo comer, a rabanada fria que foi
feita em voz passiva por sua tia.Come, do verbo comer, os chuviscos que
vieram de algum lugar encantado. Come os tais chuviscos que são feitos por
aquelas centenárias senhoras.Come, do verbo comer, a massa italiana que
esteve a descansar por dois dias seguidos.
Ele come e come o tal bife mal passado e se transforma na gordura da
borda deste tal bife com gosto de coisa morta.Ele é agora a gordura a ser
consumida por aquele nédio professor de línguas extintas naquele dia
cinzento, naquele dia qualquer..Ele está agora entrando no esôfago calejado
daquele indivíduo com hérnia de hiato. Ele nada mais é do que esta gordura
sem cor e sem vida.Ele agora a gordura que vai destruindo o que resta
daquele vegetal ambulante.Ele agora o cheiro sufocante que emana daquela
frigideira vencida pelo tempo na cozinha.Ele agora a cozinha em tons claros e
distantes como alguém que já se foi.
Ele come e se transforma agora em macarrão instantâneo.Ele agora sorvido
ou sugado por aqueles lábios e por aquela boca carnuda daquela mulherzinha
qualquer.Ela que compra batons baratos e usa perfume pirata.Ele que suga
aquele macarrão amarelo frio com o sorriso plástico das bonecas
americanas.Ele agora cheira a molho de churrasco jogado no chão daquela
cozinha caindo aos pedaços.Ele agora pisado por alguém que seduz a tal
mulher ali mesmo no chão, no chão imundo daquela cozinha imunda.
Ele agora no prato misturado ao arroz e ao feijão e ao resto de ovo
caipira.Ele agora entre o branco da clara e do arroz sem redenção alguma
naquela ocasião.Ele agora naquele encontro de línguas com gosto
preponderante de chocolate e salmão fresco.Ele agora entranhado nas fezes
contaminadas de um doente terminal.Ele agora cuspido por aquela tosse
intermitente daquele tuberculoso no hospital público.Ele carregado pela chuva
numa quentinha rejeitada por um paladar mais exigente.Ele sorvido ou
sugado por um cão que furta rapidamente a comida deixada por sobre a
mesa.Ele gordura e macarrão instantâneo.Ele perdido naquelas embalagens
sem vida dos supermercados.
Ele, apenas agora restos de cabelos de qualquer anjo morto, na lixeira mais
próxima, naquele purgatório.
Ele que sobe e desce as escadas do final dos tempos.Ele que desce e sobe
as escadas do final dos tempos.Ele macarrão de péssima qualidade e nada
mais.Ele gordura saturada e ponto final.
Ele agora amarelado e combalido no intestino de qualquer um, prestes a ser
eliminado como um pesadelo por aquela descarga automática.
Ele agora canudo, copo,miasma de cerveja choca, cadeira,chave da
porta,pedaço de barra de ferro, aparador de mesa, jogo americano, jarra, bule,
pote e tudo mais.
Ele que troca o dia pela noite.Ele que troca os dias pelos dias.Ele que troca
o correr das horas pelo tempo.Ele que se perde no tempo ao se desconhecer
infinito.Ele um rasgo qualquer na perene irritação do universo.Ele agora
nada,fossa,vazio.
Ele agora vazio, fossa, nada.
Conto Destituído.
Ele perdeu a vontade de sair. Ele perdeu a vontade de ter vontade. Ele
perdeu o verbo perder em segunda conjugação. Ele se perdeu no interior de
toda e qualquer conjugação. Ele se perdeu no interior da palavra conjugação.
Ele se perdeu no interior do interior da palavra interior. Ele perdeu a vontade
de sair no verbo sair. Ele perdeu a vontade de sair em terceira conjugação ir.
Ele agora definitivamente infinitivo em ir.
Ele começou na semana passada a andar pela casa inquieto. Ele
começou a conversar com este tal adjetivo inquieto. Ele começou a achar que
devia dizer algo a este tal adjetivo inquieto. Ele começou a lamber a orelha
deste tal adjetivo inquieto. Ele começou a aranhar a pele deste tal adjetivo
inquieto.Ele começou a se sentir mal no interior deste tal adjetivo inquieto. Ele
foi internado no interior da palavra inquieto. Ele respirava com dificuldade no
interior da palavra inquieto. Ele se mexia com dificuldade no interior da
palavra inquieto.
Ele gosta de estar como estar. Ele gosta deste tal verbo estar. Ele
sempre soube estar sem estar. Ele sempre soube que esteve sem nunca haver
estado. Ele gosta de se esconder no além. Ele agora mais e mais próximo da
palavra além.
Ele começou a suar e disse aos parentes que precisava beber um copo
de qualquer coisa. Ele disse o que disse como quem diz o que não diz. Ele
bebe qualquer coisa para relaxar a mente. Ele gosta desta tal palavra mente.
Ele sabe fechar bem os olhos no interior da palavra mente. Ele sabe ignorar
muito bem o caminho no ventre da palavra caminho.
Ele, este pronome qualquer sem maiores prerrogativas, viu no espelho
a tal palavra coisa.
Ele lavou o rosto duas ou sete ou mais de dez vezes.
Ele gostava de lavar o rosto no interior do verbo lavar. Ele lavou em
primeira conjugação aquele seu rosto sem rosto.
Ele viu a tal palavra coisa tomando a forma de coisa alguma no
espelho.
Ele sempre gostou dos tais pronomes indefinidos.
Ele não viu mais o seu reflexo no tal espelho no interior da palavra
nenhum.
Ele nunca gostou de lavar o rosto. Seus dentes esburacados
apontavam para o fato de que ele não gostava de escovar os dentes.
Ele mordeu os lábios na tentativa de encontrar o seu reflexo, a sua
imagem no tal espelho.
Ele mordeu os lábios e ousou separar as sílabas da palavra espelho.
Ele enfiou a mão na boca e não mais encontrou o seu reflexo no tal
espelho.
Ele mordeu, enfiou, engoliu e urinou fora do vaso na tentativa de
encontrar o próprio rosto.
Ele gostava desta tal palavra espelho. Gostava de estar como
estava sem reflexo no interior da palavra espelho. Ele não gostava da palavra
reflexo. Ele não gostava da palavra imagem.
Ele pensou em retalhar o tal espelho. Ele pensou em retalhar o
verbo retalhar. Ele pensou em retalhar a sua face sem face. Ele foi perdendo
aos poucos a noção das coisas no ventre do verbo perder.
Ele então passou a ouvir o que ouvia. Ele então passou a tocar no
indizível das coisas. Ele então passou a cheirar o sem cheiro das coisas. Ele
passou a ver aquilo que escurece nas coisas.
A palavra coisa surgia no outro lado do lado algum. Ele então
pensou em retalhar o interior da palavra coisa. Ele pegou a tesoura e cortou o
ar de forma alucinada. Ele pegou a faca e dilacerou o ar de forma desesperada.
Ele pegou a espada e dizimou populções inteiras como se não fosse o que não
fosse.