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ERGONOMIA, LOSOFIAE EXTERRFTORIALIDAG A ergonomla em suas varias linhas de desenvolvimento ¢ intervencdo exigg ‘uitas criticas e reflexes, um processo de busca epistemoldgica de seus conceit. de sua metodologia, de sua ou suas Hilosofias face as solicitagdes do mundo econ; 9 € social. Nos permitiremos inverter provisoriamente a questao e em vez de ums epistemologia da ergonomie, proporemos investigar em que meciida a ergonomis seja hoje, talvez, uma propedéutica a epistemologia. Esta inversao traz a marca do profssionalismo do autor que vé sua prépria di plina e considera aquilo que a enfraquece, por ndo confrontar as complexidades que encontra a ergonomia. Mas esta busca nao deve ser entendida como uma fuga com relagdo aos avancos ¢ problemas que caracterizam em nossos dias esta diseiplina ainda jovem, Muito ao contrério, veremos na conclusdo que a fecundidade qu Honadora da ergonomia the confere em troca obrigacoes tedricas e praticas q Jevam a clivagens parciais, ou pelo menos a ter que separar diversas definigdes p ‘Postas por seus principais criadores, valores muito desiguais quanto aos horizon filoséficos que ela pode descortinar. A QUESTAO DA EXTERRITORIALIDADE Escolha e Conceitos Nao é possivel uma refiexiio epistemolégica sem a perplexidade dos pri que Kant designava como nossa faculdade de conceituar. Entio em que cond: i itos ¢ ja de certa maneira julgat '¢ auto-proclamar juiz com quais regras se di esta sai lidade? A obcecagdo por transformar o discurso em adulagao Platao a deslocar os lugares e as normas da maturacio no tribunal, o exercicio do discurso infiltrom o poder e suas estratégias, Nao se trata de retomar um caminho dialético em busca de uma relago com o ser que teriamo dificuldade em discernir, nem de pretender separar o exercicio do logos e colocal sobre nés valores em devir, mas de reter esta questo que cada vez mais apresent ‘se como precedendo 0 uso do intelecto: quais as condigées necessarias para qu Possamos pensar sadiamente a atividade de nosses semelhantes? Lembremos que qualquer uso de conceitos é uma escolha, uma reivindicaga de heranca, uma maneira de calgar, conscientemente ou nio, os sapatos de out uma decisio de existéncia ou de inexisténcia. A primeira vista, dizia o filésofo Davi Hume no século XVIII, quando vers umm navio de grande calado, que idea favord vel temos do construtor naval. Mas quando 0 verios de perto, constatamos quie na & mais do que um “artestio embrutecido” (certamente porque no seria capaz de en tender seus Didlogos sobre a Religito Natural (1751 p, 90), de onde esta observag20 ‘bi tomada”. Esta tomada de posigdo descritiva e pejorativa serve de guia ao olh exemple de Hume serve aqui para desvalorizara erenga num eriadoronipotente de nosso un 5, que se deduirin da perfeigio exibica por este mesmo universe, interpretative sobre a génese industriosa desta “maquina to complicada”: a arte do construtor naval nao é mais do que a cépia e a imitagao de indmeras tentativas de seus antecessores “ao longo de uma longa sucessao de séculos”. A recusa em investigar, o que talvez um analista do trabalho conter gestdo complexa e parcialmente nao programével de claras, que conduziria & reconsideracdo a eso em questo. Categorizar sob o termo “rebeliio” os fatos coletivos de subversao popular contra a fixagdo do preco do trigo e seu armazenamento na Inglaterra do século XVII, como fizeram diversos historiadores, equivale a promover um tipo de othar e desencadear um tipo de andlise que nao permite o enraizamento eventual do fenémeno numa “unanimicade por uma economia periodo de peniiria’, segundo a expresso de Thompso uma rebelido, a ERGONOMIA, FLOSOFLA € EXTERRETORIAUIDADE 1 pessoa, esbogam previamente os protétipos das ‘imagens’ que o historiador vai constituir* (Granger, 1992, p.186). Apés a instalagdo de sensores muito precisos os operadores de uma unidade processadora de aluminio depositam no solo pequenas amostras do produto mar- ‘adas para poder conhecer antecipadamente a resisténcia que elas ofereceréo a0 esmagamento, o possivel afastamento de certos pardmetros, suscepiiveis de ocorrer iras quatro ou cinco horas. Seria ainda necessdrio iar uma ané- ido intelectual e os inadas organizacdes, das pressdes indus- \dernistas"? Ou ainda ver nisto tudo engenhosas construgdes coletivas, ligadas a maneiras especifices de tratar a eficdcia e o desempenho, proprios para retrabalhar 0 processo de automati- zacdo das decisdes e permitir o aprofundamento do entrelagamento dialético entre estes e as marcas humanas (cf. Charriaux, 1984)? E para evocar ainda uma bifurcacio possivel na escolha de itinerdrios conceitu- ou de acidente sobre um véo de longa duragao, seria neces- “erro humano” gacdo das causas vendo talvez uma sur- filme que é “congelado” ao acaso num inst: imagem incoerente. Com relagdo ao tempo res m a a esta imagem parece intermindvel e ela se torna o objeto de uma incompreensao maior. A equipe tenta traduzir em palavras 0 indizivel e postula a coeréncia da agao: Motivos, o exemplo de elaborar em condicdes técnicas € humanas sempre singula. ERGONOMIA, FILOSOFIA E EXTERRITORIALIDAL tempo decorrido, multiplicidade de solicitagées, reagao subjetivamente percebida e que em verdade “ as instrugdes ou normas de operaco servem apenas como guia para que o piloto decida”; e que o eixo conceitual que surge como conseaiiéncia das inconstncias do fator humano é a rigidez do sistema de antecipagao. “Num caso dado envolvendo um avido moderno, se a intervencao oculta de sistemas muito fisticados, a complexidade excessiva ou a grande rigidez de programagio conduzem, ue se pense que € 0 idealizador ou o autor da instrugdo que esta pilotando, um ite muito perigoso acaba de ser ultrapassado” GJoanneaux, 1993). “Erro humana ou falha de representacdo”: 0 coletivo de ergonomistas que redigiu o Comprend) le Travail pour le Transformer - Compreender 0 Trabalho para Transformé- (Guérin, Laville, Daniellou et outros, 2001) exprime com clareza o ponto de bifui go conceitual que aqui esta em jogo. Neste caso, como em muitos outros, é necessério interessar-se por “comport ‘mentos” que reagem ou interpretam sinais, informagdes variadas que vem do que sdo mais ou menos condicionadas pelos habitos e rotinas prolissionais e soci Ou deverros nos interessar por “cordutas", ou seja, por “comportamentos orientados por intengdes e por motives” (Daniellou e Garrigou, 1995, p. 77)", E entre estes res, formas de assegurar simultaneamente seguranga e qualidade. Como justificar a escolha entre “comportamento” “conduta’? B se falarmos de conduta de atores nao estaremos nos envolvendo na temdtica das estratégias, conceito que se torna central e faz dos atores marionetes ou, pelo menos, os ocupantes indiferentes de Iugares pré-fixados. O conceito de “sofrimento no trabalho” é uma verdadeira conquista, na medida em que gragas aos avancos da psicodinamica do trabalho, um espago da realidade é dado a um mal estar psfquico que nos obriga a considerar as imposig como matriz. Este conceito orienta o olhar e a : lugar de uma psicologia individualizante e culpabilizadora 0 pensamento deve mo ver-se noutro sentido, a saber, o da organizacao social e codificada das atividades @ interrogar as modalidades de existéncia ou a auséncia no meio considerado de um espago de discussdo (cf, por exemplo, Dejours, 1995, p. 65-71). Portanto, tr ta-se de um conceito extremamente fecundo para toda a visio transformadora do trabalho, e como todo coneeita, sujeito a diversas elaboragdes. De um lado imputar ao trabalho uma matriz de sofrimento pode remeter a diversos niveis de realidade como a vizinhanga do humano, a organizagao do servico, a entidade institucional econdmica mais global (mas esta nao é sempre — e o & cada vez menos —~ facil de identificar), como atestam o eardter abrangente das grandes regulagdes econdmicas €0 predominio de valores de mercado abstratos sobre os psiquismos que de um lado vivem irredutivelmente suas existéncias como um destino singular e conereto. Por ‘outro lado, se é verdade que cendirios e transferéncias simbdlicas, caracteristicos de destinos singulares, encontram-se no terreno industrial e a realizam ura questiona- “Para um desiocameato de conceltos, mas com intengo comparsvel, cf SEVE, 1975, 389, mento interior, questdes herdadas do passado e de suas historias afetivas (Dejours, 1993, p. 287), acreditamos todavia frmemente que esta causalidace material do meio de trabalho s6 pode diferenciar-se ao infinito como os individuos que buscam viver neste mesmo meio. Este conceita de sofrimento mo trabalho se justifiea desde que seja usado apenas como ponderagiio e para combinagdes sempre parcialmente especificas. As imputagbes de responsabilidade podem ser apenas tendenciosas. O conceito é fecundo, mas de equilibrio insivel, dependente das escolhas feitas sobre ‘o que se entende pelo termo trabalho e sobre uma série de conceitos conexos. Nao ha chave universal a ser utilizada sempre e em qualquer situagao. Muitos outros conceitos manifestariam escolhas mais ou menos exclusivas que implicassem itinerarios de investigagao previamente estabelecidos. Hubault fala exatamente destes conceitos de corte (1896, p. 128). 8 0 casono campo das ciéncias chamadas de humanas e mais ainda para os conceitos que usardo saberes acadé~ ices, cobrem © campo da gestao e da diregao social, como a “cultura da empresa’, Simples Jembbranga? Talvez. Mas por meio destes exemplos simples desvendam-se viinculagdes ao longo de uma rede, hierarquias na organizacao do saber, posig@es de valor de determinado prineipio de explanagao, sio sempre escolhas mais ou menos aparentes do uso cle termas descritivos ou angumentativos. O que esta em jogo nes~ tas escolhas justificaria um interesse maior pelos processos que as sustentam, Para retornar ao campo que nos interessa aqui mais diretamente, @ questZio em discussdo ou, a0 contrério, a ignordncia ou a recusa da distingzio conceitual, * traba- Iho prescrito/trabalho real”, num meio de produtores de bens ou de servigos, ilustra cesta escolha de uma decisdo de existéncia ou mais exatamente uma mudanga de eRGONOM FIA £ EXTERAFTORIALIDADE registro de existéncia, A questo em debate nao é um pré-julgamento do estatuto conceitual desta oposi¢io, da extensao a ser conferida a seus emba ceito de “sofrimento no trabalho” ela esta em condigdio de equilib ‘pode abalar os horizontes filoséficos ou operacionais que podem ser desencadeados, ficagdes que possa ocasionar. Mas est claro que colocar em circulagiio ou deixar de fazé-lo (segundo a expressio de Daniellou, 1995b) produz. configuragbes de realidades muito diferentes. Por exemplo, chamar a atengdo sobre uma formagao profissional sem evocar seu pano de fundo é forgosamente instituir uma hipstese ‘menor sobre o grau de apropriagio passada e futura pelos auditores das condigdes dle atividades a respeito da qual Ihes fornecemos uma formagao. "O vivido ou a po- breza da evidéncia” (Duraffourg e Guérin, 1985) Duraffourg lembrava que raramen- te a percepcio de alguém sobre a sua prépria atividade refete a complexidade desta (ver também Guérin e outros, 2001). Por outro Indo, explicitar esta oposicao por meio de definigdes e exemplos & cenunciar a hipétese que ela deveria adquirir sentido e contetido (diferentes) para cada um, é abrir a perspectiva para um processo ce redescobertas e de investiga- {gBes sobre o “si mesmo” industrioso e sobre si mesmo simplesmente: sobre valores saberes que operam em surdina ou na penumbra e que nos levam a acreditar que do importantes fatores explicativos das situagoes existentes (cf. Schwartz, Paita e Vuillon, 1985, especialmente na terceira parte). Processos cujos limites nao esto fi-

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