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O TRABALHO

O fim de semana passou, e nada do pai de Tedesco chegar. Naquele dia, durante o
almoço, viu no olhar da sua mãe o quanto estava envelhecida e feia, nem parecia a
mesma. Seu ar, jovial e alegre, havia desaparecido. Agora era uma profunda angústia
que aflorava, como que prestes a chorar, sem conseguir. Ele odiou seu pai por isso. Como
pode alguém sair assim? Deixar a mulher e todos os filhos em casa? Desaparecer e não
enviar nenhuma notícia?
Não pagavam a conta do leiteiro há algum tempo. “O prosador safado”, segundo
Tedesco, reduzira pela metade o fornecimento. Agora foi a vez do “porcão ladrão”, o
açougueiro, que dissera não poder continuar vendendo fiado. Ele colocava mais osso do
que carne e, como estavam devendo, não podiam reclamar de nada. Cortar o
fornecimento era uma injustiça que o revoltava e ficou engasgada. Quando seu pai
retornasse acharia um jeito de se vingar. Estavam comprando pouco e economizando,
com medo de não poder pagar depois. Dependiam do fiado para comprar comida.
Queria chutar as canelas de seu pai e dizer um monte de palavrão. Agora só sentia
um vazio, como se não existisse mais nenhuma perna para se apoiar.
- E se ele estivesse doente em algum lugar lá, tão longe? Será que tem médico e
hospital no Nordeste? Continuou, levantando hipóteses.
- Ele poderia ter sofrido um acidente na estrada. Seu caminhão caiu num
barranco, havia ficado por lá mesmo, morto, e ninguém o encontrou.
- Um bandido assaltou o caminhão, deu um tiro nele, depois escondeu o corpo e
levou o caminhão embora.
Lembrou-se do filme de cangaceiro que havia assistido no cineminha do Abrigo.
Tinha cara de mau, com a espingarda pendurada nas costas e uma enorme faca na
bainha. Matava violentamente, cortando o pescoço até arrancar a cabeça. O corpo
ficava lá para os urubus comerem.
A idéia da morte o perseguia, e não conseguia ver de outra forma. Olhou para o
crucifixo pendurado na sala e disse: que bobagem! Deus não existe e é um filho da puta
igual ao açougueiro, leiteiro e todos os homens ruins. Teve uma vontade enorme de tirar
da parede e jogar no chão.

Toninho era mestre na arte de caçar ratos e estava, agora, no alto do campinho
com um ratão enorme, que ficara preso pelo rabo na ratoeira, armada no porão de sua
casa. O rato foi arrastando a ratoeira, que enroscou numa passagem mais estreita.
Ficara lá, sem conseguir sair, até que Toninho o encontrou. Amarrou uma corda bem
presa no rabo e o trouxe para o campinho.
- Com rato grande é sempre assim: ou fica preso por uma pata dianteira, ou leva
uma pancada na cabeça ou no corpo, escapa da ratoeira e vai morrer em alguma
fresta, explicava ele. Depois dá o maior trabalho para encontrar. Não dá para
deixar lá devido ao cheiro, completou.
- Cheiro de Rato morto é muito enjoado mesmo, comentou Mateus.
- Rato pequeno, não. Morre na hora. concluiu.
Amarraram uma lata na corda e o soltaram. Ele sempre corria para o mesmo lado,
na direção de uns matinhos de capoeira e samambaias, para se esconder. Eles o
encontravam facilmente, porque a lata ficava enroscada. Não conseguia ir adiante.
Tedesco propôs uma brincadeira, soltariam o rato e ficariam de costas, contando
até trinta. Quem o encontrasse, como prêmio, poderia acabar com ele.
- Não tem graça, o ele sempre fica preso e é fácil de pegar, disse Mateus.
- Então vamos tirar a lata e deixar ele só com a cordinha, propôs Tedesco.
- Não, e se ele escapar? Não vou deixar um destes soltos por aí. Ele parece o pai
de todos os outros ratos, argumentou Toninho.
- Pai é? Então vocês vão ver o que vou fazer quando o encontrar, e se ele ainda
vai foder com alguma ratinha, disse Tedesco.
Retiraram a lata e se viraram. Contaram só até vinte e foram procurá-lo. Tedesco
era o mais afoito. Mateus não tinha intenção nenhuma de o encontrar e, quando viu uns
matinhos balançando na sua frente, virou-se e foi procurar em outra direção. Toninho já
estava cansado de matar ratos e não se esforçou, Então, Tedesco o encontrou. Pegou pela
cordinha e o arrastou de volta. Apanhou um pedaço de pau e bateu, bateu e bateu, até a
buchada sair toda para fora. Os outros ficaram olhando espantados com tanta violência.
Ficaram enjoados e com nojo. Tedesco parecia feliz e eufórico. Decidiram sair
dali. Contaram o dinheiro que tinham no bolso: dava para comprar uma garrafa de
refrigerante. Tedesco não tinha nenhum e prometeu pagar quando tivesse, os outros
concordaram. Foram para o bar do Alemão, longe do campinho e em outro ambiente.
Gostavam de ficar sentados no bar do Alemão. lá, parecia que adquiriam
importância, conversando e trocando idéias como homens. Esticaram as pernas nas
cadeiras com assento revestido de palha. Pediram no balcão uma Marabá sabor laranja
e três copos. Alemão, que era chamado assim por ser descendente mesmo de alemão,
serviu-lhes com a importância que dava a todos os fregueses. Era por isso que gostavam
de ficar lá. Dividiram a Marabá em três poções iguais e, para não acabar logo, ficaram
bebericando devagar. A conversa sobre ratos havia sido deixada no campinho. Agora o
assunto era a comida.
- Vocês já almoçaram na casa do Vagão? iniciou Toninho.
- Não, lastimou Tedesco, sabendo o que estava perdendo.
- Um bifão à milanesa com macarrão, num molho cheio de carne moída e queijo
ralado. Fiquei sem fome até o dia seguinte!
- Vocês perderam em não ir ao aniversário do Joãozinho, continuou Toninho.
Os outros torceram a cara para o Joãozinho.
- Os docinhos que a mãe dele fez, um mais bonito do que o outro, eram todos
caramelados. Enfeitavam uma mesa enorme com um bolo de aniversário, que
era um exagero. Ah... havia, também, aquele de massa folhada. Não entendo
por que fazer festa nos doze anos. Lá em casa, só fizeram festa quando eu
tinha quatro.
- Mamãe fez uma festa quando eu fiz dez anos, porque papai estava em casa,
falou Tedesco.
- Na minha, só as meninas fazem festa de aniversário. No meu, prefiro um
presente. Esse negócio de festa e ficar vendo todo o mundo comer, não tem
graça e custa muito caro. Mamãe disse que não tinha dinheiro para isso e, se
eu quisesse, fariam a festa junto com o da minha irmã de cinco anos, vinte dias
depois. Daí, eu nem liguei, explicou Mateus.
- E daí Toninho, não serviram, também, a irmã do Joãozinho para você comer
na festa de aniversário? provocou Tedesco.
- Nem me fale. Ela estava vestindo uma calça colada que apertava bem aquela
bundinha. Uma blusa de malha com os biquinhos aparecendo. Ah... se eu
pudesse, suspirou Toninho.
Aí os outros sentiram que perderam muita coisa. Lastimaram-se porque não
foram convidados e por não terem tido a coragem de entrar como “furões”.
- E leite condensado? perguntou Tedesco.
- É, é muito bom, concordou Mateus.
- Quando papai estava em casa, ele me deu um dinheiro. Comprei uma lata de
leite Moça e comi todinha, completou Tedesco.
- E bauru ao prato, foi a vez de Mateus.
Ninguém havia comido bauru.
- O tio Pedro me levou na Federal. Lá tem uma lanchonete que serve bauru ao
prato. Não é com pão como o outro e tem este tamanho: olha!!! É feito com
muito queijo, presunto e carne. Comi um pedaço e ainda meu tio me deu um
copo com cerveja Pérola. Não fiquei tonto. Quando ele for lá novamente, vou
junto.
A conversa sobre comida poderia levar horas, mas Tedesco mudou de assunto.
- Esse negócio de comida está dando uma agonia.
- É, eu já estou com fome, disse Toninho.
- Quando é que você não está com fome? brincou Mateus.
- O Tomate está trabalhando junto com o pai empalhando garrafões de vinho,
ali mesmo, no porão da casa, disse Tedesco.
- É, vamos até lá ver como é? falou Mateus.
- Ouvi falar que eles estão precisando de mais gente para trabalhar, completou
Toninho.

A entrada do porão era pelos fundos da casa, que foi construída mais elevada para
dar lugar a esse espaço, na sua parte inferior. Da porta se avistavam duas pilhas de
garrafões de vidro que iam até o teto. Uma delas já pronta, revestida com palha de vime.
Toda a família de Tomate estava trabalhando, trançando o vime ao redor dos
garrafões. Estavam lá suas irmãs, irmão, tia, mãe e mais dois meninos, que não eram
conhecidos. Tomate estava no meio deles e deixou seu serviço para conversar.
- Ah... vieram para trabalhar ou ficar olhando? brincou.
- Para trabalhar, se for para ganhar muito dinheiro, respondeu Toninho,
fazendo o gesto com os dedos.
- Se você for rápido como o super-homem vai ganhar muito mesmo, rebateu
Tomate.
- Claro, mas não seria empalhando garrafões.
- E daí, interessados?
- É vamos ver como é. Quanto seu pai paga? perguntou Tedesco.
- Cr$ 4,00 cruzeiros por garrafão. Quanto mais você fizer, mais ganha.
- E quantos você faz num dia?
- Trabalhando bem, uns quarenta, com o cabo colocado e dando o acabamento.

Mateus e Toninho nunca cogitaram de trabalhar. Estavam ali mais pela novidade
e curiosidade de saber como a coisa funcionava. Tedesco fez mentalmente a conta,
multiplicou pelo número de dias e achou que o dinheiro era bom. Melhor do que
engraxar sapatos ou vender picolé no verão. Nunca havia trabalhado e, agora, vendo a
situação de sua família, aquilo lhe pareceu uma excelente oportunidade. Havia o
problema do colégio. Tomate havia sido expulso e trabalhava o dia inteiro. Ele não tinha
coragem de abandonar o colégio. Dividiu por dois o dinheiro, era pouco, mas melhor do
que nada. E então propôs trabalhar metade do dia.
Mateus e Toninho acharam péssima a idéia e se arrependeram de ter vindo.
Agora iriam perder o amigo para o trabalho. Adeus brincadeiras no campinho. Sabiam
da situação da família dele sem o pai e achavam que era provisória, pois os pais sempre
voltam.
- E como é que se faz? quis saber Tedesco.
- É fácil, começou a explicar, o ramo de vime mais grosso é passado nesta
máquina filetadeira, para cortar as fitas. Os finos servem para fazer a
estrutura. Primeiro, trança os finos, estes redondinhos aqui, para fazer a base.
Depois coloca esta tampa de madeira, que vai ser o fundo do garrafão. Aí sobe
todos os ramos em volta do vidro e começa a trançar a palha ao redor. Vou
começar a fazer um para você ver como é.
As mãos de Tomate, já hábeis na arte de empalhar garrafões, estavam cheias
também de pequenos cortes feitos pelas palhas de vime. Explicava detalhe por detalhe,
desde o trançado inicial, até o acabamento ao redor do gargalo com a colocação do cabo.
Tedesco prestou bastante atenção, os outros, só ficaram olhando de longe.
- Viram? é fácil! disse Tedesco ao sair de lá.
Toninho e Mateus não disseram nada. Não havia nada a ser dito, ficaram sentidos
pelo amigo que precisava trabalhar, e felizes em não estar na situação dele. Tedesco
combinou com Tomate e, no dia seguinte à tarde, começaria a trabalhar.

Ele não disse nada para a mãe e, todo o dia, depois do almoço, saía de casa,
parecendo ir brincar. Retornava no final da tarde, cansado e disfarçando a tristeza. Já
estava bem hábil no trabalho, quase acompanhava a destreza de Tomate. Deixara para
trás a brincadeira com os amigos e só os encontrava durante as aulas e na hora do
recreio. Não era mais a mesma coisa e, assim, após quinze dias de trabalho, recebeu seu
primeiro pagamento.
Quando Tedesco chegou em casa, deu o dinheiro para a mãe. Ela então ficou
sabendo o que se passava. Desandou na cadeira com o dinheiro na mão e se pôs a chorar.
Ele não sabia o que fazer e, então, a abraçou chorando. Ficaram assim, os dois
abraçados. Tedesco, que há muito não chorava, não resistiu e começou a chorar também.
Não sabia se o fazia porque a vida havia se tornado dura, precisando trabalhar, ou
porque sua mãe estava chorando, e isso o enterneceu, ou, ainda, porque há muito não
recebia um afago, um abraço. Mesmo sendo dado nessas circunstâncias, pareceu-lhe um
carinho, que sua mãe há muito havia esquecido de lhe dar. Não era porque não gostava
dele. A dureza da vida com suas incertezas, o trabalho de criar os filhos sem dinheiro e
sem o marido por perto roubaram dela o sentimento, que agora recuperava. Tinha um
homem na casa, pequeno, porém corajoso e forte, para ajudá-la.
Uma cumplicidade foi formada entre os dois. Desse dia em diante, a tristeza dele
passou. Ia ao colégio e ao trabalho com alegria, levando tudo quase como uma
brincadeira. O desaparecimento do pai foi ficando esquecido. Deixado em outro plano,
como coisa consumada e resolvida.

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