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A ESPIADA

Pedrinho era o maior jogador de bolinhas de gude de todo o campinho, ou


melhor, de toda a cidade. Ninguém podia com ele. Adversários de todos os lugares já o
haviam procurado e saído de mãos vazias.
Possuía também a maior coleção de bolinhas, conseguidas nesses embates. Só
aceitava jogar com adversários que colocassem em jogo as mais bonitas, as mais raras.
Ninguém no campinho queria jogar contra ele, não tinha graça. Além de grande
habilidade e força no pulso, contava com muita sorte. A bolinha sempre ia para onde
ele queria. Então, de uns tempos para cá, não podia participar das brincadeiras,
ninguém o aceitava, e passou a ser considerado um exibicionista. Interrompia o jogo
dos outros para mostrar o quanto era “o bom”, colocava as bolinhas mais bonitas de
sua coleção em diversas distâncias e posições, saía matando uma a uma, com precisão
e rapidez fora do comum. Passou a ter aquele ar de superioridade e de mestre, difíceis
de aturar.

Num certo dia, no meio de uma de suas exibições, foi interrompido por
Geraldinho dizendo que queria uma partida contra ele, isso, se fosse colocado em jogo
sua “olho de gato chinesa”. Era a mais bonita bolinha de gude da coleção de Pedrinho.
Foi seu tio que a comprara em uma de suas viagens ao Rio de Janeiro. Vivia com ela
no bolso, como se fosse sua bolinha da sorte, e não colocava em jogo com medo de
lascar ou quebrar.
Geraldinho ofereceu em troca o seu “rojão”, sua melhor bolinha, bem inferior e
de cor opaca. O exibicionista não pensou duas vezes, já que estava com muita vontade
de jogar e aceitou o desafio. Ia ser fácil, Geraldinho era um jogador mediano, e
considerava-se além do seu nível. Daria um show mais uma vez.

Mas, naquele dia, algo saiu errado: Geraldinho jogou como nunca e, para
espanto de todos, ganhou a “olho de gato chinesa”. O perdedor pediu revanche,
implorou, mas ele apanhou todas as bolinhas, colocou no bolso, e foi para casa.
Pedrinho ficou com a missão de recuperar a “olho de gato chinesa”, custasse o
que custasse. Todo o dia implorava uma revanche e, não tendo resultado, começou a
oferecer algo em troca. Era todo o tipo de propostas, de carrinho de lomba a bola nova
de futebol, tudo por apenas uma bolinha de gude. Geraldinho recusava todas. Se
Pedrinho tivesse um irmão maior, com certeza a parada seria resolvida à força.
Geraldinho era mais forte do que ele e pertencia à turma de Tedesco. Deste jeito, ele
não tinha nenhuma chance. Até que um dia, fez a pergunta mais direta do mundo:

- E daí? O que afinal você quer em troca da minha bolinha?


- Quero dar uma espiada na Ana Clara, respondeu diretamente.
- Espiada na Ana Clara? Pedrinho não havia entendido a resposta.
- Sim, quando ela estiver tomando banho, esclareceu Geraldinho

Ana clara era sua irmã, tinha 11 anos e era muito bonita. Ainda outro dia, numa
roda de conversas sobre meninas, alguém havia dito que os peitinhos dela já estavam
nascendo, e era só olhar a ponta dos dois biquinhos aparecendo no vestido. O sangue
lhe fervera na cabeça e ferveu novamente agora. A vontade era de esmurrá-lo, encher
aquela cara de socos e pontapés. Teria feito isso se o atrevido não sumisse
estrategicamente da sua frente.
Chegou à triste conclusão de que era melhor esquecer aquela bolinha. Afinal,
poderia arrumar outra, pedindo para o tio comprar quando viajasse novamente, mas
sabia que, igual, era impossível.

A semana passou lenta, cheia de conjeturas, de possibilidades e


impossibilidades. Não procurara mais Geraldinho para parecer que não estava mais
interessado, que aquilo era um assunto terminado, como se não quisesse mais aquela
bolinha, nem sendo de ouro.
Mas a bolinha não lhe saia da cabeça. Pediu para o amigo Joca arrumar uma
partida de gude com Geraldinho, como se fosse aquele o interessado, e recuperar para
si a bolinha. Assim foi feito: Geraldinho aceitou jogar, mas não quis colocar a “olho de
gato” no jogo, nem contra outras “olhos de gato”, que Pedrinho fornecera ao amigo.
Então, começou a lhe ocorrer a possibilidade de aceitar a proposta de
Geraldinho, afinal, uma olhadinha, não ia fazer mal algum a Clarinha. Seria através
da janela, e ficariam separados por uma parede inteira. A irmã não ia ficar sabendo
de nada. Poderia contrapor que só aceitaria aquilo, se ficasse entre os dois e mais
ninguém.

Quarta-feira, depois do colégio, lá estavam os dois conversando e acertando os


detalhes. Na quinta-feira, às cinco horas da tarde, ficaram fingindo uma brincadeira
no pátio dos fundos da casa de Pedrinho. O banheiro, que ficava no fundo da casa,
dava para esse pátio. Tinha uma janela basculante com vidros foscos e duas
ventarolas. Era através delas, que estariam abertas, que Geraldinho olharia para
Clarinha.
A mãe dele passou pelo pátio, viu os dois ali, brincando e conversando, e não
desconfiou de nada. Eles ficaram paralisados de medo, mas agora teriam que seguir
adiante.
Arrumaram a escada para poder alcançar a altura da janela, de quase três
metros acima do chão, e ficaram discutindo. Pedrinho queria a bolinha já, o outro só
queria entregar depois, enquanto isso, ela ficaria guardada no bolso. Pedrinho quis
ver a bolinha, Geraldinho mostrou só na sua mão. Foi aí, que ouviram o barulho no
banheiro. Geraldinho saiu correndo, subiu a escada carregando a bolinha na mão e,
quando olhou pela ventarola aberta, Clarinha já havia fechado a cortina de plástico
do box do chuveiro. Não pôde ver nada. Pedrinho balançava a escada, pedindo para
ele descer, e ele fazia sinal e, sussurrando baixinho, dizia que não tinha visto nada, e
que esperaria ela abrir a cortina.

Foram os 15 minutos mais longos de suas vidas, Geraldinho no alto da escada,


pensava em desistir. Segurando-se, com uma mão, na janela e, com a outra, a “olho de
gato”, às vezes, mostrava-a para Pedrinho, só para provocá-lo.
- Banho de mulher é demorado! Repetia, para si mesmo, a cada 10 segundos.
Então, ouviu o barulho do chuveiro sendo fechado e colocou a cara na janela.
Clarinha foi abrindo a cortina devagar e, percebendo a sombra de um vulto na
janela, olhou na direção da mesma. Ficou paralisada com aqueles olhos encarando os
seus. Custou a entender o que estava acontecendo.
Geraldinho, quando viu aquele rosto lindo, com os cabelos longos, molhados e
desalinhados, sobre o rosto de lábios carnudos, entreabertos pelo olhar de espanto de
olhos grandes e profundos, tudo salpicado com pingos d´água, ficou com o olhar preso
e paralisado. Nem olhou para o resto, permaneceu assim durante exatos e longos 6
segundos, até que Clarinha se recobrasse e desse um grito.

Antes de despencar da escada, soltou a bolinha da mão, que bateu na calçada de


pedra e saiu quicando pelo chão. Pedrinho correu atrás, alcançou a bolinha e, quando
a examinou, viu que ela havia sido lascada na queda contra a calçada. Agora não valia
mais nada. Os olhos se encheram de lágrimas, olhou para o outro, e gritou:
- Seu porco safado! Filho da puta! E saiu correndo em sua direção.
Geraldinho escorregou escada abaixo, ralou a bunda e os braços nos degraus da
escada. No chão, nem teve tempo de se recuperar. Pedrinho foi para cima dele,
batendo e socando seu rosto. Foi parcialmente salvo pela mãe, que depois de ver o que
havia acontecido no banheiro, correu até o pátio para ver quem era o autor da
façanha. Lá chegando, viu seu filho batendo no outro e o afastou. Achou que ele estava
defendendo a honra da irmã. Depois, ergueu o intruso pelas orelhas, apontou o portão
e o expulsou da casa.

Pedrinho passou a ser motivo de gozação e escárnio de toda a turma, vendera a


irmã. Trocara a honra por uma bolinha de vidro quebrada. Ninguém o perdoou e ele
ficou marcado por anos a fio.
Geraldinho só foi visto pelas ruas uma semana depois. Inventara para a mãe
que foram uns meninos grandes, da rua de baixo que haviam lhe aplicado uma surra,
agora, o estavam perseguindo. Uma grande mudança aconteceu em sua vida: só saía
de casa bem alinhado, usando calças vincadas e cinto de couro com fivela dourada,
camisa limpa, com os botões fechados, enfiada para dentro das calças, sapatos com
meias e cabelos penteados e fixados por um gel. Não brincava mais com ninguém,
abandonou a turma. Seu passatempo passou a ser a leitura de livros. Estava
aprendendo a jogar xadrez e só entrava nas conversas dos meninos maiores para falar
de política, economia e outras besteiras. Dizia para todos que seria advogado.
Os seis segundos haviam mudado sua vida. Foi a armadilha da paixão
instantânea, algo que acontece a poucos, e que tem efeito devastador, mesmo quando
tão precoce. Quase todos os dias, durante um bom tempo, colocava-se no caminho de
Clarinha. Ela nunca lhe dirigiu um olhar, nada que pudesse dar uma chance de
aproximação e fora a grande paixão de sua vida. Ainda adulto queria saber dela. As
relações com outras mulheres nunca deram certo, e nem a carreira de advogado.
O que o salvou foi o casamento com Renata, filha única de um grande
industrial, que lhe deu um lugar de diretor em uma de suas empresas. Apesar de
esconder, sempre guardou com carinho e nostalgia uma foto de Clarinha.

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