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Toninho olhava para o canteiro com as mudinhas de alface, todas bem verdes e
juntinhas, prontas para transplantar para o canteiro maior onde cresceriam afastadas
umas das outras. Agora estava revolvendo a terra com uma pá de ponta chata,
aproveitara para fazer isso naquele dia, porque havia chovido no dia anterior, e a
terra, então, ficava mais macia. Mesmo assim colocava todo o peso do corpo, com o pé
sobre a pá, para que ela penetrasse no solo. Depois deslocava o torrão de terra,
revirava e quebrava com a pá para a terra ficar fofa.
Neste ano não teriam o trabalho perdido do ano passado, quando
transplantaram as mudinhas, e elas foram atacadas sistematicamente pelos pardais e
pouco restou. Os pardais gostavam de comer as folhas, logo que elas começassem a
brotar porque eram mais tenras e, apesar de pequenos, o bando todo fazia um grande
estrago caso não se tomassem certos cuidados. Por isso, ao olhar para a alface, não
poderia deixar de recordar do que havia feito no verão passado.
Capturou alguns com uma arapuca feita de sarrafinhos de madeira trançados,
colocando ração de galinha para servir como isca. Os filhotes mais novos, que eram os
menos ariscos, ficavam presos quando a arapuca caia. Tentou criá-los na gaiola, mas,
alguns dias depois, murchavam e morriam: parecia de tristeza. Foram feitos para
ficarem livres.
Não gostava também de pardais, porque eles destruíam os ninhos de outros
passarinhos, e acabavam expulsando os pintassilgos, coleiros, carroíras e sabiás da
cidade. Onde havia pardais os outros não se arriscavam. Soube que esses pardais
foram trazidos pelos portugueses vez que não existiam no Brasil.
- Será que há um jeito de mandá-los de volta? Gostaria de saber...
Resolveu, então, que queria todos numa panela, uma fritada de pardais. Para
isso, deveria capturar o maior número possível no menor tempo, para que eles não
morressem antes da “festa”.
Aquilo não era trabalho para uma pessoa e, então, arrumou um sócio para a
empreitada, o Roberto. Comprou uma tela para construir uma gaiola grande, ou seja,
uma prisão. As arapucas, gaiolas e alçapões também foram fabricados por eles,
Ganhou do pai uma furadeira, tipo vai-e-vem, para fazer o furinho no sarrafo de
madeira por onde passam os arames. Fez uma excursão pelo mato nos arredores da
cidade para recolher visgo de uma planta difícil de encontrar e que formava uma cola
espessa bem viscosa, que eles passavam num galho fino e colocavam próximo da
gaiola para servir de isca. Quando eles pousassem no galho, suas patas ficariam
presas, coladas e, então, os apanhariam com as mãos.
Com todo o material pronto, pediram licença para usar o pátio de toda a
vizinhança e partiram para a “guerra”. Capturaram os primeiros filhotes e os
colocaram nas gaiolas para atrair os outros. Os pardais piavam de fome chamando as
suas mães e lá íam elas parar em alguma das armadilhas e depois para a prisão.
Toninho e Roberto só iam fazendo a colheita. Difícil era capturar um pardal macho,
ele é todo pintado e mais bonito do que a fêmea, toda cinza, e ainda sabe cantar.
Esperto e arredio, não caia em armadilhas e pressentia a presença de alguém à
distância. Para esses o segredo é não ter pressa, ficar bem afastado, depois de muito
tempo ele acabaria sendo atraído por algum filhote.
Todas as estratégias foram utilizadas. Veio à tona o instinto de homem caçador
e predador que se situa no topo da cadeia alimentar. Depois de três dias, já haviam
capturado mais de cem pardais. Eram poucos os que ficaram livres voando pelos
telhados e, então, resolveram que chegara a hora de matar todos, e só aí é que foram
verificar o trabalho que daria. Capturá-los foi pura diversão, mas matar, arrancar
suas penas, abrir o bucho para tirar tripas e estômagos não era nada divertido.
Apelaram para suas mães, elas não queriam colaborar e, ainda por cima, mandaram
abrir a porta do presídio. Toninho ficou irredutível.
- Soltar aqueles bandidos? Nunca!
Para tornar o fato consumado, apanhou um a um, de dentro da gaiola, pelas
patas traseiras e arremessou suas cabeças de encontro a uma pedra. Morriam na
hora! Depois, começaram a arrancar suas penas, aí a mãe do Roberto, vendo que não
tinha mais jeito, ajudou na limpeza e preparação.
Convidou toda a turma para a festa: fritada de pardais. Eles devoraram tudo
e ainda ficaram perguntando:
- Era só aquilo? Não tinha mais?
- Mortos de fome, respondia Toninho.
Toninho não comeu. Experimentou e não gostou, eram muito pequeninos, não
era possível separar os ossos da carne e, então, comia com osso e tudo. Aquilo ficou
indigesto, largou seu prato e deixou aquela comida para lá.
Aprendeu que precisava conviver com os pardais. Eles voltaram, não era
possível matar todos da cidade, então, os da redondeza preencheram o lugar dos
eliminados. Hoje o canteiro com as mudas de alface estava lá, sem ser tocado, porque
ele conseguiu resolver o problema. Foi catar numa vidraçaria pedaços de espelhos
quebrados, desses que não servem mais para nada. Fez uma armação com sarrafos de
madeira onde pendurou os espelhos com barbante sobre a alface. Eles ficavam
balançando e refletindo imagens, e os pardais se espantavam com aquilo.
Não era apenas a alface que os pardais atacavam, gostavam também das
frutas, principalmente dos figos, bastava um ficar maduro e lá iam dar sua bicada.
- Paciência, não se pode fazer tudo.
O velho pé de figo preto era campeão de produtividade. No final do verão,
época da safra, ele dava uma trabalheira enorme para se colher todos. Faziam figada,
esse doce dava um trabalho enorme. Além de esmagar todos os figos, era necessário
ficar horas ao redor de um grande tacho, feito de cobre colocado sobre o fogo de lenha
e ficar mexendo, com uma grande pá de madeira, para que o doce não grudasse no
fundo do tacho. Valia a pena porque tinham doce durante todo o ano, inclusive com
uva e chuchu colhidos da horta.
Toninho não gostava de trabalhar na horta, mas vendo, não só a necessidade
porque com ela não era preciso comprar hortaliças e frutas, mas porque sua mãe
gostava de lidar com isso. Tentava fugir daquele trabalho, mas ela e seu pai o
convocavam.
Teve que ajudá-lo a podar a videira que ficava no quintal. Toninho fez a
limpeza recolhendo todos os ramos que foram cortados, só ficaram os principais, mais
grossos, que foram amarrados aos arames que davam a sustentação. A videira ficou
irreconhecível, parecia impossível que ela cresceria novamente, ficando como no verão
passado: com grandes cachos de uva por baixo de uma ramagem viçosa. Nas figueiras,
caqueiros e pessegueiros já se viam os pequeninos brotos verdes no lugar das folhas,
que haviam secado e caído no outono passado.
Era difícil fazer as pulverizações, com seu corpo pequeno a máquina utilizada
ficava grande e pesada. No pequeno parreiral era necessário fazer uma aplicação a
cada 10 dias, e nos tomateiros, toda a semana. Preparava o verderame derretendo as
pedras de sulfato de cobre e misturando-as com a água da cal e. depois, lá ia ele, com a
máquina nas costas, a bombear com a mão direita. Ele saía de lá todo sujo e
pulverizado.
O mercadinho da esquina e os supermercados vendiam o que eles produziam em
casa, e muitos diziam:
- Por que trabalhar na horta, se você pode comprar tudo na ali na esquina? A
vontade era essa, sua mãe é que não deixava.
Não tinha o menor arrependimento por ter feito aquilo com os pardais, mas
uma vez ficou sentido por ter matado um passarinho. Estava no meio do mato, numa
trilha, quando surgiu a sua frente um casal de pássaros silvestres, desses que pouca
gente sabe o nome, apontou o estilingue e acertou em cheio. Pegou o pássaro na mão,
era muito bonito. Ele deu uma olhada nos seus olhos antes de dar o último suspiro.
Ver a sua vítima morrer daquele jeito, nas próprias mãos, foi uma experiência
enriquecedora. Ficou magoado porque eram passarinhos que não incomodavam
ninguém e não havia sido sua intenção.
- A culpa foi dele que parou bem na minha frente.
Nunca mais atirou em passarinhos, só em pardais e bem-te-vis, porque eram
maus, roubavam os ninhos de outros pássaros.
Depois, olhou para o outro que restara, devia ser a fêmea. Ela piava num galho
mais alto, olhando o seu par morto na mão de Toninho que pegou no estilingue para
atirar nela também, com o intuito de ela não ficar sozinha e perdida sem seu macho.
Depois desistiu: talvez ela encontre outro por aí.
Todo animal tem uma forma de ser morto. Não é a toa que sua mãe mata uma
galinha torcendo o pescoço, ninguém apunhala uma galinha no coração. Ratos, com
uma paulada ou com a ratoeira. Não gostava de usar veneno, não tinha graças. Com
as formigas, bom mesmo é vê-las queimando.
Quando a gata dava cria e nasciam muitos filhotes, matava o excesso.
- Para que tantos gatos? Se havia seis apanhava uns três, colocava dentro de
um saco plástico junto com uma pedra e jogava lá no riacho, num lugar fundo. Esse
era o jeito tradicional de eliminar gatos.
Ele não tinha idade para matar porco, mas já havia visto como é que se fazia.
O porco grita forte num misto de dor e histeria. Ninguém sabe como ele pressente que
será morto. Era preciso firmeza para enfiar a faca no pescoço, acertar a veia, e não
desistir. Achava que era por isso que todos matavam cobra e peixe sem piedade.
Aquilo que chamam de pescaria não é outra coisa senão uma maneira de matar o
peixe. Retirando-o da água ele morre, e quem pesca nem sente dó porque ele, como a
cobra, não grita, se gritassem, com o bando de frouxos que existe no mundo, estariam
salvos.
Outro exemplo de como é preciso saber matar um animal foi dado quando
Roberto o convocou para ajudar com um coelho. Ele nunca havia feito isso, mas
ouvira falar que se pega pelas orelhas e dá uma paulada na cabeça e foi o que fez. O
coelho não queria morrer, ele batia com força, mas continuava vivo, tremendo da
cabeça aos pés. Não podiam deixá-lo assim, machucado e sofrendo, nem vivo, nem
morto. Aí o Roberto apontou para o machado e disse.
- Vamos cortar a cabeça fora!
Colocou o coelho estendido sobre um cepo de madeira e Toninho deu duas
machadadas. Saiu muito sangue, mas finalmente ele morreu. Lógico: ninguém vive
sem cabeça. Depois aprenderam a retirar a pele e limpar. A mãe de Roberto convidou
Toninho para comer o coelho, ele não quis.