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RECEPTAÇÃO

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67.1 CONCEITO, OBJETIVIDADE JURÍDICA E SUJEITOS DO


CRIME

A receptação dolosa simples está assim definida no art. 180:

“Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou


alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé,
a adquira, receba ou oculte.”

A pena é reclusão, de um a quatro anos, e multa.

O bem jurídico protegido é o patrimônio das pessoas que, já violado por uma ação
criminosa, volta a ser atingido com a receptação, realizada por outro.

Sujeito ativo do crime é qualquer pessoa, com exceção do agente ou concorrente do


crime antecedente.

Sujeito passivo é o titular do direito patrimonial sobre a coisa receptada, ou seja, o


mesmo sujeito passivo do crime antecedente.

67.2 TIPICIDADE

67.2.1 Formas típicas simples

O caput do art. 180 contém duas figuras típicas. Na primeira, chamada receptação
própria, o agente adquire, recebe, transporta, conduz ou oculta, em proveito próprio ou
alheio, a coisa que sabe ser produto de crime.

A receptação imprópria é influir para que terceiro, de boa-fé, adquira, receba ou


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oculte a coisa que sabe ser produto de crime.

67.2.1.1 Conduta

São vários os núcleos da receptação própria. Adquirir é conseguir a propriedade da


coisa, por meio de compra, permuta, doação ou qualquer ato oneroso ou gratuito. Receber
significa passar a ter a posse ou detenção da coisa, que lhe é transmitida por outrem.
Transportar é deslocar a coisa de um lugar para outro. Conduzir é guiar, dirigir, tendo,
pois, significado mais restrito do que o verbo transportar. Ocultar é esconder.

O núcleo da receptação imprópria é influir, no sentido de sugerir, convencer,


persuadir, induzir.

67.2.1.2 Elementos objetivos e normativos

Para existir receptação é necessário que tenha havido um crime anterior, do qual
uma coisa seja o produto. Produto do crime não se confunde com instrumento do crime,
que é o meio empregado para sua utilização. Nem com seu proveito. Se a conduta tem em
vista auxiliar o autor do crime antecedente a resguardar o proveito do crime – por
exemplo, o pagamento recebido para praticá-lo –, o tipo incidente será o do favorecimento
real, do art. 349 do Código Penal.

O crime antecedente pode ter sido inclusive um crime não patrimonial, desde que
uma coisa que lhe seja o produto possa, em seguida, ser objeto da receptação. A lei fala em
crime, logo não pode haver receptação de coisa produto de uma contravenção penal. O
crime antecedente pode ter sido inclusive outra receptação.

Cuida-se de coisa móvel, suscetível de ser transportada, conduzida ou ocultada.

A realização de mais de uma das condutas típicas, como adquirir e transportar, ou


receber e ocultar, não importa na prática de dois crimes, e a venda posterior da coisa
receptada é post factum impunível.

Na receptação imprópria, o terceiro, que adquire, recebe ou oculta a coisa, deve


estar de boa-fé, do contrário, este cometerá receptação própria e o que influi dela será
partícipe. Não é necessário que o terceiro adquira, receba ou oculte a coisa. O crime é de
mera conduta, perfazendo-se, pois, com a simples atividade do agente.
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De notar que não haverá crime se a influência tiver sido no sentido de que o terceiro
conduza ou transporte a coisa, uma vez que a norma não incluiu estas condutas na
formulação típica.

O terceiro, nesses casos, estando de boa-fé, não comete crime algum.

67.2.1.3 Elementos subjetivos

O tipo contém três elementos subjetivos. O primeiro é o dolo. O agente deve atuar
com consciência e vontade livre de adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar a
coisa, ou, ainda, de exercer influência sobre terceira pessoa de boa-fé.

Além disso, deve ter consciência de que a coisa é produto de crime, sabendo,
portanto, perfeitamente, que se trata de coisa obtida com a prática de crime antecedente.
Se não sabe, a receptação poderá, quando muito, ser culposa.

E o agente deve agir com a finalidade de obter, com a conduta, proveito próprio ou
para terceiro.

Não há crime quando o agente vem a saber, depois de realizada a conduta, que a
coisa é produto de crime, porque o dolo é integrante da ação, não se podendo reconhecer o
chamado dolo subseqüente.

67.2.1.4 Consumação e tentativa

Consuma-se a receptação própria com a aquisição, o recebimento, o transporte, a


condução ou a ocultação da coisa. Tendo a coisa entrado na posse ou detenção do agente,
há consumação. Possível a tentativa, quando tal não ocorre por circunstâncias alheias à sua
vontade.

A receptação imprópria consuma-se com a ação do agente consistente em influir


sobre terceiro de boa-fé; impossível, por isso, a tentativa, já que com o primeiro
comportamento nesse sentido já terá se consumado o crime.

67.2.1.5 Aumento de pena

A pena será aplicada em dobro – reclusão de dois a quatro anos – se a coisa


receptada integrar “bens e instalações do patrimônio da União, Estado, Município,
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empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista” (art. 180, §


6º, CP). Cuida-se de proteção mais eficaz de bens públicos, incluindo-se armas
pertencentes às corporações civis e militares, máquinas e equipamentos de órgãos públicos
ou empresas concessionárias de energia e saneamento etc.

67.2.1.6 Receptação privilegiada

Determina o § 5º, segunda parte, do art. 180, que se a coisa receptada for de
pequeno valor e o agente primário, o juiz poderá substituir a pena de reclusão pela de
detenção, diminuí-la de um a dois terços ou aplicar somente a pena de multa.

Trata-se do reconhecimento do mesmo privilégio aplicado ao crime de furto,


devendo o leitor, para melhor compreensão, voltar sua atenção para o item 33.2.2.

67.2.2 Receptação qualificada

A Lei nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996, criou um novo tipo de receptação, no §


1º do art. 180, assim definida: “Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em
depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma
utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial,
coisa que deve saber ser produto de crime.”

Cominou pena de reclusão, de três a oito anos, e multa.

67.2.2.1 Conduta

Além das condutas já comentadas quanto ao tipo básico de receptação dolosa


simples – adquirir, receber, transportar, conduzir e ocultar –, a norma contém outros
núcleos, a saber: ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda
ou de qualquer forma utilizar.

São todos verbos cuja compreensão é muito simples, os quais são complementados
pelo objeto: coisa produto de crime. Apesar do verbo utilizar ter-se feito preceder da
expressão de qualquer forma, não se pode compreendê-lo como alcançando outras ações
não descritas no tipo, mas como resumo das explicitadas, sob pena de violação do princípio
da legalidade.
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O crime será único ainda quando o agente realizar mais de uma das ações típicas.

67.2.2.2 Elementos objetivos e normativos

A conduta típica incidirá sobre coisa móvel produto de crime que a antecede. Disso
já se falou quando dos comentários à receptação dolosa própria e imprópria.

Além das novas ações incriminadas, o tipo de receptação qualificada contém outro
elemento especializante, exigindo que a conduta seja praticada “no exercício de atividade
comercial ou industrial”, que é exatamente a razão de ser da qualificação do delito.

O objetivo da lei é alcançar, de modo mais rigoroso, os comerciantes e industriais


que, em sua atividade, recebem e utilizam objetos, materiais, mercadorias etc. que tenham
sido produto de crime.

Para espancar qualquer dúvida acerca de quem seja comerciante, a norma do § 2º


do art. 180 explica: “equipara-se à atividade comercial, para efeito do parágrafo
anterior, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive o exercido em
residência”.

Assim, a receptação qualificada é delito próprio, devendo o sujeito ativo ser


comerciante, inclusive o que exerce o comércio de forma irregular ou clandestina, até
mesmo em sua própria casa, ou industrial.

Não basta, porém, que o agente seja industrial ou comerciante, ainda que irregular
ou clandestino; é necessário que haja relação entre a conduta e atividade por ele
desenvolvida, o que se verificará quando a coisa receptada inclui-se dentre as objeto do
comércio ou da indústria.

O comerciante que adquire ou recebe uma coisa produto de crime, que não tenha
qualquer relação com sua atividade, por exemplo, quando o proprietário do ferro-velho ou
desmanche de peças de veículos recebe ou adquire um simples par de óculos de sol que
seja produto de crime e que passa a utilizá-lo em si mesmo, cometerá apenas o crime do
caput do art. 180.

67.2.2.3 Elementos subjetivos

O tipo qualificado do § 1º do art. 180 do Código Penal é doloso, mas exige ainda,
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como elemento subjetivo, agir o sujeito ativo com o intuito de obter proveito próprio ou
alheio, exatamente como o tipo do caput, da receptação simples.

Há, entretanto, um elemento subjetivo diferente, contido na expressão: “coisa que


deve saber ser produto de crime”. No tipo simples, a norma exige que o agente saiba ser
produto de crime, aqui o agente deve saber.

É uniforme o pensamento doutrinário segundo o qual o elemento subjetivo contido


na expressão sabe, contida no caput do art. 180, revela um comportamento com dolo
direto, havendo discrepância doutrinária e jurisprudencial quanto à expressão que deve
saber, contida no § 1º do art. 180: para uns é indicadora de dolo eventual, enquanto outros
nela vêem comportamento culposo.

Independentemente da corrente que se abraçar, não pode haver dúvida de que


aquele que recebe uma coisa que sabe ser produto de crime realiza um comportamento
mais reprovável do que o sujeito que, não sabendo, deve saber de sua origem criminosa.

Saber quer dizer ter o pleno conhecimento. Dever saber indica que o sujeito não
tem o conhecimento da origem criminosa da coisa, mas devia ter alcançado essa
consciência.

A utilização dessa expressão busca alcançar a situação em que o sujeito está em


dúvida quanto à origem criminosa da coisa pois, não sabendo, tinha, contudo, condições de
saber, mas, ainda assim, realiza a conduta. Por isso se diz que, quando devia saber, há dolo
eventual.

Ora, o tipo do caput, ao qual corresponde pena de reclusão de um a quatro anos,


contém a expressão sabe, exigindo, pois, dolo direto, ao passo que o tipo do § 1º traz a
expressão deve saber, indicativa de dolo eventual, que, como é óbvio, traduz conduta
menos reprovável, punida, entretanto, na norma em comento, com pena bem superior:
reclusão, de três a oito anos.

A norma sob comentários, por isso, mereceu críticas ácidas e contundentes dos
principais doutrinadores. Além disso, como o tipo do § 1º não contém a expressão sabe,
mas apenas deve saber, fica a dúvida sobre se terá incidência quando o comerciante
pratica a conduta sabendo que se trata de coisa produto de crime.

Rigorosamente, tendo em conta o princípio da legalidade, não pode incidir a norma


do § 1º sobre a conduta do que agente que sabe ser a coisa produto de crime, porque o tipo
não contém este elemento: consciência real da procedência da coisa, representada pela
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forma verbal empregada apenas no caput do art. 180: sabe.

Tem-se daí que, quando ele sabe, não comete o crime qualificado, incidindo o tipo
simples, do caput, punido mais brandamente, e quando não sabe, mas devia saber, sofrerá
pena mais rigorosa, para uma conduta menos reprovável, o que é um contra-senso.

A contradição será sanada se se entender que, no deve saber está contida o sabe. Em
outras palavras, a vontade implícita da lei, no § 1º, é alcançar não só o agente que deve saber,
mas também o que sabe ser produto de crime a coisa receptada.

Esta interpretação parte do princípio de que, se quando ele sabe, a pena é menor, e
quando deve saber, é maior, é porque no tipo qualificado está incluída não só a conduta
realizada com dolo eventual, mas também, por lógica, a realizada com dolo direto.

O pensamento é coerente, mas esbarra no princípio da legalidade, não cabendo ao


intérprete do Direito fazer concessões dessa natureza quando o legislador age com
descuido. Se este foi impreciso, não cabe ao juiz substituí-lo, lendo “branco” onde está
escrito “negro”, “cheio” onde está dito “vazio”. Saber não se confunde com dever saber.
Ter consciência não é o mesmo que dever tê-la. O juiz não é legislador e ao interpretar a
norma deve buscar tão-somente sua vontade e não a vontade de quem a elaborou.

Por isso, mais lúcido é concordar com DAMÁSIO, que, com sua sabedoria, aponta a
única solução, a seu ver, a menos pior:

“Sugerimos que o preceito secundário do § 1º do art. 180 seja desconsiderado,


permanecendo, entretanto, a figura do crime próprio (preceito primário), de
modo que: 1º) se o comerciante sabia da origem criminosa do objeto material,
aplica-se o caput do art. 180 (preceitos primários e secundários); 2º) se devia
saber, o fato enquadra-se no § 1º (preceito primário), com a pena do caput
(preceito secundário).”1

Não vejo outra solução, senão a apontada, o que, é óbvio, torna absolutamente
inócua a inovação legislativa, cuja finalidade era, sem dúvidas, a de conferir maior
proteção aos bens jurídicos, em face do acentuado aumento da atuação organizada de
grupos criminosos que têm, na receptação de peças de veículos roubados, um de seus mais
importantes instrumentos, razão importante de seu sucesso.

1 Direito Penal. v. 2, p. 506.


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Resta ao legislador, para resolver o problema criado por sua inépcia, alterar o tipo
do § 1º do art. 180, incluindo nele, antes da expressão deve saber a forma verbal sabe,
ficando, assim, harmonizado o tratamento penal conferido ao crime de receptação.

67.2.2.4 Consumação e tentativa

A consumação, como no tipo do caput, ocorre no momento em que o agente realiza


a conduta, ou seja, quando adquire, recebe, transporta, conduz, oculta, desmonta etc. a
coisa, possível a tentativa.

67.2.2.5 Aumento de pena

A pena será aplicada em dobro se a coisa receptada integrar “Bens e instalações do


patrimônio da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou
sociedade de economia mista” (art. 180, § 6º).

67.2.2.6 Receptação qualificada-privilegiada

O § 5º do art. 180 determina a aplicação do § 2º do art. 155 à receptação dolosa,


assim tanto na forma do caput, quanto na do § 1º.

Por isso, se o agente é primário, e de pequeno valor a coisa receptada, o juiz poderá
substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar
somente a de multa, como no furto, objeto dos comentários feitos no item 33.2.2.

O privilégio não se aplica à receptação com pena duplicada prevista no § 6º.

67.3 AUTONOMIA DA RECEPTAÇÃO

Só há receptação quando tiver sido praticado um crime anterior do qual a coisa


receptada é produto.

A norma do § 4º do art. 180 contém norma explicativa no sentido de que “a


receptação é punível, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que
proveio a coisa”.

Assim, é indiferente, para a incidência da norma incriminadora, nas três


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modalidades, dolosa simples qualificada e culposa – adiante comentada –, que seja


identificado o autor do crime antecedente, pouco interessando, inclusive, se há inquérito
policial, ação penal ou sentença condenatória, bastando que haja prova cabal de que a
coisa é, mesmo, proveniente de outro crime.

A conformação do crime de receptação não será excluída pela extinção da


punibilidade do crime antecedente, e tampouco se o acusado de sua prática tiver sido
absolvido por insuficiência de prova, desde que, no processo em que se apura o delito do
art. 180, seja demonstrada a origem criminosa da coisa.

Se o autor do crime antecedente é menor de 18 anos ou, por qualquer causa,


inimputável, ainda assim a receptação será reconhecida, se presentes todos os seus
elementos constitutivos, o que também acontecerá nas hipóteses de escusa absolutória do
art. 181 do Código Penal.

A receptação é crime autônomo, embora ligado seu objeto material a outro crime.

67.4 A AÇÃO PENAL

A ação penal é de iniciativa pública incondicionada. No caso de receptação dolosa


simples, prevista no caput do art. 180, é possível a suspensão condicional do processo
penal, conforme o art. 89 da Lei nº 9.099/95. Será pública condicionada à representação
se a vítima é o cônjuge separado judicialmente, irmão, ou tio ou sobrinho com quem o
agente coabita.

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