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FUNCHAL- UMA CIDADE EM CONSTRUÇÄO

ALBERTO VIEIRA

O Funchal, qual fénix renascida, emergiu das cinzas do funcho que cobriam o
amplo vale. Deste espaço ermo, apenas coberto de funcho, e ao que parece nunca
maculado pelo homem, o português fez erguer uma vila e depois fez dela uma
rica cidade e sede de bispado.
Esta viragem radical é traçada de modo ímpar por Gaspar Frutuoso. O retrato
inicial, definido de acordo com o testemunho coevo de Francisco Alcoforado, é
bastante significativo em relação à mudança operada: "chegados ao formoso vale,
que de lisos e alegres seixos era coberto, sem haver outro género de arvoredo,
senäo muito funcho que cobria o vale até ao mar por bom espaço(...). E pelo
muito funcho que nele achou lhe pös o nome de Funchal(...). Chegado Joäo
Gonçalves ao Funchal começou a traçar a vila e a dar as terras de sesmaria...".
Entre esta imagem e aquela testemunhada cerca de cento e setenta anos após vai
uma grande diferença. A sua fisionomia mudou, o funcho deu lugar ao amplo e
rico casario: " Grande e nobre cidade do Funchal, ali situada em lugar baixo, em
uma terra chä, que do mais se mostra aos olhos mui soberba e populosa, täobem
assombrada nos edifícios como nos moradores, näo somente dela, mas também
de toda a ilha." Do funcho näo havia já rasto apenas o nome dado a este chäo.
Desde entäo até a actualidade a cidade näo morreu, que é como quem diz
esteve em permanente processo de transformação, tentando aderir às novas
directrizes do progresso, expressas nas formas de ver e praticar as soluçöes
arquitectónicas. Por isso, ao contrario do que se possa pensar, a cidade é isso
mesmo, esse processo de permanente construçäo, quer agrade ou näo ao nosso
modo actual modo de ver e encarar o património construído. Recorde-se que os
nossos antepassados não se regiam pelos nossos actuais padrões, mas de acordo
com as suas necessidades e ambições.
O Funchal, ao contrario de Pompeia, submergida pelas cinzas e por isso
mesmo mantida intacta para gaudio de turistas, foi primeiro uma vila e depois
cidade em permanente transformaçäo. Para isso contribuíram os momentos de
fulgor económico da ilha, que proporcionavam o dinheiro para que a cidade se
embelezasse com ricos palácios e templos religiosos, se defendesse com
imponentes fortificaçöes. Na falta desse dinheiro acumulado, primeiro com o
comércio do açúcar e, depois, do vinho a cidade näo teria adquirido a
monumentalidade e riqueza de elementos decorativos que alcançou. Ela não
passaria de um fantasma. Talvez, por isso mesmo, alguns tenham pretendido
definir, ainda que erradamente, dois momentos na vida da cidade: a cidade do
açúcar e a cidade do vinho. Acrescente-se que säo desses momentos os vestígios
mais evidentes da transformaçäo da malha urbana e da arquitectura dos
edifícios, de que restam ainda hoje largos testemunhos.
No princípio da ocupaçäo deste espaço definiram-se duas áreas de
assentamento: uma ribeirinha para as gentes ligadas à actividade oficinal e do
mar, outra interior onde a nova aristocracia resguardava os seus aposentos e
haveres do olhar dos intrusos trazidos pelo mar. Do primeiro momento pouco
resta, pois dos seus escombros fez-se erguer a cidade e a cantaria foi reutilizada.
Apenas se poderá assinalar aqui aquilo que se definiu com a zona velha da
cidade, sujeito como é óbvio às inevitáveis alterações. Depois, a partir do último
quartel do século XV, começou a estabelecer-se a ligaçäo entre estes dois
mundos, por intermédio dos mercadores. A partir de uma rua traçada junto ao
calhau, entre as ribeiras de Santa Luzia e S. Joäo, começou a surgir a vila dos
mercadores de açúcar, que fez avançar os seus tentáculos para Norte e Leste,
abrangendo os primeiros núcleos de povoamento.
A arquitectura desta nova vila contrasta com a das anteriores, pela sua
funcionalidade e riqueza. As casa térreas deram lugar às de sobrado, que
passaram a ser cobertas de telha, enquanto o espaço interior ganhou espaço e
maior comodidade,associando-se a ele o armazém. As cantarias negras que
delimitavam as entradas e as janelas são trabalhadas por exímios pedreiros.
Portas adentro há espaço para tudo. O quotidiano interioriza-se, surgindo
espaços para o negócio, permanência e lazer. Note-se que as sessões da câmara
relizaram-se algumas vezes em praça pública, no adro da igreja, até que se
construiu os paços do concelho. Assim sucederá em muitas das novas habitações
que começaram a surgir nas duas décadas finais do século XV, sendo exemplo
disso os imponentes aposentos mandados erguer por Joäo Esmeraldo, na rua que
foi baptizada com o seu nome, ou com outros como os de Pero Valdavesso,
Francisco Salamanca, Tristäo Gomes, Tristäo Vaz de Cairos. Todos eles estavam
vinculados directamente à produçäo e comércio do açúcar.
No alto, num arrife onde depois se ergueu o convento de Santa Clara, e depois
junto ao calhau erguiam-se altaneiros os aposentos do capitäo do Funchal, a
primeira figura da vida do lugar. A sua imponência e o fausto quotidiano dos
seus salões e imediações näo deixavam dúvidas a qualquer forasteiro: ali vivia o
principal da cidade. Visto do mar o actual Palácio de S. Lourenço impõe-se na
paisagem.
Este crescimento da vila fez-se até 1485 de uma forma desordenada. Somente
a partir desta data ficou definido um plano para o novo espaço urbano, que daria
origem à nova cidade. D. Manuel doou aos funchalenses o seu chäo, conhecido
como o Campo do Duque, para aí se erguer uma praça, igreja, paços do concelho
e alfandega. Tal como se pode concluir das ordens do mesmo os funchalenses
tinham plenos poderes para expropriar terrenos e estabelecer o novo traçado.
Iniciava-se então a destruiçäo dos pequenos aglomerados de casas de palha para
dar lugar a esta nova urbanizaç_Podemos assinalar aqui o primeiro atentado
contra o primevo património arquitectónico do Funchal ! Delimitado por estes
quatro pilares, símbolos dos poderes instituídos, foi traçado o recinto urbano
capaz de levar a vila à condiçäo de cidade (1508) e depois sede de bispado (1518).
Entretanto o aformoseamento da vila continuava. Desde 1495 recomendava-se
o calcetamento das ruas e a substituiçäo das pontes de madeira por novas de
cantaria. Mas estas e outras recomendaçöes concernentes ao aprumo da vila näo
conquistaram sempre a adesäo dos funchalenses que se queixavam das
dificuldades económicas do comércio do açúcar, quando na realidade haviam
gasto os seus haveres em novos aposentos.
Esta cidade, que por comodidade poderemos designar dos mercadores de
açúcar, anichou-se junto ao calhau no acanhado espaço entre as ribeiras de Santa
Luzia e de S. Joäo. A dos mercadores do vinho para além de devorar este espaço
avançou encosta acima, definindo o prolongamento das ruas saídas da dos
mercadores (hoje da alfandega) e de um cruzamento de novas. Mais uma vez a
cidade entrou num prolongado processo de transformaçäo que lhe atribuiu parte
da actual fisionomia. Pensou-se até em transferi-la para um lugar mais seguro
no alto de Santa Catarina. Mas o destino estava traçado pelo que sobre o antigo
foram surgindo novos templos para a devoçäo e novos espaços para moradia,
servidos de amplos armazéns, tudo isto engalanado com as latadas de vinhas e
rematado com uma imponente cortina defensiva. De noite a cidade intra muros
poderia dormir descansada. Com o toque do sino de correr os portões haviam-se
fechado e, por isso não havia lugar a folgares fora de horas.
Em algumas ruas, nomeadamente na dos Ferreiros e Netos, da cidade ainda
podemos encontrar testemunhos dessa arquitectura monumental gerada pelo
comércio do vinho. Mas sem dúvida os mais significativos säo os edifícios sede
do município e do Museu e biblioteca. No nosso entender este é o conjunto mais
rico e, por isso, marco emblemático desta época, näo obstante as alteraçöes a que
foi sujeito.
No tradicional espaço de animaçäo comercial, situado na Rua da Alfandega e
circunvizinhas surgem outros testemunhos arquitectónicos de igual pujança.
Alguns dos palácios do tempo do fulgor açucareiro foram transformados para as
novas funçöes e enriquecidos com novos elementos decorativos da época,
enquanto as pequenas casas térreas deram lugar à nova arquitectura em voga.
Mais tarde muitos destes espaços seräo enobrecidos pela burguesia comercial
inglesa ou americana, que lhe enxerta o classicismo.
Neste contexto merece a nossa atençäo o palácio da Rua de Joäo Esmeraldo
onde hoje está instalada a Direcçäo Regional da Marconi. As peripécias da sua
história (que oportunamente teremos oportunidade de revelar na quase
totalidade, desfazendo assim as dúvidas) é uma prova disso. Naquilo que, no
momento da opulência açucareira, näo passava de armazém para guarda do
açúcar fez-se erguer em finais do século dezasseis uma casa sobradada que
depois foi aumentada e enriquecida por elementos decorativos ao gosto dos
novos inquilinos. A posse pelos ingleses a partir de 1794 levou a uma
reestruturaçäo do espaço interior, situaçäo que chegou até nós em completo
estado de ruína. Por isso a iniciativa da Marconi de reabilitar o prédio, fazendo-o
retornar ao ambiente classicista do século passado deverá merecer a nossa
consideraçäo e apreço, sendo, por isso mesmo, um exemplo a seguir para alguns
dos espaços privilegiados da nossa cidade. Outros dois imóveis aguardam
idêntica solução: a Casa dos Cônsules e o solar de D. Mécia.
A decadência do comércio do vinho repercutiu-se inevitavelmente na vida dos
edifícios da cidade que sempre dependeram dele. Numa operaçäo de mimetismo
entraram em paulatino processo de degradaçäo, que em alguns casos levou à
total ruína. As dificuldades económicas da ilha reflectem-se de modo evidente na
vida dos prédios: as fachadas perdem a cor, os telhados enchem-se de ervas
propiciando as infiltraçöes de água no período invernal o que vai propiciar a
degradaçäo do espaço interior. A continuidade deste processo conduziu à
inevitável ruína em que alguns se encontram.
As exigências da hodierna cidade näo se compadecem com as concepçöes de
espaço medieval e à sinuosidade das suas ruas. O automóvel foi protagonista de
novas mudanças no traçado da cidade, pois realinhou as antigas vias e fez traçar
novas e amplas avenidas. É neste contexto que se insere a política do Dr Fernäo
de Ornelas quando presidente do Funchal(1935-46) com a abertura de ruas e
avenidas, destacando-se aquela que recebeu o seu nome.
A abertura da Avenida do Mar näo admitia ointrusos do passado pelo que o
emblemático símbolo do porto--o pilar de Banger-- teve que ser demolido em
1939.Hoje o pilar amputado regressou às proximidades do seu assentamento
inicial, a lembrar aos presentes que pretende continuar a ser parte integrante da
cidade, ainda que sob a forma de peça de museu.
O remate desta fase teve lugar na década de cinquenta com o aparecimento de
alguns exemplares da arquitectura do Estado Novo(Palácio da Justiça, Banco de
Portugal, Alfandega e capitania do porto). A monumentalidade e o negro das
cantarias chocam com o meio envolvente.
Por muito tempo perdurou na cidade este espectro da destruiçäo, que começou
a ser combatido pelo lado mais fácil, com o desaparecimento do antigo para
sobre ele se erguer algo de novo. Deste modo os poucos vestígios dos escombros
eram recolhidos num jardim dito arqueológico, que mais nos parece um
cemitério, ou enxertados em vetustas construçöes entäo restauradas. Só muito
mais tarde surgiu a ideia de aliar o espaço definido pelos antigos aos novos
hábitos urbanísticos e comerciais, com a recuperaçäo ou reabilitaçäo de praças e
edifícios. Alguns casos poderäo ser citados, embora a sua concretização tenha
sido, por vezes, polémica. Assim sucede com a conhecida zona velha da cidade,o
largo do Pelourinho e a Alfandega do Funchal.
Nas actualidade, uma vez que a maior parte do dinheiro disponibilizado para
os investimentos urbanísticos assenta no turismo, será inevitável essa conciliaçäo
do património com os princípios actuais da comodidade. É assim que sucede
noutros locais e que parece querer despontar entre nós.
Este processo de lenta transformaçäo da cidade näo é pacifico, merecendo a
constante atençäo dos políticos e literatos. Destes últimos retivemos o
testemunho de dois espaçados no tempo de sessenta anos. Em 1927 o Marquês
Jácome Correia encarava esta mudança na fisionomia da cidade como uma
necessária adequaçäo às"concepçöes de profilaxia e de higiene orientados a
princípios d'alinhamento e de comodidade de transito". Opiniäo diferente
expressou António Aragäo em livro recente, reeditado em 1987. Segundo ele
"desapareceu quase tudo. foram devoradas ou abatidas ruas inteiras... tudo levou
sumiço restando em seu lugar uma cidade desfeada e incaracterística. Mas na
verdade, a antiga cidade do Funchal tem vindo progressivamente a desaparecer,
mais devido à incúria dos homens do que ao desmando anónimo dos tempos".
Escusamos de fazer qualquer comentário a esta última observaçäo, pois a
opçäo é clara e näo queremos de modo algum dar mais trabalho ao seu autor em
exercícios de dupla resposta/justificaçäo. Todavia assiste-nos o direito de afirmar
que o progresso e comodidade de uma urbe resultam, por vezes, disso, pelo que
a História será o registo das boas e más intervençöes do Homem, mas nunca um
tribunal para o julgar.
Ao leitor, que nos acompanhou neste breve percurso pela história da cidade,
aqui deixamos o convite para que conheça a sua cidade e aprenda a ama-la. Mais
nas suas deambulaçöes de lazer ou de trabalho pelas ruas novas ou antigas,
lembre-se de olhar à sua volta e de contemplar o que permanece e se transforma
nesta cidade em permanente construçäo, que afinal é um bocado de todos nós.

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