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Resumo
Esse artigo parte da análise dos discursos oficiais de determinadas igrejas protestan-
tes históricas brasileiras sobre comunicação em articulação com as práticas comuni-
cacionais midiáticas que ocorrem no interior dessas instituições. Refere-se a um con-
junto de reflexões teórico-metodológicas sobre como essas igrejas se relacionam com
o campo da comunicação, construindo discursivamente um saber sobre a comunica-
ção e como esse saber repercute em suas práticas midiáticas, observando aí modali-
dades de resistência do midiático e do religioso aos processos de acoplamentos mú-
tuos. Trata de qualificar as categorias de dispositivos comunicacionais de valor, de vi-
sibilidade e de vínculo como categorias para entender o tipo de midiatização que as
igrejas protestantes históricas brasileiras experimentam.
Para pensar e propor uma política de comunicação, para e pela Igreja, é necessário
considerar processos, sistemas, estruturas e meios de comunicação empregados pela
Igreja ou possíveis a ela. (Do Plano de Nacional de Missão 2007-2012 da Igreja Meto-
dista)
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A comunicação da IPB começou com o fundador da igreja, rev. Ashbel Green Simon-
ton. Em 1884, ele lançou o primeiro jornal evangélico do Brasil, Imprensa Evangélica.
(Do site da Igreja Presbiteriana do Brasil)
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De acordo o Art. 75 do seu Regimento, na Área de Comunicação, com o objetivo de
exercer um ministério cristão formador e evangelizador, através dos diferentes veícu-
los de comunicação social, a IELB procura... (Do regimento da Igreja Evangélica Lute-
rana do Brasil)
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A Política de Comunicação na IECLB está expressa no Art 3º da sua constituição: “A
IECLB tem por fim e missão propagar o Evangelho de Jesus Cristo e estimular a vida
evangélica em família e sociedade, bem como participar do testemunho do Evangelho
em todo o mundo.” (Do documento da Política de Comunicação da Igreja Evangélica
de Confissão Luterana no Brasil)
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1. Introdução
A julgar por sua história e por seus discursos, comunicação jamais foi problema
para as igrejas protestantes. Antes, processos comunicacionais constituíram (e consti-
tuem, ainda) o alfa e o ômega de sua existência, são sua essência. A comunicação é
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tão naturalmente presente nas igrejas protestantes, que durante os séculos de sua vi-
da, desde a Reforma de Martim Lutero, parece que jamais foi problematizada. Ja-
mais... até meados do século passado, quando os chamados “meios de comunicação
de massa” começaram a estabelecer novos paradigmas de comunicação para a soci-
edade, com reflexos diretos sobre as igrejas e, em particular, as minoritárias igrejas
protestantes históricas brasileiras. Nascia ali, em decorrência de práticas de comuni-
cação pelo rádio e pela televisão de instituições concorrentes – as chamadas igrejas
eletrônicas – uma “teologia da comunicação protestante”, ou, antes, uma hermenêuti-
ca bíblica da comunicação, que buscava responder sistematicamente, com discursos
balizadores, aos processos de evangelização mediados por meios massivos, apontan-
do para um imperativo prático comunicacional nem sempre realizável.
Assim, se na Reforma do Século XVI, o Protestantismo alcançou rápida difusão
valendo-se da literatura reproduzida em larga escala por meio da prensa de tipos mó-
veis, reconfigurando o mundo político e religioso e contribuindo para o estabelecimen-
to das bases de uma sociedade pós-medieval, mostrando-se, assim, “sintonizado” com
a nova tecnologia, hoje parece lidar com mais dificuldades com os processos midiáti-
cos, muito mais complexos e dinâmicos que operam diferenças significativas na co-
municação da sociedade e, conseqüentemente, das igrejas. Para dar conta dessa
complexidade social, as igrejas protestantes históricas, em coerência com sua tradição
escrita, formulam discursos sobre comunicação, buscando regular e controlar os pro-
cessos comunicacionais nos quais estão implicadas. Neste artigo, busco explicitar al-
gumas operações de comunicação que determinadas igrejas protestantes históricas1
realizam no sentido de fazer frente aos processos de midiatização da sociedade, ou
seja, busco formular um conjunto de categorias de análise que permitam explicitar os
modos como essas igrejas pensam a comunicação e a realizam por meio de acopla-
mentos sistêmicos de dispositivos de comunicação e dispositivos midiáticos, obser-
vando aí lugares de co-operação e de resistências.
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Os critérios que utilizei para a definição das igrejas pesquisadas foram os seguintes: a) tempo de
atividade no Brasil (mais de cem anos); b) número de membros (mais de 300 mil); c) presença em pelo
menos três das cinco regiões do país; d) existência de uma organização nacional com sede e direção
central; e) confessionalidade fundamentada nos princípios teológicos da Reforma (por exemplo, a
autoridade da Bíblia e a salvação pela fé); e f) no caso de uma denominação ter sofrido processos de cisão
no Brasil, a escolha recai sobre o tronco original. Assim, ao todo, são quatro as igrejas protestantes que se
enquadram nesses critérios: Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil (IECLB), Igreja Metodista (IM) e Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) . Os critérios
“a”, “b” e “c” visam estabelecer a historicidade, a representatividade populacional e a representatividade
geográfica dessas igrejas no país; o item “d” refere-se à qualidade das igrejas de terem uma voz oficial,
que chancela os discursos reguladores e zela pela unidade eclesiástica; o item “e” contribui para a
definição da identidade protestante histórica; o item “f” serve para valorizar o aspecto original das igrejas
em sua continuidade histórica.
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Tais pesquisas, situadas historicamente, estão centradas em pelo menos três tipos de abordagens: foco
sobre os meios ou nas tecnologias midiáticas, tendo a comunicação como transmissão; foco sobre os
sujeitos da comunicação, enfatizando a comunicação como processo dialógico; e, mais recentemente,
sobre os processos midiáticos, abordando o tema da interface entre mídia e religião como uma
problemática de midiatização da sociedade, como trabalham, por exemplo, Fausto Neto, Gomes,
Hartmann, Sierra, Gasparetto, Bonelli, Behs entre outros)
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Ele não se refere às igrejas protestantes históricas.
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reflexão também sobre o próprio modo como as igrejas históricas se modificam e atu-
am na sociedade contemporânea midiatizada.
A partir disso, e tendo em vista as diferentes estratégias utilizadas pelas novas
religiosidades e pelas igrejas históricas na sua relação com o campo midiático, a com-
plexidade dos processos de midiatização do campo religioso e a tentativa de encontrar
razões comuns ao conjunto de igrejas para que façam uso de dispositivos comunica-
cionais, entendo que elas buscam na mídia realizar três objetivos principais: 1. obter
visibilidade na esfera pública; 2. difundir valores; e 3. estabelecer (e manter) vínculos
com seus públicos. A presença das igrejas na mídia, portanto, implica em realizar a-
ções que se relacionam a valores, visibilidade e vínculos. Cada uma destas razões
leva a jogar com estratégias midiáticas específicas, mas que se afetam mutuamente
no conjunto. Para as mesmas razões, contudo, são utilizadas estratégias midiáticas
diferentes de acordo com a lógica que orienta a midiatização das igrejas: ou seja, na
economia do contato prevalecem estratégias que valorizam a contagiabilidade. Na e-
conomia do contrato, estratégias que implicam em contratualidade4 (Fausto, 2004).
Cabe, ainda, observar que além de estratégias midiáticas, as igrejas buscam inserir-se
em outros campos sociais, consolidando ações políticas, sociais, econômicas, educa-
cionais, para citar algumas. Mas é a presença da religião na mídia que dá sentido e
organiza estas ações. Portanto, a própria midiatização funciona como uma estratégia
de legitimação e reconhecimento destas inserções nos demais campos sociais.
Tais estratégias encontram lugar em três conjuntos de dispositivos comunica-
cionais das igrejas, a saber, um conjunto de dispositivos de valor, um de visibilidade e
um de vínculos. Nos itens seguintes procuro qualificar essas categorias, o que vai
permitir analisar de forma mais sistematizada a relação entre protestantismo e mídia e,
mais especificamente, entre discursos sobre comunicação e práticas midiáticas das
igrejas.
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As estratégias das novas religiosidades e das igrejas históricas são divergentes entre si, basicamente,
quanto à lógica com que operam: por contato para as primeiras, com ênfase na forma, e por contrato para
as segundas, com assento sobre o conteúdo. As novas religiosidades midiatizadas operam segundo a
lógica do “contato” ou “contágio”, isto é, uma “economia do contato que enseja a seus praticantes não
apenas muita coisa para escutar, mas ‘algo’ a mais para olhar, tocar e sentir” (Fausto Neto, 2004: 60). As
igrejas históricas por seu lado, operam segundo uma lógica do “contrato” , ou seja, por uma economia
centrada em suportes racionais, éticos e que visam ao engajamento a determinados valores e dogmas.
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Jacques Aumont (1995) caracteriza o dispositivo como meios e técnicas, que têm modos de circulação e
reprodução, estão acessíveis em determinados lugares e apresentam certos suportes que servem para
difundi-los. No jornalismo, os dispositivos são lugares materiais e/ou imateriais nos quais se inscrevem
(necessariamente) os textos (linguagem icônica, sonora, gestual etc...). O dispositivo tem uma forma que
é sua especificidade, em particular, um modo de estruturação do espaço e do tempo. O dispositivo é
também uma ‘matriz’ que impõe suas formas aos textos (Mouillaud, 1997). “Quando tratamos do midium
de um gênero de discurso, não basta levar em conta seu suporte material no sentido estrito (oral, escrito,
manuscrito, televisivo etc.)... é necessário partir de um dispositivo comunicacional que integre logo de
saída o midium. O modo de transporte e de recepção do enunciado condiciona a própria constituição do
texto, modela o gênero de discurso” (Maingueneau, 2001: 72 apud Ferreira, 2002).
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“A experiência compreende um conjunto de saberes formados de crenças firmes, fundamentadas no
hábito... Parto da hipótese de que os saberes da experiência são inalienáveis, uma vez que não podemos
prescindir deles, embora não possam ser fundamentados racionalmente por proposições científicas de
natureza apodíctica” (RODRIGUES, 2000).
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Analisei até o momento alguns documentos das igrejas Luterana, de Confissão Luterana e Metodista que
correspondem, respectivamente, ao artigo 75 do Regimento Interno, ao Documento da Política de
Comunicação e ao item Comunicação do capítulo III – as Bases da Ação Missionária – do Plano Nacional
2002-2006. Quanto às práticas comunicacionais midiáticas das igrejas, detive-me no reconhecimento
preliminar, do programa radiofônico A Hora Luterana, de Cristo para Todas as Nações, da Igreja
Luterana; do programa radiofônico Um Olhar para o Vale, da Igreja de Confissão Luterana, e do jornal
mensal Expositor Cristão, edição de abril de 2007da Igreja Metodista.
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analisando e que aqui apenas refiro sem citá-los – apresentam tendência a valorizar a
dimensão sócio-antropológica da comunicação. Comunicar é da própria natureza da
Igreja e refere-se, sobretudo a processos dialogais, onde a transmissão da mensagem
evangélica é o que constitui a natureza comunicacional da igreja. Nesse sentido, não
há diferenciação entre comunicação e mídia. A mídia é apenas mais um modo de se
comunicar. É esta dimensão, construída a partir do campo religioso, que procura so-
bredeterminar as demais dimensões semio-lingüística e tecno-tecnológica. Ela é tanto
mais forte quanto mais o conceito de comunicação das igrejas ignore o midiático. Ao
mesmo tempo, quanto mais o midiático invade o campo religioso, mais aquela con-
cepção tende a sofrer os acoplamentos, em maior grau da dimensão técnica-
tecnológica e, em menor, da semiolingüística. Aliás, os sentidos e os discursos midiá-
ticos são acolhidos apenas como mensagens e parece que se mantém ainda para as
igrejas a idéia de que a mídia apenas transmite mensagens, ou seja, que os meios são
instrumentos.
A análise das práticas/obras mostra que elas se articulam fortemente com os
valores das igrejas, o que confirma a relação instrumental da igreja com os meios.
Nesse sentido, as obras correspondem aos discursos. Mas é possível observar mar-
cas de uma lógica da mídia que escapa ao controle eclesiástico, as quais precisam ser
melhor qualificadas, como por exemplo, a temporalidade, que realiza mudanças nos
modos de discursividade das igrejas.
Resulta dessa observação que, aparentemente, quanto mais o discurso regu-
lador é fechado num tipo de comunicação de sentido interacionista dialógico ou mes-
mo informacional, mais as obras midiáticas são abertas ao extra-eclesial. Por outro
lado, quanto mais o discurso das igrejas procure abranger os vários aspectos da co-
municação social, mais intra-eclesial são as obras midiáticas. Essa suspeita deve ser
investigada com profundidade em outras obras, no decorrer da minha pesquisa. O que
transparece, contudo, é que as obras são condicionadas pelos valores eclesiais, sem
o quê não seriam obras midiáticas das igrejas. Mas também que os dispositivos midiá-
ticos tendem a ser tomados como extensão dos dispositivos comunicacionais de valor,
de visibilidade e de vínculos acima qualificados. Caracterizam-se, portanto, como pro-
cessos de acoplamentos sistêmicos mútuos e dinâmicos.
A análise permite suspeitar que tais dispositivos constituem, cada qual, siste-
mas de operações e de percepção a partir do habitus condicionado pelas condições
de existência de cada igreja, condições estas que são discursivas, mas também soci-
ais e tecnológicas. Estes dispositivos sofrem acoplamentos diversos e oferecem resis-
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tência aos dispositivos de mídia que as igrejas instituem para alcançar os seus objeti-
vos, quais sejam, os de propagar os seus valores, estabelecer vínculos e obter visibili-
dade na esfera pública.
A midiatização, portanto, ocorre quando os processos midiáticos, através de
dispositivos midiáticos, operam diferenças nos demais dispositivos das igrejas, por
meio de operações auto e heterorreferenciais mútuas. Os dispositivos, nessa perspec-
tiva, embora não prescindam de sua materialidade, são mais do que ela, porque se
produzem por meio de acoplamentos sistêmicos; são produto e produtor da lingua-
gem, da sociedade e da tecnologia. Esse processo reconfigura também as próprias
igrejas, modificando as relações de poder dos agentes internos (sacerdotes e leigos) e
alterando as interações entre as instituições religiosas concorrentes e o campo dos
mídias.
A observação dos discursos das igrejas sobre comunicação, portanto, revela as
marcas dos dispositivos eclesiais de valor, visibilidade e vínculo. Nas obras, vê-se os
processos de “contaminação” desses sistemas de percepção pelas operações de va-
lor, de visibilidade e de vínculo realizadas pelos dispositivos midiáticos do campo reli-
gioso. As obras midiáticas são percebidas como produtos da mídia, ainda que os a-
gentes do campo religioso, por meio dos dispositivos eclesiásticos, procurem regular
essas práticas.
Resulta assim que, na circulação das informações no sistema – na comunica-
ção – as condições de existência das igrejas se modificam, produzindo alterações no
habitus religioso. O habitus modificado produz, por sua vez, práticas e obras distintas,
bem como altera a percepção delas. Nesse processo espiralado, o próprio campo reli-
gioso e as igrejas em particular são outra coisa que aquilo que seriam sem a interfe-
rência dos processos midiáticos. É nesses processos de autopoiesis, a partir de ques-
tões que fazem sentido, que a midiatização vai penetrando as instituições religiosas,
ainda que elas tomem esses processos com reticências e resistências.
Desde o primeiro século, a Igreja tratou de ser comunicação, valendo-se para
isso de dispositivos como as cartas dos apóstolos, as imagens como a cruz e os pe-
quenos encontros em casas de famílias. As escrituras, a simbólica e a comunhão são
três dimensões da comunicação da igreja. Essas três dimensões referem-se ao que
tenho abordado como dispositivos comunicacionais de valor, de visibilidade e de vín-
culo. Nesse artigo tentei explicitar essas categorias e colocando-as em relação com
dispositivos midiáticos, me levam agora a perguntar, com Hoover (1997), que religião
é essa que emerge da mídia. Mas também, no caso do protestantismo histórico brasi-
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