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Os olhos dos capitais no mercado da água

Afranio Campos

O fato da crise financeira mundial se dá em uma dimensão nunca antes vista, numa
dinâmica extremamente rápida, se tornou preocupante, tanto para grandes investidores
privados, via setor financeiro-bancário, como para o mercado real ou produtivo; o que
diferencia a situação atual da crise de 1929. Com a globalização tudo se interliga, de forma
integrada e aceleradamente, o que “empurrou” os Estados nacionais e seus governos a
colaborar entre si, através de um processo de discussão no tratamento das grandes questões
econômicas e financeiras sob pressão da sociedade forçando a abrir espaços para o
conhecimento do mundo e a intervenção concreta em problemas que antes não eram vistos
ou eram relegados ao segundo plano, ou sem se dar a devida importância; abriu-se a caixa
preta da "questão ambiental" para quem quer que seja, em sua grave situação.

A busca de nichos para investimentos proveitosos pelos capitais transnacionais que


procuraram escapulir da crise financeira, definindo suas prioridades de lucro, já denotam
interesses específicos pelos recursos ambientais que ofereçam segurança e permanência de
retornos num horizonte de longo prazo; e que tragam a satisfação dos seus interesses,
sobretudo, que estejam fora da malfadada área de abrangência dos mercados de dinheiro
fictício (podres, derivativos), bastante abalados, mas sem fronteiras em sua amplitude
sistêmica.

Os recursos hídricos, que há algum tempo já faz parte da agenda dos governos enquanto
bem econômico, antes, um direito da humanidade, bem de uso comum, bem ambiental, bem
essencial à vida; esse recursos, estão no centro das discussões sobre dominialidade,
precificação, onde a sua tutela por parte do Estado se configurou como essencial na
confiabilidade do modelo. A definição de instrumentos de gestão passa a sustentar-se sobre
a teoria econômica tradicional e a valoração do tipo de uso, consumo e poluição dos
recursos hídricos vem objetivando a sua preservação e formas de uso racionalmente
sustentável que estabeleçam uma possível harmonia e eficiência do emprego desses
recursos com o meio ambiente. O quadro que se firma torna-se cada vez mais favorável a
consolidação desse mercado ainda que efetivamente não se enquadre nos padrões da
economia de mercado.

A busca de mercados rentáveis e seguros a médio-longo prazos despertaram o interesse


dos investidores especulativos em tempos de crise financeira. E o que parece obvio, não só
para os mortais, mas fica patente para os “capitais à deriva” no mundo, é que eles partiram
em busca de um outro tesouro no fim do arco-íris: os recursos hídricos, ou melhor, a água.
Os olhos de cifrões estão voltados para o recente e imberbe mercado da água. Água, bem já
escasso na maioria dos paises, em conseqüência do modelo de desenvolvimento e consumo
excessivo adotados na extração dos recursos naturais, que foram utilizados em demasia, e
inadequadamente, até a completa exaustão, diferentemente dos países que naturalmente
possuem recursos hídricos ainda abundantes. Particularmente, no caso de países como o
Brasil, só na última década vem empregando esforços na regulamentação da exploração do
meio ambiente e dos usos múltiplos dos seus recursos hídricos: através da criação de leis,
da ação das agências reguladoras ou na aplicação de investimentos vultosos na formação do
mercado da água.

Destarte, esse é justamente o tipo de mercado que parece contrariar os pressupostos da


teoria econômica, apesar do Estado proporcionar legal e financeiramente sua ordenação,
seja como gestor de políticas públicas e na implantação de projetos em tecnologias limpas
para o setor, seja através das outorgas (concessões, permissões etc), delegatários agindo em
parceria, usuários, representantes da comunidade das bacias (Parlamento das Águas).
Entretanto, o que no mercado tradicional, o preço, se constitui como o termometro das
preferências dos consumidores, e o fator importante na equação da valoração econômica
dos recursos hídricos, nesse caso, se torna mais uma variável do modelo, embora sem o
destaque costumeiro dos fundamentos da teoria neclássica:

"Está fora do interesse dos investidores assumir diretamente a responsabilidade


por entregar a água e taxar o consumidor final. Isso porque, em geral, os
governos subsidiam as tarifas, já que a água é um bem vital. 'O governo precisa
da água, então pagará qualquer valor para quem a tornar disponível', avalia
Tara[1]. 'Porém, a água em si continuará sob controle do governo. Então, o preço
da água em si não é o melhor investimento'.

As novas tecnologias devem oferecer ainda bons ganhos para tecnologia que
ajudem a reduzir o consumo excessivo de algumas áreas da economia. É o caso
da agricultura, o campeão setorial, que usa grandes volumes para irrigação. Um
exemplo ilustra o desafio: para a produção de um bife de um quilo de carne
bovina são necessários 16.000 litros de água,segundo dados do Instituto para
Educação sobre a Água, da Unesco"[2].

Aqui, corre-se o grande risco desse empenho social e do Estado cair na desmoralização, ou
até na grande perda dos frutos oriundos do processo de criação do mercado da água,
representado por uma possível corrupção dos princípios originais, ou com a captura dessa
estrutura por parte do lobby “privativista” dos grandes capitais, sobretudo sustentados pelos
conhecidos fundamentos das leis de mercado de produtos e serviços.

O Estado ao criar as agências de água balizadas por regras pré-estabelecidas em critérios


da economia de mercado, para o setor, tem buscado há mais de uma década (Política de
Meio Ambiente e Política dos Recursos Hídricos) a obtenção de resultados que assegurem
seu papel na estruturação do mercado da água, mercado esse, reconhecidamente singular
diante das leis econômicas tradicionais; até então, as Agências de Água não tem
demonstrado a eficiência esperada na consecução de seus objetivos: apresentam-se
deficitárias diante da necessidade dos vultosos investimentos exigidos, bem como no
controle efetivo dos conflitos sócio-ambientais entre os usuários dos recursos hídricos, o
que ocorre em função da sua natureza de bem difuso, bem de múltiplo uso, etc.

Aparentemente, reconhece-se que o momento é bastante propício para capitais


aventureiros se voltarem para o mercado da água, afinal, ao se criar a experiência de um
“mercado misto” da água, isto é, nem privado nem público, sob a égide dos fundamentos
das leis econômicas do mercado privado, e por outro lado tutelado pelo Estado através de
leis específicas que dão credibilidade ao seu funcionamento, abriu-se um laboratório para o
ensaio de algo inovador, sendo operacionalizado sobre princípios claros da preservação
ambiental por intermédio das agencias reguladoras; a diferença para nós, é que talvez possa
funcionar por mais algum tempo com seus objetivos ético-sócio-ambientais historicamente
distintos dos mercados lucrativos, agora transacionando os recursos hídricos através de
preços públicos; e que ainda logramos pensar, continuar intocado pelo inevitável "toque de
midas" capitalista.

Uma questão fica para o debate: o que poderá evitar a socialização das externalidades
negativas ou prejuízos sócio-ambientais, sem privatizar totalmente os benefícios?

[1] Kimberly Tara, da empresa que gerencia investimentos FourWinds Capital Management.

[2] Ciência e saúde, Planeta. Investidores já estão de olho no mercado da água. Veja On-line. 19 de março de
2008. http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia-saude/investidores-ja-estao-olho-mercado-agua-333262.shtml

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