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SENHORES PRESIDENTES
PRÓLOGO
Sumário
I Escritório e Bunker...................................... Página 07
VI O Jornalista.................................................. Página 34
Pode se dizer dos homens o seguinte: são ingratos, volúveis, simulam o que não são e
dissimulam o que são, fogem do perigo, estão ávidos de ganância. E, enquanto lhes
fazes favores, são totalmente teus, te oferecem o sangue, os bens, a vida e os filhos,
quando a necessidade está distante; quando esta se aproxima, te viram a cara. Os
homens esquecem com maior rapidez a morte do seu pai que a perda do seu
patrimônio. A natureza dos homens é contrair obrigações entre si, tanto pelos favores
que fazem como pelos que recebem.
Nicolau Maquiavel
I
Escritório e Bunker
O misterioso sumiço desafiou os cientistas por séculos e séculos até que uma
bióloga molecular com doutorado em Física, [Pouco abaixo, Filosofia está com inicial
maiúscula] rompendo os limites das ciências tradicionais, revelou o segredo do
Dictyostelium Discoideum. Revelou o meu segredo. Nada desapareceu do pedaço de
madeira. Em tempos agradáveis, as células do DD passam a maior parte de sua vida
andando cada uma por si e, quando o ambiente é hostil, elas se juntam. O DD é como
um fantasma. Eu sou como o DD. Me auto-organizo. Desapareço e apareço de acordo
com o clima político. Não tenho líderes. E não sou liderado.
– Sei que leu tudo, e em italiano. Basta! – disse o professor cortando a longa
série de obras do teórico marxista que a mulher havia lido centenas de vezes em
italiano. E de ter trechos enormes bem decorados. Longos e cansativos textos. Antes de
a mulher começar as citações, que só terminariam na porta da Faculdade de Ciências e
Letras, ele declamou como se quisesse que eu ouvisse. E reagisse.
– Odeio os indiferentes.
Acredito que viver
significa tomar partido.
Indiferença é apatia,
parasitismo, covardia.
Não é vida.
Por isso, abomino os indiferentes.
Desprezo os indiferentes,
também, porque me provocam
tédio as suas lamúrias
de eternos inocentes.
Vivo, sou militante.
Por isso, detesto
quem não toma partido.
Odeio os indiferentes.
– Você inventou esse poema – gritou a moça. – Só para me irritar agora pela
manhã, porque sabe que eu abomino o realismo socialista. Você sabe que Lukács já nos
ensinou que a arte, como forma de conhecimento, não pode ser reduzida a um cálculo
político efêmero.
– Sartre, hein? [hein ou hem; não heim] Por que você não cita, com sua sublime
sabedoria seu amado Jean Paul, dizendo que o intelectual deve impedir o homem de se
alienar ou se resignar?
Concordo com ele e com Gramsci, ninguém pode se resignar ante as interrogações do
eu diante do mundo que o envolve.
– Você se refere a este velho louco aí? – e apontou com um displicente dedo
indicador em minha direção.
pior é que, quando me vê, pensa logo como a jovem filósofa: “Mais um doidão em São
Paulo. Esta minha cidade dá de tudo”. Eu é que sou louco!
Não consigo adivinhar, com algum grau de precisão, o que mais passa pela
cabeça de milhares de pessoas que cruzam comigo todos os dias. Acho que algumas –
talvez até muitas – gostariam de ser tão malucas como eu. Criar e viver em seu próprio
mundo. “Delícia de mundo o deste velho”, diria quando, no congestionamento, tivesse
tempo suficiente para pensar sobre a minha, e a sua, condição humana vista por da [ou
pela] janela entreaberta de seu confortável carro.
– Ficou doido de tanto ler, não foi? – perguntou uma doutora, provavelmente
neurocirurgiã do Sírio Libanês.
Ela, cartesiana, pensaria consigo mesmo que: li Sartre e Nietzsche quando tinha
12 anos; dissequei Hegel aos 14; bebi em Schopenhauer aos 15; estudei Filosofia na
Sorbonne e Física Quântica no MIT; e me dediquei, por cinco anos, a uma dissertação
de mestrado sobre a importância dos vírus e bactérias para a manutenção da biosfera.
Enfim, concluiria que minha tese de doutorado, 10 com louvor e distinção, esgotou o
tema “O Desenho dos Sistemas de Comunicação Natural” e que a publiquei em um
livro de 760 páginas editado pela MIT Press, de Cambridge, Massachusetts.
Ao chegar a este ponto, o final da reflexão dela só poderia ser este: “Ele
endoidou muito cedo, jovem ainda, quando brigou com os ambientalistas. Briga feia.
Não queria defender mico-leão, baleia, nada! Queria criar um movimento para deixar a
Terra para uma archaebactéria de três bilhões, quatrocentos e vinte e sete milhões,
seiscentos e vinte e dois mil e quatrocentos e sete anos. E que os defensores do meio
ambiente passassem a usar, em sua comunicação diária, a linguagem não humana dos
animais”.
Erraria em sua digressão, a sábia doutora. Bem que eu gostaria de ser um louco
assim. Afinal, estudo a Dialética Hegeliana a fundo; pratico em meu dia-a-dia a Teoria
dos Jogos; apoio, nas discussões acadêmicas da Fecap, a Nova Síntese Darwinista; e já
percorri os caminhos da Lógica da Pesquisa Científica com Karl Popper. Mas isso não
me fez doido. Ao contrário. Estudar era e é como consigo relaxar antes de dormir. Às
nove da noite, por exemplo, começo a ler Maynard Smith e, às nove e meia, quando
muito às 10, adormeço e sonho como uma criança de três anos. Acordo sempre às
quatro da manhã. Disciplina férrea. Esta rotina só se quebra quando eu tenho
compromissos sociais. Infelizmente, muitos.
Minha cabana, que fica logo atrás da poltrona onde agora me vê sentado com a
BiC na mão, o intriga. Feita de plástico negro, parecido com o usado nos sacos de lixo
de 100 quilos de sua casa, é comprida, Porque tenho quase dois metros de altura, e
baixa. Está curioso para conhecer seu interior: minha cama; como eu durmo; se não
sinto falta de ar; se entra água quando chove; ou se é quente demais nos dias de verão
de 37 graus, quando não há vento e aquele mormaço que precede as tempestades o
incomoda aí no interior de seu carro. Hoje é um desses dias. Sua camisa está molhada
de suor e você quer chegar logo ao escritório de sua empresa para refrescar-se em um
generoso ar condicionado: 21 graus.
Saberá o quão bobo está sendo ao fazer ilações desse tipo. Quando terminar de
ler estas linhas, a princípio tão disparatadas, ficará surpreso. E pode até soltar um
palavrão: “Este filho-da-puta!...”. Mas seja paciente – mesmo que só por educação e
gentileza com este velho escriba de um só manuscrito. Vou satisfazer a sua curiosidade.
O tamanho de minha cama não deve lhe importa. Nem um pouco. É apenas um pequeno
detalhe.
Também não ligo para o conforto da cadeira amolfadada, que ganhei de uma
vizinha, a dona dos terrenos onde foram construídos os primeiros edifícios, com
apartamentos de milhões de reais, entre a Fonseca Rodrigues e a Marginal, tendo ao
fundo o Parque Villa-Lobos. A poltrona lembra o trono de um decadente rei português.
Ou quem sabe veio direto da Escola de Sagres e nela se sentava o Infante. O
desconforto que sinto ao ficar horas e horas sentado a escrever e o pequeno espaço que
tenho na cabana nunca me incomodaram.
O que me incomoda mesmo é este cheiro de podridão que sobe das águas do Rio
Pinheiros quando começa a chover em sua cabeceira. Nem mesmo sei se ele ainda tem
cabeceira. O que sei, sim, é que fede e muito. O mau cheiro entra em minhas roupas,
nos meus cabelos e penetra em minha pele. Nauseante. Fica por horas e horas dando
voltas em volta de mim, como diria o paulistano Adoniran Barbosa. Envolve, como uma
redoma, este meu escritório no canteiro central da avenida. E estou a mais de
quinhentos metros do rio.
Você, parado no congestionamento nesta hora, bem a meu lado, liga o ar-
condicionado. Sei que de pouco vai lhe adiantar, porque só se lembrou de ligá-lo
quando o fedor já havia impregnado os bancos, o estofamento, o volante... Se abrir a
janela, aumenta o cheiro fétido. Se a mantiver fechada, terá de conviver com o nojento
odor de enxofre até chegar ao trabalho. Ou aonde for.
II
Serial Killer
Chegou o momento oportuno para lhe confessar que uso meu escritório não só
para escrever este manuscrito que você lê agora com certa dose de desconfiança. “Por
quais caminhos este alienista está a me conduzir?” Pois bem: saiba que é aqui onde eu
preparo meus planos de morte. Gosto de matar. Gosto muito de matar homens. Adoro
Gosto muito de matar homens poderosos. Mais ainda, Gosto muito mesmo de matar
presidentes. Aliás, revelo com antecedência – o que não deveria fazer para conseguir
manter sua atenção até a minha última frase deste manuscrito – que minha paixão
mesmo é assassinar chefes de Estado brasileiros.
Por isso, sou obrigado a concordar com seu argumento e reforçá-lo dizendo que,
até agora, os filósofos vêm tentando chegar, sem resultados, a um único sistema ético
defensável e universal. Pode começar pelo velho Platão, passando por Hobbes e
Nietzsche até chegar a Kant e aos modernos John Rawls e Daniel Dennett e jamais terá
condições de dizer se o que eu faço, matar políticos poderosos, é o certo ou o errado.
Quando muito dirá que sou um fiel seguidor do russo Bakunin, um terrorista de direita.
No que estará mais uma vez equivocado.
O que escrevo em meu manuscrito vai convencê-lo de que sou “um louco
pirado” e que, por isso, fui parar aqui no meio desta avenida Fonseca Rodrigues,
cercado por livros “nada a ver” e pelo lixo de sua grande cidade. Um pouco de
paciência poderá levá-lo a concluir o contrário. Eu me considero parte do organismo do
grande animal chamado Leviatã. Mas é importante lembrar que, como ser vivo, este
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
Organismo é multicelular, tendo suas células hospedeiras, aquelas que formam o bico, a
asa, o nosso dedo indicador e o polegar. Elas cooperam porque foram programadas para
isso, como aqueles foguetes teleguiados dos tempos da Guerra Fria – lembra? – e jamais
verá o seu indicador brigando com o polegar. Ou as orelhas atuando como uma gang
contra as mordomias dadas ao cabelo, principalmente pelas mulheres. Ou uma
paralisação, greve mesmo, dos músculos peitorais porque você só coça as suas costas.
Eu, assim como você ou qualquer pessoa, não agimos no Organismo como
células hospedeiras, aquelas que têm, como os mísseis teleguiados, o seu destino
programado, desenhado, com antecedência. Eu sou um míssil autoguiado. Podemos
fazer um acordo, romper este mesmo compromisso, trair, conspirar para que você morra
e depois brigar com meus aliados e juntar-me novamente à sua companhia para derrotá-
los. Posso tudo. E a qualquer momento. Eu decido, eu faço a hora. Como poderia dizer
Caetano e Gil, o grande animal já me deu régua e compasso para resolver os dilemas
que enfrento da maneira que julgar melhor.
Não sou um defensor das abomináveis teorias dos sociólogos darwinistas que
justificam e acham natural a pobreza, a miséria e a falta de educação de alguns e a
riqueza e prosperidade de outros. Eles consideram tudo isso normal, fruto do desígnio
ou da maneira de agir da Mãe Natureza que seleciona os mais capazes. Certa vez, um
ministro de Desenvolvimento Social, entre uma bicada na tequila e um copo de Brahma,
me acusou de achar natural uma pessoa morrer jovem, pobre e faminta e o mais forte
dominar o mais fraco. Os darwinistas sociais disseram isso. Mas eles são tão cegos
quantos os fundamentalistas religiosos que têm em Deus o equivalente à Mãe Natureza,
Aquele que justifica a miséria, a morte de crianças, a crueldade, a tortura, como nos
tempos da Inquisição.
Cheguei à conclusão e vou tentar provar que os donos dos grandes meios de
Comunicação, um Murdoch, por exemplo, são células visitantes diferenciadas. Estando
acima do Organismo do Leviatã, do Estado e da Nação, porque ambos são moldados
pelas informações transmitidas pelos Meios. E quem decide quais informações
transmitir sãos os Murdoch, que dão vida e movimento a esta máquina coletiva de
sobrevivência projetada para defender seus cidadãos.
Mas o Cidadão Kane existiu de quando não havia A Rede, este novo sistema de
comunicação que une corações e mentes de todo o mundo sem o controle dos donos dos
meios, que hoje devem estar perdendo noites e noites de sono para tentar dizimar os
concorrentes: eu, você e pessoas de todo o mundo que passaram a ter seu próprio jornal,
TV, revista, filme, livro, quadro, fotografia e livro, [duas vezes livro mesmo? De
propósito?] científico e literário. Tomaram o lugar dos publichers, os donos dos meios
que decidiam aquilo que podia e não podia ser consumido. Os que davam o moderno
nihil obstat. Os que decidiam quais ideias (memes) podiam ou não ser divulgadas.
Mais tarde, leitor deste meu manuscrito, você entenderá o por que gasto como
um frenético louco a pele de meus dedos que prendem o lápis [lápis? Era BiC!] onde
faço estas anotações, deixando-a quase em carne viva, para explicar os motivos que me
levaram a ser um serial killer de políticos poderosos e de liderar uma nova cruzada para
acabar com a anarquia gerada a partir da descoberta invenção da Internet.
Até agora o grande animal chamado Sociedade Mundial está domado pelas leis
criadas de cima para baixo. Um grupo de revolucionários quer virar e mesa e unir criar
forças que agem de baixo para cima para criar novas maneiras democráticas ou
anárquicas e irresponsáveis como penso de controlar o certo e o errado. O velho Leon
Trostky, morto a machadadas no México, deve estar dançando no túmulo ao ver a
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
Estive tão absorvido em desenvolver minha teoria, que não vi o tempo passar.
Mal sei se fiquei escrevendo por horas ou por dias inteiros, pois tive, a todo o momento,
que parar para pensar sobre minhas antigas leituras, para alinhavá-las, ter algo coerente
para colocar no meu manuscrito. E coisas modernas, como A Rede, exigem um esforço
sobre-humano de um Velho para ver e entender a Revolução que está acontecendo bem
à sua frente. Entender a convergência de vídeo, áudio e texto me custa demasiado. O
indivíduo vai receber, em tempo real e num único aparelho, absolutamente tudo: o
último filme de Spielberg, a última notícia, o quadro recém-pintado em Madagascar, a
música lançada no aqui e agora pelo Eminenem... O Universo tradicional da Mídia está
sendo rompido, violentado, e não quero ser visto como um carcamudo conservador.
Quero estar na frente desta onda para restabelecer o equilíbrio estrategicamente estável.
Quero ser o provedor.
O motorista que me olha neste instante vê meus olhos brilhando, meus gestos
descontrolados, como os de um maestro de uma sinfonia anárquica. Seguramente pareço
um louco bravo. Ele, ao que tudo indica, deve estar com medo de que eu saia daqui para
assassiná-lo num acesso da mais completa loucura. O velho manso que passa o tempo a
escrever este manuscrito dá lugar a um outro ser, antagônico, raivoso, guerreiro,
criminoso e cruel. As Gotas de suor caem de minha testa, meu chapéu redondo, feito de
papel jornal, está a desmanchar-se, meu corpo sofre convulsões incontroláveis, como as
de um epilético.
III
Questão de Estética
Entre os quatro não incluo uma assistente social da Prefeitura, senhora gordinha
de seus sessenta anos e de fala mansa. De mês em mês, senta-se a meu lado, numa
cadeira de praia que tira de dentro da Kombi da Prefeitura, insistindo, por horas a fio,
para que eu me mude para um albergue municipal.
Os argumentos que usa são banais, de apedeuta: que o lugar é perigoso por causa
dos assaltantes; que poderia pegar doença e morrer porque eu já estava um pouco
bastante velho; que preciso de um mínimo de conforto pessoal, tomar banho porque dá
para sentir meu cheiro de longe; que devo escovar os dentes diariamente; e que há praça
não é lugar para fazer cocô, como os cachorros de raça do bairro. Mulher extremamente
chata. Irritante. Sempre ia embora a balançar a cabeça sem conseguir esconder
contrariedade por não ter conseguido me convencer a deixar o escritório.
Sei muito bem que já cheguei aos oitenta neste ano de 2008. Definitivamente
não acredito que algum dia vos virei a faltar. Tenho um objetivo a ser alcançado: matar
o atual presidente da República. Mas sobre como e quando vou assassiná-lo, revelarei
daqui a pouco. Peço, de novo, que seja paciente comigo. Doido, quanto mais manso for,
maior é a complacência que faz por merecer, não é assim que pensa?
O executivo, baixo, calvo e com barba bem feita, cruzou a avenida, entre os
carros, com passos rápidos. Veio em minha direção, o que me assustou pois pensei que
poderia ser um dos homens da Abin. Educado, ao ponto de parecer tímido, olhou para
dentro dos meus olhos e vacilou como se estivesse avaliando se deveria ou não
conversar comigo. Ele, morador do Alto de Pinheiros, nunca tinha me visto falar com
qualquer pessoa. E eu não gosto mesmo de dialogar. Só comigo mesmo.
não lápis...] vermelha colocado entre o indicador e o maior de todos, e também olhei
nos olhos dele. Fiz um olhar de indiferença e de certa superioridade.
– Tenho passado aqui dezenas e dezenas de vezes e vejo sempre o senhor lendo e
escrevendo com disciplina por horas e horas.
– O senhor não existe. E existe. Inexiste para bilhões de pessoas que não o
conhecem nem conhecerão e existe, agora, para mim. – Respondi de maneira seca, dura
e ríspida. Ele olhou para mim parecendo mergulhado em profundos pensamentos.
– Mas eu gostaria...
– E quanto à estética ela jamais poderia ser estática. Basta que o senhor entenda
um pouco de dialética. Satisfeito? Ou quer mais? Todos aqueles que fazem arte, os que
escrevem romances e manuscritos como este meu, os que pintam, os que fazem música,
estão interessados numa única coisa: status. São como aqueles passarinhos que buscam
bugigangas coloridas para enfeitar o ninho e agradar a fêmea.
– Viva! O movimento é que define tudo. Eu, quando estou aqui, faço um
movimento. Não despreze a estética da Publicidade. Veja o que o Duda Mendonça fez
com o atual presidente. Ele já havia feito com o Maluf. Nizan Guanaes, puro gênio
também na propaganda política. Pena o Olivetto estar mais preocupado com o
Corinthians. Ele faria e desfaria presidentes, ministros e planos econômicos. – Ele disse
tudo isso aos berros. Fez das mãos um alto-falante. Eu virei as costas, para que ele não
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
me visse – e comecei a rir. Ainda deu para ouvir o desabafo final de um publicitário que
ficou possesso porque o negócio dele não mais existia, era estático:
Será que este louco pensa que eu disse uma verdade profunda ou se apenas falei
o que primeiro me veio à cabeça. Nunca mais voltou, embora morasse muito perto de
meu escritório. Eu, às vezes, penso nele e na resposta à primeira questão, aquela sobre a
estática estética. Abomino a Filosofia, só creio nas Ciências Exatas. Mas andei querendo
saber se a estética era mesmo estática. Quase encontrei uma resposta nas Teses de
Feuerbach revividas pela Escola de Frankfurt. Fiz uma busca profunda em minha
memória, relembrei Schopenhauer, Kant, Sartre, Adorno, Pinker e Chomsky e fiquei
sem uma resposta séria, consistente. Passei a carregar comigo o dilema de meu amigo.
IV
O Senhor Governador
Esquisito este Alto dos Pinheiros. Há muita inteligência nele. Deve ser por
causa da USP. Basta cruzar a ponte da Cidade Universitária para se chegar à principal
universidade brasileira. Dali saíram, direta ou indiretamente, quase todos os últimos
presidentes. Sem as bênçãos da Cidade Universitária Armando Salles de Oliveira,
ninguém governaria o Brasil. Democrático, claro. Os Murdoch paulistanos são os
responsáveis por transformar a filosofia uspiana em verdade única. Para isso usam seus
jornais, rádios e redes de TV.
Não tenho estilo. Nem quero ter. De novo a questão de estética estática!
Pretendo apenas narrar como matei seis presidentes – e como matarei o atual – numa
linguagem simples, sem sofisticação. Não sou Thomas Mann, Herman Melville ou
Anton Tchéhhov [Melhor Tchecov, não? Se mantiver Tchéhhov, tirar o acento]. Nem o
grande Bandeira ou seu sucessor Drummond. Jamais serei um Machado, o perfeito.
Menos ainda o sofrido Graciliano com suas frases de fazer morrer. Bem que gostaria de
escrever como Guimarães. Inventou uma nova bíblia, escrita num idioma que se parece
muito com o chinês – cada palavra é um conceito. Você deve ler e reler, ler e reler,
Grande Sertão em busca das verdades e inverdades. É uma heresia – e das grandes –
esta que cometo, induzindo-o a fazer comparações. Sei que você vai se perguntar: “Em
quem este maluco se inspirou para escrever este manuscrito e me fazer perder tempo
com sua leitura?”.
O governador, no seu jeito estranho de ser, deveria achar que eu era algum
profeta. Que eu saberia, na minha insanidade iluminada, dizer o que aconteceria nas
próximas eleições presidenciais. Meu desejo era o de que ele fosse escolhido, porque eu
tinha um dilema interno profundo se deveria ou não matá-lo. Ignorando os carros, como
se eles tivessem que parar para que ele passasse, o governador cruzou a pouco
iluminada Fonseca Rodrigues quase correndo, mais rápido foi do que o Executivo da
Salles, disse um seco bom-dia e disparou:
Levantei olhos de ternura e de cobiça para minha desejada futura vítima. Quem
sabe seria a última da série. Não que precisarei de forças para matá-lo. Os italianos nos
ensinaram, há muitos e muitos anos, uma maneira singela de acabar com uma vida
humana: uma pequena poção de veneno colocada disfarçadamente num copo de
guaraná. Às vezes esquecemos que nascemos cruéis matadores, que somos predadores
de um tipo especial porque pensamos que basta ver algo “assassinável” para que não
hesitemos um segundo para dar o golpe fatal e prazeroso.
– Você é surdo, meu senhor? – Por causa das muitas vezes que estivemos juntos,
me acostumei com aquela falsa indelicadeza. Agia assim porque era um homem muito
tímido. E achava que ao agredir esconderia sua maior fragilidade. Mas vamos à minha
resposta. Lembre-se que ele não sabia que eu já o conhecia.
pensar, não moverão uma palha pela candidatura da ministra. E, se fosse a escolhida,
nem eles mesmos votariam ou pediriam votos para ela. Seria derrotada.
– Faz um certo sentido. Mas quando lhe perguntei se o governador era eu, você
não respondeu de imediato. E o Aécio, o Sérgio Cabral, o Eduardo Campos...
– Será que você é mesmo maluco, meu senhor? – Ele voltou a me tratar
formalmente. Aproveitei a deixa para acalmá-lo.
– Você pensa que é louco? Imagina que é bruxo? Louco e bruxo neste País só
tem um. Eu!
V
Sinal Vermelho
A terceira visita que recebi foi a que mais me amedrontou. Estive perto do
pânico, pois dificilmente aquele homem deixaria de me reconhecer. Afinal, convivi com
ele ao longo de décadas e, até hoje, nos falávamos todos os dias e uma vez por mês
nossas famílias se encontravam para a feijoada de sábado. O presidente do Banco
Noroeste chegou ao escritório numa Pagero preta, blindada, com motorista, parou do
outro lado da rua, mandou o motorista embora, e cruzou correndo a Eusébio Rodrigues
em minha direção. Gelei. Pressenti que meus projetos para matar o atual presidente
estavam com os segundos contados.
O grande executivo que virou ministro do governo dos trabalhadores olhou fixo
para mim, correu a vista pelos velhos jornais, tentou ler sorrateiramente uma página do
manuscrito, colocou o dedo no queixo e fez um profundo esforço para tentar colocar os
pensamentos em ordem. Havia algo muito errado que não conseguia descobrir. Comecei
a suar frio. Fiquei de lado para dificultar o reconhecimento.
– Quem é o senhor?
– Um louco manso.
– Mas eu te conheço.
– É disso que estou falando. Sempre que passo e o vejo sei que nos conhecemos
de algum lugar. Há quanto tempo o senhor enlouqueceu?
– Leitor de bom senso, que abres curiosamente a primeira página d’este livrinho,
sabe, leitor celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou
revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil, que foi para ti que ele foi escrito –
se tens bom senso! – Passaram-se duas horas e o meu amigo só parava para acomodar-
se melhor no banco. Aproveitei para desaparecer. Quando voltei, não estava mais lá.
Nem ele, nem a coleção de Eça. Fiquei imaginando a cara dos motoristas me vendo
substituído por aquele senhor boa pinta, grisalho, terno feito na Itália e gravata francesa
de seda. Em cima de minha poltrona encontrei um bilhete escrito com meu lápis e um
cheque.
“Caro senhor. Envolvi-me com o Eça. Este era um dos poucos livros que eu
acreditava não ter lido. Mas a coleção sob a qual fiquei sentado tem 25 volumes e deve
haver pelo menos um ou dois que eu ainda não li. Junto com este bilhete deixo um
cheque de dois mil reais. Não sei se é o bastante para uma coleção que pode ser valiosa.
Se for mais, me avise pois sempre estarei passando por este seu escritório. Os bancos
nacionais se interessam muito por tipos como o senhor. E eu fui o encarregado de
acompanhá-lo., pois Quem sabe um dia o senhor será a atração principal em um de
nossos centros de cultura?”
Ele preferiu não assinar. Nem precisava. Gostei da ideia daquele meu amigo
maluco de me colocar como chamariz de público nos inúmeros centros espaços
culturais que os bancos estavam abrindo para justificar perante seus clientes os balanços
recheados onde nem espaço havia mais para esconder tanto lucro. Ainda bem, pois era
uma maneira de evitar a quebradeira que varreu grandes e pequenos bancos nos Estados
Unidos e Europa.
A quarta visita – conto rápido para que você não se canse, desista de ler meu
manuscrito, marque a página e nunca mais retome sua leitura ou me troque por um Eça
qualquer – foi do Barão de Itararé. Cabelos brancos eriçados formavam uma espécie de
bambuzal coberto de neve em volta de um campo vazio, a careca. Barba densa, cerrada
e toda branca. Olhos indomáveis como devem ser os olhos do último anarquista vivo.
Camisa com quatro bolsos, daquelas que os cubanos usam, e uma calça de linho
amarrotada cobrindo os sapatos e com a barra suja.
Conhecia bem a história do Barão. Aquele era o neto dele, tal a semelhança. O
personagem sentou-se ao meu lado e começou a contar histórias do Saci Pererê.
Histórias de não acabar mais. As horas foram passando, e eu querendo que fosse embora
porque teria que traçar os planos do assassinato.
Nunca entendi direito as minhas ligações com este anarquista. Deve ser porque o
conheço desde o início dos anos 70, quando ele era um dos organizadores sociais do
Sesc. e eu me interessei pelo trabalho que estavam fazendo. Até hoje, a semente
plantada há quase 40 anos vem dando bons resultados. É onde a classe média baixa
encontra um pouco de cultura, diversão e esporte.
Houve uma quinta visita, mas desta não tenho muita coisa para relatar: o maior
empresário brasileiro, homem de jeito simples, que gostava de andar a pé apesar de seus
mais de 80 e muitos anos, veio caminhando pela trilha de corrida do canteiro central da
Avenida Fonseca Rodrigues, desde a sede de uma de suas empresas na Praça Apecatu,
até me encontrar. Estivemos juntos nas últimas quatro décadas, mas esta foi a primeira
vez que eu o vi olhar para uma pessoa com tanto ódio nos olhos. olhar. Não disse uma
palavra, nem precisava. Senti-me fuzilado. Ele não deveria gostar de marginais como
eu. Era de uma família batalhadora do Nordeste do Brasil que construiu à custa de
muito trabalho um império industrial. Depois dos olhares assassinos, continuou sua
caminhada em direção a Pinheiros. Quando senti que estava numa distância segura e
que não me ouviria, disse:
– Vai logo, seu metido a besta. Votei e fiz sua campanha quando você quis ser
governador do Estado. Não merecia. Por isso perdeu para um caipira. Você não gosta do
povo como eu. De gente que pelas injustiças do mundo acabou à margem da sociedade,
tentando repensar um mundo novo, não aquele de Huxley, mas um em que não precise
mais de presidentes da República, governadores e prefeitos. Nisto eu até concordo com
o Barão de Itararé. – Devo ser uma espécie de anarquista diferente, pois me considero
mesmo um Dictyostelium Discoideum defensor da Teoria da Emergência. Não há nada
pior quando uma pessoa olha para você e não diz nada. Os olhares de menosprezo e
ódio doem em mim muito mais do que qualquer xingamento. Prefiro.
levando-os a caminhar de braços dados para fazerem o Brasil crescer por muito e muito
tempo. Marqueteiro sagaz que não merecia ser criticado por fazer tantas viagens ao
Exterior e agir, como um mascate, a vender os produtos brasileiros.
Uma história de amor impediu que fosse eleito bem antes. Não a que todos
conhecem. Outra. O candidato que disputava com ele o segundo turno da eleição para a
presidência levou para o último debate na TV, o que definiria a eleição, uma pasta azul.
Pediu a um empresário jornalista seu amigo que contasse ao dono da TV Excelsior que
a pasta continha segredos que implodiriam a candidatura de seu adversário: “Dentro
dela, doutor, tem umas fotos de Belém do Pará. As mulheres eram muito, mas muito
mesmo, mais bonitas do que Fafá”.
A notícia sobre as fotos da pasta azul correu de ouvido em ouvido até chegar ao
atual presidente. Na época do debate, disputava a Presidência pela primeira vez. A pasta
foi o bastante para que ele se desestruturasse. Quando chegou à bancada para o grande
debate, suava em abundância. Seus olhos eram os de um animal selvagem ferido. Um
tigre que nunca imaginou que tivesse adversário capaz de enfrentá-lo com armas tão
sujas.
Assim que a primeira pergunta foi feita, saiu batendo, sem qualquer
coordenação, em seu adversário. Parecia muito um Mike Tyson bêbado. Golpes fortes,
sucessivos, capazes de nocautear o grande Ali nos seus melhores momentos. Golpes de
opereta bufa. Não atingiam o fígado ou a cabeça do seu adversário. Perdeu feio o
debate. Muito feio. O debate e a eleição. E na pasta azul não havia fotos. Tenho certeza
absoluta de que estava vazia. Mais tarde o leitor entenderá por que tenho tanta
segurança no que estou a dizer. Peço, com humildade, paciência para eu poder explicar.
Eu, que me encontro com o atual presidente pelo menos uma vez por semana,
posso confirmar minha tese de que os simples pensam como os doutores. Não seja um
incrédulo, caríssimo leitor. Mas, antes de satisfazê-lo com uma digressão intelectual e
que levaria a uma cesura epistemológica, tenho que contar como será a execução fria e
calculada do hoje chefe de Estado.
Não que seja meu desafeto político. Tenho simpatia pessoal por ele. O que o
levaria fatalmente à morte é a paixão que tenho por matar presidentes e a paixão
desenfreada que ele passou a ter por minha filha. Mulher encantadora, apesar de seus 50
anos e dos quatro filhos. Estava separada do marido. Podia dormir com quem quisesse.
Sempre fez seu próprio destino. Estudou Economia na Alemanha, na Universidade de
Heidelberg, fez mestrado em Harvard e doutorou-se na Suíça, no MID.
Ela queria entender como o capitalismo de Estado do velho Mao Tsé-tung estava
conseguindo fazer a transição para o capitalismo moderno. Previa percalços sérios nesta
caminhada. Não sabia quais. Tinha que entender, dominar esta grande mudança, porque
apenas quem consegue ver longe sobrevive. Este era um dos princípios de vida de
Cecília. Não se cansava de repetir uma frase que leu num livro chinês: “Quanto mais
você estica o arco, mais longe a seta vai”. A doce Cecília assim completava o ditado
chinês: “... a seta vai e atinge a caça no coração”.
Os chineses recuaram quatro mil anos em sua História para traçar com exatidão
o rumo do país para a perpetuidade. Cecília estava segura de que em trinta anos, no
máximo, acertariam o coração de Washington. Não eram imediatistas, como os
seguidores de Bin Laden. Cecília não queria, ainda, pensar em perpetuar a nossa
empresa. Queria antever o Brasil dos próximos 100 anos. Brasil que ela estava pronta
para construir. Foi pensando assim que se juntou aos grandes cientistas brasileiros,
uspianos sem ideologia política ou provinciana, para transformar as ciências da vida no
grande negócio deste século para o País e para sua empresa. Não há empresa grande em
país pequeno, repetia e repetia. Nos dois anos em que estive trabalhando em meu
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
escritório, no canteiro central da Avenida Jaime Fonseca Rodrigues, ela só falou sobre
isso comigo. Ciência da vida! Crescimento sustentável!
VI
O Jornalista
Teria mais cinco semanas de planejamento. Pode parecer pouco, mas você
saberá que um experiente e exímio matador de presidentes como eu já não precisava de
tempo para preparar a morte. De outro! Nos meus 80 anos de vida, matar presidente foi
minha segunda prioridade. Sou o melhor matador de presidentes do mundo. Verá, ao
longo deste manuscrito, caro leitor, que não há elaborados ou sofisticados planos
conspiratórios. Nada. Há, sim, esta vontade prazerosa de matar. Matar para viver, tento
às vezes justificar para mim mesmo. Assim como tento justificar que mato por causa
daquilo que penso. Não tenho partido, não namorei Prestes nem Plínio.
Não corro qualquer risco de ser surpreendido enquanto faço estes “apressados”
preparativos de assassinato daqui de meu escritório da Fonseca Rodrigues, sem
ninguém para me incomodar. Sabia que o presidente dera ordens para fortalecer a Abin.
Colocou seu melhor homem no embrião de uma CIA brasileira.
Os nossos novos agentes, saídos dos quadros da jovem Polícia Federal, andavam
vigilantes. Muito vigilantes. Todos os dias uma operação. Com nomes estapafúrdios. A
inteligência era da Abin, e a operação, da Polícia Federal.
Os chefões do tráfico – é assim que são chamados pelos jornais – queriam matar
o atual presidente. De certa forma, nossos planos eram convergentes. Mas eles queriam
matar por vingança, como fizeram com Tim Lopes. Os bandidos avisaram antes. Um
erro. Enviaram uma carta ameaçando “acabar com a vida” do chefe de Estado. O
destinatário, um ministro do Núcleo Duro, cuja verdadeira função era proteger a vida do
chefe de Estado. Carta interceptada pelos serviços de segurança. Quem avisa que vai
matar morre primeiro. É a lei. Ali estava eu, louco manso com escritório no canteiro
central da Avenida Jaime Fonseca Rodrigues, paciente e tranquilamente pensando na
melhor maneira de matar o senhor presidente. Não o avisaria, jamais.
Devo insistir que gosto muito de matar. Mas de um jeito suave. Sem
brutalidades. Quando você acabar de ler este depoimento, vai me chamar de feroz
assassino. Estará, mais uma vez, errado: defendo um suave assassinato. Continuamos
com nossas divergências. Usei a violência apenas uma vez, quando matei o meu
primeiro presidente. Ímpeto juvenil. Talvez os meus 27 anos ainda não haviam me
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
ensinado que se deve matar como o faria um doido manso. Com suavidade. Se possível,
com alguma ternura. Um predador não tem ódio da presa. Tem fome.
Quando ouviu falar em TV, pela primeira vez, viajou para a América. Trouxe
técnicos para lançar a segunda Estação Brasileira de TV. Hoje, uma grande rede que
chega a 99 por cento dos domicílios brasileiros. Lidera o mercado há mais de 40 anos.
Papai sempre acreditou nos filmes feitos aqui. Não teve, com seus estúdios, o
mesmo destino dos da Vera Cruz. Aproveitamos, nos tempos atuais, o talento da TV
para fazer filmes populares. Cecília e eu ainda não estamos satisfeitos com esta nossa
unidade de negócios. Mas posso aqui revelar que teremos a Universal como sócios.
Nossos diretores já passaram da etapa de troca de cartas de intenção.
Meu velho pai me deu dois conselhos antes de morrer aos 97 anos: saiba, filho,
que o capital não tem ideologia nem fronteiras; queira sempre ser o primeiro, em tudo.
“Estude, estude! Aprenda a ser austero. A reinvestir todo o lucro”. Quando assumi o
império, não só segui seus conselhos, mas sua maneira de fazer negócios: sempre
sinérgicos e adjacentes.
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
Hoje, meu grupo é dono do maior portal de Internet, da maior e melhor revista
de fim de semana, de centenas de publicações targuetizadas, de um site de busca igual
ao Google (este foi outro ensinamento de meu pai: copie, meu filho, tudo o que puder e
que estiver dando certo em qualquer parte do mundo) que está cotado em bolsa a um
bilhão e meio de dólares.
Não sei lhe dizer quanto dinheiro Cecília e eu temos. Aproveitei a onda de IPOs.
Com uma fortuna em caixa, comprei a segunda maior operadora de telefonia do Brasil.
Acreditei nas privatizações. Não posso revelar quanto em ações da Vale tenho. Se você
disser que sou o primeiro maior acionista individual, não estará longe da verdade. As
melhores cabeças do País trabalham para mim em planos para juntar todas as mídias
num só aparelho. Vou conseguir!
Ao lhe passar tantas informações, Agora você já sabe que não sou tão maluco
assim. Que meus encontros com o governador, o atual presidente, o diretor do Noroeste,
o sócio da Salles... ocorreram, de fato, e ainda ocorrem. Como rotina. Quem não quer
estar com o homem mais poderoso do País? Donos da opinião nacional, meu pai antes e
eu, agora, tínhamos a tudo e a todos, fato que simplificou ainda mais minha missão
como matador de presidentes brasileiros.
Contarei, sem tomar muito de seu tempo porque já abusei no início deste
manuscrito, a história de cada um dos crimes que cometi. Não em ordem cronológica.
Darei prioridade aos assassinatos que estão sendo úteis ao plano de matar o atual
presidente. Entre um e outro depoimento, vou deixando-o informado sobre o andamento
destes planos. Uso esta mescla em meu manuscrito esperando ser mais claro e objetivo.
Cada assassinato representou um ensinamento sobre como matar melhor e ter maior
prazer no espírito e no coração. Só se mata bem matando. A prática é Mestre.
Como meu pai tinha uma bomba nuclear nas mãos – fazia presidentes, políticas
econômicas, derrubava ministros e governadores –, eu tinha acesso muito fácil aos
donos do poder. Estamos falando de meados da década de 50. Tanto isso é verdade, que
participei da última reunião ministerial do presidente que veio do Sul. Diverti-me com a
violenta discussão entre seus ministros. Eu tinha decidido matar o presidente desde 5 de
agosto de 1954. Meu plano era simples. Tinha plena confiança em minha força física,
reforçada por um treinamento disciplinado e rígido, sob a companhia de um instrutor do
Mossad.
VII
Se mate, por favor!
O pequeno grande homem não demonstrou qualquer rancor, medo ou raiva. Nem
mesmo se queixou comigo. Quem sabe se comportava assim porque considerava a
morte inevitável e eu era filho do melhor amigo dele. Só pediu tempo para buscar a
Carta-Testamento que, por ironia, eu mesmo escrevera à pedido dele “para uma
emergência qualquer”. Fiquei com a impressão de que gostaria que as pessoas de fato
acreditassem que ele era o autor do documento. Porém, quem ouviu o bate-que-bate da
máquina de escrever no silêncio do Palácio perceberia que a carta já pronta. O
presidente não sabia datilografia e a Olivetti que tinha no quarto servia apenas como
decoração.
Reli com ele a carta: frases precisas, mensagens exatas a serem transmitidas às
futuras gerações... Quando terminamos de ler, me pediu o revólver. Tivemos uma breve
discussão: eu queria que atirasse na cabeça e ele, intransigente, dizia que a bala deveria
atingir o coração. Argumentou que os brasileiros entenderiam melhor seu gesto.
Não gostei da ideia, mas como era ele quem puxaria o gatilho, acabei
concordando. Só o adverti de que, ao decidir por esta opção, demoraria um pouco mais
para morrer e poderia se arrepender quando já não havia mais volta. Hipótese que não
me agradava. Não queria que sofresse. Queria que o gesto fosse interpretado como a
exclusiva, a única saída digna de um homem acuado. E, claro, se isso acontecesse
ninguém jamais suspeitaria que eu provoquei aquela morte.
Estava mais fraco. Se o atual presidente reagisse, o que seria bem provável por
ser 20 anos mais moço, gordinho, mas ainda lépido, eu não teria capacidade física para
obrigá-lo a colocar o revólver na boca e puxar o gatilho. Nem mesmo teria como usar o
argumento do primeiro assassinato: O senhor pode entrar para a História com altivez e
pela porta da frente. Não havia uma crise política ou econômica que permitisse bisar o
argumento: o País crescia sem parar, sem o temido vôo de galinha – sobe e desce, sobe e
desce, havia dinheiro farto e uma oposição que sequer formou um grande tribuno, como
aquele ex-comunista do Rio que enfrentou e pelejou com o velho presidente e me deu
um álibi seguro para matá-lo.
O atual presidente estava tão seguro que não temia nem mesmo os efeitos da
crise mundial: “Um tsunami, que chegará ao Brasil como umas marolinhas”. Esperto
este homem. Com isso tranqüilizava o povo, evitava uma corrida desenfreada aos
bancos porque brasileiro é desconfiado, e junto com o presidente do Banco Central e o
ministro da Fazenda tomava todas as medidas preventivas para quando a grande onda
batesse nas margens no litoral do Lago Paranoá.
VIII
Cecília, bela e fogosa!
Quem lê o manuscrito deve estar ainda mais irritado comigo. Seria eu o louco
do canteiro central a imaginar coisas que nunca aconteceram? A delirar e escrever?
Escrever e delirar? Ou este depoimento, embora mascarado, é autêntico? Com um
pouco mais de leitura, você já não terá motivos para fazer vorazes severas e impiedosas
críticas a este texto nem para me chamar de charlatão.
Optei por ser o louco manso e estabelecer meu escritório a céu aberto no Alto de
Pinheiros para continuar matando com nível zero de risco. Pergunto pela segunda vez:
quem poderia desconfiar de mim? Ninguém, nunca. Todos os dias, saía de minha casa,
no Pacaembu, perto do Clube Nacional, dirigindo um Passat alemão prata, blindado,
vidros escuros, rumo à Academia. Academia é o nome que dou a este meu escritório
aqui no canteiro central da Avenida Jaime Fonseca Rodrigues.
A ida à China, combinada comigo há ano e meio, era parte desta estratégia de
perpetuidade. Outra, a criação de um modelo de gestão imbatível: cada diretor era dono
de seu próprio negócio. Cecília decidia com eles os resultados que esperavam alcançar,
como e que problemas poderiam enfrentar para ter sucesso e quanto gastariam em cada
projeto. Os primeiros planos criados em parceria com os executivos do Grupo eram
anuais. Passaram para decenais. E hoje só falam em 100 anos como se fossem 10. O
êxito dava a cada um deles muito, mas muito mesmo, dinheiro. Ela – e eu, claro –
ganhávamos a metade do lucro. Para reinvestir.
Cecília era minha aliada fiel. Eu estava feliz porque ela representava a terceira
geração de raro talento na família. De cem grandes grupos familiares, só dois ou três, no
máximo, sobrevivem com um herdeiro à frente por três gerações seguidas. Em geral, os
herdeiros são administradores medianos. Não foram treinados dentro dos princípios de
austeridade e disciplina que só são assimilados se houver uma férrea educação. Ela
dirigia a operação do grupo há 23 anos, quando aconteceu o encontro com o presidente
que agora planejo matar.
Bela e suave, esta minha filha. Era moça fogosa no namorar. Depois dos quatro
filhos, separou-se do marido jornalista, homem culto, mas que dera para esquecer-se de
suas obrigações masculinas porque vivia perdido em suas reportagens investigativas, em
suas pesquisas e denúncias. Casou aos vinte e separou-se aos 32.
Até hoje, aos 50, deixa seus parceiros de cama alucinados. A delicada Cecília
sempre foi era imbatível como mulher. Com isso quero dizer que fazia tudo em nome de
um bom orgasmo – seu e de companheiro. Eu ficava sabendo dos segredos de alcova
dela ao ouvir sorrateiras conversas vindas de ouvintes e apresentadores da Rádio
Corredor, único meio de comunicação que ainda não conseguira dominar, ser o
acionista principal. Estudo, há tempos, estas redes informais de comunicação. As
modernas teorias sobre organização emergente. Haverá um Chegará o dia em que as
redes de Rádio Corredor e de Rádio Peão serão controladas por mim.
Eu estava escrevendo este manuscrito há uma semana sem nunca perder de vista
que teria apenas mais quatro ou, no máximo, cinco outras para matar o atual presidente.
Preferiria que morresse com um tiro na cabeça e deixasse a carta-testamento. Eu mesmo
a escreveria, como no primeiro assassinato. Pensando bem, pode não ser uma boa
alternativa porque aquele velho barbudo alemão que viveu em Londres garantiu que a
História não se repete. Alguém iria desconfiar porque haveria um padrão.
Fui em meu próprio jato a Brasília para falar com o atual presidente no Palácio
do Planalto: “Se você distribuir o jornal com esta manchete, criará um estado de
comoção nacional como o que aconteceu nos tempos da morte do Tancredo. Eu estou
convencendo estes filhos-da-puta do Conselho de Segurança a não levar este tema para
a Assembléia Geral. Infelizmente não estamos sendo ouvidos. Vão se fuder. São uns
viados, filhos de uma mãe! Caralho, preciso de sua ajuda, pô!”. Eu disse com educação:
“Pois não, chefe”.
Liguei para Cecília, que já esperava por minha chamada, e, de imediato, ela
suspendeu mandou trocar a manchete e substituir a matéria. Houve atraso na
distribuição. Mas um pedido do chefe foi atendido. Avisou ao diretor de Redação que
quem falasse sobre o tema da reportagem teria demissão sumária. Como os salários de
O País eram quatro vezes superiores aos da Gazeta Mercantil em seus áureos tempos,
ninguém falou nada, por prudência e sabedoria. E o presidente conseguiu reverter a
situação criadas por “aqueles filhos-da-puta”.
“Além disso”, argumentou o uspiano, “você poderá marcar, sem despertar qualquer
suspeita, seus encontros com Cecília para discutir política”.
Cecília, por sua vez, convenceu o presidente uspiano a seguir os passos do líder
espanhol. Ele se concordou, deu sinal verde para as privatizações, o Brasil ganhou e
nosso grupo econômico um pouco mais. Eu, ao contrário do uspiano, gostaria que a
privatização fosse total. Até pensei em também matar este presidente. O sangue do
capitalismo de Estado, onde as empresas eram e são usadas como instrumentos do jogo
político, ainda corria nas veias do mestre presidente.
Passei noites em claro com os amigos dele numa mansão do Alto de Pinheiros,
perto do meu escritório e da casa do governador, para levá-los a influenciar o
presidente. Queria que ele tomasse coragem e privatizasse a Petrobras. Antes de chegar
à poderosa estatal do petróleo, poderia começar pela USP e por todas as outras
universidades federais. Como os alunos das universidades públicas tinham condição de
pagar escolas particulares, o País sairia lucrando. Mas a queda pelo nacionalismo do
uspiano tinha origem também nos quartéis maçônicos.
Quando encantoado por mim, por Cecília e por uma dezena de assessores muito
próximos, todos defendendo com veemência a tese de privatizar a Petrobras, o
presidente chorou e contou histórias das “heroicas” manifestações em defesa do nosso
petróleo, contra o ensino pago e pela autonomia universitária.
Os adjetivos que usava para definir “meu país” tinham significado prático:
acabar com os palácios; com os milhões de funcionários públicos; privatizar tudo, sem
qualquer exceção; ocupar de maneira sustentável a Amazônia, expulsar as ONGs;
permitir toda e qualquer pesquisa na área de biotecnologia, também sem restrições;
autorizar a eutanásia e o aborto; reduzir ou acabar com a Câmara e o Senado;
assembléias legislativas, nem pensar. Enfim, passaria horas aqui defendendo meu
modelo para transformar o Brasil numa grande e rentável empresa, com um gerente-
geral em vez de um político presidente ganhando mais do que ganhava o executivo mais
bem pago do País.
O gerente-geral do Brasil deveria ter não mais do que cinco ou seis assessores
diretos. Um para cuidar da justiça; outro, das relações capital-trabalho; um financeiro e
um de desenvolvimento e relações exteriores. Todos eles vice-presidentes, trabalhando
com metas, com planos decenais, com resultados. O CEO do Brasil moraria em sua
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
própria casa. Assim como seus auxiliares diretos. Não teriam motoristas, mordomos,
nada! A não ser que pagassem do próprio bolso.
Durante o demorado período que gastei para escrever este discurso, sentado na
poltrona imperial de meu escritório, com semblante carregado, o mundo não existiu:
não ouvi o acelerar dos carros, a sinfonia zorra de buzinas, o grito das sirenes, ligadas,
os olhos voltados para mim com muita curiosidade porque eu estava a escrever como
um autor frenético com medo de perder a inspiração do momento – quebrei a ponta de
sete BiCs vermelhas, por sete vezes. Mantenho um bom estoque.
Olhos de inveja, quem sabe. Não há quem não queira ser um louco manso. Até
eu! Doido manso, não doido bravo. Prova disso é que todas as minhas empresas
permaneciam dentro dos rigorosos limites impostos pelo sistema. Não rasgo dinheiro.
“Mas você mata presidentes”, diria, agora, entrando em meu discurso.
IX
Torrões Assassinos
Não ria: os torrões de açúcar, em formato de cubo e que são comprados sem
despertar suspeita alguma em qualquer supermercado, podem tornar-se letais e sempre
foram minha arma do crime predileta. Foi essa a arma que usei para matar o segundo
presidente. Mineiro, simpático e mulherengo, era um grande e bom amigo da nossa
família.
Durante dois anos, meu pai reservou para ele, com diligência, uma suíte para
seus encontros amorosos. O dormitório presidencial clandestino ficava camuflado num
andar falso na sede de nosso jornal popular, no Rio. Só ele e meu pai tinham as chaves.
Vez que outra ia visitá-lo no intervalo livre entre a namorada fixa e uma eventual
amante. O presidente mineiro adorava conversar sobre os perigos das aventuras
amorosas. Era simpático, com uma maneira só dele de rir. Como se quisesse esconder os
dentes. Timidez?!
Na época, ele estava conspirando com antigos inimigos para voltar ao poder.
Saiu até um livro com revelações sobre uma grande conspiração relacionando as mortes
do presidente deposto gaúcho, do presidente mineiro o do corvo udenista. Bobagem.
Nunca houve conspiração. Fui eu mesmo que matei os três.
Conto com mais vagar a morte do mineiro. Como disse, gostava dele. Por isso,
senti grande maior alegria em matá-lo. No domingo, o presidente almoçou comigo e
com meu pai na nossa casa no Pacaembu. Pedi à fiel acompanhante de papai,
cozinheira, arrumadeira, enfermeira e amiga, para preparar um frango com quiabo e
angu, carne de porco desfiada, arroz canjiquinha puxado no alho e feijão tropeiro. Ele
comeu como um presidente. Fui levá-lo até a porta. Quando estavam todos preocupados
com parte da bagagem que havia desaparecido, coloquei três tabletes de açúcar no
tanque do Opala que iria levá-lo ao Rio.
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
Enquanto eles serravam a lataria com grande esforço, usei uma lanterna para
buscar alguma recordação do meu ato. Achei um livro, perdido entre os destroços, onde
estava escrito na terceira ou quarta página: “De Jorge Amado para o amigo JK”. No
meio dos jornais e revistas que tenho espalhados em volta de minha cadeira no canteiro
central da Avenida Jaime Fonseca Rodrigues ainda guardo com carinho a contracapa.
Ninguém nunca percebeu. Está hoje, se o leitor quiser comprovar, entre um velho livro
de Heidegger e outro de Gramsci, Cartas do Cárcere, exemplar que ganhei da adorável
da diretora da USP pelas doações feitas ao Centro de Estudos Estratégicos da
universidade.
X
Morte no Ar
Cecília foi a primeira a ligar para a mulher do presidente que matei no acidente
no Dutra. Eu lhe passei a informação. Ela tinha pouco mais de 19 anos e o velho casal a
tratava como filha. Ela os chamava de tios: “Tia, o tio morreu num acidente na Via
Dutra. Meu pai está mandando o avião dele para levá-la para o Rio e de lá para
Resende”. A velha senhora não titubeou na resposta: “Brinca disso não, minha filha. Só
porque você sabe que toda semana me chamam para dizer que mataram meu marido,
quer me passar medo?”. Cecília respondeu seca: “Não é hora de brincar, tia. Ele estava
indo para o Rio. O carro bateu numa carreta. E aconteceu a tragédia”. Do outro lado,
depois de um longo silêncio, ouviu-se um grito: “Meu Deus! Meu Deus! Por que ele?”.
Qual será a reação de minha adorável filha ao saber que o homem com quem se
encontraria no Planalto já estava condenado à morte? Duas semanas antes do
assassinato, quando o presidente estava na Suécia e Cecília em Xangai, eu tive um
sobressalto. Notei que Moby Dick, o melhor livro que li em toda a minha vida, estava
fora do lugar em que deixei no escritório da Fonseca Rodrigues. Pensei, primeiro, em
alguém tropeçando nele ao cruzar correndo a avenida, passando pelo canteiro central:
“Pouco provável”. Minha ansiedade aumentou quando vi o plástico da porta da cabana
levantado de maneira quase imperceptível.
Nos dois anos que passei trabalhando neste lugar, sabia o exato lugar onde
estava cada jornal, livro, garrafa plástica; sabia a posição exata da poltrona; da porta da
cabana; e, em dias de muita ventania, era comum encontrar algo fora do lugar. Mas não
chovia em São Paulo havia mais de mês. O nível do reservatório de Guarapiranga tinha
baixado para 62 por cento. Isso aconteceu em outubro. Outubro não é igual a novembro.
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
Tive medo que descobrissem que matei um outro presidente quando ele viajou
para o Ceará. Eu estava na cidade para uns dias de praia, cerveja e caranguejo. Foi o que
eu disse aos amigos e aos integrantes de meu império. Minha estadia em Fortaleza
coincidiu com a chegada do ex-presidente à capital cearense. Fui encontrá-lo no
aeroporto com cinco tabletes de açúcar no bolso. Sem veneno, lógico. Não foi difícil
jogá-los no tanque de querosene do pequeno avião. O presidente gostava muito do meu
jornal, O País, que o defendeu quando ele começou a conspirar contra seu próprio
governo para permitir a volta à democracia.
Tempos depois, usei a mesma tática para matar o presidente da Câmara dos
Deputados. Agora que escrevi tanto, penso que minha paixão sempre foi a de matar
presidentes, mas descobri que não conseguia reprimir meu ímpeto assassino para matar,
também, políticos importantes. O presidente da Câmara estava com a mulher e um casal
amigo num helicóptero que caiu perto de Ubatuba. Ele me ofereceu uma carona até São
Paulo. Com elegância, recusei alegando que iria de Angra para o Rio. Não usaria o
aparelho com o tanque com os cinco cubos de açúcar.
Quando estou entediado ou cansado de tanto escrever, este manuscrito, olho com
vagar para a Carta-Testamento, para o pedaço de couro, para a cópia autenticada do
atestado de óbito do presidente derrubado pelo golpe de 64, onde está escrito: “causa
mortis, enfermedad”, e para a o livro com a seca dedicatória de Jorge Amado ao amigo.
Vivia um dilema interno: deixaria também aqui, como prova do que escrevo, o vidrinho
com o que restar do veneno de sapo, a seringa ou mais uma carta-testamento,
recordações que terei da morte do atual presidente? O Plano A também me incomodava:
não só por dar à Polícia Federal um padrão, mas – e principalmente – pela falta de
criatividade.
O leitor deve ter percebido que meu interesse por detalhes mórbidos é nenhum.
Até hoje, me pergunto como ninguém ligou a série de mortes de presidentes. Suspeitas é
que não faltam. Alguns jornais até que falaram de maneira envergonhada e tímida sobre
as suspeitas de que os presidentes mortos por acidente foram, na verdade, assassinados.
Meu nome nunca foi mencionado. Nem seria. Jamais. Só serei desmascarado se alguém
ler este meu manuscrito, que só poderia acontecer depois de minha morte. Sou
precavido, muito precavido!
XI
Perigo nos Hospitais
Sempre quis acabar com esta baboseira de índio. Meu projeto foi e é o de levar
para cada tribo indígena professores melhores do que os da USP e educar os curumins
nos passos das ciências, em colégios construídos nas tribos e equipados com os mais
modernos e sofisticados laboratórios. Quando fossem engenheiros, médicos,
bioquímicos, etólogos, pesquisadores... teriam na memória só uma bucólica imagem da
floresta. Seus territórios – todos! – passariam para o Estado, que abriria ao capital
privado concessões para exploração sustentável da mata e de suas riquezas.
De volta ao mérito que tenho para ser presidente, relato um “case”. Tenho
profunda enorme curiosidade pelas pessoas. Gosto de ver seus rostos, suas peles, como
se vestem e se enfeitam, a maneira de andar e de falar... Enfim, pessoas me fascinam.
Quando comprei o Jornal dos Bairros do irmão do maior escritor vivo do Brasil,
fui visitá-lo na pequena Redação da Teodoro Sampaio. Neste tempo, início dos anos 70,
já era dono de todos os jornais de bairro de São Paulo. Estes semanais, de distribuição
gratuita, estavam atrapalhando meus negócios. Hoje, quase 40 anos depois, o modismo
dos jornais gratuitos voltou com outra roupagem. Sou dono de todos. Saí 40 anos na
frente dos meus concorrentes. Ver antes, ver longe, sempre foi meu lema. de vida. Meu
e da minha adorável Cecília.
A compra do Jornal dos Bairros foi diferente. A opção por fazer a oferta nasceu
de um texto e de uma manchete. O texto era sobre o assassinato da Paineira do Largo do
Butantã. Um dos melhores que li em toda a minha vida. Bem superior aos de Gay
Talese. Hoje, suspeito que o autor de Lavoura Arcaica, tema tenha escrito essa
reportagem. Já a manchete era ousadia pura: “O Brasil não tem um só general negro.”
Era 13 de maio. Era governo militar. Linha-dura.
Ao descer andando a Teodoro para conhecer melhor meu futuro público leitor,
acabei na Praça João Nassar. A praça era conhecida na época e o é até hoje como Largo
da Batata. Está não muito longe do escritório do Alto de Pinheiros. Você pode ir pela
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
minha avenida em direção à Rebouças e, quando ela bifurcar, entrar à direita na Nova
Faria Lima. Menos de cinco minutos, se não houver congestionamento.
Desde setembro de 72, quando fui ao Largo pela primeira vez, nunca mais deixei
de frequentá-lo. No mínimo uma vez por mês. Hoje, vou todos os dias com meu
disfarce de louco manso. Sento-me no meio-fio, coloco as mãos no queixo e passo até
uma hora olhando os brasileiros. São mesmo fascinantes. Privo o leitor de uma
descrição detalhada de cada personagem para não estender muito esta narrativa. Mas
faço um convite, irrecusável para quem quer ver o Brasil: vá ao Largo da Batata. É
melhor, muito melhor, do que ler Darcy Ribeiro, Gilberto Freire ou Euclides da Cunha.
É como ler Grande Sertão: Veredas e conhecer o sertanejo mineiro.
Agora, por exemplo, caminho para o Largo da Batata. Eles estão construindo
uma estação do Metrô bem perto. Irei visitá-la como empresário. O governador queria
que eu estivesse ao seu lado para conhecer as obras da Estação Frei Caneca. Meu
objetivo, ao acompanhá-lo, era outro: encontrar um lugar seguro para esconder este
manuscrito.
Ele estaria para sempre seguro a trinta metros abaixo do nível da rua, no
cruzamento da Rua Pinheiros com a Rua Teodoro Sampaio. Conversei com o
engenheiro responsável pelas obras e ele me explicou que embaixo da plataforma
haveria uma espécie de caixa de concreto para a passagem de cabos. Decidi que ali seria
o esconderijo dos meus segredos.
Eu fui delicado ao matá-lo. Não digo delicado com ironia ou morbidez. Escrevo
delicado porque de novo usei meus torrões de açúcar cristal injetados com veneno de
sapo. Eu o testei quando o presidente linha-dura foi internado no ano de 69. Fui um dos
únicos brasileiros sem farda a acompanhá-lo quando foi internado. O apoio dado pelo
meu sistema de comunicação o ajudou a vencer opositores que queriam a volta imediata
aos quartéis.
Este conflito não começou durante o governo dele – sempre houve dois partidos
fardados: o primeiro defendia a volta imediata à caserna e o restabelecimento da
democracia; o segundo, a permanência no poder até a criação das bases para a volta dos
civis. Esta divergência quebrou a disciplina militar e, quando não se consegue manter a
disciplina, a liderança acaba.
Desta vez, com minha nova vítima, o presidente eleito com o voto indireto que
não assumiu, deveria tomar mais cuidado. Aumentar a dose. A que estava usando foi a
recomendada pelos índios. Era suficiente para matar uma anta. Pode ser que os
metabolismos sejam diferentes.
XII
Presidente sem Faixa
Não conto isso para lhe causar asco. Nem mesmo para que seja um cristão-novo
do vegetarianismo. Conto só para que acompanhe meus assassinatos como se eu fosse
um vaqueiro. Sou um pouco mais sofisticado, porque o animal que detesto, que mato
como você mata às noites um incômodo pernilongo, tem o dom de prever que vai ser
morto.
Veja o que dizia o velho caudilho: “Terei que lutar. Se não me matarem.”;
“Tenho 67 anos e pouco me resta de vida.”; “Até onde resistirei? Se não me matarem,
até que ponto meus nervos poderão agüentar?”. O presidente sabia que seria morto.
Estava atento para se antecipar aos inimigos. Tinha o povo ao seu lado. Só não sabia
que eu, amigo dileto que o apoiava em meus jornais, seria seu algoz. Por isso, aquele
olhar interrogativo do ministro para mim e vice-versa. O presidente se preparou para
enfrentar um ataque mortal, até mesmo dos soldados que o protegiam. Estes, coitados,
nunca foram inimigos. No dia em que morreu, choravam!
Demorou tempo para que o ministro chegasse à Presidência. Foram três longas
décadas. Na hora em que o caudilho morria, eu soube ver nos olhos dele a imensa
ambição que teve ao vislumbrar as portas abertas para a caminhada até ocupar o
Palácio, não o do Catete, mas o do Planalto.
Fui eu quem sugeriu que fosse para as eleições indiretas, aceitasse as regras do
jogo. E expliquei: levarei o povo a convencer os membros do Colégio Eleitoral. Para
conseguir isso, usarei os 40 milhões de telespectadores do telejornal de minha rede, o
apoio total do conservador O País à sua candidatura; o de minha revista, A Semana,
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59
Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
Sabia, quando fiz a promessa, que ele não tomaria posse. E, se tomasse, teria
pouco tempo para desfrutar da Presidência. Mas teria que apagar, na mente dele, os
resquícios de suspeição de 54. Será que ele sabia que eu matara o presidente gaúcho?
Mas o simples fato de tê-lo eleito, através da pressão dos meus Meios, criava uma boa
proteção para mim contra eventuais suspeições do careca. Eu cumpri a rigor a promessa
feita a ele de usar minha imensa força de comunicação para convencer os 688 políticos
que iriam escolher o nosso futuro presidente. O próximo da minha lista.
Ninguém viu quando dei a ele a primeira dose, a que levou ao internamento. O
presidente sentiu sede momentos antes de entrar na catedral de Brasília. Esperava por
esta oportunidade. Nesta época, o carro que usava em Brasília tinha, por causa do clima
pouco hospitaleiro da cidade, uma pequena geladeira embutida no porta-luvas. Escolhi
uma garrafa de água sem com sem gás e joguei dentro a primeira pedra de açúcar.
O presidente eleito sabia que havia se descuidado. Não se lembrava como nem
onde. De seu leito, puxava da memória o momento que precedeu a grande dor.
Lembrou-se que pediu água antes de entrar na igreja, mas estava cansado demais para
saber qual foi a generosa alma que lhe serviu uma mineral com gás e gelada.
Pedi a Cecília, depois do enterro que comoveu e uniu toda a nação, para
encomendar uma pesquisa nacional para ver qual a opinião do brasileiro sobre a causa
da morte do presidente: “Premeditada”, foi a resposta da maioria. Falei com minha filha
para divulgar o resultado com destaque. Assim afastava as suspeitas ainda mais de mim.
O povo estava certo. Não previ que provocaria tanto sofrimento entre os brasileiros.
Este fato, hoje, me causa certo constrangimento e desconforto. Tive esta mesma
sensação ao matar o caudilho gaúcho.
XIII
Paixão de pai. Pela filha!
Gastei quase duas horas escrevendo sobre como assassinei o presidente eleito.
Estava muito absorto aqui em meu escritório. Decidi esconder por uns tempos o
manuscrito, que já chega a mais de 50 páginas e pesa no bolso, dentro do livro em
inglês de Marx e Engels, The German Ideology, editado em Moscou em 1964. Preservei
as bordas das primeiras 70 páginas e as das páginas 659 a 736. No meio. Construí uma
espécie de cofre que serviria de esconderijo para este texto até que eu pudesse terminá-
lo descrevendo a morte do atual presidente. Arranquei um fio de minha barba e coloquei
como sensor. Se alguém abrisse o livro, presente de Prestes quando fiz uma doação
significativa para o Partidão, eu teria conhecimento da violação. A doação foi uma
maneira de agradecer ao Velho Comunista as centenas de quadros que formou para
meus jornais, revistas, televisão... Cultos, bem informados, disciplinados, leais: eram os
meus comunistas.
Você que está ao meu lado nesta manhã de quinta-feira, véspera de feriado de
Finados, deve ter me visto a furar e a furar o grosso volume para fazer o esconderijo.
Seu pensamento é: O Velho Louco Manso cansou de ler seus livros loucos e agora
começa a destruí-los. Bem que alguns livros merecem ser destruídos. A frase do judeu
alemão comunista voltou à minha mente: “A História não se repete. Se algum dia vier a
se repetir, a primeira será como farsa; e, a segunda, como tragédia”. Ora!
Faltava só uma semana para o encontro do atual presidente com Cecília, quando
os jornais publicaram ordens dele para que não falassem em terceiro mandato. Ele
voltou primeiro dos países escandinavos. Cecília chegou a São Paulo no Dia de
Finados. Vinha de sua longa viagem de estudo sobre a evolução do capitalismo de
Estado de Mao até o nascente capitalismo moderno que tragava as riquezas da Terra
como uma nuvem de gafanhotos destrói uma plantação.
Fui buscá-la em Guarulhos. Chovia. O Rio Pinheiros não fedia. Nem o Tietê. A
cidade, calma. Um pouco triste sem seus duzentos quilômetros diários de
congestionamento. Mesmo aos sábados, domingos e feriados eu ia ao meu escritório na
Avenida Jaime Fonseca. Doido manso não viaja nos feriados prolongados. Também não
quis visitar o túmulo de meu pai no Cemitério da Consolação.
Tinha minhas idéias sobre vida e morte. E, sobre elas, só conversava comigo
mesmo. Agora ouso compartilhar com você. Acho que somos egoístas ao extremo, ao
chorar a morte de alguém. Quando uma pessoa morre, acabou tudo: como ela, vai o que
chamamos de dor, sofrimento, alegria, paixão, ética, virtudes e valores. O objetivo do
morto, na maioria das vezes, foi atingido: gerou filhos, manteve a descendência que
recebeu de seus ancestrais mais longínquos, aqueles de três e meio bilhões de anos que
sobreviveram até hoje. Morrer é natural. É bom.
Você escapa da luta feroz pela sobrevivência. Luta que tentamos mascarar com
razões éticas ou morais. Ética só existe uma, a construída com base na sobrevivência.
(Max Weber, em sua A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, chega próximo
desta minha tese.) E ela é pessoal e intransferível. Deveríamos, sim, celebrar a morte de
um organismo que permitiu a sobrevivência de outro.
Ser tão grande ou maior na economia do que toda a Europa, do que a Rússia e
satélites ou do que os Estados Unidos. Esta a visão dos chineses atuais. Ao fazer
contestações radicais a tradições arraigadas os Guardas Vermelhos, liderados pela gang
dos quatro, abriu caminho para o surgimento de um capitalismo que, ao deixar de ser
estatal, passa a ter uma expansão exponencial. Em 30 anos, a China estaria ocupando o
primeiro lugar entre as economias desenvolvidas do mundo. Minha filha falava sobre o
que aprendeu na viagem aos supetões, como se tivesse receio de perder a essência do
pensamento.
Minha adorável Cecília concluiu que o Brasil disputaria com a China, da metade
para o final do século, a liderança político-econômica mundial. Ela tinha absoluta
certeza de que a vitória final seria brasileira. Era preciso, primeiro, vencer os uspianos
que legalizaram o passado. Tarefa difícil. Era necessário encontrar um líder, como Mao,
que soube cavar a sepultura de suas próprias ideias. Cecília me falou sobre nosso futuro
aos borbotões, em uma hora, tempo que nos demoramos em chegar de Guarulhos ao
Pacaembu.
Minha filha era mulher peculiar até no lugar de morar. Não ficou no meu
aristocrático Pacaembu, nem nos uspianos Higienópolis e Alto de Pinheiros, sede de
meu escritório no meio da avenida, nem muito menos na Vila Madalena das viúvas de
68, no Morumbi e muito menos em Alphaville. Bairros de pessoas parecidas com ela.
Cecília, porém, não era parecida com ninguém. Depois da separação, depois de deixar
os filhos grandes e independentes, ela decidiu morar num bucólico sobradinho numa das
vilinhas da Augusta, perto da Oscar Freire e de alguns bons restaurantes.
Minha filha assumiu o grupo quando seu faturamento total era de 22 bilhões de
dólares. Hoje, chega aos 37 bilhões. E ela só tem 50 anos. Nós últimos cinco anos optou
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64
Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
por comprar os 49 por cento das ações da Petrobras – você se lembra que já éramos os
maiores acionistas individuais da Vale. Abriu fundos na Europa e nos Estados Unidos e
investiu todo nosso lucro na compra das ações da estatal. Nunca quis perguntar a ela
quanto o grupo tinha do total dos 49 por cento. Sem dúvida a éramos, como na Vale, o
maior acionista individual.
Paro aqui em meus elogios porque que me lê acabará pensando que estou
apaixonado por ela. E é verdade. Estou perdidamente apaixonado, há longos anos, pela
sua capacidade de ser muito melhor do que eu. Quando fixava metas, sempre ousadas e
impossíveis de serem alcançadas, perseguia seus objetivos com a obsessão e a seriedade
daqueles que sabem que podem tudo.
XIV
O Império
Gostaria de ter contado a Cecília o segredo deste meu escritório, de como fico
bem com estes trajes sujos, com o chapéu feito de jornal e que tem como manchete o
anúncio da morte do presidente que não assumiu e com o meu olhar inteligente que os
motoristas admiram quando escrevo. Admiram e invejam. Sei o que pensam: que, de
tanto estudar, transformei-me em louco sem recuperação, que misturo tudo, que sou
aquele doido manso que todo mundo gostaria de ser. Antes de optar pelo escritório no
canteiro central, pensei em me disfarçar de andarilho. Desisti porque seria mais difícil
executar o plano para matar o atual presidente.
A esta altura do meu manuscrito e faltando uma só semana para matar o atual
presidente, já posso revelar meu último segredo: eu serei o próximo presidente do
Brasil. Não haverá outras opções políticas, só empresariais quando o atual presidente
morrer. A meu pedido, Cecília orientou os diretores de Redação de nossos dois jornais
econômicos e de nossa revista quinzenal de economia a dar cada vez mais destaque aos
para os empreendedores, aos para os líderes empresariais dos grandes grupos
brasileiros. Aqueles que teriam condições de juntar estratégia política com
administração e gestão de pessoas para transformar a empresa Brasil na potência que
poderia vir a ser. Nisso Cecília estava certa, embora tenhamos chegado à mesma
conclusão por caminhos distintos. Os líderes da Vale, Odebrecht, Camargo, Embraer,
Votorantim e Gerdau ganharam espaço cada vez maior nos jornais econômicos do
Grupo. Os concorrentes foram na mesma direção e passaram a trabalhar para mim, sem
saber.
Cecília, nos últimos cinco anos, internacionalizou de vez nosso Grupo: comprou
editoras na Argentina, primeiro, depois no México e no Chile. Chegou aos Estados
Unidos como sócia minoritária do grupo que assumiu o Chicago Tribune e o Los
A grande crise financeira de 2008 serviu para acabar com o crédito fácil, com a
bonança e com a especulação. Fiquei muito feliz porque aqueles que não colocavam o
dinheiro na produção viram, de uma hora para outra, seus bilhões virarem fumaça. Os
norte-americanos, donos das regras, não tinham aprendido com a crise de 2001. Naquela
época qualquer um que tivesse um projeto para a Internet, por mais ridículo que fosse,
recebia polpudos empréstimos. E os banqueiros sabiam muito bem que aqueles
tomadores de dinheiro, bem intencionados designers e jornalistas, loucos com propostas
impossíveis de serem realizadas, jamais poderiam honrar seus compromissos.
O general pediu uma semana porque estava com um pequeno problema com o
deslocamento de outros dois milhões e meio de chineses que seriam afetados pelas
águas da barragem de Três Gargantas, que ele e sua empresa lideravam o processo de
construção. Chega de autoelogio. Mas se não fizesse essa descrição você jamais teria a
dimensão dos nossos negócios e menos ainda do meu poder nas sombras.
Com a música de Wagner era diferente: os olhos dela ficavam ainda mais
indomáveis. Os blues eram outra paixão de Cecília: Muddy Waters e Sonny Boy
Williamson eram seus preferidos.
A mulher, posso garantir que pela formosura. Já aquele estranho senhor...!? Era
muito careca, barba branca e longa, olhar perdido por causa da música que ouvia.
Viajava no congestionamento. Mas o sorriso dele me intrigou. Sorriso de doce ironia.
Sorriso de um garoto a fazer uma enorme estripulia. Sorriso de quem estava acima das
pessoas. Ele estava sorrindo de meu personagem e de leitores de manuscrito.
Sei que não era um uspiano. Fez-me lembrar Solzhenitzyn. Melhor ainda:
Dostoyevsky. Não me pareceu fingir. Não era um ser atormentado. Sei que ele me
olhava com os cantos dos olhos. Mas eu não conseguia fazer o que os americanos
chamam de contato visual. Por algum motivo, ele ria aquele riso enigmático. Será que
desconfiava que eu era um personagem apenas? Nenhuma chance, pensei comigo.
Cheguei à conclusão de que ele era um desses novos filósofos que surgiram neste
começo de século. Um Daniel Dennett. Eles até que se pareciam. Filósofos que gostam
de brincar com seus personagens que acham reais. Esse seria o motivo daquele sorriso
ambíguo de Monalisa. Pela primeira vez em dois anos de absoluta sisudez, como
convém a um compenetrado louco manso, sorri também. Aquele filósofo paulistano era
meu cúmplice. De quê? Não saberia lhe dizer.
Eu pedi a Cecília que incentivasse os pretensiosos cada vez mais. Dava a eles a
entrevista principal da revista semanal ou a capa, muito espaço na revista econômica e
em O País, pedia que fossem entrevistados no último jornal de minha Rede de
Televisão, o de maior prestígio, e, com isso, estava na verdade colocando a cabeça deles
na guilhotina. Enfraquecer os, na prática, primeiros-ministros, principais candidatos à
sucessão, ajudavam minha campanha: afastava rival forte e fortalecia o presidente como
liderança única e insubstituível do Sindicato Brasil. Ao matá-lo, seria eu a única opção.
Ao escrever isso, fico vulnerável ao extremo. Serei preso pela eficaz Polícia
Federal. Condenado à prisão perpétua, apesar de meus 80 anos, e morreria numa dessas
prisões de segurança máxima que hospeda o empresário da droga Fernandinho Beira-
Mar. Não havia pensado na hipótese de a Polícia Federal já ter lido meu diário e ter me
colocado sob vigilância 24 horas ao dia. Os jovens agentes eram eficientes. Os diretores
de área conduziam uma investigação com rigor absoluto. À mais leve suspeita, seu e
meu telefone seriam eram grampeados.
XV
Dia D Menos 5
A chuva me dava maior serenidade para tomar a decisão sobre a melhor opção
para matar o atual presidente. Já tinha experiência. Decidi transformar os dois planos
em A. Eram bons. Essa tática daria certo. Na hora escolheria o mais conveniente. O
líder do Sindicato Brasil morreria com seu próprio revólver, uma velha e eficiente Luger
que o acompanha desde os anos 70, e que estava escondida na poltrona vermelha onde
ele ouvia as reivindicações de seus companheiros; ou com a dose maciça de veneno já
colocada dentro dos pequenos torrões de açúcar cristal.
Nesta hora em que escrevo, talvez pelo barulho da chuva ou pelos poucos carros,
uma pontada de dúvida chega ao meu coração, não à minha mente: poderia deixar o
presidente mais tempo a governar. Afinal, O País nunca esteve tão bem. E iria melhorar
mais ainda. Poderia até tomar esta decisão. Esperar que entrasse em decadência quando
o mundo parasse de crescer. O que não poderia, jamais, era permitir a grande transa.
Com Cecília, não. Que escolhesse outra empresária. Se não encontrasse, que saísse com
uma jovem executiva para saciar seu desejo incontido por deixar descendentes.
Quando ele caísse, eu seria o primeiro a gritar por socorro. Cecília certamente
entraria correndo, pois estaria na antessala esperando por minha saída. Pouco depois eu
também começaria a passar mal, de verdade. Preparei um tablete para mim com uma
dose que me levaria ao hospital, mas não à morte. Sofreria como nunca sofri na minha
vida. Estou convicto de que para atingir este meu supremo objetivo, qualquer sacrifício,
por mais cruel que fosse, seria compensador. Pensei nos meus 80 anos, na fragilidade da
máquina de sobrevivência depois de oito décadas de vida dura e na possibilidade real de
morte. Estava seguro de minha decisão.
Vou sentir muita falta do meu escritório. Virou minha caverna ao ar livre. O
lugar onde me fechava dentro de mim mesmo para fazer os planos de matar o atual
presidente. Planos idiotas? Matar com veneno, com tabletes de açúcar cristal... quanta
falta de imaginação! Mas se posso lhe dar um conselho, diria para fazer sempre o mais
fácil. O simples e o fácil são belos. É preciso ter muito talento para conseguir atingir um
alvo pelo caminho da simplicidade.
programa. Mudar uma desmonta todo o texto. Experimente jogar para o ar cada palavra
de um poema de Drummond ou Bandeira.
Você nem ninguém conseguirá recriá-lo. Um poema deles é único. É como você,
eu e toda a gente viva: organismos únicos. Por isso, não sou escritor. Sou um Bandeira
dos assassinatos perfeitos. Li muito romance policial. Nem os extraordinários e geniais
Goodis, Chandler, Macdonald ou o genial Hammett criaram um criminoso como eu.
Pena que não seja um romancista, apenas um redator a despejar frases sobre o papel
sem cuidado algum com o estilo. Mas matar, sei. Como ninguém.
No D menos 3 já não tinha muita coisa para fazer. Não quis mostrar meu rosto
sereno para os passantes da Avenida Jaime Fonseca Rodrigues. Preferi ver a cidade que
não trocaria por nenhuma outra do mundo: a minha São Paulo. Minha veia de andarilho
me levou do escritório ao Largo da Batata, ao Largo do Butantã sem sua paineira já
assassinada, ao enclave da Vila Brazilândia, ao bosque da Fundação Oscar Americano,
aos sebos moribundos em volta da Faculdade de São Francisco.
Tive que voltar retornar caminhando até o Colégio Santa Cruz para pegar o meu
Passat alemão e voltar ao Pacaembu. Cheguei extenuado. Esqueci de meus 80 anos. Os
generosos botecos me deram alívio. Minhas pernas tremiam quando cheguei ao meu
quarto. Tomei uma ducha quente de 15 minutos e caí na cama para o sono mais
profundo – e tumultuado – que tive em toda a minha vida. Tranqüilidade só rompida por
um e outro pesadelo sobre o roubo deste manuscrito. A única preocupação que tive antes
de dormir foi colocar a sacola de pano com este manuscrito os papéis embaixo do meu
travesseiro. Tive o cuidado de amarrar o cinto que prendia no pé da cama.
Assim não corria o risco de cair e chamar a atenção da minha fiel acompanhante
que estava comigo há cinquenta anos. Foi um pouco mãe de Cecília, porque minha
mulher morreu quando ela nasceu. Estava com vinte anos nos tempos em que respondeu
a um anúncio que mandei colocar em O País, procurando por uma empregada
doméstica. Hoje, aos 70, é era uma mulher forte, gorda, de poucos humores, mas muita
Não sei o por que decidi escrever este manuscrito. Talvez a explicação de Pinker
esteja correta: “O homem escreve em busca de status social”. Meu caso não se
enquadrava nessa tese. Quando comecei não podia mais parar. Virou uma espécie de
diário, como o que eu escrevia em meus tempos de na infância.
Sonhei com as dezenas de páginas que escrevi no diário eles onde contava como
ganhei e perdi um Omega que meu pai me deu de presente quando fiz dez anos. Perdi e
procurei por todos os cantos da casa, do sítio em Cotia, das fazendas em Jaguariúna e
em Bananal. Fiz buracos, remexi centenas de gavetas. Um mês de busca. Só cinco anos
depois me lembrei que havia deixado o relógio no fundo de uma sacola azul no vestiário
do Paulistano, onde guardava a roupa antes de entrar na piscina. Sonhei com o tubarão
que nadava ao meu lado nas águas do Pacífico, em El Salvador. Sonho estranho porque
senti como real as vibrações do grande peixe a uma braçada de mim. Ouvi os gritos
barulho das pessoas gritando na praia.
Sonhei que na praia também havia elefantes. E não eram marinhos. As passadas
deles eram tão Fortes, poderosas, as passadas deles faziam minha cama tremer. parecer
vibrar. Quase acordei. Quis acordar. Estava muito cansado. O elefante levava um
menino dentro de uma cesta. Este menino era eu. Praias da Namíbia. Sonhei com
jabuticabeiras carregadas. Com touros. Touradas. Sonhei com Djalma Santos
carregando a bola na cabeça, de sua área até a área do Corinthians. Pura magia. O
Grande Djalma. Maior mesmo que Pelé. Igual a Garrincha e Didi. Ademir e Luizinho
estavam muito longe na minha infância. Leônidas da Silva, também. E aquele filho-da-
puta do Obdúlio Varela. Acordei ainda cansado. Porém, tranquilo. Enfiei a mão debaixo
do travesseiro e lá estava, seguro, este meu manuscrito.
XVI
Cúmplices
– Vamos, papai. Vamos, sim. Primeiro, vou ao seu quarto pegar uma blusa para
você não se resfriar. – disse.
– Nascemos para ser grandes líderes – retomou Cecília em voz baixa, quase
inaudível.
– Já somos – eu disse. – Você será muito melhor do que eu. Fico feliz. Afinal, fui
seu mestre. E o bom mestre quer sempre que o aluno o supere.
– Sei que posso superá-lo. Não pense que fico contente com isso.
– Um grande dia. Não pense também que quero dormir com ele.
– Claro que não. Senti que havia certa atração entre vocês. Profunda, me
arriscaria.
– Houve, no encontro anterior. Vou aproveitar para falar com ele sobre a China.
Quem sabe se convence de que devemos crescer tanto quanto eles?
– Quero lhe agradecer. Sua humildade o levou a me educar para ser melhor do
que você – confessou Cecília.
– Quando você nasceu, sabia que seria minha sucessora. Que seria melhor
empresária do que eu. Mais parecemos gêmeos apesar dos 30 anos que nos separam.
– Quero lhe agradecer porque tudo o que sou e serei é culpa sua devo a você.
Você me mostrou o valor do trabalho, da austeridade, do respeito, da disciplina, da
ambição... Você me fez empresária e líder.
–A voz de Cecília tinha um quê de tristeza. Sabia que eu estava velho. Mas era
um velho muito forte. Teria mais sete ou oito anos de extrema lucidez, época período
em que atingiria o máximo de minha maturidade e capacidade de empresariar um país,
pensei comigo mesmo. Estava pronto, maduro, a campanha feita pelos órgãos de meu
império estava no auge. Sentia-me como um time de basquete que chega preparado para
a última partida decisão do torneio. Muitos passavam da hora, perdiam no momento dos
jogos decisivos. Falhavam em seus objetivos.
– Papai, você já viu aquele velho louco que fica escrevendo e lendo no canteiro
central da Avenida Jaime Fonseca Rodrigues? – perguntou Cecília sem demonstrar
qualquer segunda intenção.
– Já cruzei com ele algumas vezes – respondi sem dar a ela tempo para criar
suspeitas. Senti de novo aquele arrepiar de pelos na base da cabeça. Eu, animal, previ
pressenti perigo.
– Sabe que uma vez fiquei um tempo longo presa no congestionamento ao lado
dele? Figura estranha. Ele parece um pouco com você. Velho. Costas largas e ainda
fortes. Mãos longas e finas...
– Será que vovô não pulou o muro? Ele carregava a África no sangue.
– Amanhã passo lá para vê-lo melhor. Nunca tinha pensado nisso. Será que ficou
louco porque é meu irmão e hoje poderia estar no meu lugar? Seria herdeiro como eu.
Um mistério na família.
Cecília me deu um beijo na face. O primeiro que recebia. Ela sempre me beijava
na testa. Vi, quando ela se virou, uma lágrima.
Aproveitei a manhã para colocar meus assuntos pessoais em dia. Deveria estar
preparado para ficar até um mês no hospital. Queria ser internado no Sírio. Poderia
dizer isso quando a ambulância estivesse me levando para o hospital em Brasília.
Orientei meu piloto para estar pronto para decolar às sete e meia da noite. E que um
helicóptero me esperasse em Congonhas. Não queria morrer com minha própria dose de
veneno. O Sírio já tinha um quarto reservado para mim, pois disse que queria fazer um
check-up completo por causa de meus 80 anos.
Não havia muito mais a fazer. Lembra, mate com simplicidade se algum dia
você tiver esta mesma minha compulsão.
A vitória nas eleições de 2010 não estava garantida. Os votos que ele conquistou
em batalhas eleitorais sucessivas pela Presidência não seriam transferidos para o
candidato de seu partido. Eram só dele. Valioso capital. Faltando ainda mais de dois
Ele desmentiu, em público, com ênfase essa possibilidade. Não poderia ter
tomado outra atitude. Voltaria, sim, ao poder só se houvesse um clamor popular para
que disputasse o terceiro mandato. Voltaria, sim, nos braços do povo. Assim como eu, o
presidente tinha um plano A (ter um candidato fraco e voltar ao poder em 2014) e um B
(forçado pelo povo e pelos aliados, aceitaria a mudança da Constituição). Os
verdadeiros amigos, como nos tempos da clandestinidade, faziam circular de mão em
mão este documento:
Art. 1º 0§ 5º do art. 14, ao caput do art. 28, inciso II do art. 29, o caput do art. 77
e o art. 82 da Constituição Federal passam a vigorar com a seguinte redação:
XVII
Bruxos de Verdade
O governador era um homem alto de muito magro. Ele estava acompanhando com os
serviços de inteligência do Palácio todos os movimentos do maluco da Avenida Fonseca
Rodrigues. Sabia que a contagem final havia começado. Ele movimentou-se para
convocar uma reunião da emergência.
Era noite do Dia D menos um, uma quinta-feira, quando checou todos os
detalhes do encontro. Os olhos castanhos, marcados por olheiras profundas, percorriam
a mesa, contava os blocos de papel, os lápis e a agenda do encontro. Suas bochechas
salientes estavam vermelhas. Uma prova de que estava ansioso para tomar decisões. Ele
não sabia rir ou gostava de fazer gênero de homem sempre sério e preocupado com o
destino da humanidade. Careca, com um ou outro fio solto no final da testa. Usava um
terno escuro de uma cor indefinida, sem gravata. Sua voz era imperativa. De pessoas
acostumadas a mandar. Ele contou, por duas vezes, as cinco cadeiras e notou que uma
estava vazia. Franziu o sobrolho. Demonstrou irritação e disse:
– Onde está o Velho? – Seu olhar penetrante entrou nos olhos de cada um dos
participantes da reunião realizada numa casa de aluguel para fins de semana em Campos
do Jordão. – Se ele não chegar em cinco minutos começamos a reunião. Aproveito para
deixar bem claro que eu conduzirei o encontro.
– O senhor já deveria estar aqui. – O tom só não se alterou mais porque ainda
faltavam dois minutos para o encontro começar.
– Estou aqui na frente da casa, mas estes seus seguranças são burros, disseram
que todos os convidados já haviam chegado.
– Me desculpe, reconheço que o senhor tem 80 ou mais anos, mas esquecer que
esta é a senha é demais. – Ironizou o governador na frente de seus outros três
convidados. – A contrassenha é: “Eu já liguei pedindo para colocar água da feijoada”.
Foi possível ouvir o Velho repetindo a sentença e o segurança o advertindo: “Passe logo
porque o homem está em um daqueles dias”.
– Não reclame e nem me venha com falta de educação. Sei ser tão ou mais mal-
educado do que o senhor. Respeite-me para ser respeitado. – O Velho já entrou disposto
a disputar a liderança do encontro com o governador. O bigodudo que estava sentado à
direita do governador deu um sorriso educado, mas ninguém percebeu porque não dava
para ver os dentes dele. O Barão, cabelos totalmente brancos e como os de um porco
espinho, soltou uma risada, esfregou as mãos entre as pernas como se estivesse
divertindo com a necessidade de hierarquizar o encontro.
– Daqui a pouco alguém vai baixar o centralismo democrático e eu, como único
anarquista deste país, serei obrigado a sair em sinal de protesto.
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
– Oito horas. Vamos parar com esta punheta. – O governador tirou do bolso
interno do terno um segundo celular que insistia em tocar enquanto discutia com o
Velho. Ele ouviu durante cinco segundos e desligou sem se despedir.
– O maluco da praça vai matar o presidente amanhã. Ele dorme tranquilo em sua
mansão no Pacaembu. Isto significa que todos os planos estão indo bem, que está
seguro e, se não agirmos rápido, este vai ser mais um na longa lista de serial killer de
presidentes. – O Barão agitou-se talvez movido pelo espírito de Bakunin.
– Vou entregar todos vocês, seus canalhas. É só pisar os pés fora desta maldita
casa de burgueses para que eu conte tudo. Vou direto para a Redação da Veja que deve
estar fechada. Mas tenho certeza de que vão abrir uma exceção para uma história como
essa. Acabou a brincadeira.
– Não havia outra maneira de evitar que colocasse a boca no mundo a não ser
envolvendo-o na nossa conspiração. Uma vez aqui e sem ninguém saber onde poderia
ser encontrado, estavam dadas as condições para afastá-lo e mantê-lo num lugar seguro.
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
Foi falta de sorte ele ter sido um de nós a reconhecer o maluco da praça e, depois, a ler
todo o manuscrito. Nós todos sabíamos que tínhamos que trai-lo. Eu não me arrependo
porque há dezenas e dezenas de anos sabemos que todo anarquista é um ser ingênuo,
por acreditar no altruísmo do homem, e perigoso, por usar o terrorismo e o assassinato
de governantes como arma de luta política. – Os rostos do governador, do Velho, do
barbudo e do bigodudo estavam impassíveis. Duros e frios como granito.
– Para quem? Por quê? Já tenho todas as informações que precisamos para tomar
nossa decisão – disse o governador com voz de líder de organização de esquerda dos
idos de 68.
– O senhor, aqui, deve tratar a todos nós como iguais. Estamos no mesmo barco.
Vamos tomar decisões que mudarão a História deste país. Não dê uma de bolchevique e
procure ter um mínimo de educação. – O olhar do governador para o bigodudo era de
ódio, contido. Suas feições se contraíram. Os lábios desapareceram. De raiva.
– Para meu segurança. Homem de minha total confiança que está em São Paulo.
Ia pedir para que ele vasculhasse a cabana do velho maluco na Fonseca Rodrigues,
aproveitando que o homem está em dormindo como uma criança no Pacaembu e que,
amanhã, agirá sozinho para matar o presidente. Ou melhor, tem só a filha como
cúmplice. Quem sabe, confiante no êxito de seus planos, não adiantou a maneira como
vai matar o presidente.
– Faz certo sentido – disse o Velho, pensativo. – A palavra dele tinha um peso
tão grande como quanto o do governador. Era reconhecido como um dos maiores líderes
empresariais do país, líder de um grupo que, mesmo afetado gravemente pela crise
mundial, não podia ser comparado com o Império de Comunicação que tinha O País
como carro-chefe: era pelo menos cem vezes maior.
A idade não havia afetado sua cabeleira farta e penteada com esmero, fixa com
gel e também partida de lado como a do bigodudo. Vestia terno de um azul escuro, de
linho, todo amarrotado e como se fossem dois números a mais. do que ele realmente
vestia. Em pé poderia parecer um espantalho. Compensava a aparência com posições
firmes, decididas, que nunca usavam de meias-verdades. Pagou caro por isso. E ganhou
o respeito da sociedade. Ele passou a língua pelos lábios e disse calmamente:
– Suspendemos a reunião por duas horas enquanto ele vai e volta. Pode descer
no heliporto do Shopping Villa-Lobos, que fica a menos de cinco minutos, do
“escritório” do nosso Bonaparte e ir direto até a poltrona. E, se não encontrar, volte
imediatamente, pois não podemos perder tempo. – O Velho dirigiu-se ao bigodudo e
pediu para que o segurança fosse pegar o homem de barba, o esperasse ele fazer a busca
debaixo da poltrona para depois levá-lo de volta até o Villa-Lobos. Já o governador, que
dava grande importância à segurança e às ações de inteligência, advertiu:
XVIII
A Arapuca
O barbudo afivelou bem o cinto, cobriu os olhos com a blusa vermelha e esperou
pelo pior. Sentiu o motorista dar um cavalo de pau e voltar pela mesma pista de seus
perseguidores, que, temendo um choque, pois chegaram à conclusão de que o piloto era
um kamikaze, permitiram que ele passasse naquela espécie de corredor japonês de
viaturas negras. Os homens da PF e da Abin não eram tão bons motoristas e não se
sentiam confortáveis nas ruas de São Paulo. A Cherokee seguiu a 260 quilômetros pela
Sumaré quando o homem de barba decidiu olhar por uma fresta da blusa. Viu onde
estava e deu um grito.
O chiado dos pneus foi ouvido na maioria dos bares da Vila Madalena, lotados naquela
noite de quinta-feira.
O homem de barba não tinha noção exata de quanto tempo esteve entre a vida e
a morte. Calculou que foram cerca de 15 minutos. Aproveitou para ligar, primeiro, para
o piloto do helicóptero para que não desligasse os motores e, em seguida, para o
governador.
XIX
Se ela não me matar
Os três estavam já sentados em volta da mesa quando o homem de barba abriu a porta
e entrou esbaforido.
– Ainda não li o documento. Sei que é parecido com o manuscrito. Está escrito
em vermelho e não passa de duas páginas. O governador suspeitou que ele estivesse
mentido. Coçou a orelha e pediu que, primeiro, tomasse um café bem quente para
espantar o sono.
– Não estou com sono, respondeu o barbudo. Estou com medo. Muito medo de
como tudo isto vai terminar. – Enquanto bebia o primeiro gole de café, abriu o
documento e começou a ler em voz alta:
Esta é a cena no Palácio, do jeito que eu a imagino. Como disse, não sou
escritor, ficcionista.
– Bem, caro companheiro, agora receberei a sua filha. Teremos muito que
conversar. Tome, antes, um último cafezinho para celebrar nosso pacto. Reservei pra
nós um bom Cohiba, mas a sala vai ficar com um cheiro da porra quando a Cecília
entrar.
Ele próprio deu a senha para o Plano A. Não haveria sangue. O mordomo entrou,
serviu as duas xícaras e eu, previdente, já deixei os tabletes na mão. Deixei que
deslizassem suavemente para as duas xícaras. Mexemos. Olhei para o presidente vivo
pela última vez. Quando íamos beber, eis que surge a adorável Cecília.
– Não estou convidada? Tinha uma xícara na mão, que colocou sobre a mesa de
centro para beijar o presidente e para um “Tudo bem, papai?”
Não esperava que ela entrasse naquele momento. Peguei minha xícara de café e
bebi. Estava suavemente doce. O presidente bebeu o dele, reclamou que estava melado
e com gosto estranho. Trinta segundos depois de beber, caiu pesadamente no chão.
Cecília deu um grito. Grito de medo. Pavor. Colocou as mãos na barriga. Os pés do
presidente ainda batiam contra o chão desordenadamente quando os seguranças
entraram.
Via-se claramente que não entendiam o que acontecia. Eu com o pires na mão. O
presidente caído. Cecília urrando de dor. Ela não resistiu e caiu desmaiada. A confusão
era total. A secretária, primeira a entrar no gabinete, notou que o presidente não mais
respirava e saiu a gritar pelos corredores. “Ele morreu!” “Ele morreu!” Portas foram se
abrindo.
No Sírio já esperavam por Cecília. Meu médico pediu uma lavagem estomacal.
No jatinho ele fez com que Cecília vomitasse sem parar. Ela estava sedada. Foi para a
UTI. Um mês depois, saiu do hospital candidata à presidência. Aconteceu tudo aquilo
que eu previra: acusaram os inimigos do presidente pela morte, o partido do presidente
esfacelou-se, dilacerado por brigas internas fruto de sua herança política; e os aliados
não tinham um só nome forte para lançar contra a minha filha.
O País sofreu um golpe severo. O povo saiu às ruas num choro de quem havia
perdido o pai. A economia teve um baque: Bolsa em queda e risco-Brasil em alta. Mas
o caos durou apenas um mês. A primeira pesquisa do Ibope, dois meses depois da morte
do presidente, revelou que minha filha Cecília tinha 67% das intenções de voto. Ganhou
em primeiro turno: 70% por cento dos votos válidos. Os brasileiros estavam orgulhosos
da primeira mulher que iria ocupar a Presidência da República.
Fui duramente interrogado pela Polícia Federal. Não tinha nada o que dizer. Só
me restou uma opção: voltar ao meu escritório. Tomei esta decisão dois meses depois da
morte do presidente. Antes de vestir novamente a roupa de meu personagem, fiz, em
cartório, um documento passando para Cecília todo meu império. Até a eleição de
minha filha, continuei representando o louco manso.
– Se o senhor vai tomar uma decisão solo, é melhor irmos embora e cada um de
nós vê qual a melhor medida a ser tomada. Não é o que eu aconselho, mas diante de seu
ato de menosprezo com seus companheiros. – O governador levantou-se como se fosse
abandonar a reunião, puxou o paletó do terno, empertigou-se e caminhou em direção à
porta quando ouviu a voz do homem de bigode e voltou.
– Cada palavra deste documento tem uma mensagem oculta. Se não soubermos
quais são, o melhor mesmo é não fazer nada. Algumas coisas parecem óbvias e outras
nem tanto. Vou enumerá-las: primeiro e mais importante, o maluco não confia na filha –
ou acha que ela quer ocupar já o lugar dele – e está pronto para sacrificá-la sem piedade;
segundo, o maluco está pronto para operar dentro do padrão do assassino em série que
existe dentro dele, ou seja, vai usar os torrões de açúcar; terceiro, o crime será cometido
quando for servido aqueles abomináveis cafezinhos com água que um mordomo insiste
em servir no Palácio do Planalto de minuto em minuto; quarto, ele não espera que a
filha esteja presente no início do encontro com o presidente, mas não afasta a
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
possibilidade de que surja de um momento para outro; quinto, se ele interromper, ele
será obrigado a mudar de plano e, neste caso, vai preservar a filha e fazer aquilo que
mais gosta na vida; e, sexto, ele montou um grande esquema de fuga, deixando o jatinho
preparado para escapar em meio à balbúrdia que será criada enquanto o presidente
estiver morrendo. – O rosto do velho estava tenso. Frio e gelado. O homem de barba
levantou a mão timidamente, anunciando que queria falar e como se estivesse presente à
apresentação de uma campanha para um cliente:
– Creio que a análise está perfeita. Mas temos que considerar que os Serviços e
Inteligência também descobriram alguma coisa. Não posso dizer o quê. Mas nada
justificaria aquele carnaval que fizeram quando eu fui buscar o documento. Ninguém
aqui pode se esquecer que alguns dos homens e mulheres que cercam o presidente
foram da ALN, da VAR Palmares e da VPR. Conhecem luta na clandestinidade. Ou será
que o objetivo deste grupo é, também, ver-se livre do presidente? O partido deles, sem o
presidente, não existe, é um amontoado de correntes e facções. Deste jeito, todos
querem matar o homem, menos este grupo de altruístas insones reunido
clandestinamente. Quem perde e quem ganha imagem e poder com esse assassinato? –
O homem de barba deixou a pergunta no ar.
mostrava gotas de suor. Ele retirou um lenço branco do bolso, passou primeiro pela testa
e, depois, por todo o rosto. Os outros participantes do encontro chegaram à conclusão de
que ele tinha sono, pois eram quase seis da manhã. Ele tomou três xícaras de café frio e
perguntou.
– Eu concordo, mas quero estar junto. Assim como você, governador, tenho um
bom motivo para estar com ele numa emergência: mostrar a campanha do Bolsa Família
e das obras do PAC que será lançada depois de amanhã durante o Fantástico e, no
mesmo horário, em todas as emissoras abertas e de a cabo do País.
– Deste jeito, vamos acabar indo todos. Só falta o velho encontrar uma desculpa.
– Se você que dizer algo, que o diga em alto e bom som. Estamos todos atentos.
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
– Estava dizendo que não devemos deixar o presidente ser assassinado, contar
todo o plano, desmascarar o maluco da Fonseca Rodrigues, e conseguir, do presidente, o
compromisso de apoiar o governador aqui nas eleições de 2010. – O governador, que
não sabia sorrir, esticou os lábios. Estava contente e calmo. O barbudo pediu novamente
a palavra:
XX
Passeata no Palácio
– Bom dia, senhor. Seria possível me ligar dentro de meia hora? Só preciso
tomar banho e fazer um café bem preto. Acordei com uma terrível dor de cabeça.
– É muito rápido. Tenho motivos sérios para falar como presidente ainda hoje
antes do meio da tarde. Estou viajando às 11 horas, de jatinho, para Brasília. Preciso
dormir um pouco. Você sabe que fico acordado durante a madrugada. É quando consigo
pensar. E trabalhar. – O secretário cortou a digressão do governador, que parecia aceso e
com toda a energia, para dizer:
A meditação durou até o momento que o telefone voltou a tocar. Era o homem
de bigode que também precisava falar com urgência e pessoalmente com o presidente
naquela tarde. Estava em São Paulo a caminho de Guarulhos e a secretária dele já havia
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
marcado sua passagem para as 10 horas. Ele, ao contrário do governador, era polido e
respeitoso:
– Aqui é o secretário...
– Conheço bem sua voz, afinal tudo o que é importante em propaganda nós
decidimos juntos. Se o senhor não fosse considerar uma ofensa eu diria que é o Goebls
do nosso presidente. – O secretário começou a coçar a palma das mãos, sinal próprio de
impaciência e perguntou:
– Como adivinhou?
– Minha equipe de criação criou uma campanha que garante o terceiro mandato,
a eleição de quem o homem escolher... Não chamam o programa Bolsa Família de
assistencialista? Pois bem, a partir de agora as obras do PAC serão a porta de saída tão
desejada. Simples assim: os que recebem o benefício do governo terão prioridade,
obrigatória, é claro, em todas as contratações feitas no País, quer seja por uma grande
construtora ou pelo Rubayat de Belarmino Iglesias.
Ele acabou o esboço, ligou o laptop e mandou para sua secretária e a secretária
pessoal do presidente. Se houvesse algo errado, o homem o chamaria para fazer os
ajustes necessários. Desceu para tomar café: cereais com mamão, um pequeno
sanduíche de presunto e queijo acompanhado com uma média de café com leite. Todo o
dia comia a mesma coisa. Os garçons estavam acostumados e, quando ele chegava, já
encontrava sobre a mesma mesa que ocupava há anos os cereais e o mamão cortado do
jeito que gostava.
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
XXI
Audiências Mortais
O presidente estava de bom humor naquela manhã de sexta. Decidiu descarregar sua
raiva à tarde durante uma das muitas audiências marcadas pelo seu secretário pessoal.
Teve problemas, sim, com a primeira-dama. Ela reclamou que ele nunca almoçava em
casa, com ela, e esta seria a primeira oportunidade no ano e ele já estava desmarcando.
Ele disse um “ora, meu bem” e um “minha querida” e as coisas tendiam a se arrumar
quando recebeu um telefonema do próprio governador pedindo para que a primeira-
dama estivesse no almoço, pois ela poderia ouvir – “mas não dar palpite”, advertiu –
porque seria importante ter uma testemunha da conversa que os dois iriam ter.
– Oh governador, você quer mandar agora em minha própria casa? E em minha
mulher também? Dizer o que ela pode e não pode fazer? Daqui a pouco você vai dizer
em quais dias eu posso trepar com ela. Ou que está velha e que preciso arrumar carne
nova. – O presidente dava seus recados com brincadeiras. Ele não gostava do jeito
autoritário do governador e sempre levava a conversação para o chão de fábrica quando
o tom era de prepotência.
– Estou querendo ser gentil, para não prejudicar sua vida pessoal. – Respondeu
rápido o governador, tentando se redimir.
– Por que você não vai.... Só não completo a frase porque você às vezes que
outra parece puta melindrosa. Pelos quarenta anos que andamos juntos nesta vida
política de merda eu sei conheço até o cheiro de seu peido. E ele fede pra caralho. Estou
te esperando à uma com arroz, feijão, linguiça, couve e girimum. Comidinha caseira.
Não vá se acostumar. Você vive em restaurante de rico, come aqueles pratinhos
mixurucas e ainda paga uma nota. – O presidente não esperou pela resposta do
governador. Desligou e deu um gargalhada gostosa e contida, colocando as mãos entre
as pernas. Avisou a mulher que estariam na agradável companhia do governador durante
o almoço.
– Você está bem mais gordinho do que da última vez do que nos vimos. – O
presidente, que já havia tomado sua cachacinha de antes do almoço, ficou vermelho e
retrucou.
– Esta sua falta de educação na casa dos outros, este seu jeito de passar pelas
pessoas como um príncipe, a sua empáfia... nunca vão deixar que você venha a morar
aqui. Você é o homem mais irritante que conheci em toda a minha vida. Pior que todos
os picaretas espalhados pelo Brasil. Pior do que aqueles que vêm aqui puxar meu saco.
Pior do que os que só sabem pedir e pedir. Pior do que jornalistas. Você que é um
magricelo amarelento, com uma barriguinha que parece barriga d’água, a imagem de
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
uma caveira ambulante e coisas piores que nem eu sou capaz de dizer, deveria aprender
a me respeitar, a respeitar o povo e a se respeitar. – O governador estava possesso. Ele
poderia considerar-se um amigo do presidente, mas não ao ponto de ter que escutar o
que estava escutando.
– Ora, ora, ora... estes meninos grandes estão brigando como colegiais, dando
murros e tapas com as palavras. Parecem meus filhos quando pequenos. Esta relação de
amor e ódio entre vocês dois ainda vai acabar em casamento. Ainda bem que, enquanto
eu viver, casamento de homem com homem não vai existir neste nosso Brasil. – Ela
pegou o presidente pelo braço, o levou até o governador, os dois se abraçaram e os três
entraram de braços dados no palácio, com a primeira-dama no meio.
– Vamos pegar logo a boia antes que esfrie – disse o presidente.
– Por falar em boia fria, os usineiros de Alagoas e do Brasil inteiro estão lhe
oferecendo algo para...
– Agora, sim, vá tomar nesta sua bunda seca. Já vi seu teste do polvilho. Deu
positivo. Já não tem uma prega.
– Meninos, de novo. Este vinho da Borgonha vai acalmá-lo e este Havana fará o
mesmo efeito no governador. Ela serviu uma dose generosa para o marido e quase
encheu a taça do governador. Os dois beberam como se fosse água.
– Bom vinho – disse o governador. – Pena que não combina com o almoço.
– Os gringos não estão gostando do que estamos fazendo. Têm espião por todos
os cantos. E os satélites, então? O presidente deles já me chamou três vezes para falar
sobre o assunto. Eu desconversei. Este assunto é tão sério, que devemos abandonar
todas as nossas divergências políticas e juntar nossas forças. Hoje mesmo o embaixador
americano vai estar comigo às cinco da tarde, acompanhado do adido militar e do
subsecretário de Segurança, que deve estar chegando chegar ao Brasil a qualquer
momento. O encontro, claro, não está em minha agenda. Nem meu próprio secretário
particular sabe que vai acontecer.
Ninguém tocou nos pratos de comida. Os dois homens estavam tensos, muito
tensos. O governador não apenas pela crise com os Estados Unidos que estava muito
próxima, mas também com a possibilidade de a CIA ter acompanhado a reunião de
Campos do Jordão. Ele tomou naquela mesma hora a decisão de não falar com o
presidente sobre o maluco da Fonseca Rodrigues e seus planos para assassiná-lo, assim
como havia feito com todos os outros chefes de Estado que morreram misteriosamente.
– Muito bem, assim ele aprende onde botar o pinto na hora do aperto. Peça ao
homem de bigodes para entrar. Temos que ser rigorosos no horário de cada audiência.
Esta parece ser uma sexta-feira 13, minha filha.
– O caralho!
– Ele sempre está naqueles dias. Quase dei um murro na cara daquele filho-da-
puta.
– Mas as pesquisas mostram que ele está na frente de todos os nossos candidatos
e que se as eleições fossem hoje ele estaria ocupando esta sua cadeira. – Em geral, o
presidente recebia seus convidados sentados em um conjunto de poltronas vermelhas de
couro. Mas naquele dia estava com pressa e aquele o homem de bigodes trabalhava para
ele.
– O que está acontecendo?
– Presidente, sei que tem poucos minutos e vou dar ordens para fazer o que o
senhor está mandando. Queria apenas lhe pedir um pequeno favor. O senhor sabe que
ando de olho em sua secretária. Trouxe da Finlândia um presentinho para ela e queria
passar aqui de volta às três horas para fazer a ela uma surpresa.
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
– Come quieto, hein? Ela merece. As mulheres feias dão a melhor foda. Vá em
frente, companheiro.
– Vamos ao ponto. Minha agência criou uma campanha que vai lincar o
Programa Bolsa Família com as obras do PAC. O Globo e O País ficarão sem discurso
para seus editoriais contra o assistencialismo. – O homem de barba levantou-se, ficou
nas pontas dos pés e aproximou-se do presidente. – Com isso o senhor elege quem
quiser, até mesmo um poste. Pena eu não ter o “story board” e o primeiro filme da
campanha. – Ele afastou-se da mesa, desenhou com as mãos uma tela ou um quadro. –
Não viu que o presidente tinha abaixado a cabeça e estava rindo baixinho. –
Mostraremos uma família recebendo o dinheiro do Bolsa Família pela última vez e,
depois, caminhando em direção à construção de grandes cidades populares, como as
mexicanas e colombianas, onde receberá uma carteira assinada e jogará para trás o
cartão que, como uma folha tocada pelo vento, vai parar nas mãos da mãe de uma
família do Nordeste que estava precisando da ajuda para manter seus 12 filhos. Nem o
Nizan, nem Duda e nem Washington conseguiriam fazer algo melhor. As pessoas vão
chorar e votar em quem o senhor quiser para ser seu sucessor.
pertencem a esta Nação, não importa se é rico ou pobre. Meus adversários não estão
aqui dentro, isto aprendi desde os tempos das discussões salariais com a Volks, Ford,
GM... – O homem de barba acompanhava o discurso do presidente e balançava a cabeça
concordando. Já imaginava a campanha do sucessor. Teria a conta, porque acreditava
que Duda tinha ficado muito marcado pelas denúncias da oposição.
– Presidente, sei que agora o senhor tem uma audiência com o dono do País.
Não sou ousado o suficiente para pedir que o senhor me deixe participar, pois o império
de comunicação dele faz presidentes, ministros, planos econômicos...
– Fique, porra, um a mais não vai fazer diferença. O Palácio está com gente por
tudo quanto é lado, como em dia de decisão do Campeonato Brasileiro: de um lado,
meu Corinthians e, de outro, o Flamengo. Espero que não dê briga entre as torcidas.
XVII
Velhos e Sábios
Dia D. Liguei para Cecília. Disse a ela que passaria pela Avenida Jaime
Fonseca Rodrigues para ver melhor o doido manso. Ela sugeriu: “Converse um pouco
com ele, veja se conheceu vovô”, e riu um riso franco. Disse que tentaria. Meu jatinho
deixou Congonhas às quatro da tarde. Conversei sobre nelore e outras banalidades com
meu escudeiro médico. Minhas mãos estariam, por hora e meia de voo, nas mãos dele.
Viagem agradável. Às cinco e meia estava em Brasília. Avisei o amigo do presidente,
responsável pela agenda, que me atrasaria “uns quinze minutos”. Disse um tudo bem,
porque o presidente só estaria livre do compromisso anterior às seis e meia. Bom, muito
bom.
– Este jornal de merda – disse quase gritando – publica manchete afirmando que
eu estou incentivando meus companheiros a começar o trabalho pelo terceiro mandato.
Para você, posso ser sincero. Estou mesmo. Não por mim, mas pelo País. O Brasil
começou a ficar grande e será maior ainda. Estes filhos-da-puta devem estar é querendo
mais anúncio da Petrobras, do Banco do Brasil... Não há limite para o apetite destes
viados. Acabarei enchendo o rabo deles de dinheiro de publicidade, se é isso que
querem. Assim, vão aporrinhar a mãe deles, não a mim. Nunca ganharam tanto dinheiro.
Quando entrei, estavam falidos.
– Este porra vai se fuder. Faz chantagem com a pessoa errada – disse. – Bem,
caro companheiro, agora receberei a sua filha. Teremos muito que conversar. Tome,
antes, o último cafezinho para celebrar nosso pacto. Reservei pra nós um bom Cohiba
mas a sala vai ficar com um cheiro da porra quando a Cecília entrar.
Eu não entendi o que estava acontecendo. Sem que eu esperasse, os homens que
visitaram meu escritório, meus amigos diletos, entraram apressadamente na sala,
tropeçaram no tapete persa e caíram sobre as xícaras de café. “Caramba – pensei
comigo mesmo – ainda bem que tenho torrões sobressalentes”. Posso fazer desta
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
balbúrdia uma oportunidade. Ouvi a secretária dizendo que estava chegando outra
rodada de café quentinho. Poderia colocar o torrão na xícara do presidente, sem ter que
suportar os olhares críticos e zombeteiros de Cecília, e eu mesmo me encarregaria de
servi-lo. Quanto mais gente, maior o número de suspeitos.
Eu ouvi um barulho seco, como o martelar de pregos, por atrás da parede que
ficava nos fundos do gabinete. Notei que o presidente também escutou e seu rosto deu
sinais de profunda apreensão. No quarto secreto, quando o governador se levantou para
também entrar no gabinete, um corpo de mulher com fartos seios e longa cabeleira caiu
sobre ele. Não era a de uma mulher qualquer, mas de alguém que sabia lutar muito bem.
Estava tudo escuro no quarto. O governador sentiu a ponta de um revólver encostar em
seu peito. Ele deu um safanão e a arma caiu longe, porque não fez qualquer ruído. A
mulher devia estar atenta ao ruído para recuperar a arma e acabar com aquele invasor do
Palácio que colocava em risco a segurança do presidente. A agente especial, desde a
perseguição em São Paulo, estava convencida de que havia um complô para matar o
chefe de Estado. Ela só chegou ao Palácio do Planalto às três e meia da tarde, quando o
presidente estava recebendo uma comitiva de paulistas. Conhecendo todos os caminhos
do Palácio, não teve dificuldades para chegar à sala secreta sem ser percebida. Entrou
sem fazer ruído no momento em que o governador tentava abrir a porta e entrar no
gabinete Presidencial. Ela não sabia quem era, mas sabia quais eram suas intenções.
– Eu vou lá saber.
– O senhor nos traiu. Está construindo a bomba com a ajuda dos franceses e dos
argentinos. Desconfiávamos disso quando nossos pilotos vieram buscar o Legacy e
fotografaram o arsenal que está sendo construído no Pará. Neste momento os agentes da
CIA estão dentro deste Palácio e vão vasculhar cada gabinete para descobrir os planos
para que nosso presidente possa fazer a denúncia numa reunião extraordinária da ONU.
– O adido militar e o subsecretário também gritavam em inglês. O presidente pulou na
garganta do embaixador e começou a apertar. O rosto dele foi ficando roxo. O homem
de barba atracou-se com o adido e o de bigodes com o subsecretário. Cecília pegou um
cinzeiro de metal que estava em cima da mesa com tampa de vidro e usou a arma para
quase esmagar o crânio dos americanos. Quando quis fazer o mesmo com o
embaixador, o presidente gritou:
– Diga a seus homens que suspendam a busca e que voltem para a embaixada
onde ficarão cercados por tropas do Exército até que todos vocês abandonem o País. O
embaixador reagiu, balançando a cabeça negativamente. Os dedos pequenos e fortes de
um torneiro mecânico voltaram a apertar a garganta do homem. Em volta, um círculo
com os homens de barba e de bigode, Cecília, a secretária com um colar de pérolas, o
garçom segurando a bandeja com o cafezinho pronto para ser servido. Aproveitei para
jogar o torrão envenenado na xícara que eu serviria ao presidente quando acabasse
aquela confusão. O rosto do embaixador começou a mudar de tom, de roxo para verde,
quando ele conseguiu balançar a cabeça tentando dizer um “sim”. Os agentes da CIA
abandonaram o prédio e a agente especial entrou na sala. Abaixou-se e falou ao ouvido
do presidente. Ele soltou o embaixador, pediu que a agente levasse todos para a
embaixada e ali mesmo assinou um decreto de expulsão de todo o corpo diplomático
norte-americano.
– Quero que saibam o por que estou fazendo isso. Além de invadirem o Palácio,
o que não se justificaria em hipótese alguma, jamais isso aconteceu e jamais se repetirá,
um dos agentes da CIA matou o governador de São Paulo, que pediu para repousar em
meu quarto particular antes de partir para seu Estado. Estes canalhas americanos vão
pagar caro pelo que fizeram.
– Puta que o pariu! Não quero café, caralho! E deu um soco na xícara fazendo
com que o café caísse em meu rosto. Não tive como fechar a boca. A ação do veneno,
mesmo em dose mínima, era instantânea. Tive tempo apenas de colocar a mão no peito
e fingir um ataque cardíaco.Nada poderia ser feito para me salvar. Estava
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
- Sua saúde agravou-se muito nos últimos dois meses. Sua fiel acompanhante me
telefonou para contar que o senhor repetia sem parar nomes de nossa História ao dormir
logo após fazer suas leituras noturnas (em sua cabeceira encontrei um livro da
Civilização Brasileira, Maquiavel, A Política e o Estado Moderno, de Antônio Gramsci,
e outro, O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, com as Notas de Napoleão Bonaparte.
Papai, li as notas que o senhor fez notas em todas as páginas: “Presidente forte é aquele
que está sempre preparado para ir à guerra, e vencer”; “Um presidente, ao assumir, deve
renovar totalmente o Estado”; “A fortuna cega o espírito dos homens quando não quer
que se oponham a seus próprios desígnios”.
– Sua acompanhante disse que entre os nomes citados nos delírios noturnos,
ainda no primeiro sono, estavam os de Getúlio, JK, Castelo, Costa e Silva, Tancredo,
PC, Ulysses, Goulart e Lacerda. O nome do nosso atual presidente surgia com
freqüência e monótona rotina ao longo do sono. Não acreditei no relato dela e perguntei:
por que você me dá estes nomes com tanta precisão, uma vez que só tem o primeiro
grau? Ela respondeu timidamente: “Minha filha, não agüento mais ouvir estes nomes.
Tenho todos eles na cabeça. Estou com medo de repetir um a um. repetir quando dormir,
que nem seu pai”. Decidi passar uma noite na casa do Pacaembu. Não só comprovei as
informações da sua fiel acompanhante, mas notei que ao dizer cada nome vinha uma
data: agosto de 54; agosto de 76; julho de 67; dezembro de 69; abril de 85; junho de 96;
outubro de 92; dezembro de 76; e maio de 77. Junto com o nome do atual presidente, a
data hoje e duas palavras: também assassinado! Imediatamente concluí que o senhor
estava muito pior do que eu imaginava.
– Optei por segui-lo durante o dia. Jamais tomaria uma decisão como esta se não
fosse para ajudá-lo. Sempre respeitamos a individualidade um do outro. Eu, com meus
inúmeros casos que você, papai, desconhecia. E o senhor com os casos que nunca soube
nem quis saber. Trabalhara duro até os 80 anos para ampliar o império herdado de
vovô. Nas últimas duas décadas, estivemos ombro a ombro tornando nosso Grupo de
Comunicação tão grande quanto o de Murdoch.
– Aquela estranha transfiguração não fazia sentido para mim, papai. Coloquei
uma peruca negra, peguei meu carro e fiquei presa, como todos os motoristas, quase a
seu lado na Fonseca Rodrigues. Escutava música clássica e movia os braços e a cabeça
para um lado a para o outro, numa tentativa de conseguir ver algo que me ajudasse a
decifrar aquele mistério. Impossível. Na minha frente parou um senhor careca, longas
barbas e óculos, que parecia divertir-se com a minha situação e a sua.
– Aproveitei a sua ausência para fazer uma primeira busca, infrutífera, porque
um desses incômodos guardas noturnos implicou comigo: “Por que está mexendo nas
coisas do doido manso, minha senhora?” Tinha um objetivo: encontrar aqueles papéis
que você estava escrevendo. Talvez eles me dessem indicações sobre o que estava
realmente acontecendo. Abri garrafas com restos de papel, levantei a porta da cabana
onde o senhor supostamente dormia, e nada. Antes de sair, me lembro, fuzilei o guarda
noturno com o olhar.
– Na segunda ida ao escritório, fiz uma busca mais detalhada. Revirei todas as
suas coisas. A única que me chamou a atenção foi uma seringa com um vidrinho que
estava sob um travesseiro dentro da cabana. Não dei muita importância porque meu
objetivo era o de encontrar as folhas. Não me preocupei em colocar tudo em seu devido
lugar porque isso era praticamente impossível.
tinha qualquer fundamento. Fiquei preocupada mesmo com o que ele havia escrito
sobre nossos encontros e a decisão que havia tomado de matá-lo e assumir seu lugar. O
manuscrito de papai, escrito com tinta vermelha e não com a BiC vermelha, descrevia
dois planos alternativos para matar o nosso chefe de Estado. Na verdade, ao longo do
manuscrito ele misturava, como faz todo louco, invencionices com situações reais. Uma
delas: o presidente Lula, que ele chamava de o atual presidente, estava vivo e ele
desenvolveu no livro uma tese de que acabaria morto também. Achei ridículas as
histórias dos torrões de açúcar e o delírio de mandar um presidente se suicidar e ele não
esboçar qualquer gesto de defesa. Nada fazia sentido. Fazia sentido, sim, o desejo de
matar o presidente Lula.
O presidente decretou luto oficial por três dias pela morte do governador,
cancelou o churrasco que teria às oito da noite junto com seus principais ministros. Mas
não cancelou o encontro com o encontro com o velho.
– Dentro de um mês, passada esta confusão danada, vou anunciar ao Brasil que
você é meu candidato à Presidência da República.
– Eu?!
– Você não quis ser governador de São Paulo? Já não foi encostado pelos seus
filhos e sobrinhos? Terá tempo de sobra para governar este país. E bem, porra!
– Aceito.
– O compromisso é: você fica os quatro anos, serão quatro anos duros, mas nós
o ajudaremos a superá-los e, depois, eu volto. Tenho capital político para isso, ainda
mais agora com a campanha do homem de barba, que consolidará minha imagem para
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes
Eram dez horas da noite quando Cecília viu um fusquinha azul escuro, ano 73,
bem conservado, chegar à Granja do Torto. Na direção, o presidente.