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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

SÍLVIO DE CAMPOS MORAES

Senhores
Presidentes

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

SENHORES PRESIDENTES

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PRÓLOGO

Acompanho as histórias contadas pelos moradores de São Paulo desde a


criação do site SP-450. E, há dois anos, decidi escrever uma novela, de
ficção, com base naquele que sempre considerei o principal e mais
admirável personagem desta nossa Metrópole: um velho e solitário filósofo
que mora entre livros numa espécie de barraco montado bem no centro do
canteiro central da Avenida Jaime Fonseca Rodrigues, não muito longe do
já quase saudoso Largo da Batata, que está sendo destruído para dar lugar a
mais uma estação do Metrô.

Figura misteriosa, emblemática e encantadora, este velho de longas barbas


como os velhos profetas, faz com que nossa mente tente descobrir sua
origem, seu passado e, mais do que tudo isso, o que passa pela sua cabeça,
o que vêem seus olhos qual a receita que tem para viver em São Paulo, a
cidade dele e nossa.

Ao terminar minha longa pensata, decidi compartilhar com os leitores do


SP-450 esta história fantástica, que viaja pela História e pelo Brasil, mas
tem como eixo São Paulo, suas gentes e centro político e econômico do
País. Convido os internautas a não apenas ler “Ousar Matar”, mas concluir
a novela de acordo com os novos acontecimentos da vida política. É uma
obra aberta, que pode ser escrita e reescrita ao sabor da vida e da
imaginação de cada um. Acima de tudo, é uma experiência nova para quem
nunca publicou um livro.

SÍLVIO DE CAMPOS MORAES

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Sumário
I Escritório e Bunker...................................... Página 07

II Serial Killer.................................................. Página 13

III Questão de Estética..................................... Página 18

IV O Senhor Governador.................................. Página 22

V Sinal Vermelho............................................ Página 27

VI O Jornalista.................................................. Página 34

VII Se mate, por favor!....................................... Página 38

VIII Cecília, bela e fogosa.................................... Página 41

IX Torrões Assassinos....................................... Página 47

X Morte no Ar.................................................. Página 50

XI Perigo nos Hospitais..................................... Página 54

XII Presidente sem Faixa.................................... Página 58

XIII Paixão de pai. Pela filha!.............................. Página 62

XIV O Império...................................................... Página 66

XV Dia D Menos 5.............................................. Página 72

XVI Cúmplices................................................... Página 77

XVII Bruxos de Verdade....................................... Página 82

XVIII A Arapuca..................................................... Página 87

XIX Se ela não me matar..................................... Página 90

XX Passeata no Palácio...................................... Página 97

XXI Audiências Mortais...................................... Página 103

XXII Velhos e Sábios............................................ Página 110


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Pode se dizer dos homens o seguinte: são ingratos, volúveis, simulam o que não são e
dissimulam o que são, fogem do perigo, estão ávidos de ganância. E, enquanto lhes
fazes favores, são totalmente teus, te oferecem o sangue, os bens, a vida e os filhos,
quando a necessidade está distante; quando esta se aproxima, te viram a cara. Os
homens esquecem com maior rapidez a morte do seu pai que a perda do seu
patrimônio. A natureza dos homens é contrair obrigações entre si, tanto pelos favores
que fazem como pelos que recebem.
Nicolau Maquiavel

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I
Escritório e Bunker

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Escuto a sinfonia de buzinas. Motores ruidosos aceleram à toa. inutilmente. Os


carros param à direita e à esquerda. Não me incomodo. Estou muito concentrado.
Escrevo este manuscrito contando histórias de mortes. Muitas! Montem meu escritório
no canteiro central da Avenida Jaime Fonseca Rodrigues, no Alto de Pinheiros. Você já
me viu alguma vez. Sou aquele velho alto, moreno quase negro, chapéu de jornal,
barbas brancas em desalinho e indiferente ao mundo que o me cerca. Sou um Sem-Teto
desgarrado. Um marginal anarquista seguidor da nova Teoria da Emergência do jovem
Steven Johnson.
Sou como um Dictyostelium Discoideum – DD, um fungo citado por Johnson
para fundamentar a sua tese. DD é aquela pequena massa disforme laranja-escuro que
cobre a madeira apodrecida largada no meio de seu jardim e cresce bem devagar quando
o tempo está úmido e fresco. É quando pode vê-lo. Se as condições do clima mudarem
com o aumento da umidade e o frio, o DD desaparece, some como se fosse uma
pequena poça d’água aquecida pelo Sol de Verão.

O misterioso sumiço desafiou os cientistas por séculos e séculos até que uma
bióloga molecular com doutorado em Física, [Pouco abaixo, Filosofia está com inicial
maiúscula] rompendo os limites das ciências tradicionais, revelou o segredo do
Dictyostelium Discoideum. Revelou o meu segredo. Nada desapareceu do pedaço de
madeira. Em tempos agradáveis, as células do DD passam a maior parte de sua vida
andando cada uma por si e, quando o ambiente é hostil, elas se juntam. O DD é como
um fantasma. Eu sou como o DD. Me auto-organizo. Desapareço e apareço de acordo
com o clima político. Não tenho líderes. E não sou liderado.

Se eu continuar a falar sobre morfogênese e equações de Keller, vai terminar


acreditando em minha loucura. Mas antes de voltar ao mundo real do canteiro central da
Avenida Fonseca Rodrigues, reafirmo que como os DDs apareço e reapareço e que sou
um só e, ao mesmo tempo, milhares. Se não fosse católico romano, diria que meu
mistério vai além do da Santíssima Trindade.

Sussurros de professores da USP me descreviam como uma mistura entre


Machado de Assis e Dom Quixote. Loucos, eles. Entreouvi dois motoristas conversando
sobre meu “lamentável” [Aspas porque é a opinião dos motoristas e não do velho]
estado de indiferença com o mundo que me cerca. Estavam dentro de um Fiat Uno bem
muito bem cuidado, lavado e polido. Deveriam dar aulas na Filosofia. Ela, loira, óculos
de aros redondos, cabelos curtos e louros, algumas sardas e nariz arrebitado. Ele,
cabelos ralos e compridos. Rosto imenso e óculos ainda maiores, um típico intelectual.
Circunspeto! Ares de profunda sabedoria. Mãos finas. Delicadas. Dedos de pianista. A
camisa, Polo. Colorida com o bordado daquela ridícula figura de um homem a cavalo
tentando acertar o taco numa invisível bolinha.

– Gramsci estava certo quando escreveu aquele poema sobre os indiferentes –


disse o homem elegante.

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– Como? – reagiu indignada a jovem professora. – Gramsci não escreveu


poemas. Li Problemas do Materialismo Histórico, Introdução ao Estudo da Filosofia e
do Materialismo, a Ciência e o Príncipe Moderno, Os Intelectuais e a Organização da
Cultura... nem mesmo em Cartas do Cárcere há um poema.

– Sei que leu tudo, e em italiano. Basta! – disse o professor cortando a longa
série de obras do teórico marxista que a mulher havia lido centenas de vezes em
italiano. E de ter trechos enormes bem decorados. Longos e cansativos textos. Antes de
a mulher começar as citações, que só terminariam na porta da Faculdade de Ciências e
Letras, ele declamou como se quisesse que eu ouvisse. E reagisse.
– Odeio os indiferentes.
Acredito que viver
significa tomar partido.
Indiferença é apatia,
parasitismo, covardia.
Não é vida.
Por isso, abomino os indiferentes.
Desprezo os indiferentes,
também, porque me provocam
tédio as suas lamúrias
de eternos inocentes.
Vivo, sou militante.
Por isso, detesto
quem não toma partido.
Odeio os indiferentes.
– Você inventou esse poema – gritou a moça. – Só para me irritar agora pela
manhã, porque sabe que eu abomino o realismo socialista. Você sabe que Lukács já nos
ensinou que a arte, como forma de conhecimento, não pode ser reduzida a um cálculo
político efêmero.

– Sartre, hein? [hein ou hem; não heim] Por que você não cita, com sua sublime
sabedoria seu amado Jean Paul, dizendo que o intelectual deve impedir o homem de se
alienar ou se resignar?
Concordo com ele e com Gramsci, ninguém pode se resignar ante as interrogações do
eu diante do mundo que o envolve.

– Você se refere a este velho louco aí? – e apontou com um displicente dedo
indicador em minha direção.

Eu mantive minha indiferença. Apesar de Gramsci, Sartre e Lukács. Os carros


andaram levando, com o movimento, o resto do denso e promissor debate que começou
a ser travado entre os jovens filósofos, herdeiros das tradições do pensamento da Maria
Antônia. Confesso que senti uma ponta de curiosidade. Para saber como terminou. O
mestre Antônio Cândido daria a palavra final. Mas minha curiosidade era limitada. O
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pior é que, quando me vê, pensa logo como a jovem filósofa: “Mais um doidão em São
Paulo. Esta minha cidade dá de tudo”. Eu é que sou louco!

Não consigo adivinhar, com algum grau de precisão, o que mais passa pela
cabeça de milhares de pessoas que cruzam comigo todos os dias. Acho que algumas –
talvez até muitas – gostariam de ser tão malucas como eu. Criar e viver em seu próprio
mundo. “Delícia de mundo o deste velho”, diria quando, no congestionamento, tivesse
tempo suficiente para pensar sobre a minha, e a sua, condição humana vista por da [ou
pela] janela entreaberta de seu confortável carro.

– Ficou doido de tanto ler, não foi? – perguntou uma doutora, provavelmente
neurocirurgiã do Sírio Libanês.

Ela, cartesiana, pensaria consigo mesmo que: li Sartre e Nietzsche quando tinha
12 anos; dissequei Hegel aos 14; bebi em Schopenhauer aos 15; estudei Filosofia na
Sorbonne e Física Quântica no MIT; e me dediquei, por cinco anos, a uma dissertação
de mestrado sobre a importância dos vírus e bactérias para a manutenção da biosfera.
Enfim, concluiria que minha tese de doutorado, 10 com louvor e distinção, esgotou o
tema “O Desenho dos Sistemas de Comunicação Natural” e que a publiquei em um
livro de 760 páginas editado pela MIT Press, de Cambridge, Massachusetts.

Ao chegar a este ponto, o final da reflexão dela só poderia ser este: “Ele
endoidou muito cedo, jovem ainda, quando brigou com os ambientalistas. Briga feia.
Não queria defender mico-leão, baleia, nada! Queria criar um movimento para deixar a
Terra para uma archaebactéria de três bilhões, quatrocentos e vinte e sete milhões,
seiscentos e vinte e dois mil e quatrocentos e sete anos. E que os defensores do meio
ambiente passassem a usar, em sua comunicação diária, a linguagem não humana dos
animais”.

Erraria em sua digressão, a sábia doutora. Bem que eu gostaria de ser um louco
assim. Afinal, estudo a Dialética Hegeliana a fundo; pratico em meu dia-a-dia a Teoria
dos Jogos; apoio, nas discussões acadêmicas da Fecap, a Nova Síntese Darwinista; e já
percorri os caminhos da Lógica da Pesquisa Científica com Karl Popper. Mas isso não
me fez doido. Ao contrário. Estudar era e é como consigo relaxar antes de dormir. Às
nove da noite, por exemplo, começo a ler Maynard Smith e, às nove e meia, quando
muito às 10, adormeço e sonho como uma criança de três anos. Acordo sempre às
quatro da manhã. Disciplina férrea. Esta rotina só se quebra quando eu tenho
compromissos sociais. Infelizmente, muitos.

Paro de escrever por um momento para rir um pouco de sua ingenuidade a me


ver aqui sentado com esta caderneta envelhecida – sebosa, afirmaria, amparada por
meus joelhos, escrevendo freneticamente com a BiC [assim que aparece no corpo da
caneta] vermelha preto, [vermelha e preto?] já quase um toco.[por quê? Ela quebrou?
Lápis é que fica um toco com o uso] À minha volta, vê estes jornais velhos, garrafas de
plástico vazias, dezenas de livros antigos, títulos que nem mesmo mais existem mais.

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Minha cabana, que fica logo atrás da poltrona onde agora me vê sentado com a
BiC na mão, o intriga. Feita de plástico negro, parecido com o usado nos sacos de lixo
de 100 quilos de sua casa, é comprida, Porque tenho quase dois metros de altura, e
baixa. Está curioso para conhecer seu interior: minha cama; como eu durmo; se não
sinto falta de ar; se entra água quando chove; ou se é quente demais nos dias de verão
de 37 graus, quando não há vento e aquele mormaço que precede as tempestades o
incomoda aí no interior de seu carro. Hoje é um desses dias. Sua camisa está molhada
de suor e você quer chegar logo ao escritório de sua empresa para refrescar-se em um
generoso ar condicionado: 21 graus.

Saberá o quão bobo está sendo ao fazer ilações desse tipo. Quando terminar de
ler estas linhas, a princípio tão disparatadas, ficará surpreso. E pode até soltar um
palavrão: “Este filho-da-puta!...”. Mas seja paciente – mesmo que só por educação e
gentileza com este velho escriba de um só manuscrito. Vou satisfazer a sua curiosidade.
O tamanho de minha cama não deve lhe importa. Nem um pouco. É apenas um pequeno
detalhe.

Também não ligo para o conforto da cadeira amolfadada, que ganhei de uma
vizinha, a dona dos terrenos onde foram construídos os primeiros edifícios, com
apartamentos de milhões de reais, entre a Fonseca Rodrigues e a Marginal, tendo ao
fundo o Parque Villa-Lobos. A poltrona lembra o trono de um decadente rei português.
Ou quem sabe veio direto da Escola de Sagres e nela se sentava o Infante. O
desconforto que sinto ao ficar horas e horas sentado a escrever e o pequeno espaço que
tenho na cabana nunca me incomodaram.

O que me incomoda mesmo é este cheiro de podridão que sobe das águas do Rio
Pinheiros quando começa a chover em sua cabeceira. Nem mesmo sei se ele ainda tem
cabeceira. O que sei, sim, é que fede e muito. O mau cheiro entra em minhas roupas,
nos meus cabelos e penetra em minha pele. Nauseante. Fica por horas e horas dando
voltas em volta de mim, como diria o paulistano Adoniran Barbosa. Envolve, como uma
redoma, este meu escritório no canteiro central da avenida. E estou a mais de
quinhentos metros do rio.

Você, parado no congestionamento nesta hora, bem a meu lado, liga o ar-
condicionado. Sei que de pouco vai lhe adiantar, porque só se lembrou de ligá-lo
quando o fedor já havia impregnado os bancos, o estofamento, o volante... Se abrir a
janela, aumenta o cheiro fétido. Se a mantiver fechada, terá de conviver com o nojento
odor de enxofre até chegar ao trabalho. Ou aonde for.

Posso ser louco, maluco, pirado, doidão, alienado e espiroqueta indiferente ao


mundo. Mas confesso não suportar uma cidade onde o povo fede. Sendo eu parte deste
povo, claro. Como é irritante o cheiro dos gases que saem dos escapamentos dos seus
carros e de outros milhares à minha direita que vão para a Faria Lima e Pedroso de
Moraes e, à esquerda, para o Ceasa, Vila Leopoldina ou para cruzar a ponte do Jaguaré
em direção a Osasco. Mistura de cheiro de álcool, de gás de cozinha, de diesel e de

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gasolina. Coquetel de veneno servido em meio à sinfonia de balbúrdia das buzinas.


[sinfonia de buzinas já é lugar-comum, ainda mais como ironia]

Antes, não me importava muito: havia menos congestionamento. Tudo mudou


muito nos últimos dois anos, desde quando me instalei para trabalhar no escritório do
canteiro central. Naqueles tempos iniciais, podia até sentir o cheiro das flores das
árvores e dos jardins das grandes casas com seus bonitos quintais no Alto de Pinheiros.
Quando, entre um pensamento e outro, olhava para o alto, via uma cobertura de um
verde-claro formado por folhas frágeis e muitas vezes por flores de um azul-violeta do
flamboyant – uma pintura de Rembrandt. Somos amigos: eu e as árvores que me
cercam. Compartilhamos por 24 meses este canto de São Paulo como seres vivos que
somos e frutos da mesma célula mãe, Terra.

Vimos o nascimento de um shopping, o Villa-Lobos, de um parque com o


mesmo nome, prédios e mais prédios, conjuntos de apartamentos de dois/três andares
em condomínios fechados. Editora Abril, Salles, Odebrecht, Gafisa, Fleury, George V
Hotel, escritórios de advocacia, como o Demarest, instalado no colorido Edifício
Takaoka, e outras dezenas de empresas que trouxeram milhares de trabalhadores para as
margens do Rio Pinheiros. No fim de semana passado, por exemplo, venderam em
apenas dois dias um imenso conjunto de prédios na pista externa da Marginal, ao lado
da Estação Jaguaré. O general Augusto Pinochet, em sua obra maestra Geopolítica do
Chile, ensina que seu país é como uma ameba: só sobrevive se continuar crescendo, se
espichando. Assim parece ser a Faria Lima que engoliu os jardins, Itaim, Vila Olímpia
e, agora, Pinheiros, Alto de Pinheiros e, no futuro, Vila Leopoldina.

A Hélio Pelegrini, de um lado, e a Fonseca Rodrigues, de outro, estão sendo


engolidas pelo monstro inventando pelo general-presidente. São 800 carros novos
lacrados emplacados por dia. Prestações baixas. Todos têm, na verdade, um escritório
ambulante. Não afaste a hipótese de que logo-logo [está assim em “Tutóya”] um maluco
como este que você vê a escrever vá desenhar pequenos trailer-escritórios para que
possa trabalhar com mais conforto durante as longas jornadas de congestionamento.

Considero os motoristas, como você, meus vizinhos. Param em frente ao meu


escritório, telefonam falam num sem parar pelo celular, escrevem e-mails em seus
BlackBerrys... E os jovens usam iPhones com um prazer quase sensual para
acompanhar a abertura dos mercados aqui e no mundo. Outros escutam música, pulando
no carro como se estivessem numa discoteca. Mas há também os plácidos. Quem não
tem o que fazer enquanto espera o trânsito fluir me olha. Olhares intrigados, sempre. Eu
a escrever este livro, eles a fazerem especulações malucas sobre um doido manso – eu!

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II
Serial Killer

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Chegou o momento oportuno para lhe confessar que uso meu escritório não só
para escrever este manuscrito que você lê agora com certa dose de desconfiança. “Por
quais caminhos este alienista está a me conduzir?” Pois bem: saiba que é aqui onde eu
preparo meus planos de morte. Gosto de matar. Gosto muito de matar homens. Adoro
Gosto muito de matar homens poderosos. Mais ainda, Gosto muito mesmo de matar
presidentes. Aliás, revelo com antecedência – o que não deveria fazer para conseguir
manter sua atenção até a minha última frase deste manuscrito – que minha paixão
mesmo é assassinar chefes de Estado brasileiros.

Não há quartel-general, bunker, melhor do que este localizado no canteiro


central da bela e arborizada Avenida Fonseca Rodrigues. Nunca um guarda me
incomodou. A Polícia Federal passa ao largo com seus corvos e suas viaturas negras e
soturnas, tendo as sirenes ligadas no volume máximo. Os novos agentes da Abin
[Melhor em AB, forma palavra], em seus carros com placas frias, não conseguem me
ver direito por trás de seus sofisticados óculos escuros. Ainda bem. Estes, sim, têm por
missão desconfiar de tudo. Proteger o primeiro mandatário brasileiro contra eventuais
assassinos em série de presidentes. Este que vos escreve é um deles. Ver conspiração em
cada esquina. Em cada canteiro central. Desconfiar de cidadãos indiferentes e alienados.

Duas frases de Thomas Hobbes já me dariam um álibi intelectual, ético, se assim


o preferir, para justificar meus planos assassinos. A primeira diz: “Um homem livre é
aquele que tendo força e talento para fazer uma coisa não encontra barreiras à sua
vontade”. E a segunda: “A vida do homem é solitária, pobre, desagradável, grosseira e
curta”. O seu argumento seria que essas estão frases fora de contexto, boas apenas para
aqueles que gostam de colecionar citações.

O sentido da frase de Hobbes, por exemplo, dentro do contexto do Leviatã, diz


que no mundo, no estado natural, antes do contrato, antes da ética definindo o bem e o
mal, “não há lugar para o trabalho sistemático, não há artes, não há letra, não há
sociedade e, o que é pior de tudo, há, sim, medo constante e o perigo de morte violenta,
e a vida do homem é solitária, pobre, desagradável, grosseira e breve”.

Por isso, sou obrigado a concordar com seu argumento e reforçá-lo dizendo que,
até agora, os filósofos vêm tentando chegar, sem resultados, a um único sistema ético
defensável e universal. Pode começar pelo velho Platão, passando por Hobbes e
Nietzsche até chegar a Kant e aos modernos John Rawls e Daniel Dennett e jamais terá
condições de dizer se o que eu faço, matar políticos poderosos, é o certo ou o errado.
Quando muito dirá que sou um fiel seguidor do russo Bakunin, um terrorista de direita.
No que estará mais uma vez equivocado.

O que escrevo em meu manuscrito vai convencê-lo de que sou “um louco
pirado” e que, por isso, fui parar aqui no meio desta avenida Fonseca Rodrigues,
cercado por livros “nada a ver” e pelo lixo de sua grande cidade. Um pouco de
paciência poderá levá-lo a concluir o contrário. Eu me considero parte do organismo do
grande animal chamado Leviatã. Mas é importante lembrar que, como ser vivo, este
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Organismo é multicelular, tendo suas células hospedeiras, aquelas que formam o bico, a
asa, o nosso dedo indicador e o polegar. Elas cooperam porque foram programadas para
isso, como aqueles foguetes teleguiados dos tempos da Guerra Fria – lembra? – e jamais
verá o seu indicador brigando com o polegar. Ou as orelhas atuando como uma gang
contra as mordomias dadas ao cabelo, principalmente pelas mulheres. Ou uma
paralisação, greve mesmo, dos músculos peitorais porque você só coça as suas costas.

As hospedeiras, que são ancestrais do grande animal, não têm condições de se


rebelar sozinhas, são escravas do corpo em sua missão de viver, mesmo sendo por
pouco tempo, e obrigadas a jogar em equipe como um time de futebol e a viver em
simbiose com as células visitantes, que estão no mesmo barco, mas se rebelam quando
têm a oportunidade de o fazer. Estas podem mudar de ideia, explorar políticas
alternativas. Um exemplo de que pode não gostar é o das células cancerosas, capazes de
fazer uma reprodução diferenciada e que, no final, é responsável pela destruição do
veículo, do Organismo de Leviatã.

Eu, assim como você ou qualquer pessoa, não agimos no Organismo como
células hospedeiras, aquelas que têm, como os mísseis teleguiados, o seu destino
programado, desenhado, com antecedência. Eu sou um míssil autoguiado. Podemos
fazer um acordo, romper este mesmo compromisso, trair, conspirar para que você morra
e depois brigar com meus aliados e juntar-me novamente à sua companhia para derrotá-
los. Posso tudo. E a qualquer momento. Eu decido, eu faço a hora. Como poderia dizer
Caetano e Gil, o grande animal já me deu régua e compasso para resolver os dilemas
que enfrento da maneira que julgar melhor.

Não sou um defensor das abomináveis teorias dos sociólogos darwinistas que
justificam e acham natural a pobreza, a miséria e a falta de educação de alguns e a
riqueza e prosperidade de outros. Eles consideram tudo isso normal, fruto do desígnio
ou da maneira de agir da Mãe Natureza que seleciona os mais capazes. Certa vez, um
ministro de Desenvolvimento Social, entre uma bicada na tequila e um copo de Brahma,
me acusou de achar natural uma pessoa morrer jovem, pobre e faminta e o mais forte
dominar o mais fraco. Os darwinistas sociais disseram isso. Mas eles são tão cegos
quantos os fundamentalistas religiosos que têm em Deus o equivalente à Mãe Natureza,
Aquele que justifica a miséria, a morte de crianças, a crueldade, a tortura, como nos
tempos da Inquisição.

Ao fazer este corte no discurso, causado por minha indignação diante da


acusação que me foi feita, retomo meu pensamento. Quero deixar registrado neste meu
manuscrito que, se tempo tiver, voltarei a estas questões éticas. Se continuar minhas
digressões neste caminho, meus dedos estarão em carne viva e, quando eu acabar tomos
e mais tomos, muito mais do que os escritos por Hegel..., não terei condições de lhe
dizer com segurança o que é eticamente certo ou o que é eticamente errado.

Ao ler Nietzsche, Spencer, Dennett, Pinker e Chomsky, decidi usar minha


liberdade de célula hospedeira para criar minha própria tese. Não sei se ela é elegante e
lhe dou o direito. Que, aliás, você já tem, de dizer que: “Este cara pirou de vez”.
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Cheguei à conclusão e vou tentar provar que os donos dos grandes meios de
Comunicação, um Murdoch, por exemplo, são células visitantes diferenciadas. Estando
acima do Organismo do Leviatã, do Estado e da Nação, porque ambos são moldados
pelas informações transmitidas pelos Meios. E quem decide quais informações
transmitir sãos os Murdoch, que dão vida e movimento a esta máquina coletiva de
sobrevivência projetada para defender seus cidadãos.

Os donos dos meios [CB ou AB, como acima?] ganharam a capacidade, ao


controlar os memes (teses, pensamentos, princípios, conceitos, filosofias, teorias
científicas, religiões, mitos, lendas...) a serem difundidos ou banidos, de eliminar todas
as células visitantes que colocarem em risco o seu Poder. Eles fazem a transferência da
Informação, as que as pessoas precisam para calcular, projetar, prever, antecipar, criar o
tipo de sociedade em que querem viver. Eles dão as informações para que possa
responder, a cada instante, às questões éticas colocadas e criar um conjunto de normas a
serem seguidas. O incrível Cidadão Kane deve voltar à sua mente, se é que conseguiu
me acompanhar até aqui.

Mas o Cidadão Kane existiu de quando não havia A Rede, este novo sistema de
comunicação que une corações e mentes de todo o mundo sem o controle dos donos dos
meios, que hoje devem estar perdendo noites e noites de sono para tentar dizimar os
concorrentes: eu, você e pessoas de todo o mundo que passaram a ter seu próprio jornal,
TV, revista, filme, livro, quadro, fotografia e livro, [duas vezes livro mesmo? De
propósito?] científico e literário. Tomaram o lugar dos publichers, os donos dos meios
que decidiam aquilo que podia e não podia ser consumido. Os que davam o moderno
nihil obstat. Os que decidiam quais ideias (memes) podiam ou não ser divulgadas.

Os Murdoch viram o equilíbrio estrategicamente estável ser rompido e agora


colocaram milhares de pensadores para descobrir como restabelecê-lo para que não
percam o controle do grande animal, o Leviatã. Hobbes, ao criar o certo e o errado,
entregou o poder real nas mãos de quem controla a informação, antes príncipes e reis
que pagavam sábios, escritores, músicos, pintores e pensadores, todos sob seu mais
absoluto controle porque era a única maneira que tinham de sobreviver. Hoje, nas mãos
dos donos dos grandes impérios mundiais de comunicação, editoras de livros, jornais,
revistas, estúdios de produção de filmes e empresas de rádio e televisão.

Mais tarde, leitor deste meu manuscrito, você entenderá o por que gasto como
um frenético louco a pele de meus dedos que prendem o lápis [lápis? Era BiC!] onde
faço estas anotações, deixando-a quase em carne viva, para explicar os motivos que me
levaram a ser um serial killer de políticos poderosos e de liderar uma nova cruzada para
acabar com a anarquia gerada a partir da descoberta invenção da Internet.

Até agora o grande animal chamado Sociedade Mundial está domado pelas leis
criadas de cima para baixo. Um grupo de revolucionários quer virar e mesa e unir criar
forças que agem de baixo para cima para criar novas maneiras democráticas ou
anárquicas e irresponsáveis como penso de controlar o certo e o errado. O velho Leon
Trostky, morto a machadadas no México, deve estar dançando no túmulo ao ver a
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revolução permanente espalhar-se em silêncio e de forma sorrateira pelo mundo. Não a


comunista, mas a individualista dos Dictyostelium Discoideum que se rebelaram e estão
convergindo para um novo corpo, aliás, o seu próprio corpo de sempre. Fazem isso sem
nenhum controle.

O símbolo deles, em vez da foice e do martelo dos bolcheviques, é a maçã da


Apple, com um naco arrancado como a dizer: a partir de agora o pecado e a transgressão
estão permitidos, nos livramos das correntes invisíveis que nos prendiam e obrigavam a
obedecer aos donos dos meios de comunicação. A Rede está rompendo, ao nos conectar
e permitir o livre fluxo de informação, o Estado centralizado, o conceito de nação. A
Humanidade está a caminho de um cérebro global, não um Organismo global. Não
gosto disso, não quero que isto aconteça. Os Murdoch saberão uma maneira de mudar
tudo isso: começarão por infiltrarem-se nas redes virtuais para passarem suas
mensagens, sua ética e restabelecer a ordem o Universal.

Estive tão absorvido em desenvolver minha teoria, que não vi o tempo passar.
Mal sei se fiquei escrevendo por horas ou por dias inteiros, pois tive, a todo o momento,
que parar para pensar sobre minhas antigas leituras, para alinhavá-las, ter algo coerente
para colocar no meu manuscrito. E coisas modernas, como A Rede, exigem um esforço
sobre-humano de um Velho para ver e entender a Revolução que está acontecendo bem
à sua frente. Entender a convergência de vídeo, áudio e texto me custa demasiado. O
indivíduo vai receber, em tempo real e num único aparelho, absolutamente tudo: o
último filme de Spielberg, a última notícia, o quadro recém-pintado em Madagascar, a
música lançada no aqui e agora pelo Eminenem... O Universo tradicional da Mídia está
sendo rompido, violentado, e não quero ser visto como um carcamudo conservador.
Quero estar na frente desta onda para restabelecer o equilíbrio estrategicamente estável.
Quero ser o provedor.

O motorista que me olha neste instante vê meus olhos brilhando, meus gestos
descontrolados, como os de um maestro de uma sinfonia anárquica. Seguramente pareço
um louco bravo. Ele, ao que tudo indica, deve estar com medo de que eu saia daqui para
assassiná-lo num acesso da mais completa loucura. O velho manso que passa o tempo a
escrever este manuscrito dá lugar a um outro ser, antagônico, raivoso, guerreiro,
criminoso e cruel. As Gotas de suor caem de minha testa, meu chapéu redondo, feito de
papel jornal, está a desmanchar-se, meu corpo sofre convulsões incontroláveis, como as
de um epilético.

Não consigo ver os motoristas que passam de um lado e de outro da Fonseca


Rodrigues, estive como num transe, retirando de minha cabeça, baixando de meu
computador mental, as ideias que me movem, as que me farão agir daqui para a frente e
que eu vou relatar no manuscrito que hora está em suas mãos. Uma coisa é
absolutamente certa: tudo o que estou a escrever está ligado de forma umbilical a meus
planos de matar presidentes da República do Brasil. Você verá!

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

III
Questão de Estética

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

Visitas de verdadeiros alienígenas, daquelas de pessoas que vivem fora de meu


mundo, só recebi quatro nos últimos dois anos. Sem contar centenas de curiosos que
vêm me ver como se eu fosse um animal no Zoológico. Os quatro visitantes vieram ao
meu peculiar escritório de trabalho situado ao ar livre na Avenida Fonseca Rodrigues
para conversar, trocar algumas ideias, discutir filosofia e política, planejar o futuro deles
e da humanidade.

Entre os quatro não incluo uma assistente social da Prefeitura, senhora gordinha
de seus sessenta anos e de fala mansa. De mês em mês, senta-se a meu lado, numa
cadeira de praia que tira de dentro da Kombi da Prefeitura, insistindo, por horas a fio,
para que eu me mude para um albergue municipal.

Os argumentos que usa são banais, de apedeuta: que o lugar é perigoso por causa
dos assaltantes; que poderia pegar doença e morrer porque eu já estava um pouco
bastante velho; que preciso de um mínimo de conforto pessoal, tomar banho porque dá
para sentir meu cheiro de longe; que devo escovar os dentes diariamente; e que há praça
não é lugar para fazer cocô, como os cachorros de raça do bairro. Mulher extremamente
chata. Irritante. Sempre ia embora a balançar a cabeça sem conseguir esconder
contrariedade por não ter conseguido me convencer a deixar o escritório.

Sei muito bem que já cheguei aos oitenta neste ano de 2008. Definitivamente
não acredito que algum dia vos virei a faltar. Tenho um objetivo a ser alcançado: matar
o atual presidente da República. Mas sobre como e quando vou assassiná-lo, revelarei
daqui a pouco. Peço, de novo, que seja paciente comigo. Doido, quanto mais manso for,
maior é a complacência que faz por merecer, não é assim que pensa?

As outras três visitas que recebi foram de personagens estranhos, muito


estranhos. Todos das redondezas. O primeiro, um alto executivo da Salles. Sócio ou
presidente, não saberia dizer com precisão. Ele não me contou como se chamava mas
sei bastante bem quem é. Já estivemos juntos muitas e muitas vezes. Não me
reconheceu quando veio até o escritório da Fonseca Rodrigues. Nem poderia. Ele gosta
de filosofia e de filosofar.

O executivo, baixo, calvo e com barba bem feita, cruzou a avenida, entre os
carros, com passos rápidos. Veio em minha direção, o que me assustou pois pensei que
poderia ser um dos homens da Abin. Educado, ao ponto de parecer tímido, olhou para
dentro dos meus olhos e vacilou como se estivesse avaliando se deveria ou não
conversar comigo. Ele, morador do Alto de Pinheiros, nunca tinha me visto falar com
qualquer pessoa. E eu não gosto mesmo de dialogar. Só comigo mesmo.

– Senhor – começou o executivo.

– O que é? – A minha resposta o surpreendeu, porque pensava que eu era mudo.


Parei de escrever, olhei para as marcas profundas deixadas pela BiC [pois é... Caneta;

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

não lápis...] vermelha colocado entre o indicador e o maior de todos, e também olhei
nos olhos dele. Fiz um olhar de indiferença e de certa superioridade.

– Tenho passado aqui dezenas e dezenas de vezes e vejo sempre o senhor lendo e
escrevendo com disciplina por horas e horas.

– Este é o meu escritório: aqui trabalho, penso, estudo e escrevo. Todos


imaginam que sou completamente maluco. Acho que os outros, como o senhor mesmo,é
que são, anormais! Mas o admiro. Só o senhor ousou me dirigir a palavra além daquela
chata e esclerosada assistente social. Deve ser por algo muito importante. Deve querer
que eu, um sem-teto, saia de seu bairro, não é mesmo? – Prendi a BiC vermelha entre a
orelha e a cabeça, fechei, com cuidado, o bloco do manuscrito, e olhei, pela segunda
vez, bem dentro dos olhos dele. Desta vez com olhar de um paciente doido manso.

– Vim ao escritório para ver se o senhor compartilha de duas de minhas últimas


pensatas que me atormentam e não me deixam dormir: “a estética é estática”; e “eu não
existo”. – Se houvesse uma mesa em frente à minha poltrona, o executivo se sentaria e
pediríamos um salmão e um risoto de frutos do mar, acompanhado de vinho branco
Chablis para seguirmos conversando pelas próximas duas horas. Decidi evitar qualquer
possibilidade de que isso viesse a acontecer.

– O senhor não existe. E existe. Inexiste para bilhões de pessoas que não o
conhecem nem conhecerão e existe, agora, para mim. – Respondi de maneira seca, dura
e ríspida. Ele olhou para mim parecendo mergulhado em profundos pensamentos.

– Mas eu gostaria...

– E quanto à estética ela jamais poderia ser estática. Basta que o senhor entenda
um pouco de dialética. Satisfeito? Ou quer mais? Todos aqueles que fazem arte, os que
escrevem romances e manuscritos como este meu, os que pintam, os que fazem música,
estão interessados numa única coisa: status. São como aqueles passarinhos que buscam
bugigangas coloridas para enfeitar o ninho e agradar a fêmea.

O publicitário [o executivo é publicitário? Seria bom dizer antes] da Salles


coçou a barba, baixou os olhos e cruzou de volta a avenida sem ao menos observar se
vinha carro. Acordou com a buzina de um ônibus, tocada por um motorista ansioso por
andar três metros naquele rotineiro congestionamento.

Quando chegou ao passeio, olhou para mim e gritou:

– Viva! O movimento é que define tudo. Eu, quando estou aqui, faço um
movimento. Não despreze a estética da Publicidade. Veja o que o Duda Mendonça fez
com o atual presidente. Ele já havia feito com o Maluf. Nizan Guanaes, puro gênio
também na propaganda política. Pena o Olivetto estar mais preocupado com o
Corinthians. Ele faria e desfaria presidentes, ministros e planos econômicos. – Ele disse
tudo isso aos berros. Fez das mãos um alto-falante. Eu virei as costas, para que ele não
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

me visse – e comecei a rir. Ainda deu para ouvir o desabafo final de um publicitário que
ficou possesso porque o negócio dele não mais existia, era estático:

– Você ainda tem muito que aprender sobre estética. E política.

Será que este louco pensa que eu disse uma verdade profunda ou se apenas falei
o que primeiro me veio à cabeça. Nunca mais voltou, embora morasse muito perto de
meu escritório. Eu, às vezes, penso nele e na resposta à primeira questão, aquela sobre a
estática estética. Abomino a Filosofia, só creio nas Ciências Exatas. Mas andei querendo
saber se a estética era mesmo estática. Quase encontrei uma resposta nas Teses de
Feuerbach revividas pela Escola de Frankfurt. Fiz uma busca profunda em minha
memória, relembrei Schopenhauer, Kant, Sartre, Adorno, Pinker e Chomsky e fiquei
sem uma resposta séria, consistente. Passei a carregar comigo o dilema de meu amigo.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

IV
O Senhor Governador

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

A segunda visita ao meu escritório foi a do governador. Outro vizinho de


bairro. Ele apareceu quando era quase uma hora da madrugada. Eu dormia
placidamente. Aproveitou que meus pés estavam para fora da cabana para pegar-me
pelo dedão e balançar até que acordasse. De novo meu coração disparou. Estes filhos-
da-puta da Abin descobriram que vou matar o presidente e decidiram me prender de
madrugada para evitar testemunhas. Pisquei o olho algumas vezes, coloquei o rosto para
fora e reconheci o homem que me despertou na melhor parte do sonho, quando eu me
preparava para matar a primeira mulher que havia chegado à Presidência do País. O
governador acreditava que podia acordar um louco manso a qualquer hora sem ser
punido ao menos com uma mordida no calcanhar.

Esquisito este Alto dos Pinheiros. Há muita inteligência nele. Deve ser por
causa da USP. Basta cruzar a ponte da Cidade Universitária para se chegar à principal
universidade brasileira. Dali saíram, direta ou indiretamente, quase todos os últimos
presidentes. Sem as bênçãos da Cidade Universitária Armando Salles de Oliveira,
ninguém governaria o Brasil. Democrático, claro. Os Murdoch paulistanos são os
responsáveis por transformar a filosofia uspiana em verdade única. Para isso usam seus
jornais, rádios e redes de TV.

Os que não estavam e não estiveram sob a proteção do guarda-chuva uspiano


foram virtualmente fuzilados pela esquerda ainda leninista, pela nova direita de Delfim
Netto, pelo centro socialista e socialdemocrata de José Dirceu, pela moderna e evoluída
esquerda de Fernando Henrique e José Serra junto com os novos cebrapistas e,
finalmente, pela direita feroz que nunca colocou a cabeça de fora temendo o
patrulhamento dos filhos da USP. Não quero dizer que os alunos, mestres e doutores
foram chefes de Estado. Um só o foi. Talvez seja por isso que Caetano desabafou: “É
preciso acabar com esta coisa uspiana”. Disse em tom de galhofa por ter sido ele mesmo
adotado como o “enfant terrible” da Universidade de São Paulo.

O governador é um dos meus melhores amigos. Depois explico o porquê. Ele


foi outro que falou comigo sem se dar conta de que estava com um conhecido de mais
de 45 anos. Calma! Você está entrando num mundo que nunca pensou que existisse.
Descobrirá segredos terríveis ao longo desta narrativa. Mas para isso terá que relaxar.

Não tenho estilo. Nem quero ter. De novo a questão de estética estática!
Pretendo apenas narrar como matei seis presidentes – e como matarei o atual – numa
linguagem simples, sem sofisticação. Não sou Thomas Mann, Herman Melville ou
Anton Tchéhhov [Melhor Tchecov, não? Se mantiver Tchéhhov, tirar o acento]. Nem o
grande Bandeira ou seu sucessor Drummond. Jamais serei um Machado, o perfeito.
Menos ainda o sofrido Graciliano com suas frases de fazer morrer. Bem que gostaria de
escrever como Guimarães. Inventou uma nova bíblia, escrita num idioma que se parece
muito com o chinês – cada palavra é um conceito. Você deve ler e reler, ler e reler,
Grande Sertão em busca das verdades e inverdades. É uma heresia – e das grandes –
esta que cometo, induzindo-o a fazer comparações. Sei que você vai se perguntar: “Em

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

quem este maluco se inspirou para escrever este manuscrito e me fazer perder tempo
com sua leitura?”.

O governador, no seu jeito estranho de ser, deveria achar que eu era algum
profeta. Que eu saberia, na minha insanidade iluminada, dizer o que aconteceria nas
próximas eleições presidenciais. Meu desejo era o de que ele fosse escolhido, porque eu
tinha um dilema interno profundo se deveria ou não matá-lo. Ignorando os carros, como
se eles tivessem que parar para que ele passasse, o governador cruzou a pouco
iluminada Fonseca Rodrigues quase correndo, mais rápido foi do que o Executivo da
Salles, disse um seco bom-dia e disparou:

– Quem o senhor acha que será o futuro presidente do Brasil?

Levantei olhos de ternura e de cobiça para minha desejada futura vítima. Quem
sabe seria a última da série. Não que precisarei de forças para matá-lo. Os italianos nos
ensinaram, há muitos e muitos anos, uma maneira singela de acabar com uma vida
humana: uma pequena poção de veneno colocada disfarçadamente num copo de
guaraná. Às vezes esquecemos que nascemos cruéis matadores, que somos predadores
de um tipo especial porque pensamos que basta ver algo “assassinável” para que não
hesitemos um segundo para dar o golpe fatal e prazeroso.

Veja você mesmo: se houver uma daquelas formiguinhas quase invisíveis


passando sobre esta página, agora, você vai matá-la: um ploft acompanhado por
malicioso sorriso no rosto. Um homem feliz pelo seu domínio completo sobre a vida e a
morte. Dos outros. Assim como eu. Só que não gosto de matar formiguinhas. Minha
especialidade são tigres e tigresas. O governador, irrequieto com minha demora em
responder, repetiu a pergunta, acrescentando:

– Você é surdo, meu senhor? – Por causa das muitas vezes que estivemos juntos,
me acostumei com aquela falsa indelicadeza. Agia assim porque era um homem muito
tímido. E achava que ao agredir esconderia sua maior fragilidade. Mas vamos à minha
resposta. Lembre-se que ele não sabia que eu já o conhecia.

– O governador de São Paulo será o próximo presidente do Brasil.

– Eu? – Apontou para o próprio peito e deu um leve e enigmático sorriso,


deixando antever seus dentes pequenos, parecidos com os de uma presa. Minha,
próxima. Já que ele me despertou, acabou com o barato de meu sonho, resolvi montar
uma longa e defensável teoria.

– O atual presidente – não poderia jamais revelar ao governador que eu iria


matar o Chefe de Estado brasileiro muito em breve – tem três candidatos no bolso do
colete. O primeiro é a ministra. Mulher forte. Lembra, mesmo que opacamente,
Margareth Thatcher. O problema para chegar a ser a candidata estava em que nasceu
mineira e está gaúcha. Seus companheiros de partido de São Paulo, todos uspianos no

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pensar, não moverão uma palha pela candidatura da ministra. E, se fosse a escolhida,
nem eles mesmos votariam ou pediriam votos para ela. Seria derrotada.

– Você já começa mal – rebateu o governador abandonando a forma respeitosa


de tratar um senhor de oitenta anos. O presidente é o candidato do presidente. – Eu, pela
primeira vez em dois anos, esbocei um sorriso: “Ham, ham: este homem estará morto e
não terá como se autossuceder. Só se seus companheiros colocarem um ator da Globo
para representar o seu papel”. Eu o ignorei e, por isso, fez uma cara de quem iria
recorrer ao centralismo democrático com um berro, indelicado para com a vizinhança a
esta altura da noite.

– O segundo candidato a candidato, também ministro, tinha o capital dos


programas sociais. Nasceu mineiro e continuou mineiro. Pior, sem contato com os
uspianos. A terceira candidata, a senhora prefeita, era, sim, uma uspiana. Seria a
primeira opção de candidata do presidente para sua sucessão. Candidata derrotada. Pelo
governador de São Paulo. De novo, leitor pouco atento: esta minha previsão não teria
qualquer chance de se materializar porque morto, falo do atual presidente que eu iria
assassinar logo, logo, não indicaria candidato para sucedê-lo. – O governador ouviu
atentamente minhas elucubrações políticas.

– Faz um certo sentido. Mas quando lhe perguntei se o governador era eu, você
não respondeu de imediato. E o Aécio, o Sérgio Cabral, o Eduardo Campos...

– O senhor se faz de burro. Ou é burro mesmo?

– Burro é você. Seu vagabundo! – E com entonação de Chico Buarque: – O


mundo pega fogo e você fica aqui como se nada estivesse acontecendo, metido num
mundo só seu, como um doente mental. Espertalhão! Espertalhão! É isso que você é.
Vou mandar o secretário de Segurança levantar a sua ficha. – Neste momento comecei a
tremer. O governador gostava de informações e não custaria nada para ele saber que sou
um matador de presidentes, um assassino em série. Senti a mesma reação tida com a
visita inesperada do publicitário da Salles. Medo de ser descoberto antes de matar
minha próxima vítima.

– O senhor é burro mesmo – gritei de volta, no mesmo tom. O primeiro


motorista parou para ver o que estava acontecendo. Reconheceu o governador e pegou o
celular, para chamar a Polícia. Era o que eu não queria.

– Será que você é mesmo maluco, meu senhor? – Ele voltou a me tratar
formalmente. Aproveitei a deixa para acalmá-lo.

– A vitória de seu candidato para a Prefeitura de São Paulo desmontou a


articulação do presidente de lançar a e ex-prefeita e, por isso, o senhor pode se preparar
para colocar a faixa presidencial daqui a dois anos e pouco. – Ao longe, na Praça
Paracatu uma sirene soou. Apressei-me para despachar o governador.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

– Vá embora tranqüilo. Tente dormir um pouco. São duas e meia da madrugada


Os loucos, como eu, sabem coisas que os normais nem mesmo suspeitam. Somos
profetas. – Sem se despedir ou agradecer minha resposta, o governador virou as costas e
saiu resmungando.

– Você pensa que é louco? Imagina que é bruxo? Louco e bruxo neste País só
tem um. Eu!

Não olhou para os lados ao atravessar a avenida, um perigo porque durante a


madrugada os carros e caminhões andavam a mais de 100 quilômetros por hora. O
senhor governador desapareceu rapidamente pelas arborizadas e sombrias ruas do Alto
de Pinheiros. Quando a viatura chegou e dois PMs desceram de arma na mão, eu já
fingia roncar dentro da cabana. O motorista alcagüete, vendo que os soldados
caminhavam em direção a ele, ligou o motor e partiu. Respirei aliviado. Homem de
sorte, o governador. Ainda bem que ele não ganhará as próximas eleições presidenciais.
Os bruxos fazem sempre o que eu fiz. Falam o que a pessoa quer ouvir.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

V
Sinal Vermelho

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A terceira visita que recebi foi a que mais me amedrontou. Estive perto do
pânico, pois dificilmente aquele homem deixaria de me reconhecer. Afinal, convivi com
ele ao longo de décadas e, até hoje, nos falávamos todos os dias e uma vez por mês
nossas famílias se encontravam para a feijoada de sábado. O presidente do Banco
Noroeste chegou ao escritório numa Pagero preta, blindada, com motorista, parou do
outro lado da rua, mandou o motorista embora, e cruzou correndo a Eusébio Rodrigues
em minha direção. Gelei. Pressenti que meus projetos para matar o atual presidente
estavam com os segundos contados.

O grande executivo que virou ministro do governo dos trabalhadores olhou fixo
para mim, correu a vista pelos velhos jornais, tentou ler sorrateiramente uma página do
manuscrito, colocou o dedo no queixo e fez um profundo esforço para tentar colocar os
pensamentos em ordem. Havia algo muito errado que não conseguia descobrir. Comecei
a suar frio. Fiquei de lado para dificultar o reconhecimento.

– Quem é o senhor?

– Um louco manso.

– Mas eu te conheço.

– Eu também o conheço. Todos os dias o vejo no banco da frente da Pagero


lendo o Valor.

– É disso que estou falando. Sempre que passo e o vejo sei que nos conhecemos
de algum lugar. Há quanto tempo o senhor enlouqueceu?

– O meu tempo não é o seu. Vivemos em realidades paralelas. O senhor está


preocupado com a economia. Eu? Eu me preocupo em ler e escrever sobre a fragilidade
da existência humana. O meio que cerca este meu fenótipo estendido me é indiferente.

– Pare com este estúpido discurso.

– Pare o senhor de perguntar. Vá trabalhar. Tome cuidado com as oscilações do


mercado. Ouviu na Pan enquanto lia o jornal? Eu ouvi quando um motorista parou aqui
em frente a meu gabinete com a janela aberta e o volume a toda. Tome cuidado com a
crise sistêmica.

– Não desvie do assunto. O senhor me lembra muito... – Os fios do bigode do


executivo começaram a tremer tamanho o esforço que fazia para descobrir o meu
segredo. Como sabia que ele era um leitor doentio, com uma biblioteca maior do que a
do Mindlin, procurei entre meus livros algo que o distraísse. Encontrei uma antiga
coleção de 25 volumes da obras de Eça, doação de uma doce viúva alegre, fiz duas
pilhas semelhantes, com 13 livros cada, coloquei na frente dele e disse.

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– Sente-se. Assim poderemos conversar melhor. – O homem pareceu sair do


estado de transe, olhou para mim como se perguntasse: “O que estou fazendo aqui no
meio desta avenida a esta hora com este maluco em minha frente?”. Mas, sem
capacidade de pensar tanto o esforço que fizera, obedeceu à minha ordem. Nem bem se
sentou e equilibrou-se no banco improvisado, coloquei nas mãos dele o volume ímpar:
Uma Campanha Alegre. O banqueiro olhou o título com curiosidade, colocou atenção
na encadernação, buscou o ano em que foi impressa – 1943, em Oporto, pela Lello &
Irmão, leu a advertência ao leitor feita por Eça em Paris, em 1899, e começou a ler em
voz alta:

– Leitor de bom senso, que abres curiosamente a primeira página d’este livrinho,
sabe, leitor celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou
revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil, que foi para ti que ele foi escrito –
se tens bom senso! – Passaram-se duas horas e o meu amigo só parava para acomodar-
se melhor no banco. Aproveitei para desaparecer. Quando voltei, não estava mais lá.
Nem ele, nem a coleção de Eça. Fiquei imaginando a cara dos motoristas me vendo
substituído por aquele senhor boa pinta, grisalho, terno feito na Itália e gravata francesa
de seda. Em cima de minha poltrona encontrei um bilhete escrito com meu lápis e um
cheque.
“Caro senhor. Envolvi-me com o Eça. Este era um dos poucos livros que eu
acreditava não ter lido. Mas a coleção sob a qual fiquei sentado tem 25 volumes e deve
haver pelo menos um ou dois que eu ainda não li. Junto com este bilhete deixo um
cheque de dois mil reais. Não sei se é o bastante para uma coleção que pode ser valiosa.
Se for mais, me avise pois sempre estarei passando por este seu escritório. Os bancos
nacionais se interessam muito por tipos como o senhor. E eu fui o encarregado de
acompanhá-lo., pois Quem sabe um dia o senhor será a atração principal em um de
nossos centros de cultura?”

Ele preferiu não assinar. Nem precisava. Gostei da ideia daquele meu amigo
maluco de me colocar como chamariz de público nos inúmeros centros espaços
culturais que os bancos estavam abrindo para justificar perante seus clientes os balanços
recheados onde nem espaço havia mais para esconder tanto lucro. Ainda bem, pois era
uma maneira de evitar a quebradeira que varreu grandes e pequenos bancos nos Estados
Unidos e Europa.

A quarta visita – conto rápido para que você não se canse, desista de ler meu
manuscrito, marque a página e nunca mais retome sua leitura ou me troque por um Eça
qualquer – foi do Barão de Itararé. Cabelos brancos eriçados formavam uma espécie de
bambuzal coberto de neve em volta de um campo vazio, a careca. Barba densa, cerrada
e toda branca. Olhos indomáveis como devem ser os olhos do último anarquista vivo.
Camisa com quatro bolsos, daquelas que os cubanos usam, e uma calça de linho
amarrotada cobrindo os sapatos e com a barra suja.

Conhecia bem a história do Barão. Aquele era o neto dele, tal a semelhança. O
personagem sentou-se ao meu lado e começou a contar histórias do Saci Pererê.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

Histórias de não acabar mais. As horas foram passando, e eu querendo que fosse embora
porque teria que traçar os planos do assassinato.

As pessoas em seus carros olhavam para nós e pensavam: mais um louco no


canteiro central. Eu tenderia a concordar desta vez. O Barão era louco mesmo. Varrido!
Com delicadeza, pedi para que fosse embora porque havia um Saci esperando por mim
na cabana e que eu precisava trocar umas ideias com ele sobre meu plano para matar o
presidente da República. Ele riu como uma criança traquina. E, antes de se retirar, fez
um discurso radical:

– Fundei o Partido Anarquista Unificado, o PAU. Unificado porque eu sou o


único militante no Brasil. Mas estou preparando alianças poderosas com a burguesia
nacional para acabar com esta palhaçada de governo no Brasil. José Oiticica ensinou o
caminho, poucos quiseram segui-lo, mas o PAU está firme.

Nunca entendi direito as minhas ligações com este anarquista. Deve ser porque o
conheço desde o início dos anos 70, quando ele era um dos organizadores sociais do
Sesc. e eu me interessei pelo trabalho que estavam fazendo. Até hoje, a semente
plantada há quase 40 anos vem dando bons resultados. É onde a classe média baixa
encontra um pouco de cultura, diversão e esporte.

Houve uma quinta visita, mas desta não tenho muita coisa para relatar: o maior
empresário brasileiro, homem de jeito simples, que gostava de andar a pé apesar de seus
mais de 80 e muitos anos, veio caminhando pela trilha de corrida do canteiro central da
Avenida Fonseca Rodrigues, desde a sede de uma de suas empresas na Praça Apecatu,
até me encontrar. Estivemos juntos nas últimas quatro décadas, mas esta foi a primeira
vez que eu o vi olhar para uma pessoa com tanto ódio nos olhos. olhar. Não disse uma
palavra, nem precisava. Senti-me fuzilado. Ele não deveria gostar de marginais como
eu. Era de uma família batalhadora do Nordeste do Brasil que construiu à custa de
muito trabalho um império industrial. Depois dos olhares assassinos, continuou sua
caminhada em direção a Pinheiros. Quando senti que estava numa distância segura e
que não me ouviria, disse:

– Vai logo, seu metido a besta. Votei e fiz sua campanha quando você quis ser
governador do Estado. Não merecia. Por isso perdeu para um caipira. Você não gosta do
povo como eu. De gente que pelas injustiças do mundo acabou à margem da sociedade,
tentando repensar um mundo novo, não aquele de Huxley, mas um em que não precise
mais de presidentes da República, governadores e prefeitos. Nisto eu até concordo com
o Barão de Itararé. – Devo ser uma espécie de anarquista diferente, pois me considero
mesmo um Dictyostelium Discoideum defensor da Teoria da Emergência. Não há nada
pior quando uma pessoa olha para você e não diz nada. Os olhares de menosprezo e
ódio doem em mim muito mais do que qualquer xingamento. Prefiro.

O fim das visitas permitiu que me concentrasse eu me concentrasse em minha


missão. Eu não tinha muitos motivos para matar o atual presidente: um homem simples,
um homem do povo. Político hábil capaz de juntar os representantes do capital,
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

levando-os a caminhar de braços dados para fazerem o Brasil crescer por muito e muito
tempo. Marqueteiro sagaz que não merecia ser criticado por fazer tantas viagens ao
Exterior e agir, como um mascate, a vender os produtos brasileiros.

Confesso que me diverti muito todas as vezes que nos encontrávamos e


viajávamos juntos para a África, Oriente Médio, América Central e Ásia. Se eu não o
considerasse um homem morto, diria que visitaria até Madagascar e Timor Leste antes
de deixar o governo. Gostava de usar palavrões. De uma boa cachaça de Januária. De
contar segredos de traições. Mas isso não era nada diante da fome insaciável por
mulheres. Era um cavalo garanhão misturado com touro nelore reprodutor. Insaciável
como um rei da Suazilândia.

Uma história de amor impediu que fosse eleito bem antes. Não a que todos
conhecem. Outra. O candidato que disputava com ele o segundo turno da eleição para a
presidência levou para o último debate na TV, o que definiria a eleição, uma pasta azul.
Pediu a um empresário jornalista seu amigo que contasse ao dono da TV Excelsior que
a pasta continha segredos que implodiriam a candidatura de seu adversário: “Dentro
dela, doutor, tem umas fotos de Belém do Pará. As mulheres eram muito, mas muito
mesmo, mais bonitas do que Fafá”.

A notícia sobre as fotos da pasta azul correu de ouvido em ouvido até chegar ao
atual presidente. Na época do debate, disputava a Presidência pela primeira vez. A pasta
foi o bastante para que ele se desestruturasse. Quando chegou à bancada para o grande
debate, suava em abundância. Seus olhos eram os de um animal selvagem ferido. Um
tigre que nunca imaginou que tivesse adversário capaz de enfrentá-lo com armas tão
sujas.

Assim que a primeira pergunta foi feita, saiu batendo, sem qualquer
coordenação, em seu adversário. Parecia muito um Mike Tyson bêbado. Golpes fortes,
sucessivos, capazes de nocautear o grande Ali nos seus melhores momentos. Golpes de
opereta bufa. Não atingiam o fígado ou a cabeça do seu adversário. Perdeu feio o
debate. Muito feio. O debate e a eleição. E na pasta azul não havia fotos. Tenho certeza
absoluta de que estava vazia. Mais tarde o leitor entenderá por que tenho tanta
segurança no que estou a dizer. Peço, com humildade, paciência para eu poder explicar.

Como todos sabem, o governo do candidato vitorioso, o que derrotou o atual


presidente, foi caótico. Cheio de trapalhadas e denúncias de roubalheira que o levaram à
perda do mandato. Mas você está errado novamente, se este é o seu pensamento. O
pecado mortal que o conduziu às profundezas do inferno foi o de menosprezar os
uspianos. O primeiro mandamento para quem quer governar o Brasil é: faça um acordo
com os filhos da USP. Ele os tratava com desdém. Pensava que poderia prescindir deles.
Humilhava a “intelligentsia” paulista. Pedia aos seus assessores que batessem pesado e
duro nos doutores, nos mestres e em seus acólitos. Erro primário.

Os uspianos colocaram as tropas nas ruas e deram o troco. De nada adiantaram


as tentativas de conciliação nos últimos momentos. A USP, esta entidade que está muito
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acima das divergências políticas, econômicas, filosóficas ou ideológicas, puniu o


rebelde presidente e optou por colocar um doutor de verdade, saído de suas próprias
salas de aula, na Presidência da República. Para ficar por muito, muito tempo. No final,
foram só dois mandatos. Seu primeiro discípulo perdeu para um uspiano simples,
homem do povo.

Eu, que me encontro com o atual presidente pelo menos uma vez por semana,
posso confirmar minha tese de que os simples pensam como os doutores. Não seja um
incrédulo, caríssimo leitor. Mas, antes de satisfazê-lo com uma digressão intelectual e
que levaria a uma cesura epistemológica, tenho que contar como será a execução fria e
calculada do hoje chefe de Estado.

Não que seja meu desafeto político. Tenho simpatia pessoal por ele. O que o
levaria fatalmente à morte é a paixão que tenho por matar presidentes e a paixão
desenfreada que ele passou a ter por minha filha. Mulher encantadora, apesar de seus 50
anos e dos quatro filhos. Estava separada do marido. Podia dormir com quem quisesse.
Sempre fez seu próprio destino. Estudou Economia na Alemanha, na Universidade de
Heidelberg, fez mestrado em Harvard e doutorou-se na Suíça, no MID.

Cabelos loiros, encaracolados, cortados não muito curtos. Rosto de um branco


saudável, com sardas sensuais espalhadas aleatoriamente. Pescoço longo e firme. Seios
pequenos, não muito. Dedos de pianista. Nunca vi mais lindos. Quase um metro e
oitenta. Cecília era magra. No limite exato entre o magro e o gordo. Limite que nunca
cruzou a não ser durante a gravidez. Vulgarmente, diria que Cecília é muito apetitosa. O
presidente, quando a conheceu, não conseguiu esconder seu mais profundo desejo.
Minha filha notou e, para minha surpresa, aceitou a corte sem questionar. Marcaram
encontro para novembro, na volta do presidente da visita aos países escandinavos e, de
Cecília, da viagem à China.

Ela queria entender como o capitalismo de Estado do velho Mao Tsé-tung estava
conseguindo fazer a transição para o capitalismo moderno. Previa percalços sérios nesta
caminhada. Não sabia quais. Tinha que entender, dominar esta grande mudança, porque
apenas quem consegue ver longe sobrevive. Este era um dos princípios de vida de
Cecília. Não se cansava de repetir uma frase que leu num livro chinês: “Quanto mais
você estica o arco, mais longe a seta vai”. A doce Cecília assim completava o ditado
chinês: “... a seta vai e atinge a caça no coração”.

Os chineses recuaram quatro mil anos em sua História para traçar com exatidão
o rumo do país para a perpetuidade. Cecília estava segura de que em trinta anos, no
máximo, acertariam o coração de Washington. Não eram imediatistas, como os
seguidores de Bin Laden. Cecília não queria, ainda, pensar em perpetuar a nossa
empresa. Queria antever o Brasil dos próximos 100 anos. Brasil que ela estava pronta
para construir. Foi pensando assim que se juntou aos grandes cientistas brasileiros,
uspianos sem ideologia política ou provinciana, para transformar as ciências da vida no
grande negócio deste século para o País e para sua empresa. Não há empresa grande em
país pequeno, repetia e repetia. Nos dois anos em que estive trabalhando em meu
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

escritório, no canteiro central da Avenida Jaime Fonseca Rodrigues, ela só falou sobre
isso comigo. Ciência da vida! Crescimento sustentável!

Eu estava presente quando os olhares fogosos de Cecília e os famintos do atual


presidente se cruzaram. Naquele preciso instante o clima ficou carregado de
eletricidade. Prenúncio de uma grande e bela tempestade. Não há nada mais espetacular
do que uma rebelião da natureza. Eles combinaram um encontro na segunda semana de
novembro. Primeiro, no Palácio, depois... Por isso, tinha que dar o acabamento final no
projeto para matar aquele homem. Homem simples, do povo, mas presidente da
República Federativa do Brasil.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

VI
O Jornalista

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

Teria mais cinco semanas de planejamento. Pode parecer pouco, mas você
saberá que um experiente e exímio matador de presidentes como eu já não precisava de
tempo para preparar a morte. De outro! Nos meus 80 anos de vida, matar presidente foi
minha segunda prioridade. Sou o melhor matador de presidentes do mundo. Verá, ao
longo deste manuscrito, caro leitor, que não há elaborados ou sofisticados planos
conspiratórios. Nada. Há, sim, esta vontade prazerosa de matar. Matar para viver, tento
às vezes justificar para mim mesmo. Assim como tento justificar que mato por causa
daquilo que penso. Não tenho partido, não namorei Prestes nem Plínio.

Minha experiência como “serial killer” de presidentes (escrevo desta forma


porque sei que você, a esta altura da leitura, assim se refere a mim numa tentativa de me
ironizar como personagem e de desprezar meu trabalho) me dá segurança para, em
pouco mais de um mês, até relaxar a guarda com os afazeres de minha próxima missão.
A última, quem sabe.

Não corro qualquer risco de ser surpreendido enquanto faço estes “apressados”
preparativos de assassinato daqui de meu escritório da Fonseca Rodrigues, sem
ninguém para me incomodar. Sabia que o presidente dera ordens para fortalecer a Abin.
Colocou seu melhor homem no embrião de uma CIA brasileira.

Os nossos novos agentes, saídos dos quadros da jovem Polícia Federal, andavam
vigilantes. Muito vigilantes. Todos os dias uma operação. Com nomes estapafúrdios. A
inteligência era da Abin, e a operação, da Polícia Federal.

Ninguém até hoje sabe explicar como os grandes comandantes do tráfico de


drogas morreram um depois do outro. Feito da Abin. A agência usou um chileno, preso
e condenado pelo sequestro de Washington Olivetto, para conseguir os nomes e
endereços dos mafiosos. Em troca, permitiu que voltasse ao seu país com passaporte
brasileiro.

Os chefões do tráfico – é assim que são chamados pelos jornais – queriam matar
o atual presidente. De certa forma, nossos planos eram convergentes. Mas eles queriam
matar por vingança, como fizeram com Tim Lopes. Os bandidos avisaram antes. Um
erro. Enviaram uma carta ameaçando “acabar com a vida” do chefe de Estado. O
destinatário, um ministro do Núcleo Duro, cuja verdadeira função era proteger a vida do
chefe de Estado. Carta interceptada pelos serviços de segurança. Quem avisa que vai
matar morre primeiro. É a lei. Ali estava eu, louco manso com escritório no canteiro
central da Avenida Jaime Fonseca Rodrigues, paciente e tranquilamente pensando na
melhor maneira de matar o senhor presidente. Não o avisaria, jamais.

Devo insistir que gosto muito de matar. Mas de um jeito suave. Sem
brutalidades. Quando você acabar de ler este depoimento, vai me chamar de feroz
assassino. Estará, mais uma vez, errado: defendo um suave assassinato. Continuamos
com nossas divergências. Usei a violência apenas uma vez, quando matei o meu
primeiro presidente. Ímpeto juvenil. Talvez os meus 27 anos ainda não haviam me
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ensinado que se deve matar como o faria um doido manso. Com suavidade. Se possível,
com alguma ternura. Um predador não tem ódio da presa. Tem fome.

Vivíamos os anos 1950. Meu pai já era dono de um pequeno império da


Indústria de Comunicação. Meu pai começou jornalista nos Diários Associados, mas viu
que seria muito melhor para ele e o Brasil ser dono de jornal do que empregado de
jornalista. Fundou primeiro O País, diário conservador com sede em São Paulo. Em
menos de cinco anos, tinha outros diários fortes em Belo Horizonte, Porto Alegre,
Recife e Salvador.

Encontrou muitas dificuldades para entrar no mercado do Rio de Janeiro, porque


os três jornais lá existentes eram donos absolutos do bolo publicitário, dos classificados,
o que determina a vida ou a morte de um diário. Optou por um jornal popular. Futricas
da corte, paixões e mortes, futebol e mais futebol, sindicalismo e sempre uma linda
morena nua, em página inteira, levaram o jornal para uma inimaginável tiragem de 500
mil exemplares – estamos falando do final da década de 50. Dinheiro vivo.

A vendagem chegou a este número porque meu pai, gênio da política e do


comércio, montou, na então capital federal, um esquema profissional de distribuição nos
subúrbios em paralelo com a distribuição no centro, para as classes médias. A fim de
atingir todo o Brasil, permutava com as empresas de ônibus o envio para as bancas de
estações rodoviárias das capitais de Estado. Um sucesso. Não havia oficina mecânica
que não tivesse o pôster da morena nua. Nenhum motorista de caminhão viajava sem
levar na boleia a morena nua. Claro que meu pai se inspirou nos jornais populares de
Londres e Nova York. Qual o problema?

Quando ouviu falar em TV, pela primeira vez, viajou para a América. Trouxe
técnicos para lançar a segunda Estação Brasileira de TV. Hoje, uma grande rede que
chega a 99 por cento dos domicílios brasileiros. Lidera o mercado há mais de 40 anos.

Ao jornal e à TV, seguiram uma gráfica, uma editora, emissoras de rádio em


todas as cidades com mais de 50 mil habitantes, agências de publicidade associadas às
grandes norte-americanas, do setor, estúdios modernos de cinema onde só fez filmes de
sucesso. A Vera Cruz, no passado, foi a única a lhe fazer frente.

Papai sempre acreditou nos filmes feitos aqui. Não teve, com seus estúdios, o
mesmo destino dos da Vera Cruz. Aproveitamos, nos tempos atuais, o talento da TV
para fazer filmes populares. Cecília e eu ainda não estamos satisfeitos com esta nossa
unidade de negócios. Mas posso aqui revelar que teremos a Universal como sócios.
Nossos diretores já passaram da etapa de troca de cartas de intenção.

Meu velho pai me deu dois conselhos antes de morrer aos 97 anos: saiba, filho,
que o capital não tem ideologia nem fronteiras; queira sempre ser o primeiro, em tudo.
“Estude, estude! Aprenda a ser austero. A reinvestir todo o lucro”. Quando assumi o
império, não só segui seus conselhos, mas sua maneira de fazer negócios: sempre
sinérgicos e adjacentes.
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Hoje, meu grupo é dono do maior portal de Internet, da maior e melhor revista
de fim de semana, de centenas de publicações targuetizadas, de um site de busca igual
ao Google (este foi outro ensinamento de meu pai: copie, meu filho, tudo o que puder e
que estiver dando certo em qualquer parte do mundo) que está cotado em bolsa a um
bilhão e meio de dólares.

Não sei lhe dizer quanto dinheiro Cecília e eu temos. Aproveitei a onda de IPOs.
Com uma fortuna em caixa, comprei a segunda maior operadora de telefonia do Brasil.
Acreditei nas privatizações. Não posso revelar quanto em ações da Vale tenho. Se você
disser que sou o primeiro maior acionista individual, não estará longe da verdade. As
melhores cabeças do País trabalham para mim em planos para juntar todas as mídias
num só aparelho. Vou conseguir!

Ao lhe passar tantas informações, Agora você já sabe que não sou tão maluco
assim. Que meus encontros com o governador, o atual presidente, o diretor do Noroeste,
o sócio da Salles... ocorreram, de fato, e ainda ocorrem. Como rotina. Quem não quer
estar com o homem mais poderoso do País? Donos da opinião nacional, meu pai antes e
eu, agora, tínhamos a tudo e a todos, fato que simplificou ainda mais minha missão
como matador de presidentes brasileiros.

Contarei, sem tomar muito de seu tempo porque já abusei no início deste
manuscrito, a história de cada um dos crimes que cometi. Não em ordem cronológica.
Darei prioridade aos assassinatos que estão sendo úteis ao plano de matar o atual
presidente. Entre um e outro depoimento, vou deixando-o informado sobre o andamento
destes planos. Uso esta mescla em meu manuscrito esperando ser mais claro e objetivo.
Cada assassinato representou um ensinamento sobre como matar melhor e ter maior
prazer no espírito e no coração. Só se mata bem matando. A prática é Mestre.

Orgulho-me de ter o recorde de assassinatos de presidentes. Esta minha paixão


por assassinar chefes de Estado começou quando fiquei possesso com a morte de um
jornalista que trabalhava para um de meus concorrentes. O responsável pela morte foi o
guarda-costas do presidente. Sabia que o próximo a morrer poderia ser um dos meus
jornalistas. Sabia mais ainda que quando você derruba a primeira pedra de uma fila de
peças dominó, as outras caem. É inexorável.

Como meu pai tinha uma bomba nuclear nas mãos – fazia presidentes, políticas
econômicas, derrubava ministros e governadores –, eu tinha acesso muito fácil aos
donos do poder. Estamos falando de meados da década de 50. Tanto isso é verdade, que
participei da última reunião ministerial do presidente que veio do Sul. Diverti-me com a
violenta discussão entre seus ministros. Eu tinha decidido matar o presidente desde 5 de
agosto de 1954. Meu plano era simples. Tinha plena confiança em minha força física,
reforçada por um treinamento disciplinado e rígido, sob a companhia de um instrutor do
Mossad.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

VII
Se mate, por favor!

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Já era madrugada quando a reunião do Ministério acabou no Palácio do Catete.


Fui, sem ser incomodado, ao quarto do presidente. Sabia que ele tinha um revólver
escondido debaixo da almofada de uma poltrona francesa. A que uso no canteiro central
da Avenida Fonseca Rodrigues é uma cópia da que estava na suíte presidencial. É por
isso que a aceitei como presente da velha e rica senhora dona dos terrenos mais valiosos
do Alto de Pinheiros.

Peguei a arma com um lenço e esperei sentado confortavelmente na confortável


poltrona de estampas coloridas do senhor presidente. Ele estava sereno ao entrar e
fechar a porta, delicadamente. Quando me viu com a arma dele na mão, perguntou:
“Que é que tu fazes aqui, meu filho?”. Também respondi com suavidade: “Vim matá-lo,
mas prefiro que o senhor mesmo detone a arma. Assim entra para a História com seu
gesto trágico”.

Ele, vestido de pijama, me olhou com seus aqueles olhinhos espertos e


brincalhões e, secamente, disse: “Tu estás certo. Não estava pensando em me matar.
Queria, se não o encontrasse aqui sentado plácida e calmamente com meu revólver, era
aproveitar o que me resta da noite para planejar como acabar de vez com aquele corvo
udenista. O povo está ao meu lado, como sempre esteve.” Já naquela época o presidente
caudilho era a antítese do pensamento uspiano. Mas eu não queria matá-lo por este
motivo e, sim, por indescritível prazer – não ria, mas ao escrever isso, chego a salivar –
por acabar com a vida de chefes de Estado brasileiros.

O pequeno grande homem não demonstrou qualquer rancor, medo ou raiva. Nem
mesmo se queixou comigo. Quem sabe se comportava assim porque considerava a
morte inevitável e eu era filho do melhor amigo dele. Só pediu tempo para buscar a
Carta-Testamento que, por ironia, eu mesmo escrevera à pedido dele “para uma
emergência qualquer”. Fiquei com a impressão de que gostaria que as pessoas de fato
acreditassem que ele era o autor do documento. Porém, quem ouviu o bate-que-bate da
máquina de escrever no silêncio do Palácio perceberia que a carta já pronta. O
presidente não sabia datilografia e a Olivetti que tinha no quarto servia apenas como
decoração.

Reli com ele a carta: frases precisas, mensagens exatas a serem transmitidas às
futuras gerações... Quando terminamos de ler, me pediu o revólver. Tivemos uma breve
discussão: eu queria que atirasse na cabeça e ele, intransigente, dizia que a bala deveria
atingir o coração. Argumentou que os brasileiros entenderiam melhor seu gesto.

Não gostei da ideia, mas como era ele quem puxaria o gatilho, acabei
concordando. Só o adverti de que, ao decidir por esta opção, demoraria um pouco mais
para morrer e poderia se arrepender quando já não havia mais volta. Hipótese que não
me agradava. Não queria que sofresse. Queria que o gesto fosse interpretado como a
exclusiva, a única saída digna de um homem acuado. E, claro, se isso acontecesse
ninguém jamais suspeitaria que eu provoquei aquela morte.

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O silêncio no Palácio do Catete, quando ele parou de fingir que escrevia à


máquina, era mortal. O tiro ecoou. profundo. Os poucos ministros de confiança, não me
lembro mais quantos, tinham decidido ficar ao lado do presidente para encontrar um
jeito de ter o Exército unido na defesa do poder constituído. Eles foram os primeiros a
subir correndo as escadas do Palácio em direção ao quarto do presidente. Quando
chegaram ao último degrau, me incorporei à troupe assustada e histérica.

Aqueles homens eram muito diferentes do presidente, um sábio. Dono e senhor


da própria vida. Entrei no quarto e não gostei do que vi: o sangue brotava do peito do
velho senhor como se fosse um gêiser, aos borbotões. Seus olhos penetrantes iam de
mim para o ministro da Justiça; dele, para mim. Eu havia advertido o presidente que
teria sido muito melhor o tiro na cabeça. Adianto-me no tempo e revelo ao leitor,
pedindo de novo para que não abandone a leitura do manuscrito pois – há boas muitas
surpresas no final, que matei também – e muito tempo depois – aquele jovem ministro
careca que estava ao meu lado esquerdo enquanto o velho caudilho morria.

Depois de mais de cinco décadas de meu primeiro assassinato, ali estava eu em


meu escritório no Alto de Pinheiros pensando em como matar o presidente atual. A
primeira hipótese era usar a mesma tática empregada na morte do primeiro presidente.
Mas não estava tão seguro assim. Afinal, tinha aprendido que matar é muito fácil. Se
bem que, quanto mais fácil, mais difícil. Explico: os extremos sempre se tocam.

Estava mais fraco. Se o atual presidente reagisse, o que seria bem provável por
ser 20 anos mais moço, gordinho, mas ainda lépido, eu não teria capacidade física para
obrigá-lo a colocar o revólver na boca e puxar o gatilho. Nem mesmo teria como usar o
argumento do primeiro assassinato: O senhor pode entrar para a História com altivez e
pela porta da frente. Não havia uma crise política ou econômica que permitisse bisar o
argumento: o País crescia sem parar, sem o temido vôo de galinha – sobe e desce, sobe e
desce, havia dinheiro farto e uma oposição que sequer formou um grande tribuno, como
aquele ex-comunista do Rio que enfrentou e pelejou com o velho presidente e me deu
um álibi seguro para matá-lo.

O atual presidente estava tão seguro que não temia nem mesmo os efeitos da
crise mundial: “Um tsunami, que chegará ao Brasil como umas marolinhas”. Esperto
este homem. Com isso tranqüilizava o povo, evitava uma corrida desenfreada aos
bancos porque brasileiro é desconfiado, e junto com o presidente do Banco Central e o
ministro da Fazenda tomava todas as medidas preventivas para quando a grande onda
batesse nas margens no litoral do Lago Paranoá.

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VIII
Cecília, bela e fogosa!

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Quem lê o manuscrito deve estar ainda mais irritado comigo. Seria eu o louco
do canteiro central a imaginar coisas que nunca aconteceram? A delirar e escrever?
Escrever e delirar? Ou este depoimento, embora mascarado, é autêntico? Com um
pouco mais de leitura, você já não terá motivos para fazer vorazes severas e impiedosas
críticas a este texto nem para me chamar de charlatão.

Optei por ser o louco manso e estabelecer meu escritório a céu aberto no Alto de
Pinheiros para continuar matando com nível zero de risco. Pergunto pela segunda vez:
quem poderia desconfiar de mim? Ninguém, nunca. Todos os dias, saía de minha casa,
no Pacaembu, perto do Clube Nacional, dirigindo um Passat alemão prata, blindado,
vidros escuros, rumo à Academia. Academia é o nome que dou a este meu escritório
aqui no canteiro central da Avenida Jaime Fonseca Rodrigues.

Estacionava o Passat sempre perto do Colégio Santa Cruz, ao lado de muitos


outros importados, tirava terno e gravata e colocava um blazer branco-cinza-marrom
gasto, manchado de óleo queimado, presente do diretor da Odebrecht, e escapulia pela
porta de um alçapão, camuflado no piso do carro, embaixo dos bancos traseiros, que eu
mandara retirar e para fazer a saída de emergência quando o carro foi blindado. Para
evitar perguntas indiscretas disse aos responsáveis pela blindagem que esta seria uma
rota de fuga secreta. Um argumento inconsistente que aceitaram sem mais perguntar.

Todos os dias da semana me contorcia para deixar o buraco. Meus 80 anos


pensavam muito nesta hora. Só uma vez uma pessoa me viu sair pelo alçapão e
comentou: “O louco manso, agora, decidiu dormir embaixo de carros. Este velho quer é
morrer logo”. Neste momento da narrativa em que o leitor conhece o truque deste
escriba, já pode ter a certeza absoluta de que o louco manso do Alto de Pinheiros é
mesmo um assassino em série de presidentes.

Minha relação com o atual presidente é de amor e ódio. Não o assassinaria se


não fosse por Cecília, por minhas ideias heterodoxas e por este desejo incontrolável de
matar chefes de Estado. Brasileiros! Cecília era minha herdeira em tudo. Agora, como
CEO do Grupo, formou uma “venture capital”, onde aplicou 300 milhões de dólares,
para estudar como nosso grupo poderia crescer ainda mais nos próximos 100 anos a um
ritmo consistente de 20 por cento ao ano.

A ida à China, combinada comigo há ano e meio, era parte desta estratégia de
perpetuidade. Outra, a criação de um modelo de gestão imbatível: cada diretor era dono
de seu próprio negócio. Cecília decidia com eles os resultados que esperavam alcançar,
como e que problemas poderiam enfrentar para ter sucesso e quanto gastariam em cada
projeto. Os primeiros planos criados em parceria com os executivos do Grupo eram
anuais. Passaram para decenais. E hoje só falam em 100 anos como se fossem 10. O
êxito dava a cada um deles muito, mas muito mesmo, dinheiro. Ela – e eu, claro –
ganhávamos a metade do lucro. Para reinvestir.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

Cecília era minha aliada fiel. Eu estava feliz porque ela representava a terceira
geração de raro talento na família. De cem grandes grupos familiares, só dois ou três, no
máximo, sobrevivem com um herdeiro à frente por três gerações seguidas. Em geral, os
herdeiros são administradores medianos. Não foram treinados dentro dos princípios de
austeridade e disciplina que só são assimilados se houver uma férrea educação. Ela
dirigia a operação do grupo há 23 anos, quando aconteceu o encontro com o presidente
que agora planejo matar.

Bela e suave, esta minha filha. Era moça fogosa no namorar. Depois dos quatro
filhos, separou-se do marido jornalista, homem culto, mas que dera para esquecer-se de
suas obrigações masculinas porque vivia perdido em suas reportagens investigativas, em
suas pesquisas e denúncias. Casou aos vinte e separou-se aos 32.

Até hoje, aos 50, deixa seus parceiros de cama alucinados. A delicada Cecília
sempre foi era imbatível como mulher. Com isso quero dizer que fazia tudo em nome de
um bom orgasmo – seu e de companheiro. Eu ficava sabendo dos segredos de alcova
dela ao ouvir sorrateiras conversas vindas de ouvintes e apresentadores da Rádio
Corredor, único meio de comunicação que ainda não conseguira dominar, ser o
acionista principal. Estudo, há tempos, estas redes informais de comunicação. As
modernas teorias sobre organização emergente. Haverá um Chegará o dia em que as
redes de Rádio Corredor e de Rádio Peão serão controladas por mim.

Eu estava escrevendo este manuscrito há uma semana sem nunca perder de vista
que teria apenas mais quatro ou, no máximo, cinco outras para matar o atual presidente.
Preferiria que morresse com um tiro na cabeça e deixasse a carta-testamento. Eu mesmo
a escreveria, como no primeiro assassinato. Pensando bem, pode não ser uma boa
alternativa porque aquele velho barbudo alemão que viveu em Londres garantiu que a
História não se repete. Alguém iria desconfiar porque haveria um padrão.

Como os criminosos gostam de correr riscos não calculados, preparei a carta-


testamento do atual presidente com antecedência. Usei o próprio computador do
gabinete presidencial para prepará-la durante uma madrugada em que fui chamado por
ele para uma conversa particular. Pediu para não publicar a informação de que os
europeus, com apoio de Washington, iriam levar à votação na ONU o plano de
internacionalização da Amazônia. Esta iniciativa estava sendo guardada em sigilo
porque os diplomatas do Primeiro Mundo ainda tentavam convencer o Itamaraty a
convencer fazer o presidente a aceitar a internacionalização, afastando o risco de um
derrota vergonhosa na Assembléia Geral.

Cecília arrancou do primeiro-ministro da Inglaterra o segredo da traição: a


votação seria levada ao Plenário antes do término das negociações. Ela conseguiu a
façanha numa noite de fogoso amor. Dia seguinte, mobilizou por telefone dois jovens e
talentosos jornalistas de O País para começar a escrever a matéria sobre a
internacionalização da Amazônia, via ONU. Nem mesmo o diretor de Redação conhecia
o conteúdo: “Coisa de acionista”, comentou acabrunhado por não ser merecedor da
confiança de Cecília.
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Os jovens trabalharam ligados numa linha direta no organograma da empresa


com a minha filha. Ela aprovou o texto final com a denúncia e decidiu que teria duas
páginas na editoria de Política Internacional, além de manchete de Primeira Página.
Antes de o jornal começar a rodar, o homem da Abin infiltrado em O País, ligou para o
seu chefe: “Eu vi! Em duas linhas de seis colunas estava lá a manchete de Primeira
Página: “ONU internacionaliza nossa Amazônia.” Parem as máquinas, Cecília ordenou
depois de receber meu telefonema.

Fui em meu próprio jato a Brasília para falar com o atual presidente no Palácio
do Planalto: “Se você distribuir o jornal com esta manchete, criará um estado de
comoção nacional como o que aconteceu nos tempos da morte do Tancredo. Eu estou
convencendo estes filhos-da-puta do Conselho de Segurança a não levar este tema para
a Assembléia Geral. Infelizmente não estamos sendo ouvidos. Vão se fuder. São uns
viados, filhos de uma mãe! Caralho, preciso de sua ajuda, pô!”. Eu disse com educação:
“Pois não, chefe”.

Liguei para Cecília, que já esperava por minha chamada, e, de imediato, ela
suspendeu mandou trocar a manchete e substituir a matéria. Houve atraso na
distribuição. Mas um pedido do chefe foi atendido. Avisou ao diretor de Redação que
quem falasse sobre o tema da reportagem teria demissão sumária. Como os salários de
O País eram quatro vezes superiores aos da Gazeta Mercantil em seus áureos tempos,
ninguém falou nada, por prudência e sabedoria. E o presidente conseguiu reverter a
situação criadas por “aqueles filhos-da-puta”.

Aproveitei a panaceia palaciana, durante este incidente, para redigir a nova


Carta-Testamento no gabinete do presidente. Ao terminar o texto de 10 páginas, escrito
em linguagem vigorosa e acessível, tive uma ponta de orgulho de mim mesmo. O que
eu não me permitiria nunca. Usei muito mais o pensamento político de Cecília. Ela
aprendeu muito de política com o primeiro-ministro espanhol, de quem se tornou amiga
íntima, e com quem se encontrava, mês-sim-mês-não, numa bucólica casa em terras da
Coroa Espanhola nos arredores de Madri. Formavam um belo par.

Com o socialista espanhol aprendeu que nada funciona melhor do que o


capitalismo: “Ninguém soube interpretar o Velho Marx. Ele sabia que o capitalismo
poderia durar séculos. Karl Kautsky, o renegado, tentou mudar os rumos do socialismo
alemão. Foi espezinhado.” Ouvir isto depois de duas horas de paixão ensandecida soava
como música aos ouvidos de Cecília, ansiosos por aprender política para uso imediato.
O curso foi de imersão e intensiva.

Quando o espanhol deixou a chefia do Governo de seu país quis abandonar a


Política e mudar-se para o Brasil a fim de viver com sua elegante namorada. O
presidente uspiano foi quem o convenceu a ficar em Madrid, marcar muitas
conferências pelo mundo para mostrar como conseguir, sendo socialista, levar a arcaica
Espanha a ser hoje um país moderno, digno de seus vizinhos mais desenvolvidos.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

“Além disso”, argumentou o uspiano, “você poderá marcar, sem despertar qualquer
suspeita, seus encontros com Cecília para discutir política”.

Cecília, por sua vez, convenceu o presidente uspiano a seguir os passos do líder
espanhol. Ele se concordou, deu sinal verde para as privatizações, o Brasil ganhou e
nosso grupo econômico um pouco mais. Eu, ao contrário do uspiano, gostaria que a
privatização fosse total. Até pensei em também matar este presidente. O sangue do
capitalismo de Estado, onde as empresas eram e são usadas como instrumentos do jogo
político, ainda corria nas veias do mestre presidente.

Passei noites em claro com os amigos dele numa mansão do Alto de Pinheiros,
perto do meu escritório e da casa do governador, para levá-los a influenciar o
presidente. Queria que ele tomasse coragem e privatizasse a Petrobras. Antes de chegar
à poderosa estatal do petróleo, poderia começar pela USP e por todas as outras
universidades federais. Como os alunos das universidades públicas tinham condição de
pagar escolas particulares, o País sairia lucrando. Mas a queda pelo nacionalismo do
uspiano tinha origem também nos quartéis maçônicos.

Quando encantoado por mim, por Cecília e por uma dezena de assessores muito
próximos, todos defendendo com veemência a tese de privatizar a Petrobras, o
presidente chorou e contou histórias das “heroicas” manifestações em defesa do nosso
petróleo, contra o ensino pago e pela autonomia universitária.

Soltou um delicado palavrão – “Caramba!” – ao defender, com maior veemência


ainda, a permanência, nas mãos fortes do Estado, não só da Petrobas, mas também do
Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal. Os bancos estaduais, como o Banespa,
eram diferentes e deveriam ser privatizados, disse. ele. “Pare com isso!”, exclamei. Que
vontade imensa tive de matar esse intelectual. Eu tinha uma ideia muito clara sobre o
País em que queria viver: moderno e avançado. Meu modelo era mais parecido com o
do Canadá e o da Austrália do que o dos Estados Unidos e dos países da Europa
Ocidental.

Os adjetivos que usava para definir “meu país” tinham significado prático:
acabar com os palácios; com os milhões de funcionários públicos; privatizar tudo, sem
qualquer exceção; ocupar de maneira sustentável a Amazônia, expulsar as ONGs;
permitir toda e qualquer pesquisa na área de biotecnologia, também sem restrições;
autorizar a eutanásia e o aborto; reduzir ou acabar com a Câmara e o Senado;
assembléias legislativas, nem pensar. Enfim, passaria horas aqui defendendo meu
modelo para transformar o Brasil numa grande e rentável empresa, com um gerente-
geral em vez de um político presidente ganhando mais do que ganhava o executivo mais
bem pago do País.

O gerente-geral do Brasil deveria ter não mais do que cinco ou seis assessores
diretos. Um para cuidar da justiça; outro, das relações capital-trabalho; um financeiro e
um de desenvolvimento e relações exteriores. Todos eles vice-presidentes, trabalhando
com metas, com planos decenais, com resultados. O CEO do Brasil moraria em sua
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própria casa. Assim como seus auxiliares diretos. Não teriam motoristas, mordomos,
nada! A não ser que pagassem do próprio bolso.

Cidades e estados também teriam administradores profissionais. O povo seria o


acionista da empresa Brasil. Quando o CEO não atingisse os resultados esperados,
quando não houvesse retorno sobre o capital empregado, ou seja, os impostos pagos
pelos acionistas não rendessem, ele seria afastado. De imediato. Os donos do Brasil,
hoje chamados de povo, muitas vezes por preconceito, queriam mesmo é ganhar
dividendos. Tenho horror às políticas sociais. Todas deveriam ser trocadas por políticas
para o trabalho e pela educação. O País deveria ter só empresários, pequenos, médios e
grandes. Todos competentes. Treinados e formados para isso. Meu sonho era o de que o
trabalhador fosse empresário de sua própria empresa, ele mesmo.

Peço-lhe perdão, novamente, pelo longo discurso. Quando me entusiasmo com


minhas ideias, passo a escrever neste manuscrito como um louco delirante. Sou contra
as religiões, todas. Em nome de Deus foram cometidos e continuam sendo cometidos os
maiores genocídios do mundo. E os deuses são guerreiros implacáveis com os seus
inimigos. O Brasil caminha muito a passos rápidos para ser uma nova Irlanda do Norte:
evangélicos de um lado e católicos de outro se enfrentando nas barricadas por idéias
sem nexo. Uma tragédia besta.

Durante o demorado período que gastei para escrever este discurso, sentado na
poltrona imperial de meu escritório, com semblante carregado, o mundo não existiu:
não ouvi o acelerar dos carros, a sinfonia zorra de buzinas, o grito das sirenes, ligadas,
os olhos voltados para mim com muita curiosidade porque eu estava a escrever como
um autor frenético com medo de perder a inspiração do momento – quebrei a ponta de
sete BiCs vermelhas, por sete vezes. Mantenho um bom estoque.

Olhos de inveja, quem sabe. Não há quem não queira ser um louco manso. Até
eu! Doido manso, não doido bravo. Prova disso é que todas as minhas empresas
permaneciam dentro dos rigorosos limites impostos pelo sistema. Não rasgo dinheiro.
“Mas você mata presidentes”, diria, agora, entrando em meu discurso.

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IX
Torrões Assassinos

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Permita-me só por um momento chamá-lo de amigo, pois, se você chegou a


esta altura do manuscrito, começa a achar plausíveis minhas histórias, e está sendo
generoso com este escriba. Entendeu o porquê da vontade imensa que tenho de matar
presidentes brasileiros. Uma vez que você me acompanha, aproveito para voltar aos
planos de assassinar o atual presidente. Plano A: bisar o esquema usado para matar o
velho caudilho em 1954. Plano B: usar tabletes de açúcar nos tanques de combustíveis
ou abastecidos com veneno. Você que segue com atenção meu pensamento lembrar-se-á
de que não gosto de morte violenta. Portanto, não haveria sangue na segunda ação.

Não ria: os torrões de açúcar, em formato de cubo e que são comprados sem
despertar suspeita alguma em qualquer supermercado, podem tornar-se letais e sempre
foram minha arma do crime predileta. Foi essa a arma que usei para matar o segundo
presidente. Mineiro, simpático e mulherengo, era um grande e bom amigo da nossa
família.

Durante dois anos, meu pai reservou para ele, com diligência, uma suíte para
seus encontros amorosos. O dormitório presidencial clandestino ficava camuflado num
andar falso na sede de nosso jornal popular, no Rio. Só ele e meu pai tinham as chaves.
Vez que outra ia visitá-lo no intervalo livre entre a namorada fixa e uma eventual
amante. O presidente mineiro adorava conversar sobre os perigos das aventuras
amorosas. Era simpático, com uma maneira só dele de rir. Como se quisesse esconder os
dentes. Timidez?!

Na época, ele estava conspirando com antigos inimigos para voltar ao poder.
Saiu até um livro com revelações sobre uma grande conspiração relacionando as mortes
do presidente deposto gaúcho, do presidente mineiro o do corvo udenista. Bobagem.
Nunca houve conspiração. Fui eu mesmo que matei os três.

Provoquei um enfarte no gaúcho, durante a madrugada, na estância La Villa.


Quando ele estava dormindo tranquilo, apertei o indicador contra o osso da costela dele
e sussurrei em seu ouvido: É hora de morrer, presidente. Ele abriu os olhos, me viu e
tomou tamanho susto que sofreu um enfarte. Enquanto gemia, escapei. Já o corvo,
bastou uma cepa do que hoje chamam de vírus da gripe aviária. Sempre achei que os
dois já haviam ocupado o centro do cenário político durante muito tempo. Era hora de
se aposentarem, deixando o Brasil crescer sem a interferência de ultrapassados
peessedebistas, udenistas e petebistas.

Conto com mais vagar a morte do mineiro. Como disse, gostava dele. Por isso,
senti grande maior alegria em matá-lo. No domingo, o presidente almoçou comigo e
com meu pai na nossa casa no Pacaembu. Pedi à fiel acompanhante de papai,
cozinheira, arrumadeira, enfermeira e amiga, para preparar um frango com quiabo e
angu, carne de porco desfiada, arroz canjiquinha puxado no alho e feijão tropeiro. Ele
comeu como um presidente. Fui levá-lo até a porta. Quando estavam todos preocupados
com parte da bagagem que havia desaparecido, coloquei três tabletes de açúcar no
tanque do Opala que iria levá-lo ao Rio.
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Nesta época, meu carro era um Alpha Romeo importado. Acompanhei, a


distância e sem ser notado, o Opala 74 em sua viagem pela Dutra. Passava das seis
quando vi que o motorista não conseguia manter a direção do carro sob controle. O
motor falhava. Não houve como evitar o violento choque contra uma carreta. Eu estava
a uns trezentos metros e temi por minha vida, tal a dimensão do acidente. Fui o primeiro
a parar no acostamento. Depois, o número de curiosos foi aumentando. Todos queriam
acompanhar o trabalho dos bombeiros a retirar corpos esmagados.

Enquanto eles serravam a lataria com grande esforço, usei uma lanterna para
buscar alguma recordação do meu ato. Achei um livro, perdido entre os destroços, onde
estava escrito na terceira ou quarta página: “De Jorge Amado para o amigo JK”. No
meio dos jornais e revistas que tenho espalhados em volta de minha cadeira no canteiro
central da Avenida Jaime Fonseca Rodrigues ainda guardo com carinho a contracapa.
Ninguém nunca percebeu. Está hoje, se o leitor quiser comprovar, entre um velho livro
de Heidegger e outro de Gramsci, Cartas do Cárcere, exemplar que ganhei da adorável
da diretora da USP pelas doações feitas ao Centro de Estudos Estratégicos da
universidade.

Elaborei meu Plano B com base no êxito sucesso de experiências anteriores. de


sucesso. Usaria como arma os infalíveis torrões de açúcar. Se o tiro na cabeça não desse
certo, o veneno injetado no pequeno cubo mataria, em segundos, o poderoso e querido
homem que queria ter a minha filha. E este incontido desejo de morte seria aplacado.
Revelo-lhe, bravo leitor, outro de meus segredos: uso, sempre, veneno do sapo
produzido pelos índios katukina, do Acre. Peguei o vidrinho com o veneno, uma
seringa e deixei escondidos na cabana coberta com plástico negro.

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X
Morte no Ar

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Em dois anos trabalhando no escritório da Avenida Jaime Fonseca Rodrigues,


nunca ninguém se interessou pela cabana. Nem mesmo os meninos-ladrões do Largo da
Batata que roubavam de Rolex a roupa de sem-teto para conseguir uma pedra de crack.
A arma do crime estaria em segurança até o Dia D. Assim como estava a do Plano A, o
revólver do próprio presidente guardado embaixo da poltrona de couro vermelho de seu
gabinete.

Eu sabia que ele havia combinado com Cecília o encontro no gabinete


presidencial do Palácio. Sairiam pela porta de emergência. Ele também tinha seu
alçapão. Só uma coisa me preocupava: mataria o presidente antes ou depois dos dois se
entregarem com fúria um ao outro? Este pensamento me atormentava, mais ainda
quando presidia o Conselho de Acionistas com minha filha a meu lado direito sendo
alvo de todos os olhares, de cobiça!

Era a única mulher a ter um assento à clássica e aristocrática mesa de mogno,


que foi de meu pai e em volta da qual, hoje, se sentavam antigos executivos com
participação minoritária, conselheiros externos e o presidente (publisher) de O País. Os
cabeças brancas tinham fascínio por Cecília. Um deles, advogado paranaense famoso e
muito boa pinta, dormiu com ela. E se encarregou de espalhar a notícia de que não havia
no mundo mulher “tão gostosa”.

Cecília foi a primeira a ligar para a mulher do presidente que matei no acidente
no Dutra. Eu lhe passei a informação. Ela tinha pouco mais de 19 anos e o velho casal a
tratava como filha. Ela os chamava de tios: “Tia, o tio morreu num acidente na Via
Dutra. Meu pai está mandando o avião dele para levá-la para o Rio e de lá para
Resende”. A velha senhora não titubeou na resposta: “Brinca disso não, minha filha. Só
porque você sabe que toda semana me chamam para dizer que mataram meu marido,
quer me passar medo?”. Cecília respondeu seca: “Não é hora de brincar, tia. Ele estava
indo para o Rio. O carro bateu numa carreta. E aconteceu a tragédia”. Do outro lado,
depois de um longo silêncio, ouviu-se um grito: “Meu Deus! Meu Deus! Por que ele?”.

Qual será a reação de minha adorável filha ao saber que o homem com quem se
encontraria no Planalto já estava condenado à morte? Duas semanas antes do
assassinato, quando o presidente estava na Suécia e Cecília em Xangai, eu tive um
sobressalto. Notei que Moby Dick, o melhor livro que li em toda a minha vida, estava
fora do lugar em que deixei no escritório da Fonseca Rodrigues. Pensei, primeiro, em
alguém tropeçando nele ao cruzar correndo a avenida, passando pelo canteiro central:
“Pouco provável”. Minha ansiedade aumentou quando vi o plástico da porta da cabana
levantado de maneira quase imperceptível.

Nos dois anos que passei trabalhando neste lugar, sabia o exato lugar onde
estava cada jornal, livro, garrafa plástica; sabia a posição exata da poltrona; da porta da
cabana; e, em dias de muita ventania, era comum encontrar algo fora do lugar. Mas não
chovia em São Paulo havia mais de mês. O nível do reservatório de Guarapiranga tinha
baixado para 62 por cento. Isso aconteceu em outubro. Outubro não é igual a novembro.
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No sábado e no domingo, 10 e 11 de novembro, por exemplo, uma ventania varreu o


Litoral e a Capital. Porém, outubro era mês de calor, não muito, e pouca chuva.

Fiquei intrigado. Passei a tomar muito cuidado na chegada ao estacionamento do


Colégio Santa Cruz e ao sair do alçapão. Passei a escrever o manuscrito com o corpo
mais ereto para permitir que os olhos ficassem com maior campo de visão, mais atentos.
Para afastar suspeitas, fingia ler com atenção a Crítica da Razão Dialética, de Sartre.
Provocava rugas na testa para revelar aos motoristas que estava mergulhado em
profundos pensamentos sobre a existência humana. Queria, a uma semana do
assassinato, que todos acreditassem que eu era apenas o louco manso do canteiro central
da Avenida Fonseca Rodrigues. Devo confessar que os pelos do meu pescoço ficaram
eriçados. Era uma maneira de relembrar minha origem animal: isto só me acontecia em
momentos de perigo, desde criança.

Tive medo que descobrissem que matei um outro presidente quando ele viajou
para o Ceará. Eu estava na cidade para uns dias de praia, cerveja e caranguejo. Foi o que
eu disse aos amigos e aos integrantes de meu império. Minha estadia em Fortaleza
coincidiu com a chegada do ex-presidente à capital cearense. Fui encontrá-lo no
aeroporto com cinco tabletes de açúcar no bolso. Sem veneno, lógico. Não foi difícil
jogá-los no tanque de querosene do pequeno avião. O presidente gostava muito do meu
jornal, O País, que o defendeu quando ele começou a conspirar contra seu próprio
governo para permitir a volta à democracia.

O presidente cearense, como todos os outros que matei, era um amigo de


família. Sério, inteligente, sagaz, culto e, vez que outra, dono de um refinado humor.
Em público, um senhor carrancudo. Gostava daquele baixinho, mas minha compulsão
por matar presidentes era indomável.

O avião voava sobre um conjunto habitacional construído em seus tempos de


chefe de Estado. O presidente e o piloto sabiam que estavam numa área reservada pela
FAB para treinamento de pilotos. Estavam numa altura segura quando o motor começou
a ratear. Os dois homens viram que, se o motor não voltasse a funcionar rápido, seria
impossível evitar a queda. O pequeno avião entrou em rota de colisão vertical com o
Tucano usado para treinamento pela FAB. Choque inevitável no ar. Acompanhei a
notícia sobre o trágico acidente e a morte do ex-chefe de Estado na edição
extraordinária exibida pela minha emissora de TV de Fortaleza.

Tempos depois, usei a mesma tática para matar o presidente da Câmara dos
Deputados. Agora que escrevi tanto, penso que minha paixão sempre foi a de matar
presidentes, mas descobri que não conseguia reprimir meu ímpeto assassino para matar,
também, políticos importantes. O presidente da Câmara estava com a mulher e um casal
amigo num helicóptero que caiu perto de Ubatuba. Ele me ofereceu uma carona até São
Paulo. Com elegância, recusei alegando que iria de Angra para o Rio. Não usaria o
aparelho com o tanque com os cinco cubos de açúcar.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

Aqui no meu escritório de avenida guardo um pedaço do couro da poltrona onde


ele deveria estar sentado. Ganhei do chefe da equipe de resgate. É, hoje, uma das tralhas
jogadas ao léu em volta de meu escritório. Outra recordação de meus mortos. Falei com
Cecília que era necessário dar todo o destaque para as buscas. O mistério do mar, as
mais bonitas praias do mundo, a Mata a Atlântica... criavam um cenário
cinematográfico para a cobertura da operação resgate.

Quando estou entediado ou cansado de tanto escrever, este manuscrito, olho com
vagar para a Carta-Testamento, para o pedaço de couro, para a cópia autenticada do
atestado de óbito do presidente derrubado pelo golpe de 64, onde está escrito: “causa
mortis, enfermedad”, e para a o livro com a seca dedicatória de Jorge Amado ao amigo.
Vivia um dilema interno: deixaria também aqui, como prova do que escrevo, o vidrinho
com o que restar do veneno de sapo, a seringa ou mais uma carta-testamento,
recordações que terei da morte do atual presidente? O Plano A também me incomodava:
não só por dar à Polícia Federal um padrão, mas – e principalmente – pela falta de
criatividade.

O leitor deve ter percebido que meu interesse por detalhes mórbidos é nenhum.
Até hoje, me pergunto como ninguém ligou a série de mortes de presidentes. Suspeitas é
que não faltam. Alguns jornais até que falaram de maneira envergonhada e tímida sobre
as suspeitas de que os presidentes mortos por acidente foram, na verdade, assassinados.
Meu nome nunca foi mencionado. Nem seria. Jamais. Só serei desmascarado se alguém
ler este meu manuscrito, que só poderia acontecer depois de minha morte. Sou
precavido, muito precavido!

As evidências de crime na Dutra, no Ceará, no Litoral Norte de São Paulo eram


muitas. No caso de velho caudilho havia motivos para se pensar em suicídio. Mas
apenas duas perguntas seriam suficientes para revelar que houve um assassinato no
Catete: por que havia um documento, como a Carta-Testamento, preparado com
antecedência, bem datilografado, escrito com muita tranqüilidade e coerência política?
Por que o documento estava já datilografado se o presidente não sabia escrever à
máquina?

Outra coisa que guardo em meu escritório, ao lado da Carta-Testamento, jogado


ao léu embaixo de minha poltrona, é uma pequena bola de papel amassado. Você poderá
encontrá-la dentro de um saco plástico do Pão de Açúcar, guardado depois de uma
compra na Praça Pan-americana, aqui, muito perto. No papel amassado, um “asdfg”
tecladas pelo polegar direito do primeiro presidente que matei.

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XI
Perigo nos Hospitais

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É infinito o ódio que carrego dentro do peito contra presidentes. Às vezes


penso que é porque sempre quis que o governo do País estivesse em mãos do nosso
melhor executivo de empresas privadas. E, nesse caso, eu seria o escolhido. Veja como
meus negócios nunca pararam de crescer.

Os acionistas dessa futura empresa, com potencial ilimitado de crescimento,


empresa chamada Brasil, jamais afastariam seu CEO. Ele, eu, deveria estar como
presidente desde 1954. Durante os últimos 53 anos, o lugar que seria meu, de forma
natural e por mérito, porque sou o mais capacitado líder empresarial brasileiro, ficou em
mãos de políticos, armados ou não. Não digo que tenham sido medíocres. Mas pare um
pouco para pensar como seria este nosso País na mão de um empreendedor como eu.
Claro que enfrentaria alguns problemas: por causa de minha descendência africana; por
não ter um sobrenome pomposo; ou pelas idéias heterodoxas, que vão de um extremo ao
outro, como no caso dos índios. E, por não ser um uspiano, embora nos suportemos.

Sempre quis acabar com esta baboseira de índio. Meu projeto foi e é o de levar
para cada tribo indígena professores melhores do que os da USP e educar os curumins
nos passos das ciências, em colégios construídos nas tribos e equipados com os mais
modernos e sofisticados laboratórios. Quando fossem engenheiros, médicos,
bioquímicos, etólogos, pesquisadores... teriam na memória só uma bucólica imagem da
floresta. Seus territórios – todos! – passariam para o Estado, que abriria ao capital
privado concessões para exploração sustentável da mata e de suas riquezas.

De volta ao mérito que tenho para ser presidente, relato um “case”. Tenho
profunda enorme curiosidade pelas pessoas. Gosto de ver seus rostos, suas peles, como
se vestem e se enfeitam, a maneira de andar e de falar... Enfim, pessoas me fascinam.

Quando comprei o Jornal dos Bairros do irmão do maior escritor vivo do Brasil,
fui visitá-lo na pequena Redação da Teodoro Sampaio. Neste tempo, início dos anos 70,
já era dono de todos os jornais de bairro de São Paulo. Estes semanais, de distribuição
gratuita, estavam atrapalhando meus negócios. Hoje, quase 40 anos depois, o modismo
dos jornais gratuitos voltou com outra roupagem. Sou dono de todos. Saí 40 anos na
frente dos meus concorrentes. Ver antes, ver longe, sempre foi meu lema. de vida. Meu
e da minha adorável Cecília.

A compra do Jornal dos Bairros foi diferente. A opção por fazer a oferta nasceu
de um texto e de uma manchete. O texto era sobre o assassinato da Paineira do Largo do
Butantã. Um dos melhores que li em toda a minha vida. Bem superior aos de Gay
Talese. Hoje, suspeito que o autor de Lavoura Arcaica, tema tenha escrito essa
reportagem. Já a manchete era ousadia pura: “O Brasil não tem um só general negro.”
Era 13 de maio. Era governo militar. Linha-dura.

Ao descer andando a Teodoro para conhecer melhor meu futuro público leitor,
acabei na Praça João Nassar. A praça era conhecida na época e o é até hoje como Largo
da Batata. Está não muito longe do escritório do Alto de Pinheiros. Você pode ir pela
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

minha avenida em direção à Rebouças e, quando ela bifurcar, entrar à direita na Nova
Faria Lima. Menos de cinco minutos, se não houver congestionamento.

Desde setembro de 72, quando fui ao Largo pela primeira vez, nunca mais deixei
de frequentá-lo. No mínimo uma vez por mês. Hoje, vou todos os dias com meu
disfarce de louco manso. Sento-me no meio-fio, coloco as mãos no queixo e passo até
uma hora olhando os brasileiros. São mesmo fascinantes. Privo o leitor de uma
descrição detalhada de cada personagem para não estender muito esta narrativa. Mas
faço um convite, irrecusável para quem quer ver o Brasil: vá ao Largo da Batata. É
melhor, muito melhor, do que ler Darcy Ribeiro, Gilberto Freire ou Euclides da Cunha.
É como ler Grande Sertão: Veredas e conhecer o sertanejo mineiro.

Agora, por exemplo, caminho para o Largo da Batata. Eles estão construindo
uma estação do Metrô bem perto. Irei visitá-la como empresário. O governador queria
que eu estivesse ao seu lado para conhecer as obras da Estação Frei Caneca. Meu
objetivo, ao acompanhá-lo, era outro: encontrar um lugar seguro para esconder este
manuscrito.

Ele estaria para sempre seguro a trinta metros abaixo do nível da rua, no
cruzamento da Rua Pinheiros com a Rua Teodoro Sampaio. Conversei com o
engenheiro responsável pelas obras e ele me explicou que embaixo da plataforma
haveria uma espécie de caixa de concreto para a passagem de cabos. Decidi que ali seria
o esconderijo dos meus segredos.

Sou um homem arisco. Descobri que o medo é a base de nossa sobrevivência. O


medo e a dor. Sei como cultivá-los. O câncer mata porque você não sente dor. É
insidioso. E o medo? Ah!, o medo. Este é seu melhor companheiro. E você precisa saber
tê-lo sempre como parceiro e aliado. Domá-lo, nunca. Apenas saber interpretar seus
sinais. Muitas vezes, sutis, como aquele arrepiar dos pelos do pescoço. Foi o que senti
quando, pela segunda vez, notei que alguém andara procurando coisas em meu
escritório.

O meu chapéu, redondo, feito de jornal, como os usados na Tunísia, fica


guardado, à noite, dentro de uma garrafa vazia de Coca-Cola. Sempre fecho a tampa.
Descobri que ela estava um pouco aberta. Será que alguém leu a manchete de O País?
“Morre o presidente do povo. Brasil de luto!” Eu mesmo a escrevi e a ditei para Cecília.
Este outro presidente mineiro não chegou a assumir porque o matei antes da posse. Ele
era aquele mesmo careca que estava ao meu lado nos estertores do caudilho gaúcho.

Eu fui delicado ao matá-lo. Não digo delicado com ironia ou morbidez. Escrevo
delicado porque de novo usei meus torrões de açúcar cristal injetados com veneno de
sapo. Eu o testei quando o presidente linha-dura foi internado no ano de 69. Fui um dos
únicos brasileiros sem farda a acompanhá-lo quando foi internado. O apoio dado pelo
meu sistema de comunicação o ajudou a vencer opositores que queriam a volta imediata
aos quartéis.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

Este conflito não começou durante o governo dele – sempre houve dois partidos
fardados: o primeiro defendia a volta imediata à caserna e o restabelecimento da
democracia; o segundo, a permanência no poder até a criação das bases para a volta dos
civis. Esta divergência quebrou a disciplina militar e, quando não se consegue manter a
disciplina, a liderança acaba.

Acompanhei a intensa luta política no interior dos quartéis. No momento em que


chegou ao clímax, aproveitei para agir. Foi tudo muito rápido. Era agosto. O presidente
ficou indisposto, internou-se numa clínica de Brasília e decidiu fazer mais exames no
Rio. Eu estava entre seus assessores diretos quando ele chegou ao Palácio das
Laranjeiras. Dei ao presidente, por cortesia e educação, seu último cafezinho com um só
torrão de açúcar. Erro meu. A dose não foi suficiente para matá-lo.

Internado no hospital, médicos amigos cuidaram do diagnóstico oficial:


trombose cerebral. Hoje, acho que eles souberam, ao fazer o primeiro exame, que o
presidente havia sido envenenado, mas não queriam expor as veias do Poder Militar ao
País. Sábia decisão.

O enfermo presidente desapareceu do noticiário. Nenhuma foto e pouquíssimos


boletins médicos me levaram a temer uma reviravolta caso alguém sugerisse que fossem
realizados novos exames. A agitação política, a luta interna pelo poder, a violência da
oposição e a reação ao atropelo à Constituição para não deixar o vice assumir não deram
tempo para se pesquisar a fundo a causa da doença. Senti um alívio quando o presidente
morreu em dezembro.

Desta vez, com minha nova vítima, o presidente eleito com o voto indireto que
não assumiu, deveria tomar mais cuidado. Aumentar a dose. A que estava usando foi a
recomendada pelos índios. Era suficiente para matar uma anta. Pode ser que os
metabolismos sejam diferentes.

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XII
Presidente sem Faixa

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O importante na hora de matar é ter calma. Matar como um profissional. Frio.


Você que me lê poderá pensar que eu sou louco mesmo e que tudo isso é invenção,
delírios de uma mente doentia. Faço-lhe um desafio. Vá a uma fazenda do Mato Grosso
do Sul e veja o vaqueiro matar um boi. Escute o berro do animal quando o ferro
amolado entra entre suas patas dianteiras. Veja: elas se dobrarem enquanto o sangue
jorra num sem parar nunca. O boi, em geral jovem ainda, a debater-se. Estas cenas
podem incomodá-lo. Então concentre sua atenção no algoz, o vaqueiro. Faz seu trabalho
com calma, firmeza, segurança e energia. Não sente pena. Você diria que ele é um
assassino frio e calculista? Você diria que ele não tem coração? Eu acho que ele sente
mesmo é um imenso prazer ao matar o animal. Como eu ao matar presidentes. Você
pode também ir a um frigorífico onde os bois morrem do jeito que os ongueiros
chamariam de politicamente correto, como numa linha de montagem.

Não conto isso para lhe causar asco. Nem mesmo para que seja um cristão-novo
do vegetarianismo. Conto só para que acompanhe meus assassinatos como se eu fosse
um vaqueiro. Sou um pouco mais sofisticado, porque o animal que detesto, que mato
como você mata às noites um incômodo pernilongo, tem o dom de prever que vai ser
morto.

Veja o que dizia o velho caudilho: “Terei que lutar. Se não me matarem.”;
“Tenho 67 anos e pouco me resta de vida.”; “Até onde resistirei? Se não me matarem,
até que ponto meus nervos poderão agüentar?”. O presidente sabia que seria morto.
Estava atento para se antecipar aos inimigos. Tinha o povo ao seu lado. Só não sabia
que eu, amigo dileto que o apoiava em meus jornais, seria seu algoz. Por isso, aquele
olhar interrogativo do ministro para mim e vice-versa. O presidente se preparou para
enfrentar um ataque mortal, até mesmo dos soldados que o protegiam. Estes, coitados,
nunca foram inimigos. No dia em que morreu, choravam!

Quando eu mandei o caudilho se matar, seu ministro, mais tarde presidente


eleito, teve um instante de suspeição. Olhou em volta do corpo caído e me viu. Nossos
olhares se cruzaram. Mas eu era um matador frio. Devolvi o olhar da já velha raposa
política com uma mensagem de profundo ódio. Isto confundiu o ministro. Ele não soube
interpretar se meu rancor era contra aquele que matou o presidente ou contra ele,
herdeiro político, minha futura vítima. E eu estava só despistando. Ele, não, tinha o
olhar no futuro. O dele.

Demorou tempo para que o ministro chegasse à Presidência. Foram três longas
décadas. Na hora em que o caudilho morria, eu soube ver nos olhos dele a imensa
ambição que teve ao vislumbrar as portas abertas para a caminhada até ocupar o
Palácio, não o do Catete, mas o do Planalto.

Fui eu quem sugeriu que fosse para as eleições indiretas, aceitasse as regras do
jogo. E expliquei: levarei o povo a convencer os membros do Colégio Eleitoral. Para
conseguir isso, usarei os 40 milhões de telespectadores do telejornal de minha rede, o
apoio total do conservador O País à sua candidatura; o de minha revista, A Semana,
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

com quase um milhão de exemplares e no auge do prestígio junto aos formadores de


opinião; e as rádios espalhadas por todo o Brasil falariam para o grande público urbano
e dos grotões: “Com este maciço apoio”, expliquei, “farei de você o presidente do
Brasil”.

Sabia, quando fiz a promessa, que ele não tomaria posse. E, se tomasse, teria
pouco tempo para desfrutar da Presidência. Mas teria que apagar, na mente dele, os
resquícios de suspeição de 54. Será que ele sabia que eu matara o presidente gaúcho?
Mas o simples fato de tê-lo eleito, através da pressão dos meus Meios, criava uma boa
proteção para mim contra eventuais suspeições do careca. Eu cumpri a rigor a promessa
feita a ele de usar minha imensa força de comunicação para convencer os 688 políticos
que iriam escolher o nosso futuro presidente. O próximo da minha lista.

Trabalhei também nos bastidores. Primeiro, desorganizei a situação incentivando


candidatos fortes que se digladiaram até a morte. Depois, acabei com as pretensões do
deputado das diretas. No final, convenci o governador da Bahia, no auge da forma, a
aderir à nossa Frente Política.

Esta ação recebeu o reforço do trabalho competente de Cecília, na época a


melhor publisher que o Brasil já teve, melhor mesmo que o pai. Ela passou a coordenar
nosso apoio na Mídia ao candidato mineiro. Vitória segura. Cecília nunca falhou nas
missões que lhe dei. Às vezes até a criticava por causa disso, porque meu pai me
ensinou que errar é essencial ao processo de aprendizagem.

Ela ficou na suíte máster da nossa Rede de Televisão comandando a cobertura. O


344º voto, nas imagens da vivo, foi um show apoteótico. Houve certo tumulto até o dia
da posse. Esperei, com paciência infinita, a temperatura baixar para executar meu plano.
Quando faltavam uns 15 dias para a posse, dei ao presidente eleito a primeira dose de
veneno. Dois tabletes. O suficiente para duas antas. Não morreu. Foi internado no
hospital de Brasília com diagnóstico de inflamação intestinal, que provocavam “dores
abdominais” fortíssimas.

Ninguém viu quando dei a ele a primeira dose, a que levou ao internamento. O
presidente sentiu sede momentos antes de entrar na catedral de Brasília. Esperava por
esta oportunidade. Nesta época, o carro que usava em Brasília tinha, por causa do clima
pouco hospitaleiro da cidade, uma pequena geladeira embutida no porta-luvas. Escolhi
uma garrafa de água sem com sem gás e joguei dentro a primeira pedra de açúcar.

A segunda, dei quando conversava com ele e o governador de Minas para


convencê-lo a se operar. Todos pensavam que era apendicite e que uma peritonite mortal
estava a caminho. O veneno agravou a inflamação nos divertículos. Acompanhei o
presidente ao hospital, onde entrou forçado. Era homem teimoso. Vi quando os
médicos, depois de abrir-lhe o abdômen, fizeram sinal de positivo, polegares para cima.
Sabia que isto iria acontecer. O que mataria o presidente seria aquela segunda dose de
veneno, agindo num corpo enfraquecido pela operação. Não houve posse, enquanto
estava se “recuperando”, apesar do desejo de muitos de seus partidários.
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

O presidente eleito sabia que havia se descuidado. Não se lembrava como nem
onde. De seu leito, puxava da memória o momento que precedeu a grande dor.
Lembrou-se que pediu água antes de entrar na igreja, mas estava cansado demais para
saber qual foi a generosa alma que lhe serviu uma mineral com gás e gelada.

Pedi a Cecília, depois do enterro que comoveu e uniu toda a nação, para
encomendar uma pesquisa nacional para ver qual a opinião do brasileiro sobre a causa
da morte do presidente: “Premeditada”, foi a resposta da maioria. Falei com minha filha
para divulgar o resultado com destaque. Assim afastava as suspeitas ainda mais de mim.
O povo estava certo. Não previ que provocaria tanto sofrimento entre os brasileiros.
Este fato, hoje, me causa certo constrangimento e desconforto. Tive esta mesma
sensação ao matar o caudilho gaúcho.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

XIII
Paixão de pai. Pela filha!

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

Gastei quase duas horas escrevendo sobre como assassinei o presidente eleito.
Estava muito absorto aqui em meu escritório. Decidi esconder por uns tempos o
manuscrito, que já chega a mais de 50 páginas e pesa no bolso, dentro do livro em
inglês de Marx e Engels, The German Ideology, editado em Moscou em 1964. Preservei
as bordas das primeiras 70 páginas e as das páginas 659 a 736. No meio. Construí uma
espécie de cofre que serviria de esconderijo para este texto até que eu pudesse terminá-
lo descrevendo a morte do atual presidente. Arranquei um fio de minha barba e coloquei
como sensor. Se alguém abrisse o livro, presente de Prestes quando fiz uma doação
significativa para o Partidão, eu teria conhecimento da violação. A doação foi uma
maneira de agradecer ao Velho Comunista as centenas de quadros que formou para
meus jornais, revistas, televisão... Cultos, bem informados, disciplinados, leais: eram os
meus comunistas.

Você que está ao meu lado nesta manhã de quinta-feira, véspera de feriado de
Finados, deve ter me visto a furar e a furar o grosso volume para fazer o esconderijo.
Seu pensamento é: O Velho Louco Manso cansou de ler seus livros loucos e agora
começa a destruí-los. Bem que alguns livros merecem ser destruídos. A frase do judeu
alemão comunista voltou à minha mente: “A História não se repete. Se algum dia vier a
se repetir, a primeira será como farsa; e, a segunda, como tragédia”. Ora!

Faltava só uma semana para o encontro do atual presidente com Cecília, quando
os jornais publicaram ordens dele para que não falassem em terceiro mandato. Ele
voltou primeiro dos países escandinavos. Cecília chegou a São Paulo no Dia de
Finados. Vinha de sua longa viagem de estudo sobre a evolução do capitalismo de
Estado de Mao até o nascente capitalismo moderno que tragava as riquezas da Terra
como uma nuvem de gafanhotos destrói uma plantação.

Fui buscá-la em Guarulhos. Chovia. O Rio Pinheiros não fedia. Nem o Tietê. A
cidade, calma. Um pouco triste sem seus duzentos quilômetros diários de
congestionamento. Mesmo aos sábados, domingos e feriados eu ia ao meu escritório na
Avenida Jaime Fonseca. Doido manso não viaja nos feriados prolongados. Também não
quis visitar o túmulo de meu pai no Cemitério da Consolação.

Tinha minhas idéias sobre vida e morte. E, sobre elas, só conversava comigo
mesmo. Agora ouso compartilhar com você. Acho que somos egoístas ao extremo, ao
chorar a morte de alguém. Quando uma pessoa morre, acabou tudo: como ela, vai o que
chamamos de dor, sofrimento, alegria, paixão, ética, virtudes e valores. O objetivo do
morto, na maioria das vezes, foi atingido: gerou filhos, manteve a descendência que
recebeu de seus ancestrais mais longínquos, aqueles de três e meio bilhões de anos que
sobreviveram até hoje. Morrer é natural. É bom.

Você escapa da luta feroz pela sobrevivência. Luta que tentamos mascarar com
razões éticas ou morais. Ética só existe uma, a construída com base na sobrevivência.
(Max Weber, em sua A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, chega próximo

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

desta minha tese.) E ela é pessoal e intransferível. Deveríamos, sim, celebrar a morte de
um organismo que permitiu a sobrevivência de outro.

Cecília desenvolveu uma teoria semelhante quando desembarcou e me entregou


uma milenar porcelana chinesa, que comprou em um antiquário clandestino de Xangai.
Mao e Lin Piao, explicou, sabiam que o capitalismo de Estado não iria dar certo.
Instigaram os jovens a destruir valores antigos que, ao longo dos séculos, impediram o
progresso de uma nação que foi, no passado remoto, a maior e mais desenvolvida da
Terra. Falo da Revolução Cultural, explicou Cecília. Este foi o momento de ruptura com
um passado milenar que não deixava a China Imperial, que não foi destruída com a
chegada do maoísmo, desenvolver-se.

Ser tão grande ou maior na economia do que toda a Europa, do que a Rússia e
satélites ou do que os Estados Unidos. Esta a visão dos chineses atuais. Ao fazer
contestações radicais a tradições arraigadas os Guardas Vermelhos, liderados pela gang
dos quatro, abriu caminho para o surgimento de um capitalismo que, ao deixar de ser
estatal, passa a ter uma expansão exponencial. Em 30 anos, a China estaria ocupando o
primeiro lugar entre as economias desenvolvidas do mundo. Minha filha falava sobre o
que aprendeu na viagem aos supetões, como se tivesse receio de perder a essência do
pensamento.

Minha adorável Cecília concluiu que o Brasil disputaria com a China, da metade
para o final do século, a liderança político-econômica mundial. Ela tinha absoluta
certeza de que a vitória final seria brasileira. Era preciso, primeiro, vencer os uspianos
que legalizaram o passado. Tarefa difícil. Era necessário encontrar um líder, como Mao,
que soube cavar a sepultura de suas próprias ideias. Cecília me falou sobre nosso futuro
aos borbotões, em uma hora, tempo que nos demoramos em chegar de Guarulhos ao
Pacaembu.

Minha filha era mulher peculiar até no lugar de morar. Não ficou no meu
aristocrático Pacaembu, nem nos uspianos Higienópolis e Alto de Pinheiros, sede de
meu escritório no meio da avenida, nem muito menos na Vila Madalena das viúvas de
68, no Morumbi e muito menos em Alphaville. Bairros de pessoas parecidas com ela.
Cecília, porém, não era parecida com ninguém. Depois da separação, depois de deixar
os filhos grandes e independentes, ela decidiu morar num bucólico sobradinho numa das
vilinhas da Augusta, perto da Oscar Freire e de alguns bons restaurantes.

Cecília tinha a exata noção de sua importância no meu império de Comunicação.


Quando cheguei aos 65 anos, fui para o comando do Conselho, e ela assumiu toda a
gestão do grupo. O que foi bom para mim porque eu tinha o tempo que quisesse para
preparar as mortes de meus presidentes. Cecília era melhor executiva do que eu. Muito
melhor. Meu orgulho por ela era e é imenso. Foi feita e criada à minha imagem e
semelhança.

Minha filha assumiu o grupo quando seu faturamento total era de 22 bilhões de
dólares. Hoje, chega aos 37 bilhões. E ela só tem 50 anos. Nós últimos cinco anos optou
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

por comprar os 49 por cento das ações da Petrobras – você se lembra que já éramos os
maiores acionistas individuais da Vale. Abriu fundos na Europa e nos Estados Unidos e
investiu todo nosso lucro na compra das ações da estatal. Nunca quis perguntar a ela
quanto o grupo tinha do total dos 49 por cento. Sem dúvida a éramos, como na Vale, o
maior acionista individual.

Cecília nunca incluiu nos balanços da holding as ações da Petrobras. O dinheiro


saía pela nossa operadora de telefonia, a segunda maior do Brasil, que tinha uma
pequena participação de um grupo italiano. Ela era a mais pura genialidade para os
negócios. Gênio maior do que os criadores do Garantia, Pactual... Ela era especial
diferenciada por causa da capacidade de gerar riqueza para o Grupo e para o País em
completa e absoluta discrição. Seu nome não aparecia nos jornais, revistas ou televisão.
Minha filha tinha ódio mortal das colunas sociais. Mulher elegante. Fina. Austera. Feita
só de genialidade, não canso de repetir.

Paro aqui em meus elogios porque que me lê acabará pensando que estou
apaixonado por ela. E é verdade. Estou perdidamente apaixonado, há longos anos, pela
sua capacidade de ser muito melhor do que eu. Quando fixava metas, sempre ousadas e
impossíveis de serem alcançadas, perseguia seus objetivos com a obsessão e a seriedade
daqueles que sabem que podem tudo.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

XIV
O Império

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Gostaria de ter contado a Cecília o segredo deste meu escritório, de como fico
bem com estes trajes sujos, com o chapéu feito de jornal e que tem como manchete o
anúncio da morte do presidente que não assumiu e com o meu olhar inteligente que os
motoristas admiram quando escrevo. Admiram e invejam. Sei o que pensam: que, de
tanto estudar, transformei-me em louco sem recuperação, que misturo tudo, que sou
aquele doido manso que todo mundo gostaria de ser. Antes de optar pelo escritório no
canteiro central, pensei em me disfarçar de andarilho. Desisti porque seria mais difícil
executar o plano para matar o atual presidente.

Eu sabia que, ao matá-lo, criaria uma grande confusão política no Brasil. Se a


eleição fosse hoje, ele teria pelo menos 67 por cento dos votos. Mas este era um capital
político só dele. Se morresse, seu partido “implodiria” em uma semana. Não haveria
líderes nacionais. Nem mesmo o governador de São Paulo teria qualquer chance de
eleger-se porque quando a autópsia revelasse o envenenamento como causa da morte,
procuraria um bode expiatório. E não havia outro melhor para ocupar este lugar do que
o meu amigo governador.

A esta altura do meu manuscrito e faltando uma só semana para matar o atual
presidente, já posso revelar meu último segredo: eu serei o próximo presidente do
Brasil. Não haverá outras opções políticas, só empresariais quando o atual presidente
morrer. A meu pedido, Cecília orientou os diretores de Redação de nossos dois jornais
econômicos e de nossa revista quinzenal de economia a dar cada vez mais destaque aos
para os empreendedores, aos para os líderes empresariais dos grandes grupos
brasileiros. Aqueles que teriam condições de juntar estratégia política com
administração e gestão de pessoas para transformar a empresa Brasil na potência que
poderia vir a ser. Nisso Cecília estava certa, embora tenhamos chegado à mesma
conclusão por caminhos distintos. Os líderes da Vale, Odebrecht, Camargo, Embraer,
Votorantim e Gerdau ganharam espaço cada vez maior nos jornais econômicos do
Grupo. Os concorrentes foram na mesma direção e passaram a trabalhar para mim, sem
saber.

Pedi a Cecília que passasse a mesma orientação para a revista nacional e os


nossos dois grandes jornais do Rio e de São Paulo. A campanha eleitoral estava nas ruas
e bem montada. Os que chamamos de formadores de opinião foram os mais atingidos
por nossa (minha) tática. Nos últimos seis meses, a TV e, depois, o rádio foram
mobilizados por Cecília para entrar no meu “Plano de Mídia”, na minha campanha
política. Não houve uma ponta de suspeita sobre meu projeto de chegar à Presidência.
Nem mesmo Cecília desconfiou. Ela sabia que estava fazendo isso para fortalecer o
poder econômico diante de qualquer desejo oculto do atual presidente de vir a ser um
novo Hugo Chávez brasileiro.

Cecília, nos últimos cinco anos, internacionalizou de vez nosso Grupo: comprou
editoras na Argentina, primeiro, depois no México e no Chile. Chegou aos Estados
Unidos como sócia minoritária do grupo que assumiu o Chicago Tribune e o Los

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

Angeles Times. Na França, ressuscitou o Le Monde. Associou-se à Pearson na


Inglaterra. E, agora, estava pronta para comprar o Grupo Espanhol Prisa.

Ganhamos muito dinheiro com a valorização de nossas ações da Petrobras,


principalmente depois do anúncio das descobertas na Bacia de Campos que levavam o
Brasil à condição de exportador de petróleo e futuro membro da Opep. Outros fatos que
nos ajudaram na ganhar mais e mais dinheiro: a estabilidade econômica, a valorização
do real em relação ao dólar, a pródiga disponibilidade dos fundos internacionais para
com os investimentos no Brasil, o dinheiro fácil dos empréstimos dos bancos que
conseguimos a juros de sete por cento, os IPOs, o crescimento de nossas bolsas de
valores... Mas a disponibilidade financeira, quase infinita, veio mesmo com o aumento
de preços do barril de petróleo que bateu os recordes históricos. reais. Havia que
transformar esta riqueza em bem tangível e intangível. Cecília sonhou com a compra da
Nike. Mas descobriu que até crescimento infinito e perpétuo tinha um limite.

A grande crise financeira de 2008 serviu para acabar com o crédito fácil, com a
bonança e com a especulação. Fiquei muito feliz porque aqueles que não colocavam o
dinheiro na produção viram, de uma hora para outra, seus bilhões virarem fumaça. Os
norte-americanos, donos das regras, não tinham aprendido com a crise de 2001. Naquela
época qualquer um que tivesse um projeto para a Internet, por mais ridículo que fosse,
recebia polpudos empréstimos. E os banqueiros sabiam muito bem que aqueles
tomadores de dinheiro, bem intencionados designers e jornalistas, loucos com propostas
impossíveis de serem realizadas, jamais poderiam honrar seus compromissos.

Decidiram repetir a dose. Ninguém disse nada. Passaram a emprestar dinheiro


para quem pedisse, mesmo não tendo condições de pagar.

Entrar nos países desenvolvidos é difícil por causa do poder da concorrência.


Cecília, porém, era ousada. Muito ousada. Eu lhe aconselhei – e ela seguiu meu
conselho – a seguir os passos do atual presidente. Passos geopolíticos, claros. Por onde
ele passasse como caixeiro viajante, como líder sindical desta empresa chamada Brasil,
ela deveria aproveitar o vácuo criado pelo nosso chefe de Estado para abrir novos e
rentáveis empreendimentos.

Foi assim que conseguimos participar no negócio dos diamantes, no país do


amigo Mandela; na pesquisa genética de alto nível com os indianos; na exploração do
petróleo iraquiano junto com os americanos e britânicos – nunca divulgamos esta
informação porque tínhamos no Iraque em conflito um grupo de 20 executivos
protegidos pelas forças de Sua Majestade estacionadas no Sul. Nosso melhor negócio
era, na verdade, com os laboratórios da Alemanha. Em segredo absoluto, Cecília
conduziu seus sócios para o que ela chamava de engenharia embrionária humana. Até
comigo, a quem um dia sucederia, ela mantinha reserva sobre esses fabulosos negócios
na Alemanha.

Em momento algum misturei minha campanha eleitoral com nossos negócios.


Nada gastei nos últimos dois anos ao levar ao Olimpo os maiores empresários do Brasil.
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Ao contrário, só ganhei mais dinheiro com publicidade – eles pagavam a minha


campanha. Ganhei mais prestígio, se isso ainda era possível, com as entidades de classe,
como Fiesp, Fierj e Fiemg. Aqui de meu singelo escritório, posso ouvir o rádio de seu
carro, comentando os investimentos da Vale em Moçambique; a possível compra da
Alcoa; a chegada da Odebrecht à Líbia; os 300 trezentos milhões investidos na
Votorantim Venture para pensar a empresa nos próximos 100 anos; e a agressiva decisão
da Gerdau de dominar o mercado do aço primeiro no Canadá e, depois, nos Estados
Unidos.

Eram poucos os que miravam no exemplo da China. Uma ou outra empresa de


calçados. Só a maior empresária brasileira, a minha Cecília, estava com a mente
concentrada em Pequim. Na curta viagem, ela conseguiu convencer um general
comunista que chefiava uma das divisões de Engenharia do Exército Vermelho, e que é
hoje presidente da empreiteira chinesa mais forte do que todas as brasileiras juntas, a
investir no Brasil.

O general pediu uma semana porque estava com um pequeno problema com o
deslocamento de outros dois milhões e meio de chineses que seriam afetados pelas
águas da barragem de Três Gargantas, que ele e sua empresa lideravam o processo de
construção. Chega de autoelogio. Mas se não fizesse essa descrição você jamais teria a
dimensão dos nossos negócios e menos ainda do meu poder nas sombras.

Volto ao meu plano de tornar-me o próximo presidente brasileiro. Com a morte


do atual presidente, haveria só duas opções: o governador e um empresário. O
governador seria ferido de morte com o assassinato do presidente. Restaria a opção
empresarial. Eu sabia, tinha convicção, de que nenhum dos quatro grandes líderes
empresariais brasileiros tinha qualquer pretensão em assumir a presidência. Nesse
momento, meu nome surgiria. Eu lhe pergunto e peço que seja sincero na em sua
resposta: Você tem alguma dúvida de que serei o próximo presidente?

Ao terminar o parágrafo anterior, tive outra vez aquela estranha sensação de


medo – o arrepiar dos pelos da base do pescoço. Olhei para os dois lados da avenida e
só vi motoristas irritados com o congestionamento. Havia também uma bela moça
morena que tinha os semblantes plácidos apesar do soar insistente das buzinas. Ela
estava num PT Cruiser, estranho carrinho, a ouvir música clássica, porque movia os
braços como a reger uma orquestra. Nossos olhares se cruzaram por décimos de
segundo. O suficiente, porém, para despertar meu instinto animal. Para acalmar-me,
pensei em Cecília e no seu fascínio por três ou quatro compositores clássicos:
Beethoven, Bach, Telemann e Wagner. Ela entrava num curioso estado de transe ao
ouvir “Matthäus Passion”, de Bach, os “Quartets, ops. 132 e 133”, de Beethoven, e as
“Darmstadt Overtures” de Telemann.

Com a música de Wagner era diferente: os olhos dela ficavam ainda mais
indomáveis. Os blues eram outra paixão de Cecília: Muddy Waters e Sonny Boy
Williamson eram seus preferidos.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

Ao lado da Morena de cabelos negros e que ao longe pareciam de um azul


profundo, que me fizeram lembrar mulheres tão belas como as que cruzei nas ruas de
Praga, estava um velho careca num outro PT Cruiser negro, também a imitar um
maestro. Não sei por que esses dois personagens me chamaram tanto a atenção em meio
a milhares e milhares de rostos que desfilam dia após dia dos dois lados de meu
escritório.

A mulher, posso garantir que pela formosura. Já aquele estranho senhor...!? Era
muito careca, barba branca e longa, olhar perdido por causa da música que ouvia.
Viajava no congestionamento. Mas o sorriso dele me intrigou. Sorriso de doce ironia.
Sorriso de um garoto a fazer uma enorme estripulia. Sorriso de quem estava acima das
pessoas. Ele estava sorrindo de meu personagem e de leitores de manuscrito.

Sei que não era um uspiano. Fez-me lembrar Solzhenitzyn. Melhor ainda:
Dostoyevsky. Não me pareceu fingir. Não era um ser atormentado. Sei que ele me
olhava com os cantos dos olhos. Mas eu não conseguia fazer o que os americanos
chamam de contato visual. Por algum motivo, ele ria aquele riso enigmático. Será que
desconfiava que eu era um personagem apenas? Nenhuma chance, pensei comigo.
Cheguei à conclusão de que ele era um desses novos filósofos que surgiram neste
começo de século. Um Daniel Dennett. Eles até que se pareciam. Filósofos que gostam
de brincar com seus personagens que acham reais. Esse seria o motivo daquele sorriso
ambíguo de Monalisa. Pela primeira vez em dois anos de absoluta sisudez, como
convém a um compenetrado louco manso, sorri também. Aquele filósofo paulistano era
meu cúmplice. De quê? Não saberia lhe dizer.

O trânsito andou e as duas figuras desapareceram de meu campo de visão. Será


que iria encontrá-los novamente? Gostei daqueles rostos como nunca havia gostado de
nenhum outro. Figuras! Mais, mesmo, do que os dos peculiares rostos dos brasileiros do
Largo da Batata. Fiquei triste porque tinha certeza de que não mais nos veríamos.
Nossos caminhos eram diferentes.

Naquele momento, minha preocupação era encontrar um lugar ainda mais


seguro para guardar este manuscrito. Não estava preocupado com a qualidade do estilo
nem com os erros gramaticais. Eu não seria criticado pelo rabugento polonês nem pelo
mineiro escritor inveterado de bom. Eles não leriam este texto para depois abrirem um
sorriso e devolvê-lo cheio de correções. Que se danem. Já tinha me irritado o suficiente
com este tipo de rábulas do texto correto quando ainda jovem dirigia o jornal, função
hoje de Cecília.

German Ideology me pareceu um esconderijo que não dava qualquer segurança.


Se havia um bisbilhoteiro em meu escritório, e eu sentia que havia um, sutil e hábil, ele
iria encontrar o livro de Marx e Engels e seu cofre camuflado. Iria abri-lo. Romperia o
lacre. Eu saberia. Mas de nada adiantaria. O que escrevi antes era apenas a confissão
dos assassinatos dos meus presidentes. Em nenhum momento de minha redação havia
revelado meu maior e mais perigoso segredo: serei o próximo presidente brasileiro. Só
restam seis dias de vida ao atual.
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

Hoje ele o presidente é um homem feliz. Aprendeu a dirigir o Sindicato Brasil, a


barganhar com as correntes políticas, como nos tempos em que dirigia sua central
sindical. Agia como chefe de Estado acima das divergências. Na prática teve sempre um
primeiro-ministro que perdia o cargo tão logo se tornava uma ameaça à sua liderança.
Caíam sempre os muito abusados; os que apareciam todo fim de semana dando
entrevista de páginas inteiras aos jornais; os que começavam a preparar a campanha
para sucedê-lo; e os que exerciam o poder sem ternura, como faz um líder sindical.

Eu pedi a Cecília que incentivasse os pretensiosos cada vez mais. Dava a eles a
entrevista principal da revista semanal ou a capa, muito espaço na revista econômica e
em O País, pedia que fossem entrevistados no último jornal de minha Rede de
Televisão, o de maior prestígio, e, com isso, estava na verdade colocando a cabeça deles
na guilhotina. Enfraquecer os, na prática, primeiros-ministros, principais candidatos à
sucessão, ajudavam minha campanha: afastava rival forte e fortalecia o presidente como
liderança única e insubstituível do Sindicato Brasil. Ao matá-lo, seria eu a única opção.

Ao escrever isso, fico vulnerável ao extremo. Serei preso pela eficaz Polícia
Federal. Condenado à prisão perpétua, apesar de meus 80 anos, e morreria numa dessas
prisões de segurança máxima que hospeda o empresário da droga Fernandinho Beira-
Mar. Não havia pensado na hipótese de a Polícia Federal já ter lido meu diário e ter me
colocado sob vigilância 24 horas ao dia. Os jovens agentes eram eficientes. Os diretores
de área conduziam uma investigação com rigor absoluto. À mais leve suspeita, seu e
meu telefone seriam eram grampeados.

Imagine se chegassem as caminhonetes pretas à minha mansão no Pacaembu.


Eles, claro, não viriam prender-me aqui no meu escritório. Quem entenderia por que
tanta polícia para levar um doido manso. No Pacaembu, não. Sairia algemado com
todos os holofotes de meu concorrente na televisão mostrando a suprema humilhação de
um ser poderoso manietado. Seriam a bela mulher de olhos azuis profundos ou o senhor
de sorriso enigmático agentes disfarçados da Polícia Federal? Precisava ser cuidadoso,
muito cuidadoso. Se não for, fosse, jamais desempenharei o papel que me preparei para
desempenhar ao longo de toda a minha vida: o de presidente de uma empresa chamada
Brasil. Nem mesmo poderia colocar Cecília em meu lugar quando eu chegasse aos 90
anos e ela aos 60. Sabia que Cecília estava preparada para assumir, hoje, todo o Grupo
sem mais necessitar de mim. Mas, como filha leal ao pai e com quem mantinha uma
relação de confiança absoluta, esperaria, com disciplina, o momento de assumir meu
lugar.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

XV
Dia D Menos 5

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

Chovia em São Paulo. Era domingo de feriado prolongado. Faltando apenas


cinco dias para a morte do atual presidente brasileiro. Eu, ali me molhando, a escrever
este manuscrito e sem saber onde escondê-lo. Não posso deixar de deixar ao leitor meu
plano final: D menos 5, domingo; D menos 4, segunda; D menos 3, terça; D menos 2,
quarta; D menos 1, quinta; e o Dia D seria uma sexta-feira. Brasília não teria políticos.
O presidente estaria se preparando para passar o fim de semana na Granja do Torto. E
eu tinha agendado último compromisso do presidente naquele dia. Daquele dia, não. De
toda a eternidade.

Achei a ideia de esconder o manuscrito no Metrô ridícula e absurda. Poderia


pedir a Cecília que o guardasse. Ela não o leria se eu pedisse. O problema era onde ela
esconderia. Talvez dentro de um jarro de orquídea no seu gracioso e acolhedor
sobradinho. Não queria perder o controle sobre meu texto. Optei por levá-lo comigo
entre a cueca e a calça, numa daquelas sacolas usadas pelos turistas para viajar com
dinheiro para o Exterior. Só tiraria na hora de dormir. Deixaria debaixo do travesseiro.
Meu sono é era leve. Leve como o espírito, porque viver é perigoso. Demais!

A chuva me dava maior serenidade para tomar a decisão sobre a melhor opção
para matar o atual presidente. Já tinha experiência. Decidi transformar os dois planos
em A. Eram bons. Essa tática daria certo. Na hora escolheria o mais conveniente. O
líder do Sindicato Brasil morreria com seu próprio revólver, uma velha e eficiente Luger
que o acompanha desde os anos 70, e que estava escondida na poltrona vermelha onde
ele ouvia as reivindicações de seus companheiros; ou com a dose maciça de veneno já
colocada dentro dos pequenos torrões de açúcar cristal.

Nesta hora em que escrevo, talvez pelo barulho da chuva ou pelos poucos carros,
uma pontada de dúvida chega ao meu coração, não à minha mente: poderia deixar o
presidente mais tempo a governar. Afinal, O País nunca esteve tão bem. E iria melhorar
mais ainda. Poderia até tomar esta decisão. Esperar que entrasse em decadência quando
o mundo parasse de crescer. O que não poderia, jamais, era permitir a grande transa.
Com Cecília, não. Que escolhesse outra empresária. Se não encontrasse, que saísse com
uma jovem executiva para saciar seu desejo incontido por deixar descendentes.

Amanhã será o D menos 5. Liguei para o secretário do presidente. Avisei que


gostaria de vê-lo na sexta-feira. Que conseguisse uma vaga na agenda que andava um
pouco carregada por causa da necessidade de convencer todas as correntes político-
sindicais a votar as medidas provisórias, a votar a prorrogação do pagamento da CPMP,
a mais importante. O encontro ficou combinado para as seis da tarde, uma hora antes da
chegada de Cecília ao quarto andar do Palácio Presidencial. Não chegaria às seis em
ponto. Atrasar-me-ia 20 minutos. Pouco tempo na cabeça do presidente acostumado a
fazer seus convidados esperarem por uma, duas ou até quatro e cinco horas.

Conversaria com ele sobre o Brasil, sobre os planos de internacionalização da


Amazônia, o projeto Madeira e novas descobertas de gás a 200 quilômetros de Manaus.
Falaríamos sobre a próxima viagem ao Caribe e à América Central, Índia e
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

Moçambique... depois, conduziria o diálogo para a crise financeira e suas


conseqüências para o Brasil e terminaria falando sobre mulheres apetitosas. Contaria
fofocas quentes, inventadas todas, sobre quem estava dormindo com quem. Ele não teria
como confirmar. Seria um homem morto.

Aquele mordomo recebeu ordens para servir café de 15 em 15 minutos. Tinha


que enrolar o presidente até quase sete, quando pediria o último cafezinho, e um pouco
antes da entrada de Cecília. Talvez ele estranhasse o gosto melado do café. Usaria dois
ou três tabletes. Cada cubo branco levava uma dose reforçada de veneno de sapo. Ele
não passaria um mês na UTI do Hospital de Base ou no Incor. Viveria quando muito 30
segundos depois de tomar o café.

Quando ele caísse, eu seria o primeiro a gritar por socorro. Cecília certamente
entraria correndo, pois estaria na antessala esperando por minha saída. Pouco depois eu
também começaria a passar mal, de verdade. Preparei um tablete para mim com uma
dose que me levaria ao hospital, mas não à morte. Sofreria como nunca sofri na minha
vida. Estou convicto de que para atingir este meu supremo objetivo, qualquer sacrifício,
por mais cruel que fosse, seria compensador. Pensei nos meus 80 anos, na fragilidade da
máquina de sobrevivência depois de oito décadas de vida dura e na possibilidade real de
morte. Estava seguro de minha decisão.

No D menos 4 amanhecei no escritório. Era uma segunda. Fazia frio em pleno


novembro: 19 graus. Por volta das sete, o trânsito já estava pesado. Era como se as
pessoas quisessem recuperar o tempo perdido no feriado prolongado. E haveria mais
dois feriados em novembro. Portanto teria que correr. Mais e-mails para responder, mais
telefonemas para dar, mais reuniões adiadas, mais tudo...

A proximidade do assassinato me deixava mais sereno. Torcia para que os


motoristas não olhassem para o meu rosto, porque veriam um semblante, não o de um
louco e angustiado filósofo, mas o de um homem feliz, de bem com a vida. Eles
estavam acostumados a me ver todos os dias. Talvez até sentissem minha falta na
próxima semana. Para os paulistanos, eu já era uma espécie de personagem da cidade:
sempre no mesmo lugar, na mesma poltrona, com o mesmo chapéu, cercado dos
mesmos livros, ou seja, eu era parte da vida diária de milhares de motoristas. Um
monumento à loucura humana.

Vou sentir muita falta do meu escritório. Virou minha caverna ao ar livre. O
lugar onde me fechava dentro de mim mesmo para fazer os planos de matar o atual
presidente. Planos idiotas? Matar com veneno, com tabletes de açúcar cristal... quanta
falta de imaginação! Mas se posso lhe dar um conselho, diria para fazer sempre o mais
fácil. O simples e o fácil são belos. É preciso ter muito talento para conseguir atingir um
alvo pelo caminho da simplicidade.

Você já viu as frases curtas de um romancista como Graciliano? São frases


perfeitas em sua pura simplicidade. É como uma seqüência de DNA. Veja também os
poemas de Drummond, de Bandeira. Cada palavra no seu exato lugar, como num
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

programa. Mudar uma desmonta todo o texto. Experimente jogar para o ar cada palavra
de um poema de Drummond ou Bandeira.

Você nem ninguém conseguirá recriá-lo. Um poema deles é único. É como você,
eu e toda a gente viva: organismos únicos. Por isso, não sou escritor. Sou um Bandeira
dos assassinatos perfeitos. Li muito romance policial. Nem os extraordinários e geniais
Goodis, Chandler, Macdonald ou o genial Hammett criaram um criminoso como eu.
Pena que não seja um romancista, apenas um redator a despejar frases sobre o papel
sem cuidado algum com o estilo. Mas matar, sei. Como ninguém.

No D menos 3 já não tinha muita coisa para fazer. Não quis mostrar meu rosto
sereno para os passantes da Avenida Jaime Fonseca Rodrigues. Preferi ver a cidade que
não trocaria por nenhuma outra do mundo: a minha São Paulo. Minha veia de andarilho
me levou do escritório ao Largo da Batata, ao Largo do Butantã sem sua paineira já
assassinada, ao enclave da Vila Brazilândia, ao bosque da Fundação Oscar Americano,
aos sebos moribundos em volta da Faculdade de São Francisco.

Quando cheguei ao Teatro Municipal, depois de sete horas de caminhada – claro


que fui um “pobre” turista urbano ao usar trem, ônibus e metrô, voltei no tempo e vi o
velho Mappin, onde minha avó ia para o chá das cinco. Fui à Ipiranga com São João do
mestre maior Adoniran Barbosa: “Só sobrou o seu retrato”.. Além disso, mulher, tem
outras coisas: passei pela velha rodoviária de Caldas, meu leal concorrente. Antes do
escurecer, ainda queria continuar andando pelo Bom Retiro e Brás. “O Arnesto nos
convidô prum samba, ele mora no Brás/ Nós fumo e não encontremos ninguém”. Pela
Lapa e Vila Alpina. Pela Cantareira e pelo Tatuapé. “Se eu perder esse trem...” Passaria
mês inteiro vagando com este meu disfarce de doido manso. Vila Galvão, Sapopemba,
Jabaquara, Vila São Francisco e Moema. Cada bairro com seu rosto, com personalidade
definida. E os moradores, um mosaico: italianos, uns; nordestinos, outros; paulistas de
vários sotaques; mineiros do Campo Belo (onde mais um mineiro poderia se
concentrar?)

Tive que voltar retornar caminhando até o Colégio Santa Cruz para pegar o meu
Passat alemão e voltar ao Pacaembu. Cheguei extenuado. Esqueci de meus 80 anos. Os
generosos botecos me deram alívio. Minhas pernas tremiam quando cheguei ao meu
quarto. Tomei uma ducha quente de 15 minutos e caí na cama para o sono mais
profundo – e tumultuado – que tive em toda a minha vida. Tranqüilidade só rompida por
um e outro pesadelo sobre o roubo deste manuscrito. A única preocupação que tive antes
de dormir foi colocar a sacola de pano com este manuscrito os papéis embaixo do meu
travesseiro. Tive o cuidado de amarrar o cinto que prendia no pé da cama.

Assim não corria o risco de cair e chamar a atenção da minha fiel acompanhante
que estava comigo há cinquenta anos. Foi um pouco mãe de Cecília, porque minha
mulher morreu quando ela nasceu. Estava com vinte anos nos tempos em que respondeu
a um anúncio que mandei colocar em O País, procurando por uma empregada
doméstica. Hoje, aos 70, é era uma mulher forte, gorda, de poucos humores, mas muita

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

eficiência no comando daquele pequeno exército a meu serviço: cozinheira, faxineira,


jardineiro, guardas alagoanos maus porque acostumados com a morte.

Foram eles que, durante férias em Maceió, mataram um tesoureiro de campanha


presidencial. Simples coincidência. A namorada do gordo, com um biquíni sensual,
cruzou com os irmãos na praia. Eles, educados, só viraram o rosto para ver se a moça
era tão perfeita atrás como na frente. Este gesto instantâneo, de homens normais, irritou
o gordo: “Olha outra vez que eu mato vocês!” A praia ouviu. À noite, ele e a namorada
morreram foram assassinados. Nunca questionei a decisão deles. Nem eles falaram
sobre. Os alagoanos eram minha garantia. Meu seguro de vida.

Não sei o por que decidi escrever este manuscrito. Talvez a explicação de Pinker
esteja correta: “O homem escreve em busca de status social”. Meu caso não se
enquadrava nessa tese. Quando comecei não podia mais parar. Virou uma espécie de
diário, como o que eu escrevia em meus tempos de na infância.

Sonhei com as dezenas de páginas que escrevi no diário eles onde contava como
ganhei e perdi um Omega que meu pai me deu de presente quando fiz dez anos. Perdi e
procurei por todos os cantos da casa, do sítio em Cotia, das fazendas em Jaguariúna e
em Bananal. Fiz buracos, remexi centenas de gavetas. Um mês de busca. Só cinco anos
depois me lembrei que havia deixado o relógio no fundo de uma sacola azul no vestiário
do Paulistano, onde guardava a roupa antes de entrar na piscina. Sonhei com o tubarão
que nadava ao meu lado nas águas do Pacífico, em El Salvador. Sonho estranho porque
senti como real as vibrações do grande peixe a uma braçada de mim. Ouvi os gritos
barulho das pessoas gritando na praia.

Sonhei que na praia também havia elefantes. E não eram marinhos. As passadas
deles eram tão Fortes, poderosas, as passadas deles faziam minha cama tremer. parecer
vibrar. Quase acordei. Quis acordar. Estava muito cansado. O elefante levava um
menino dentro de uma cesta. Este menino era eu. Praias da Namíbia. Sonhei com
jabuticabeiras carregadas. Com touros. Touradas. Sonhei com Djalma Santos
carregando a bola na cabeça, de sua área até a área do Corinthians. Pura magia. O
Grande Djalma. Maior mesmo que Pelé. Igual a Garrincha e Didi. Ademir e Luizinho
estavam muito longe na minha infância. Leônidas da Silva, também. E aquele filho-da-
puta do Obdúlio Varela. Acordei ainda cansado. Porém, tranquilo. Enfiei a mão debaixo
do travesseiro e lá estava, seguro, este meu manuscrito.

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XVI
Cúmplices

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No Dia D menos 2 da morte do atual presidente encontrei Cecília. Passei o dia


com ela. Contou-me que bebeu um pouco mais de vinho e, como minha casa estava
mais perto, decidiu dormir no Pacaembu. Havia encontrado a amiga Patrícia na Praça
Vilaboim, jantaram juntas para conversar assuntos de mulher. Confirmei para ela a
audiência com o presidente, uma hora antes do encontro deles. Ela pediu que eu
aconselhasse o presidente a não cruzar a fronteira do bom comportamento. Garanti que
faria isso. Rimos um riso solto e elegante. Passei os braços sobre os ombros dela e
perguntei:

– Quer tomar o café-da-manhã naquela cafeteria simpática da Vila Nova


Conceição? Podemos escolher a mesa da calçada e jogar um pouco de conversa fora.

– Vamos, papai. Vamos, sim. Primeiro, vou ao seu quarto pegar uma blusa para
você não se resfriar. – disse.

– Continua frio na nossa cidade e já é novembro. – respondi.

A mesa era simpática. Os frequentadores também: gente que gosta da vida.


Executivos, homens e mulheres, que correm no Ibirapuera. Nunca concordei com esta
maneira de manter o físico em dia. Desperdício de energia sem nada produzir.

– Dormiu bem, pai? – perguntou Cecília.

– Sono profundo. Sonhei belos sonhos. E alguns pesadelos. Uns, de velho.


Outros, de criança. Pareciam reais, pois senti os movimentos da manada de elefantes, a
vibração em meus ouvidos do tubarão a nadar – respondi com alegria.

– Nós somos seres diferenciados – comentou Cecília. – Experimente estas


“media-lunas”. Elas nos lembram Buenos Aires.

– São muito boas. Sinta o cheiro. – completei.

– Nascemos para ser grandes líderes – retomou Cecília em voz baixa, quase
inaudível.

– Já somos – eu disse. – Você será muito melhor do que eu. Fico feliz. Afinal, fui
seu mestre. E o bom mestre quer sempre que o aluno o supere.

– Sei que posso superá-lo. Não pense que fico contente com isso.

– Amanhã será o encontro com o presidente.

– Um grande dia. Não pense também que quero dormir com ele.

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– Claro que não. Senti que havia certa atração entre vocês. Profunda, me
arriscaria.

– Houve, no encontro anterior. Vou aproveitar para falar com ele sobre a China.
Quem sabe se convence de que devemos crescer tanto quanto eles?

Cecília e eu pedimos outra xícara de café. O frio da manhã paulistana estava


gostoso. Pessoas felizes em volta. Bebemos um gole de café e pedimos uma Perrier.

– Gosto com gás – comentei. – O próximo cafezinho será mais saboroso.

– Quero lhe agradecer. Sua humildade o levou a me educar para ser melhor do
que você – confessou Cecília.

– Quando você nasceu, sabia que seria minha sucessora. Que seria melhor
empresária do que eu. Mais parecemos gêmeos apesar dos 30 anos que nos separam.

– Quero lhe agradecer porque tudo o que sou e serei é culpa sua devo a você.
Você me mostrou o valor do trabalho, da austeridade, do respeito, da disciplina, da
ambição... Você me fez empresária e líder.

–A voz de Cecília tinha um quê de tristeza. Sabia que eu estava velho. Mas era
um velho muito forte. Teria mais sete ou oito anos de extrema lucidez, época período
em que atingiria o máximo de minha maturidade e capacidade de empresariar um país,
pensei comigo mesmo. Estava pronto, maduro, a campanha feita pelos órgãos de meu
império estava no auge. Sentia-me como um time de basquete que chega preparado para
a última partida decisão do torneio. Muitos passavam da hora, perdiam no momento dos
jogos decisivos. Falhavam em seus objetivos.

– Papai, você já viu aquele velho louco que fica escrevendo e lendo no canteiro
central da Avenida Jaime Fonseca Rodrigues? – perguntou Cecília sem demonstrar
qualquer segunda intenção.

– Já cruzei com ele algumas vezes – respondi sem dar a ela tempo para criar
suspeitas. Senti de novo aquele arrepiar de pelos na base da cabeça. Eu, animal, previ
pressenti perigo.

– Sabe que uma vez fiquei um tempo longo presa no congestionamento ao lado
dele? Figura estranha. Ele parece um pouco com você. Velho. Costas largas e ainda
fortes. Mãos longas e finas...

– Também notei esta semelhança – disse, interrompendo o comentário de


Cecília. Meu tom de voz era tão natural como quanto o dela.

– Será que vovô não pulou o muro? Ele carregava a África no sangue.

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– Amanhã passo lá para vê-lo melhor. Nunca tinha pensado nisso. Será que ficou
louco porque é meu irmão e hoje poderia estar no meu lugar? Seria herdeiro como eu.
Um mistério na família.

Rimos. Riso solto. De velhos amigos. De companheiros de infância. De pai e


filha que se querem. De Cúmplices. Voltamos felizes. Deixei Cecília no sobradinho dos
Jardins. Queria que eu entrasse. Disse que tinha muito que fazer.

– Eu também. Vou preparar a agenda de amanhã com o presidente. Não posso


me esquecer de nada. Quem sabe depois deste encontro, o Brasil não caminhará para
seu destino de líder mundial ainda neste século?

– Esta é a minha menina! – disse em tom de despedida.

Cecília me deu um beijo na face. O primeiro que recebia. Ela sempre me beijava
na testa. Vi, quando ela se virou, uma lágrima.

Aproveitei a manhã para colocar meus assuntos pessoais em dia. Deveria estar
preparado para ficar até um mês no hospital. Queria ser internado no Sírio. Poderia
dizer isso quando a ambulância estivesse me levando para o hospital em Brasília.
Orientei meu piloto para estar pronto para decolar às sete e meia da noite. E que um
helicóptero me esperasse em Congonhas. Não queria morrer com minha própria dose de
veneno. O Sírio já tinha um quarto reservado para mim, pois disse que queria fazer um
check-up completo por causa de meus 80 anos.

Convidei meu médico pessoal, o melhor do Brasil, para me acompanhar na


viagem a Brasília. Contei para ele que havia caminhado muito por São Paulo. Sentia-me
um pouco cansado. Foi o suficiente para ele desmarcar as consultas. Ele é meu sócio
oculto em negócios na pecuária. Não só isso. É o irmão que nunca tive. Embora bem
mais moço do que eu, aos 55 anos parece ter chegado à mesma maturidade que eu atingi
aos 80.

Não havia muito mais a fazer. Lembra, mate com simplicidade se algum dia
você tiver esta mesma minha compulsão.

Dia D menos1. Reservei o dia para me atualizar sobre os últimos passos do


presidente. Soube que ele se encontrou com os amigos mais próximos dos tempos em
liderava sua Central Sindical. Com eles poderia abrir o coração, receber conselhos se
deveria ou não aceitar mudar a Constituição para permitir que tivesse um terceiro
mandato sucessivo. Sua base no parlamento era tão forte que a aprovação da mudança
seria muito fácil. Todos sairiam ganhando.

A vitória nas eleições de 2010 não estava garantida. Os votos que ele conquistou
em batalhas eleitorais sucessivas pela Presidência não seriam transferidos para o
candidato de seu partido. Eram só dele. Valioso capital. Faltando ainda mais de dois

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anos para a sucessão, as conversas sobre o substituto do atual presidente já provocaram


a ira de uns poucos que falavam em golpe, em rasgar a Constituição...

Ele desmentiu, em público, com ênfase essa possibilidade. Não poderia ter
tomado outra atitude. Voltaria, sim, ao poder só se houvesse um clamor popular para
que disputasse o terceiro mandato. Voltaria, sim, nos braços do povo. Assim como eu, o
presidente tinha um plano A (ter um candidato fraco e voltar ao poder em 2014) e um B
(forçado pelo povo e pelos aliados, aceitaria a mudança da Constituição). Os
verdadeiros amigos, como nos tempos da clandestinidade, faziam circular de mão em
mão este documento:

Emenda Constitucional Nº___, de_____


Dá nova redação ao § 5º do artigo 14, ao caput do art. 28, ao inciso II do arti. 29,
ao caput do art. 77 e ao art. 82 da Constituição Federal

As mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do


art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto
constitucional.

Art. 1º 0§ 5º do art. 14, ao caput do art. 28, inciso II do art. 29, o caput do art. 77
e o art. 82 da Constituição Federal passam a vigorar com a seguinte redação:

§ 5º O presidente da República, os governadores de Estado e do Distrito Federal,


os prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos
poderão ser reeleitos para dois únicos períodos subsequentes.

Eu só me interessava por saber quais as intenções do presidente para ter o que


conversar com ele antes de matá-lo. Claro que falaria de mulheres fatais, mas ele
desconfiaria se não debatêssemos a sua sucessão. Iria incentivá-lo a continuar deixando
o caminho livre para as articulações de seus leais companheiros para mudar a
Constituição, para defenderem a emenda ou a convocação de uma Constituinte em que
este seria um tema obrigatório.

Tive um pouco de dificuldade para dormir às vésperas do dia D. O médico havia


recomendado que vez ou outra tomasse um Lexotan quando não conseguisse dormir. Eu
era contra os remédios. No máximo, uma aspirina para ajudar na circulação e acabar
com a dor de cabeça que sofria em dias muito quentes e úmidos. Optei por uma aspirina
infantil, apaguei as luzes e dormi muito bem.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

XVII
Bruxos de Verdade

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

O governador era um homem alto de muito magro. Ele estava acompanhando com os
serviços de inteligência do Palácio todos os movimentos do maluco da Avenida Fonseca
Rodrigues. Sabia que a contagem final havia começado. Ele movimentou-se para
convocar uma reunião da emergência.

Era noite do Dia D menos um, uma quinta-feira, quando checou todos os
detalhes do encontro. Os olhos castanhos, marcados por olheiras profundas, percorriam
a mesa, contava os blocos de papel, os lápis e a agenda do encontro. Suas bochechas
salientes estavam vermelhas. Uma prova de que estava ansioso para tomar decisões. Ele
não sabia rir ou gostava de fazer gênero de homem sempre sério e preocupado com o
destino da humanidade. Careca, com um ou outro fio solto no final da testa. Usava um
terno escuro de uma cor indefinida, sem gravata. Sua voz era imperativa. De pessoas
acostumadas a mandar. Ele contou, por duas vezes, as cinco cadeiras e notou que uma
estava vazia. Franziu o sobrolho. Demonstrou irritação e disse:

– Onde está o Velho? – Seu olhar penetrante entrou nos olhos de cada um dos
participantes da reunião realizada numa casa de aluguel para fins de semana em Campos
do Jordão. – Se ele não chegar em cinco minutos começamos a reunião. Aproveito para
deixar bem claro que eu conduzirei o encontro.

O governador pegou seu BlackBerry, procurou na agenda o número do Velho,


balançou a cabeça e discou um número.

– O senhor já deveria estar aqui. – O tom só não se alterou mais porque ainda
faltavam dois minutos para o encontro começar.

– Estou aqui na frente da casa, mas estes seus seguranças são burros, disseram
que todos os convidados já haviam chegado.

– Me desculpe, reconheço que o senhor tem 80 ou mais anos, mas esquecer que
esta é a senha é demais. – Ironizou o governador na frente de seus outros três
convidados. – A contrassenha é: “Eu já liguei pedindo para colocar água da feijoada”.
Foi possível ouvir o Velho repetindo a sentença e o segurança o advertindo: “Passe logo
porque o homem está em um daqueles dias”.

– Não reclame e nem me venha com falta de educação. Sei ser tão ou mais mal-
educado do que o senhor. Respeite-me para ser respeitado. – O Velho já entrou disposto
a disputar a liderança do encontro com o governador. O bigodudo que estava sentado à
direita do governador deu um sorriso educado, mas ninguém percebeu porque não dava
para ver os dentes dele. O Barão, cabelos totalmente brancos e como os de um porco
espinho, soltou uma risada, esfregou as mãos entre as pernas como se estivesse
divertindo com a necessidade de hierarquizar o encontro.

– Daqui a pouco alguém vai baixar o centralismo democrático e eu, como único
anarquista deste país, serei obrigado a sair em sinal de protesto.
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

– Oito horas. Vamos parar com esta punheta. – O governador tirou do bolso
interno do terno um segundo celular que insistia em tocar enquanto discutia com o
Velho. Ele ouviu durante cinco segundos e desligou sem se despedir.

– O maluco da praça vai matar o presidente amanhã. Ele dorme tranquilo em sua
mansão no Pacaembu. Isto significa que todos os planos estão indo bem, que está
seguro e, se não agirmos rápido, este vai ser mais um na longa lista de serial killer de
presidentes. – O Barão agitou-se talvez movido pelo espírito de Bakunin.

– Quem tem a cópia do manuscrito? – perguntou o Velho.

– Está aqui – respondeu rapidamente o bigodudo. –Todos já tinham lido dezenas


de vezes o documento. O governador apontou para o papel colocado em frente a cada
um e que servia como agenda. Leiam, por favor:

– Alternativas: a) para evitar o crime de amanhã; b) para desmascarar o maluco


da praça e prender ele e a filha; c) para que consigamos uma alternativa para ganhar as
eleições e manter o país calmo, durante os próximos anos depois da crise financeira e
sem o presidente do Sindicato Brasil. – O governador leu alto as alternativas, falando
com rapidez e, segundo o Barão, com rispidez.

– Concordo com a primeira e a segunda alternativas – gritou o Barão como um


possesso. Como anarquista sou contra eleições e não vou abrir mão de meus princípios.

– Quem é contra a agenda de prioridades? – perguntou o Velho. Só o Barão


levantou a mão. – O governador, como se já esperasse pela reação do Barão, apertou
uma campainha grudada no tampo da mesa. No mesmo instante, dois seguranças,
vestidos com ternos pretos apertados demais para tanta musculatura, entraram na sala de
reuniões e levaram o Barão carregado pelos braços. Como Carlitos sendo levado pela
Polícia em suas dezenas de prisões, o Barão saiu esperneando e gritando:

– Vou entregar todos vocês, seus canalhas. É só pisar os pés fora desta maldita
casa de burgueses para que eu conte tudo. Vou direto para a Redação da Veja que deve
estar fechada. Mas tenho certeza de que vão abrir uma exceção para uma história como
essa. Acabou a brincadeira.

– Não se preocupem – disse o governador. – Ele ficará, durante uma semana,


preso no andar de baixo da casa. E, como não gosta de dormir, assim como eu, terá
tempo suficiente para ler os 124 livros que escreveu até agora e fazer uma revisão
acurada de cada um deles. O barbudo que havia se mantido em silêncio até aquele
momento decidiu defender o cárcere privado para o anarquista:

– Não havia outra maneira de evitar que colocasse a boca no mundo a não ser
envolvendo-o na nossa conspiração. Uma vez aqui e sem ninguém saber onde poderia
ser encontrado, estavam dadas as condições para afastá-lo e mantê-lo num lugar seguro.
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

Foi falta de sorte ele ter sido um de nós a reconhecer o maluco da praça e, depois, a ler
todo o manuscrito. Nós todos sabíamos que tínhamos que trai-lo. Eu não me arrependo
porque há dezenas e dezenas de anos sabemos que todo anarquista é um ser ingênuo,
por acreditar no altruísmo do homem, e perigoso, por usar o terrorismo e o assassinato
de governantes como arma de luta política. – Os rostos do governador, do Velho, do
barbudo e do bigodudo estavam impassíveis. Duros e frios como granito.

O bigodudo, um senhor alto de seus 55 anos, tinha a pele marrom, acostumada


ao bronzeado das serras ou do mar, daqueles pescadores que entram mar adentro sem
saber se voltam ou não à terra firme. De certa forma, uma ponta de inquietação no
comportamento do bigodudo revelava que ele estava navegando por mares bravios em
meio a uma tempestade. Parecia um homem cioso de sua beleza e uma papada que
teimava em aparecer parecia incomodá-lo. As unhas, bem feitas, no Jacques Janine.

Os olhos eram os de um gavião, e os cabelos partidos ao meio, penteado comum


nos anos 60. Vestia um terno azul-marinho, de boa qualidade, mas não ostentava
riqueza. Como os novos ricos. Um executivo típico. A gravata, vermelha, era
provavelmente uma Armani. Dos quatro parecia o mais astuto. Não perdia um só
detalhe da expressão facial de cada um, principalmente a do governador, que não
considerava um homem de confiança. Decidiu fazer um teste naquela hora. Estendeu a
mão grande e de dedos compridos em direção ao celular colocado em frente a ele, quase
no meio da mesa. O braço do governador, como uma cobra, deu um bote, agarrou o
aparelho e o guardou no bolso do paletó.

– Para quem? Por quê? Já tenho todas as informações que precisamos para tomar
nossa decisão – disse o governador com voz de líder de organização de esquerda dos
idos de 68.

– O senhor, aqui, deve tratar a todos nós como iguais. Estamos no mesmo barco.
Vamos tomar decisões que mudarão a História deste país. Não dê uma de bolchevique e
procure ter um mínimo de educação. – O olhar do governador para o bigodudo era de
ódio, contido. Suas feições se contraíram. Os lábios desapareceram. De raiva.

– Para quem? – O governador repetiu a pergunta.

– Para meu segurança. Homem de minha total confiança que está em São Paulo.
Ia pedir para que ele vasculhasse a cabana do velho maluco na Fonseca Rodrigues,
aproveitando que o homem está em dormindo como uma criança no Pacaembu e que,
amanhã, agirá sozinho para matar o presidente. Ou melhor, tem só a filha como
cúmplice. Quem sabe, confiante no êxito de seus planos, não adiantou a maneira como
vai matar o presidente.

– Faz certo sentido – disse o Velho, pensativo. – A palavra dele tinha um peso
tão grande como quanto o do governador. Era reconhecido como um dos maiores líderes
empresariais do país, líder de um grupo que, mesmo afetado gravemente pela crise

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

mundial, não podia ser comparado com o Império de Comunicação que tinha O País
como carro-chefe: era pelo menos cem vezes maior.

A idade não havia afetado sua cabeleira farta e penteada com esmero, fixa com
gel e também partida de lado como a do bigodudo. Vestia terno de um azul escuro, de
linho, todo amarrotado e como se fossem dois números a mais. do que ele realmente
vestia. Em pé poderia parecer um espantalho. Compensava a aparência com posições
firmes, decididas, que nunca usavam de meias-verdades. Pagou caro por isso. E ganhou
o respeito da sociedade. Ele passou a língua pelos lábios e disse calmamente:

– Temos um único problema: o tempo.

– Este não é problema – disse o governador, já mais tranquilo depois que o


Velho concordou com o bigodudo. – Tenho o helicóptero esperando. E acho que vou
pedir um jatinho também., pelas dúvidas. – O publicitário levantou-se, colocou as mãos
sobre a mesa de mogno e disse:

– De tão maluco, o velho do canteiro da Avenida Fonseca Rodrigues, num de seu


ataques de megalomania, pode ter feito um relato sobre o futuro do País. Mas este não é
trabalho para um segurança. Um de nós precisa ir até lá, vasculhar aquela sujeira. Eu
acho que sei onde pode estar. Quando eu procurava pelo manuscrito, vi um buraco
suspeito debaixo da antiga poltrona onde ficava a escrever. Não dei muita atenção
porque em seguida achei o documento.

– Suspendemos a reunião por duas horas enquanto ele vai e volta. Pode descer
no heliporto do Shopping Villa-Lobos, que fica a menos de cinco minutos, do
“escritório” do nosso Bonaparte e ir direto até a poltrona. E, se não encontrar, volte
imediatamente, pois não podemos perder tempo. – O Velho dirigiu-se ao bigodudo e
pediu para que o segurança fosse pegar o homem de barba, o esperasse ele fazer a busca
debaixo da poltrona para depois levá-lo de volta até o Villa-Lobos. Já o governador, que
dava grande importância à segurança e às ações de inteligência, advertiu:

– Não teremos um Plano B? Antes cruzar a avenida em direção à cabana, o


nosso homem de barba terá que agir com extrema prudência e cautela. Assim como nós
descobrimos os planos do maluco, a Abin poderia ter conseguido o mesmo feito. Não
acredito muito, porque os agentes são jovens e inexperientes, não são iguais aos meus
homens da Polícia Militar. – O governador consultou o relógio, um Cássio comprado
em uma de suas visitas como prefeito à Rua 25 de Março.

– Hora de agir. Os motores do helicóptero já estão ligados. O tempo é muito


bom. Se não pudermos recomeçar a reunião às dez, o próximo horário é meia-noite e, o
seguinte, duas da madrugada. O certo é que nossa ação será montada ainda esta
madrugada. Pelas informações que tenho, o maluco deverá viajar amanhã no meio
metade da manhã para Brasília. O encontro com o presidente está marcado para a tarde.
Deve ser a última audiência do homem.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

XVIII
A Arapuca

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

O homem de barba entrou apreensivo no helicóptero. Sentou-se ao lado do piloto e


não se mexeu até chegar ao heliporto do Villa-Lobos. Havia algumas gotas de suor em
sua testa. A causa pode ter sido o vôo noturno. O segurança do homem de bigodes fartos
estava esperando por ele. Achou estranho encontrar uma pessoa tão diferente de seu
chefe. O barbudo não usava terno e sim uma camiseta branca sobre a qual tinha uma
outra camisa de manga comprida, jeans, cheia de bolsos, em cada um deles, duas ou três
canetas, calças cáqui creme, meias também coloridas e sapatos mocassins comprados na
Guido, em Buenos Aires. Por sobre o pescoço, uma blusa leve e vermelha.

Já eram quase 10 da noite. Em menos de cinco minutos estava no escritório do


maluco da Fonseca Rodrigues. Como não havia trânsito, pediu ao motorista e segurança
que o esperasse bem ao lado do canteiro central, perto da poltrona, com a porta aberta e
os motores ligados. Não iria se arriscar mais do que o além do necessário. Quando a
Cherokee blindada estacionou e o homem de barba saiu correndo, pelo menos uma
centena de holofotes foram acesos. Um festival de luzes e cores. As viaturas surgiram
de todos os lados. Negras da Polícia Federal. Negras da Abin.

O barbudo sentiu-se perdido durante dois segundos. Decidiu correr até a


poltrona, enfiou a mão no estofamento e encontrou logo uma espécie de canudo, desses
que são usados para colocar diplomas. Mais dois segundos e já estava dentro do carro,
que arrancou e subiu no canteiro da avenida. Os agentes não esperavam pela manobra.
A Cherokee ganhou uns 50 metros de distância e alcançou a Faria Lima a 180
quilômetros por hora, ignorando todos os sinais. No Largo da Batata evitou, por acaso,
bater de frente com um ônibus. A mesma sorte não tiveram os motoristas de três
viaturas que vinham mais próximas. As outras quinze ou vinte, impossível contar,
passaram para a contramão, evitaram novos choques, voltaram à pista normal e levaram
seus carros a 240 por hora.

O barbudo afivelou bem o cinto, cobriu os olhos com a blusa vermelha e esperou
pelo pior. Sentiu o motorista dar um cavalo de pau e voltar pela mesma pista de seus
perseguidores, que, temendo um choque, pois chegaram à conclusão de que o piloto era
um kamikaze, permitiram que ele passasse naquela espécie de corredor japonês de
viaturas negras. Os homens da PF e da Abin não eram tão bons motoristas e não se
sentiam confortáveis nas ruas de São Paulo. A Cherokee seguiu a 260 quilômetros pela
Sumaré quando o homem de barba decidiu olhar por uma fresta da blusa. Viu onde
estava e deu um grito.

– Volte. Estamos salvos. Estes filhos-da-puta não conhecem o meu território.


Não o de trabalho, mas o de boemia. – Voltamos em direção à Vila Madalena, no final
da Sumaré dei ordens para que ele virasse à direita, primeira à esquerda e primeira à
direita. Era uma viela que dava passagem para um só carro e só conhecida pelos
moradores da rua e pelos grafiteiros que a transformaram numa das mais bonitas da
cidade. Os motoristas das viaturas negras se complicaram naquele labirinto, o barbudo
pediu que o segurança entrasse à esquerda e parasse bem na esquina da Rua Harmonia.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

O chiado dos pneus foi ouvido na maioria dos bares da Vila Madalena, lotados naquela
noite de quinta-feira.

O barbudo aproveitou a agilidade que ganhou nas academias da Vila Olímpia,


pulou do carro no momento exato em que parou e começou a subir a avenida
cambaleando e cantando a toda altura: “Somos todos soldados, armados ou não... Vem
vamos embora que esperar não é saber, que sabe faz a hora não espera acontecer.”.
Nesta hora ele enfiou a mão na garganta e começou a vomitar enquanto os carros de
negro passavam em disparada subindo a ladeira da Harmonia em perseguição ao
Cherokee. Ninguém deu importância àquele bêbado. Assim que os carros
desapareceram no alto do morro, ele disparou em direção ao cemitério, não teve
qualquer dificuldade para pegar um táxi e ordenar: “Vamos para o Villa-Lobos,
rápido!”.

O homem de barba não tinha noção exata de quanto tempo esteve entre a vida e
a morte. Calculou que foram cerca de 15 minutos. Aproveitou para ligar, primeiro, para
o piloto do helicóptero para que não desligasse os motores e, em seguida, para o
governador.

– Era uma tocaia, uma armadilha... Os agentes do Brasil inteiro estavam


esperando por nós. Parece que desconfiam de algo. Não sabem exatamente o quê. Se
soubessem teriam já prendido o velho maluco. – A voz do homem de barba era
ofegante. Cinco minutos depois o governador chamou de volta:

– O velho continua dormindo no Pacaembu. Sei que a perseguição chegou a O


País, mas o plantonista não deu muita importância porque ninguém foi preso. Os meus
homens já sabem que seu motorista escapou. Jogou o carro dentro do Rio Pinheiros e
mergulhou. Apareceu na Ponte da Cidade Universitária. Quase que vocês conseguem
voltarem juntos. Ele é do Mossad, sabia? – Do outro lado, o governador ouviu um
assobio e o barulho das hélices do helicóptero. Convocou o Velho e o homem de bigode
para se reunirem à uma e meia da madrugada para ler o documento que estava
escondido debaixo da poltrona do maluco do canteiro central.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

XIX
Se ela não me matar

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Os três estavam já sentados em volta da mesa quando o homem de barba abriu a porta
e entrou esbaforido.

– Ainda não li o documento. Sei que é parecido com o manuscrito. Está escrito
em vermelho e não passa de duas páginas. O governador suspeitou que ele estivesse
mentido. Coçou a orelha e pediu que, primeiro, tomasse um café bem quente para
espantar o sono.

– Não estou com sono, respondeu o barbudo. Estou com medo. Muito medo de
como tudo isto vai terminar. – Enquanto bebia o primeiro gole de café, abriu o
documento e começou a ler em voz alta:

Assim será o meu governo, se minha filha não me matar antes!

Esta é a cena no Palácio, do jeito que eu a imagino. Como disse, não sou
escritor, ficcionista.

– Bem, caro companheiro, agora receberei a sua filha. Teremos muito que
conversar. Tome, antes, um último cafezinho para celebrar nosso pacto. Reservei pra
nós um bom Cohiba, mas a sala vai ficar com um cheiro da porra quando a Cecília
entrar.

Ele próprio deu a senha para o Plano A. Não haveria sangue. O mordomo entrou,
serviu as duas xícaras e eu, previdente, já deixei os tabletes na mão. Deixei que
deslizassem suavemente para as duas xícaras. Mexemos. Olhei para o presidente vivo
pela última vez. Quando íamos beber, eis que surge a adorável Cecília.

– Não estou convidada? Tinha uma xícara na mão, que colocou sobre a mesa de
centro para beijar o presidente e para um “Tudo bem, papai?”

Não esperava que ela entrasse naquele momento. Peguei minha xícara de café e
bebi. Estava suavemente doce. O presidente bebeu o dele, reclamou que estava melado
e com gosto estranho. Trinta segundos depois de beber, caiu pesadamente no chão.
Cecília deu um grito. Grito de medo. Pavor. Colocou as mãos na barriga. Os pés do
presidente ainda batiam contra o chão desordenadamente quando os seguranças
entraram.

Via-se claramente que não entendiam o que acontecia. Eu com o pires na mão. O
presidente caído. Cecília urrando de dor. Ela não resistiu e caiu desmaiada. A confusão
era total. A secretária, primeira a entrar no gabinete, notou que o presidente não mais

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

respirava e saiu a gritar pelos corredores. “Ele morreu!” “Ele morreu!” Portas foram se
abrindo.

Estupefato com a reviravolta de meus planos, eu, completamente saudável,


demorei em a perceber que Cecília bebera o meu café. Gritei por uma maca. Por uma
ambulância. O corpo do presidente estava estendido no chão coberto por assessores que
desesperadamente tentavam reanimá-lo. Ninguém se preocupava com Cecília. Só eu.

A maca chegou. Pedi a dois seguranças que me ajudassem a levá-la para a


ambulância. O ruído de sirenes aumentou. Foi num crescendo. Chegamos ao hall, longo
hall de entrada do Palácio, e corremos com a maca. Cecília tinha enormes dificuldades
para respirar. Entrei com a maca na ambulância. Motorista e enfermeiro queriam ir para
o Hospital de Base. Tive que me impor aos gritos: “Direto para o aeroporto!”.

O jatinho, uma UTI voadora, estava com os motores ligados, como eu


recomendara. Meu médico particular assumiu o comando da situação. Fez um exame
rápido e concluiu: “Ela foi envenenada. Mas vai sobreviver.”. Descemos em Congonhas
onde o helicóptero nos esperava a autorização para decolar.

No Sírio já esperavam por Cecília. Meu médico pediu uma lavagem estomacal.
No jatinho ele fez com que Cecília vomitasse sem parar. Ela estava sedada. Foi para a
UTI. Um mês depois, saiu do hospital candidata à presidência. Aconteceu tudo aquilo
que eu previra: acusaram os inimigos do presidente pela morte, o partido do presidente
esfacelou-se, dilacerado por brigas internas fruto de sua herança política; e os aliados
não tinham um só nome forte para lançar contra a minha filha.

O País sofreu um golpe severo. O povo saiu às ruas num choro de quem havia
perdido o pai. A economia teve um baque: Bolsa em queda e risco-Brasil em alta. Mas
o caos durou apenas um mês. A primeira pesquisa do Ibope, dois meses depois da morte
do presidente, revelou que minha filha Cecília tinha 67% das intenções de voto. Ganhou
em primeiro turno: 70% por cento dos votos válidos. Os brasileiros estavam orgulhosos
da primeira mulher que iria ocupar a Presidência da República.

Fui duramente interrogado pela Polícia Federal. Não tinha nada o que dizer. Só
me restou uma opção: voltar ao meu escritório. Tomei esta decisão dois meses depois da
morte do presidente. Antes de vestir novamente a roupa de meu personagem, fiz, em
cartório, um documento passando para Cecília todo meu império. Até a eleição de
minha filha, continuei representando o louco manso.

Em 2010, depois da posse, decidi desaparecer. Tenho 82 anos e esta é, meu


amigo leitor, a última coisa que faço ainda de meu escritório: terminar esta peça de
ficção. Posso lhe dizer que Cecília, se isto vier a acontecer, é o maior gênio político e
empresarial nascido no Brasil. De uma só vez, como herdeira de todos os meus gens,
matou o presidente e jogou seu velho para o ostracismo, não lhe deixando alternativa a
não ser a morte. Por isso escrevi este final de história, pois eu tomei a firme decisão de
me suicidar depois do êxito de Cecília.
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Na verdade, não conseguiria conviver com meu próprio fracasso. Eu deveria


matar o presidente, assim como matei Tancredo, Getúlio, Jango, Ulysses... Estou
completamente lúcido ao escrever estas linhas que colocarei em baixo da poltrona onde
me sentei durante os últimos dois anos. Qualquer um dos meus amigos que vieram me
visitar, ao notar o meu desaparecimento ou o sumiço do dono do maior Império de
Comunicação do Brasil, viria bisbilhotaria em meu escritório. Se se falassem,
chegariam logo a descobrir minha identidade. É para eles que deixo minhas últimas
palavras, se Cecília me vier a matar.

Quando o homem de barba terminou a leitura, ouviu-se um sonoro “filho-da-


grande-puta-que-o-pariu”, vindo de todos os participantes da reunião. O Velho foi o
primeiro a reagir. Pediu o documento para ler mais uma vez, o que o fez lentamente
enquanto passava a mão direita pela testa como se quisesse levar sangue ao cérebro.
Parou em alguns trechos e, depois, fechou os olhos. Para pensar. O governador e os
homens de barba e de bigodes começaram a ficar inquietos em suas cadeiras. O silêncio
da sala e o ranger de cadeiras irritaram o governador. Ele disse rispidamente:

– Se o senhor vai tomar uma decisão solo, é melhor irmos embora e cada um de
nós vê qual a melhor medida a ser tomada. Não é o que eu aconselho, mas diante de seu
ato de menosprezo com seus companheiros. – O governador levantou-se como se fosse
abandonar a reunião, puxou o paletó do terno, empertigou-se e caminhou em direção à
porta quando ouviu a voz do homem de bigode e voltou.

– Você é, sempre, apressado e nervozinho. Os homens da primeira geração


contam com a experiência a seu favor. Se ele lê e relê é porque precisa fazer isso. Me
irrita profundamente quando as empresas começam a aposentar gênios de gestão, como
velho, aos sessenta e poucos anos. Ninguém consegue ver que o mundo mudou? Há
dois mil anos morria-se com 30 ou 35 anos; há mil anos com 45 ou 50; agora a vida útil
pode chegar aos 90 ou até mesmo 100, vejam o Niemeyer. – O governador explodiu.
Deu um grito que, àquela altura da madrugada, poderia chegar a ouvidos notívagos do
centro de Campos do Jordão.

– Você é completamente louco. Vá fazer suas divagações para o Board de seu


banco. Aqui, não. Fale, velho. – O governador apontou o dedo indicador longo, magro e
trêmulo em direção ao homem velho.

– Cada palavra deste documento tem uma mensagem oculta. Se não soubermos
quais são, o melhor mesmo é não fazer nada. Algumas coisas parecem óbvias e outras
nem tanto. Vou enumerá-las: primeiro e mais importante, o maluco não confia na filha –
ou acha que ela quer ocupar já o lugar dele – e está pronto para sacrificá-la sem piedade;
segundo, o maluco está pronto para operar dentro do padrão do assassino em série que
existe dentro dele, ou seja, vai usar os torrões de açúcar; terceiro, o crime será cometido
quando for servido aqueles abomináveis cafezinhos com água que um mordomo insiste
em servir no Palácio do Planalto de minuto em minuto; quarto, ele não espera que a
filha esteja presente no início do encontro com o presidente, mas não afasta a
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

possibilidade de que surja de um momento para outro; quinto, se ele interromper, ele
será obrigado a mudar de plano e, neste caso, vai preservar a filha e fazer aquilo que
mais gosta na vida; e, sexto, ele montou um grande esquema de fuga, deixando o jatinho
preparado para escapar em meio à balbúrdia que será criada enquanto o presidente
estiver morrendo. – O rosto do velho estava tenso. Frio e gelado. O homem de barba
levantou a mão timidamente, anunciando que queria falar e como se estivesse presente à
apresentação de uma campanha para um cliente:

– Creio que a análise está perfeita. Mas temos que considerar que os Serviços e
Inteligência também descobriram alguma coisa. Não posso dizer o quê. Mas nada
justificaria aquele carnaval que fizeram quando eu fui buscar o documento. Ninguém
aqui pode se esquecer que alguns dos homens e mulheres que cercam o presidente
foram da ALN, da VAR Palmares e da VPR. Conhecem luta na clandestinidade. Ou será
que o objetivo deste grupo é, também, ver-se livre do presidente? O partido deles, sem o
presidente, não existe, é um amontoado de correntes e facções. Deste jeito, todos
querem matar o homem, menos este grupo de altruístas insones reunido
clandestinamente. Quem perde e quem ganha imagem e poder com esse assassinato? –
O homem de barba deixou a pergunta no ar.

– Você deve aprender a ver o lado político, não o do marketing. – Vociferou o


governador. – Qual é o nosso negócio nesta situação? – perguntou e apressou-se em
responder. – Queremos ganhar pontos e evitar que o meu capital político do governador
seja transferido para um candidato inventado por ele. Eu estou na frente em todas as
pesquisas eleitorais, enfrentando qualquer um dos potenciais candidatos.

– Estamos – respondeu o homem de fartos bigodes. – Mas de novo o seu


proselitismo me irrita, senhor governador. O senhor fala só o óbvio. Nunca chegou à
presidência porque os conchavos de gabinete de seus tempos de movimento estudantil é
que dão o tom de sua ação política. Sua vida foi e é a de um conspirador. As chances
estão dadas para ganhar as eleições. O poder vai ficar em São Paulo. Não migrará para
Minas ou Rio Grande do Sul. ou Porto Alegre. Mesmo assim, quer fazer tudo na calada
da madrugada. Minha proposta: ligar agora para o presidente, contar a ele toda a história
e obter dele um pacto de neutralidade que deixe as portas escancaradas para a vitória
anunciada do governador. – O homem de bigode olhou no olho de cada um dos
participantes. Não havia indiferença nos olhares. Todos queriam agir. Mas para que e
como continuou sendo um enigma para o homem de barba.

– Concordo – disse o governador, surpreendendo toda a plateia. Mas será de um


jeito diferente. Vamos deixar que o plano do maluco da Fonseca Rodrigues continue
como se nada soubéssemos. Assim que o dia amanhecer, e não falta nem uma hora, eu
telefono para o secretário pessoal do presidente e peço uma reunião extraordinária de
cinco minutos com o homem alegando que tenho informações da ação da VI Frota
americana no Litoral de São Paulo. Justificarei a urgência diante de nosso acordo com
os franceses para a construção de bases para os nossos submarinos nucleares que vão
proteger as reservas do pré-sal. – O governador cruzou as mãos atrás das costas,
começou a passear pela sala e a falar ao mesmo tempo. Ao final, seu rosto magro
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

mostrava gotas de suor. Ele retirou um lenço branco do bolso, passou primeiro pela testa
e, depois, por todo o rosto. Os outros participantes do encontro chegaram à conclusão de
que ele tinha sono, pois eram quase seis da manhã. Ele tomou três xícaras de café frio e
perguntou.

– Vocês concordam, né?

– Eu concordo, mas quero estar junto. Assim como você, governador, tenho um
bom motivo para estar com ele numa emergência: mostrar a campanha do Bolsa Família
e das obras do PAC que será lançada depois de amanhã durante o Fantástico e, no
mesmo horário, em todas as emissoras abertas e de a cabo do País.

– Já que você vai estar, eu também estarei. Preciso levar ao presidente


informações confidenciais que recebi sobre a aliança dos sistemas financeiros europeu e
americano que decidiram em reunião feita também nesta madrugada passar a conta da
crise para os Brics.

– O governador torceu o nariz. Deu um suspiro, respiro profundo, como se fosse


para afastar a raiva.

– Deste jeito, vamos acabar indo todos. Só falta o velho encontrar uma desculpa.

– Não preciso de desculpa, meu caro governador. O presidente me chamou para


a audiência que precede a do nosso maluco e megalomaníaco. Estarei lá. Não avisei
antes porque não tinha sabia que amanhã seria o “Dia D”. O presidente, que não me
ama como ama outros empresários, quer saber o que nós pensamos sobre a sucessão.
Ele me disse que só eu, turrão, cabeça-chata, conhecido por dizer o que pensa sem se
importar com as conseqüências, poderia dar-lhe uma opinião honesta, sem puxa-
saquismo.

– Se a maioria quer assim, só me resta curvar-me. – Ele fez um gesto teatral em


direção a cada um dos participantes da reunião: mãos rentes às pernas e cabeça
abaixada, como fazem os japoneses em sinal de respeito. – Sendo práticos ou
maquiavélicos, como preferirem, vamos deixar o presidente ser morto? Ou é melhor eu
lembrar as opções que coloquei no início desde nosso encontro: a) evitar o crime de
amanhã; b) desmascarar o maluco da praça e prender ele e a filha; c) conseguir tirar
partido da situação e capitalizar para garantir minha eleição, o que deixará os senhores
numa situação bem confortável. – O bigodudo virou-se para o velho e em voz baixa
disse: “Este governador é uma incógnita. Os banqueiros nunca ganharam tanto dinheiro.
Os empresários também. Claro que todos nos beneficiamos do com o crescimento
mundial, da com a China uma devoradora de commodities, e da com a paz interna com
sindicatos e MSTs, que incomodam mas não paralisam o governo. Você acha que vale
trocar? Eu defendo o terceiro mandato, que o governador não ouça nem uma palavra do
que estou dizendo. – O governador não gostou da conversa ao pé da orelha.

– Se você que dizer algo, que o diga em alto e bom som. Estamos todos atentos.
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– Estava dizendo que não devemos deixar o presidente ser assassinado, contar
todo o plano, desmascarar o maluco da Fonseca Rodrigues, e conseguir, do presidente, o
compromisso de apoiar o governador aqui nas eleições de 2010. – O governador, que
não sabia sorrir, esticou os lábios. Estava contente e calmo. O barbudo pediu novamente
a palavra:

– Antes de partirmos para Brasília, quero o meu quinhão. Sua campanha,


governador, será feita por mim.

– Claro, claro... – respondeu o governador de bom humor. – Nós sabemos o que


fazer e vamos fazer.

A reunião terminou às seis da manhã e os participantes partiram apressados pois


tinham um papel importante a representar no Palácio do Planalto.

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XX
Passeata no Palácio

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O celular “vermelho” do secretário especial do presidente da República começou a


tocar antes das sete horas da manhã daquela sexta-feira. Ele ainda estava cansado e
depressivo porque a vitória do menino em São Paulo e a derrota da candidata do
presidente tinham caído em suas costas. Desde então, tem dormido mal e anda sempre
macambúzio e depressivo pelos corredores do Planalto. Desde os tempos de seminário
estava acostumado a levantar às cinco da manhã, fazer sua própria cama no imenso
dormitório comum, tomar banho com água gelado, assistir à missa das seis e servir o
café-da-manhã no refeitório para seus os amigos. Uma situação que durou quatro anos,
mas que ajudou a formar seu o espírito de disciplina e lealdade. Para com o presidente e
seus companheiros políticos mais próximos.

O secretário era um homem solitário e pouco afeito a aparecer nas manchetes. de


jornal. Na única fez que isso aconteceu, numa entrevista a O País, recebeu tantas
críticas que se recolheu a seu refúgio no quarto andar o Palácio do Planalto. Só os
dirigentes mais hábeis sabiam que ele era uma eminência parda, que mantinha rígido
controle sobre ministros, ministérios e os principais quadros de seu partido. político.
“Só hoje gostaria de dormir um pouco mais”, reclamou. Porém, o telefone a que
somente as pessoas que decidiam o futuro do País tinham acesso chamou quando
faltavam quinze minutos para as sete. Com sua mão peluda de dedos curtos ele pegou o
aparelho e ouviu:

– Sou eu o governador! – O secretário já se irritou, porque esperava pelo menos


um “bom dia”. Mas, como era o segundo mais importante político do País, decidiu
atendê-lo.

– Bom dia, senhor. Seria possível me ligar dentro de meia hora? Só preciso
tomar banho e fazer um café bem preto. Acordei com uma terrível dor de cabeça.

– É muito rápido. Tenho motivos sérios para falar como presidente ainda hoje
antes do meio da tarde. Estou viajando às 11 horas, de jatinho, para Brasília. Preciso
dormir um pouco. Você sabe que fico acordado durante a madrugada. É quando consigo
pensar. E trabalhar. – O secretário cortou a digressão do governador, que parecia aceso e
com toda a energia, para dizer:

– Senhor governador, a agenda dele de hoje está muito complicada e...

– Não aceito nenhuma desculpa burocrática. Você é político há décadas e sabe


muito bem quando um assunto é importante. Nenhuma hipótese de falar ao telefone.
Minha secretária espera sua ligação.

– Espere, se é tão importante assim, marcamos agora.

– Você acaba de dizer que a agenda está lotada.

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– E o senhor acaba de me dizer que se este encontro não acontecer viveremos a


pior crise política desde o primeiro mandato. – O secretário já estava irritado. – Me
lembro, tenho que confirmar que o almoço estava marcado com a primeira-dama. Ele
não vai gostar de desmarcar, mas sendo o senhor...

– Ela entenderá. Estarei à uma da tarde no Alvorada. Lá teremos melhores


condições de falar com total privacidade. sem sermos captados por estes malditos
aparelhos de escuta da Abin colocados em todos os cantos da nação. – O governador
não confiava no secretário a ponto de falar com ele sobre a ação da VI Frota americana
no litoral paulista por causa da construção de submarinos nucleares pelo Brasil para
proteger as imensas reservas descobertas no Litoral. O governador sabia que em questão
de décadas Estados Unidos e Brasil estariam guerreando pelo petróleo. Mas este nem
era o motivo do encontro que havia pedido com o presidente.

– Vamos O esperá-lo. – O secretário desligou e lembrou-se que perto da meia-


noite foi acordado por um telefonema do grupo especial que recebeu a informação de
uma velha senhora de que um mendigo louco de São Paulo estava preparando a morte
do presidente. A mando do presidente o comando da Abin estava em nas mãos do
secretário e, como se tratava da vida do primeiro mandatário, decidiu montar uma
grande operação envolvendo a Polícia Federal para capturar o mendigo, que não
apareceu. Apareceu, sim, foi um homem barbudo, provavelmente do mesmo partido
dele, para procurar algo debaixo de uma velha poltrona.

O secretário, ao receber o relato da perseguição, do misterioso sumiço do


homem de barba e da fuga espetacular do motorista, ele suspeitou que uma das
correntes de seu partido, ainda afeita à luta armada, tinha recebido a mesma informação,
só que com um dado a mais: o plano do louco estava escondido embaixo da poltrona, no
estofamento. Pelo menos esta foi a informação que a agente e companheira Rejane
havia lhe passado. Convocou para a tarde daquela sexta uma reunião do alto comando
da Abin para analisar o fracasso da operação policial e a possibilidade de surgimento de
um grupo clandestino interessado na tomada do poder pela força das armas. “De novo”,
esfregou os olhos como se estivesse despertando de um pesadelo e foi tomar banho.

O secretário ainda estava ensaboado quando o “telefone vermelho” voltou a


tocar. “Puta-merda”, disse ele e se arrependeu em seguida. Não gostava de palavrões.
Esperou os cinco tradicionais toques até a entrada da secretária eletrônica para poder
tirar o sabão do corpo. Ele havia aprendido no seminário a nunca pecar por negligência.
Enxugou-se e abriu as cortinas do quarto que ocupava no décimo terceiro andar do
Naoum Plaza. O ar-condicionado estava ligado e abafava um pouco do ruído que
teimava em subir até seus ouvidos. Ele ficou ali parado, olhando o horizonte azul claro,
os primeiros carros a chegarem ao centro, as pessoas pobres e engravatadas e a poeira
vermelha do cerrado. Era o que mais gostava: a cor da terra do Planalto Central.

A meditação durou até o momento que o telefone voltou a tocar. Era o homem
de bigode que também precisava falar com urgência e pessoalmente com o presidente
naquela tarde. Estava em São Paulo a caminho de Guarulhos e a secretária dele já havia
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marcado sua passagem para as 10 horas. Ele, ao contrário do governador, era polido e
respeitoso:

– Senhor secretário, o homem de meu ministério que acompanhava a reunião


dos sete grandes em Londres me informou esta madrugada que a decisão unânime foi a
de passar a conta da crise financeira para o Brasil e seus parceiros do BRICS. Recebi
ontem mesmo ligações dos meus pares da Índia e da Rússia. Precisamos tomar uma
decisão ainda hoje, pois corr-se o risco de o fato se consumar se não houver reação. – O
secretário, ao ouvir a explicação, sentiu-se ainda mais importante, explicou que a
agenda estava carregada, mas que marcaria para as duas e meia da tarde.

– É só para informá-lo, não? Não teremos condições de mobilizar uma reunião


com os ministros da Fazenda, do Exterior e o presidente do Banco Central. Além disso,
a duração da audiência não pode passar de meia hora.

– Não se preocupe nem um pouco, secretário. – O homem de bigode olhou


cautelosamente para o celular, antes de fechá-lo e guardá-lo no bolso do paletó. Sinal
dos tempos. As informações que os bancos tinham é de que havia pelo menos
quinhentos mil telefones sendo monitorados pela Polícia Federal. Este número indicava
que milhões de pessoas tinham diariamente suas vidas pessoais bisbilhotadas pelos
serviços de inteligência. Leitor inveterado, lembrou-se logo de o Grande Irmão, de
George Orwell. Este enxame de gente no Planalto não vai dar certo. O cheiro é muito
ruim. O homem de bigode pensou seriamente na possibilidade de cancelar a audiência,
ficar em São Paulo acompanhando os acontecimentos no Planalto pela sua rede de
informantes, as secretárias. Ninguém sabia mais em Brasília do que as secretárias e
eram todas extremamente discretas, menos para um ministro gentil, charmoso, generoso
e que semana sim, semana não, enviava a cada uma das secretárias mais importantes um
buquê de cravos vermelhos com uma carinhosa mensagem. Optou pela viagem. Poderia
evitar que o pior viesse a acontecer.

O secretário colocou o celular em cima da mesa e preparou-se para vestir um


surrado terno, quando se lembrou de que havia uma mensagem esperando por ele. Era
do homem de barba, pedindo para retornar a ligação. Ele julgou que o assunto não era
vital e decidiu vestir-se primeiro.

– Aqui é o secretário...

– Conheço bem sua voz, afinal tudo o que é importante em propaganda nós
decidimos juntos. Se o senhor não fosse considerar uma ofensa eu diria que é o Goebls
do nosso presidente. – O secretário começou a coçar a palma das mãos, sinal próprio de
impaciência e perguntou:

– O senhor não vai querer falar com o presidente, não é mesmo?

– Como adivinhou?

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

– Minha equipe de criação criou uma campanha que garante o terceiro mandato,
a eleição de quem o homem escolher... Não chamam o programa Bolsa Família de
assistencialista? Pois bem, a partir de agora as obras do PAC serão a porta de saída tão
desejada. Simples assim: os que recebem o benefício do governo terão prioridade,
obrigatória, é claro, em todas as contratações feitas no País, quer seja por uma grande
construtora ou pelo Rubayat de Belarmino Iglesias.

O secretário, que tinha a Comunicação como uma de suas prioridades, se


convenceu com a força do argumento. Se a campanha desse certo, mais quatro, oito...
anos no poder. Sentou-se à mesa na mesa do quarto de hotel, com tampo de vidro, usou
o bloco e a caneta que estavam à sua frente para esboçar a agenda do dia. O presidente
em geral concordava com os compromissos marcados, mas gostava de ficar sabendo
com quem se encontraria. Suas anotações:

1. mantidas as audiências da manhã;

2. 13 horas – almoço com o governador no Palácio da Alvorada (comunicar


a primeira-dama e encontrar uma boa desculpa);

3. 14 horas – audiência com o ministro de bigodes para discutir a posição


dos grandes que decidiram que o Brasil será um dos países a pagar a
conta da grande crise financeira;

4. 14:30 horas – audiência com o homem de barba para confirmar a


campanha vinculando o Bolsa Família às obras do PAC;

5. 14:45 – audiência com o cidadão Krane para discutir a postura


antigoverno do jornal O País;

6. 15:00 – junta-se aos participantes Cecília, filha do cidadão Krane, e já no


comando do Império de Comunicação do grupo;

7. 15:30 – embaixador dos Estados Unidos acompanhado do subsecretário


da Defesa e do adido militar.

8. 20:00 – churrasco na Granja do Torto. Convidados; ministros das


Relações Institucionais, secretário-geral da Presidência e das Relações
Institucionais.

Ele acabou o esboço, ligou o laptop e mandou para sua secretária e a secretária
pessoal do presidente. Se houvesse algo errado, o homem o chamaria para fazer os
ajustes necessários. Desceu para tomar café: cereais com mamão, um pequeno
sanduíche de presunto e queijo acompanhado com uma média de café com leite. Todo o
dia comia a mesma coisa. Os garçons estavam acostumados e, quando ele chegava, já
encontrava sobre a mesma mesa que ocupava há anos os cereais e o mamão cortado do
jeito que gostava.
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

Do bolso do paletó tirou as anotações feitas à mão no bloco de papel do hotel,


contemplou o conteúdo por quase um minuto e falou para ele mesmo: “Este é o dia!”.
Sua expressão era de curiosidade sobre aqueles encontros na sexta. Havia algo de
misterioso na agenda que ele não conseguia decifrar. As pessoas, conhecidas entre elas,
não se conectavam quando o eixo era o presidente da República. Mas só via com
apreensão o encontro com o governador.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

XXI
Audiências Mortais

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

O presidente estava de bom humor naquela manhã de sexta. Decidiu descarregar sua
raiva à tarde durante uma das muitas audiências marcadas pelo seu secretário pessoal.
Teve problemas, sim, com a primeira-dama. Ela reclamou que ele nunca almoçava em
casa, com ela, e esta seria a primeira oportunidade no ano e ele já estava desmarcando.
Ele disse um “ora, meu bem” e um “minha querida” e as coisas tendiam a se arrumar
quando recebeu um telefonema do próprio governador pedindo para que a primeira-
dama estivesse no almoço, pois ela poderia ouvir – “mas não dar palpite”, advertiu –
porque seria importante ter uma testemunha da conversa que os dois iriam ter.
– Oh governador, você quer mandar agora em minha própria casa? E em minha
mulher também? Dizer o que ela pode e não pode fazer? Daqui a pouco você vai dizer
em quais dias eu posso trepar com ela. Ou que está velha e que preciso arrumar carne
nova. – O presidente dava seus recados com brincadeiras. Ele não gostava do jeito
autoritário do governador e sempre levava a conversação para o chão de fábrica quando
o tom era de prepotência.

– Estou querendo ser gentil, para não prejudicar sua vida pessoal. – Respondeu
rápido o governador, tentando se redimir.

– Por que você não vai.... Só não completo a frase porque você às vezes que
outra parece puta melindrosa. Pelos quarenta anos que andamos juntos nesta vida
política de merda eu sei conheço até o cheiro de seu peido. E ele fede pra caralho. Estou
te esperando à uma com arroz, feijão, linguiça, couve e girimum. Comidinha caseira.
Não vá se acostumar. Você vive em restaurante de rico, come aqueles pratinhos
mixurucas e ainda paga uma nota. – O presidente não esperou pela resposta do
governador. Desligou e deu um gargalhada gostosa e contida, colocando as mãos entre
as pernas. Avisou a mulher que estariam na agradável companhia do governador durante
o almoço.

O jatinho do governador desceu às quinze para uma da tarde, cinco minutos


depois estava num carro com batedor e chegou ao Alvorada cinco minutos atrasado. Foi
recebido pelo próprio presidente, vestido com uma calça jeans, um pouco apertada para
ele, e uma camisa de manga curta branca que pendia como uma saia de sua barriga.
Deram-se as mãos e o presidente não conseguiu impedir que o governador fosse o
primeiro a falar:

– Você está bem mais gordinho do que da última vez do que nos vimos. – O
presidente, que já havia tomado sua cachacinha de antes do almoço, ficou vermelho e
retrucou.

– Esta sua falta de educação na casa dos outros, este seu jeito de passar pelas
pessoas como um príncipe, a sua empáfia... nunca vão deixar que você venha a morar
aqui. Você é o homem mais irritante que conheci em toda a minha vida. Pior que todos
os picaretas espalhados pelo Brasil. Pior do que aqueles que vêm aqui puxar meu saco.
Pior do que os que só sabem pedir e pedir. Pior do que jornalistas. Você que é um
magricelo amarelento, com uma barriguinha que parece barriga d’água, a imagem de
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

uma caveira ambulante e coisas piores que nem eu sou capaz de dizer, deveria aprender
a me respeitar, a respeitar o povo e a se respeitar. – O governador estava possesso. Ele
poderia considerar-se um amigo do presidente, mas não ao ponto de ter que escutar o
que estava escutando.

O governador deu meia-volta, e o presidente caminhou pelo corredor que levava


ao Alvorada. O almoço teria acabado ali, se não aparecesse a primeira-dama dizendo:

– Ora, ora, ora... estes meninos grandes estão brigando como colegiais, dando
murros e tapas com as palavras. Parecem meus filhos quando pequenos. Esta relação de
amor e ódio entre vocês dois ainda vai acabar em casamento. Ainda bem que, enquanto
eu viver, casamento de homem com homem não vai existir neste nosso Brasil. – Ela
pegou o presidente pelo braço, o levou até o governador, os dois se abraçaram e os três
entraram de braços dados no palácio, com a primeira-dama no meio.
– Vamos pegar logo a boia antes que esfrie – disse o presidente.

– Por falar em boia fria, os usineiros de Alagoas e do Brasil inteiro estão lhe
oferecendo algo para...

– Agora, sim, vá tomar nesta sua bunda seca. Já vi seu teste do polvilho. Deu
positivo. Já não tem uma prega.

– Meninos, de novo. Este vinho da Borgonha vai acalmá-lo e este Havana fará o
mesmo efeito no governador. Ela serviu uma dose generosa para o marido e quase
encheu a taça do governador. Os dois beberam como se fosse água.

– Bom vinho – disse o governador. – Pena que não combina com o almoço.

O presidente levantou-se, bochechas vermelhas, rosto de ódio e preparou-se para


dar o primeiro soco. – O governador o ignorou, como se nada estivesse acontecendo, e
pediu para ser servido de uma outra taça de vinho. E se ofereceu para servir ao
presidente. Pegou o prato dele, colocou três colheres bem servidas de arroz, uma concha
de feijão por cima, do lado a couve revogada com bacon, e, do outro, quatro pedaços de
linguiça caseira. Depois, serviu um prato modesto para a primeira-dama e outro para
ele.

– Então, senhor presidente. Entramos no Primeiro Mundo. O tempo dos fuzis e


metralhadoras chegou ao fim. Já dominamos o ciclo nuclear completo, nossos cientistas
garantem que em seis meses teremos nossa primeira bomba nuclear, os foguetes
teleguiados estão em fase de teste em Alcântara, temos estoque de urânio armazenado
no Pará que nos permite construir pelo menos cem ogivas no curto prazo, os navios da
VI Frota andam bisbilhotando a Bacia de Santos de olho nas maiores reservas mundiais
de petróleo leve, eu já coloquei o que tenho de melhor nos serviços de inteligência da
Polícia Militar para acompanhar os movimentos dos gringos e vim aqui para saber se
podemos trabalhar juntos. – O discurso franco e direto acalmou o presidente, que passou
mais de um minuto cofiando a barba. Ele esperava que o tema do encontro fosse outro
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totalmente diferente. De certa forma, ele se surpreendeu. A primeira-dama achou


prudente deixar os dois homens sozinhos e desapareceu na cozinha.

– Já assinei o acordo com os franceses para termos nossos submarinos nucleares,


coloquei a construção das bases dentro do programa do PAC e Marinha, Exército e
Aeronáutica estão trabalhando juntos tanto para acompanhar o movimento dos navios
da VI Frota, como em novos acordos com os argentinos que usam o que eles me
disseram ser “o processo de água pesada”. O presidente tomou fôlego e continuou:

– Os gringos não estão gostando do que estamos fazendo. Têm espião por todos
os cantos. E os satélites, então? O presidente deles já me chamou três vezes para falar
sobre o assunto. Eu desconversei. Este assunto é tão sério, que devemos abandonar
todas as nossas divergências políticas e juntar nossas forças. Hoje mesmo o embaixador
americano vai estar comigo às cinco da tarde, acompanhado do adido militar e do
subsecretário de Segurança, que deve estar chegando chegar ao Brasil a qualquer
momento. O encontro, claro, não está em minha agenda. Nem meu próprio secretário
particular sabe que vai acontecer.

Ninguém tocou nos pratos de comida. Os dois homens estavam tensos, muito
tensos. O governador não apenas pela crise com os Estados Unidos que estava muito
próxima, mas também com a possibilidade de a CIA ter acompanhado a reunião de
Campos do Jordão. Ele tomou naquela mesma hora a decisão de não falar com o
presidente sobre o maluco da Fonseca Rodrigues e seus planos para assassiná-lo, assim
como havia feito com todos os outros chefes de Estado que morreram misteriosamente.

– Posso passar a tarde no Palácio do Planalto? – perguntou o governador. – O


pedido confundiu o presidente. Ele pensou um pouco e disse que havia uma sala que só
ele usava e tinha a chave, onde poderia ficar, mas sem fazer qualquer tipo de ruído. Fez
um mapa do local do quarto secreto, ao lado de seu gabinete, deu-lhe uma chave e disse
que sua secretária ia deixá-lo entrar antes da primeira audiência da tarde. A primeira-
dama chegou atrás de um garçom que levava numa bandeja quatro sanduíches de
presunto e queijo, frios, com duas latinhas de guaraná. Faltavam vinte minutos para as
duas. Os dois homens comeram apressadamente e saíram, separados, em direção ao
Palácio do Planalto. O governador chegou cinco minutos antes das duas, entrou pela
porta dos fundos, a dos funcionários, onde a secretária do presidente estava esperando-o
e foi levado para a sala secreta.

– Ele já está à espera do senhor – disse a secretária assim que o presidente


chegou ao gabinete. – E o outro homem importante está na sala secreta. Deixei todas as
luzes apagadas e pedi para ficar quieto. Ele perguntou o que fazer se quisesse ir ao
banheiro e eu lhe dei uma garrafa de dois litros de Coca-Cola.

– Muito bem, assim ele aprende onde botar o pinto na hora do aperto. Peça ao
homem de bigodes para entrar. Temos que ser rigorosos no horário de cada audiência.
Esta parece ser uma sexta-feira 13, minha filha.

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O homem de fatos bigodes estava entretido na leitura de um livro sobre a nova


China do qual a Veja havia feito uma resenha. Tomou um susto e pulou da cadeira
quando a secretária disse que o homem estava à espera. Ele deu um beijo carinhoso na
secretária, uma de suas melhores informantes, arrumou uma mecha de cabelo que
insistia em cair sobre a testa, abotoou os dois primeiros botões do paletó, arrumou
diligente a gravata, olhou novamente para a secretária que de sua mesa rústica e atolada
de papéis o olhava pelo canto dos olhos. Ela fez um sinal de positivo.

– Boa tarde, senhor presidente. Teve um bom almoço?

– O caralho!

– Seu convidado estava naqueles dias.

– Ele sempre está naqueles dias. Quase dei um murro na cara daquele filho-da-
puta.

– Mas as pesquisas mostram que ele está na frente de todos os nossos candidatos
e que se as eleições fossem hoje ele estaria ocupando esta sua cadeira. – Em geral, o
presidente recebia seus convidados sentados em um conjunto de poltronas vermelhas de
couro. Mas naquele dia estava com pressa e aquele o homem de bigodes trabalhava para
ele.
– O que está acontecendo?

– Os americanos estão incentivando os europeus e os japoneses a jogar duro


conosco. Dizem que a conta do erro deles deve ser repartida com os emergentes, em
especial com China, Brasil, Índia e Rússia. O que cabe a cada nação deve obedecer a
esta ordem e que não adiantava espernearmos porque senão haveria retaliação pesada na
importação de produtos brasileiros. Presidente, não existe algo que não conheço por trás
desta atitude radical. – O presidente olhava para o alto como a acompanhar o voo de um
inseto pelo amplo gabinete.

– As mariposas quando chega a noite ficam dando vorta em vorta da lâmpara –


cantou. O homem de bigode não deixou de sorrir com a reação do presidente. Sabia que
ele havia ouvido atentamente seu discurso e estava apenas ganhando tempo para
replicar. – Estes filhos-da-puta desses americanos não vão deixar barato nossa ousadia
nuclear. Vamos esticar a corda, mas não se esqueça de combinar com os russos. Eu vou
avisar os franceses para fazer corpo mole. E a Europa se movimenta movida por
franceses, ingleses e alemães. Se um deles vacila, os outros também, porque sabe que há
algo maior em jogo. Aquele De Gaulle soube enfrentar os gringos, pena o que disse do
nosso País. Deveria estar se referindo aos homens que governavam naquela época.

– Presidente, sei que tem poucos minutos e vou dar ordens para fazer o que o
senhor está mandando. Queria apenas lhe pedir um pequeno favor. O senhor sabe que
ando de olho em sua secretária. Trouxe da Finlândia um presentinho para ela e queria
passar aqui de volta às três horas para fazer a ela uma surpresa.
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

– Come quieto, hein? Ela merece. As mulheres feias dão a melhor foda. Vá em
frente, companheiro.

Nem bem o homem de bigode saiu, entrou o de barba e sentou-se em frente ao


gabinete Presidencial.

– Boa tarde, senhor presidente.

– Deixa de frescura com senhor. Basta presidente.

– Vamos ao ponto. Minha agência criou uma campanha que vai lincar o
Programa Bolsa Família com as obras do PAC. O Globo e O País ficarão sem discurso
para seus editoriais contra o assistencialismo. – O homem de barba levantou-se, ficou
nas pontas dos pés e aproximou-se do presidente. – Com isso o senhor elege quem
quiser, até mesmo um poste. Pena eu não ter o “story board” e o primeiro filme da
campanha. – Ele afastou-se da mesa, desenhou com as mãos uma tela ou um quadro. –
Não viu que o presidente tinha abaixado a cabeça e estava rindo baixinho. –
Mostraremos uma família recebendo o dinheiro do Bolsa Família pela última vez e,
depois, caminhando em direção à construção de grandes cidades populares, como as
mexicanas e colombianas, onde receberá uma carteira assinada e jogará para trás o
cartão que, como uma folha tocada pelo vento, vai parar nas mãos da mãe de uma
família do Nordeste que estava precisando da ajuda para manter seus 12 filhos. Nem o
Nizan, nem Duda e nem Washington conseguiriam fazer algo melhor. As pessoas vão
chorar e votar em quem o senhor quiser para ser seu sucessor.

– Já tenho o nome do meu sucessor. Só espero o melhor momento para anunciá-


lo. – O homem de barba não tinha uma bola de cristal para saber o que estava passando
pela cabeça do presidente. Seus olhos estavam esbugalhados, pois este era um dos
segredos mais bem guardados pelo presidente que se divertia soltando balões de ensaio.

– Meu sucessor será como meu vice-presidente. Além de ser um homem de


culhão, é um legítimo representante do capital. Nestes últimos anos tenho pensado
muito sobre a quem cabe governar o País. E cheguei à conclusão de que devemos ter
por oito anos um representante do trabalho, quatro anos com o capital e outros oito anos
com o trabalho. Esta é a única maneira de evitar conflitos e permitir que em vinte anos o
Brasil esteja entre as cinco maiores nações do mundo queiram ou não queiram os norte-
americanos. – O presidente olhou com suspeita para todos os cantos do gabinete onde
pudesse estar instalado um aparelho de escuta e prosseguiu:

– Um empresário, como meu vice, será o candidato à Presidência. Eu terei


condições de voltar por mais oito anos, sou ainda jovem se você me comparar com
Reagan presidente e posso, depois, ficar mais oito anos comandando este País. O que
você não sabe, companheiro, é que nunca mudei. Sou aquele mesmo líder sindical do
ABC ocupando a presidência. Só que o nome do sindicato mudou de metalúrgico para
Brasil. Lidero o sindicato Brasil e minha obrigação é defender todos os cidadãos que
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

pertencem a esta Nação, não importa se é rico ou pobre. Meus adversários não estão
aqui dentro, isto aprendi desde os tempos das discussões salariais com a Volks, Ford,
GM... – O homem de barba acompanhava o discurso do presidente e balançava a cabeça
concordando. Já imaginava a campanha do sucessor. Teria a conta, porque acreditava
que Duda tinha ficado muito marcado pelas denúncias da oposição.

– Presidente, sei que agora o senhor tem uma audiência com o dono do País.
Não sou ousado o suficiente para pedir que o senhor me deixe participar, pois o império
de comunicação dele faz presidentes, ministros, planos econômicos...

– Fique, porra, um a mais não vai fazer diferença. O Palácio está com gente por
tudo quanto é lado, como em dia de decisão do Campeonato Brasileiro: de um lado,
meu Corinthians e, de outro, o Flamengo. Espero que não dê briga entre as torcidas.

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

XVII
Velhos e Sábios

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

Dia D. Liguei para Cecília. Disse a ela que passaria pela Avenida Jaime
Fonseca Rodrigues para ver melhor o doido manso. Ela sugeriu: “Converse um pouco
com ele, veja se conheceu vovô”, e riu um riso franco. Disse que tentaria. Meu jatinho
deixou Congonhas às quatro da tarde. Conversei sobre nelore e outras banalidades com
meu escudeiro médico. Minhas mãos estariam, por hora e meia de voo, nas mãos dele.
Viagem agradável. Às cinco e meia estava em Brasília. Avisei o amigo do presidente,
responsável pela agenda, que me atrasaria “uns quinze minutos”. Disse um tudo bem,
porque o presidente só estaria livre do compromisso anterior às seis e meia. Bom, muito
bom.

Confirmei se os tabletes de açúcar estavam no bolso certo do paletó. Os da


direita eram os do presidente. O do bolso esquerdo era meu. Usei um táxi. Cheguei ao
Palácio faltando 15 minutos para as seis. Li um capítulo de Grande Sertão: Veredas.
Carrego esta edição comigo há décadas. Releio os capítulos aleatoriamente. Como os
evangélicos leem a Bíblia. Procuro sempre o trecho apropriado para o momento que
vivo. Para o aqui e agora. Estava absorto na leitura quando a gentil e feia secretária
avisou: “O presidente o espera no gabinete”. Entrei e o saudei com alegria. Diria até que
fomos efusivos. Como planejado, a conversa começou com temas sobre o crescimento
acelerado e consistente do Brasil e passou para uma troca agradável sobre as mulheres
da Corte, em especial sobre uma que criou um tremendo problema para um senador. O
tema sucessão irritou o presidente:

– Este jornal de merda – disse quase gritando – publica manchete afirmando que
eu estou incentivando meus companheiros a começar o trabalho pelo terceiro mandato.
Para você, posso ser sincero. Estou mesmo. Não por mim, mas pelo País. O Brasil
começou a ficar grande e será maior ainda. Estes filhos-da-puta devem estar é querendo
mais anúncio da Petrobras, do Banco do Brasil... Não há limite para o apetite destes
viados. Acabarei enchendo o rabo deles de dinheiro de publicidade, se é isso que
querem. Assim, vão aporrinhar a mãe deles, não a mim. Nunca ganharam tanto dinheiro.
Quando entrei, estavam falidos.

O presidente estava possesso. Levantou-se para buscar o jornal. Oportunidade


perfeita para eu pudesse pegar o revólver do presidente e colocá-lo entre as almofadas
do sofá em que estava sentado. Perfeito. Tinha as duas armas do crime: Plano A
obrigaria o presidente a se matar; Plano B, no cafezinho que estava por chegar pela
segunda vez, servido, simultaneamente, com um copo de água gelada, colocaria meus
tabletes mortais. O presidente, ao voltar com o jornal nas mãos, achou que eu estava
rindo dele:

– Que é isso, presidente? Rio dos meus concorrentes, empresários medíocres,


com visão de curto prazo. Além disso – completei – você sabe que eu e a Cecília, ou
melhor, Cecília e eu, estamos e estaremos a seu lado. Sempre! – O presidente deu uma
gargalhada:

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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

– Este porra vai se fuder. Faz chantagem com a pessoa errada – disse. – Bem,
caro companheiro, agora receberei a sua filha. Teremos muito que conversar. Tome,
antes, o último cafezinho para celebrar nosso pacto. Reservei pra nós um bom Cohiba
mas a sala vai ficar com um cheiro da porra quando a Cecília entrar.

– Esta é a minha menina! – Eu acabei de pronunciar a frase quando a porta do


gabinete abriu-se de maneira abrupta e inesperada e Cecília entrou quando o garçom
preparava-se para servir o cafezinho. Eu olhava para minha filha com olhar de orgulho.
O presidente, de cobiça. Como sempre. Ela tocou suavemente os lábios dele ao dar os
dois tradicionais beijinhos brasileiros. Aproveitei o momento de descontração para, em
movimentos rápidos, enfiar a mão no bolso direito do paletó do terno e, depois, curvar-
me para a mesa de sala onde estavam as duas xícaras. Vi que Cecília, com os dois
braços sobre os ombros do presidente, me observava. As bochechas dele estavam
vermelhas. Eu fiz um “ham, ham” para que notassem a minha presença. O presidente
tirou com delicadeza os braços de Cecília e disse:

– Esta sua filha é de rachar. É de parar o trânsito da Avenida São Luís. De


estourar a boca do balão. Você é um homem de sorte. Encontrou a sucessora certa e,
sem querer ser indelicado como o governador, devo lhe dizer que como empresária ela
saiu-se bem melhor do que você. Inteligente, sagaz, ousada, com uma intuição para os
negócios maior do que a minha para a política e, como se não bastasse, essa beleza toda.
– O presidente fez o gesto do mestre de sala pedindo para o público admirar a sua porta-
bandeira. Os dois começaram a falar sobre minha ida à China, as novas ideias que
trouxe de lá, o crescimento do nosso grupo, a sábia decisão de substituir a manchete
sobre a internacionalização da Amazônia. Cecília terminou com a sessão de autoelogio
ao anunciar:

– Senhores, o café de vocês vai esfriar – disse em tom de reprimenda. Fora do


gabinete, o homem de bigode entregou para à secretária do presidente uma caixa azul,
amarrada com uma fita vermelha. Ela mexeu-se na cadeira que cadeira, que rangeu, e
levantou-se com as duas mãos estendidas. Abriu a caixa e, como nos filmes americanos,
os olhos ficaram esbugalhados, a boca abriu-se num “oh!” sonoro, e ela disse: “Não
posso acreditar. Você é louco. Um colar de pérolas.” “Legítimas”, disse o homem de
bigodes. A mulher começou a chorar e caiu nos braços dele. Sentado sem se mexer na
poltrona da sala de esperas, o homem de barba acompanhava aquela opereta em
silêncio. Quis rir, mas a preocupação com o que estava acontecendo dentro da sala,
onde já estavam o presidente, o maluco da Fonseca Rodrigues e sua filha Cecília o
manteve sisudo. Eram três e quinze da tarde quando o homem de bigodes perguntou:
“Podemos entrar, querida amiga?”. Ela respondeu: “Você sempre pôde tudo, agora pode
um pouco mais”, e abriu a porta do gabinete para deixá-los passar, avisando que já
estava pedindo um cafezinho.

Eu não entendi o que estava acontecendo. Sem que eu esperasse, os homens que
visitaram meu escritório, meus amigos diletos, entraram apressadamente na sala,
tropeçaram no tapete persa e caíram sobre as xícaras de café. “Caramba – pensei
comigo mesmo – ainda bem que tenho torrões sobressalentes”. Posso fazer desta
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Senhores Presidentes - Sílvio de Campos Moraes

balbúrdia uma oportunidade. Ouvi a secretária dizendo que estava chegando outra
rodada de café quentinho. Poderia colocar o torrão na xícara do presidente, sem ter que
suportar os olhares críticos e zombeteiros de Cecília, e eu mesmo me encarregaria de
servi-lo. Quanto mais gente, maior o número de suspeitos.

Ajudei o homem de bigode e o homem de barba a se levantarem. Eles tinham


rostos de meninos traquinas. Estavam felizes. Como se tivessem salvado a vida do
presidente. Fiquei intrigado. Será que eles me reconheceram e leram o manuscrito? Era
possível. Faltava o Barão, mas este vivia no mundo da Lua; o governador, que havia
almoçado com o presidente e a esta hora estaria voando de volta para São Paulo; e o
velho, que num encontro casual no Fasano, me contou que iria a um churrasco na
Granja do Torto naquela noite. Não gostei nem um pouco desta confusão. Decidi não
adiar os meus planos.

Eu ouvi um barulho seco, como o martelar de pregos, por atrás da parede que
ficava nos fundos do gabinete. Notei que o presidente também escutou e seu rosto deu
sinais de profunda apreensão. No quarto secreto, quando o governador se levantou para
também entrar no gabinete, um corpo de mulher com fartos seios e longa cabeleira caiu
sobre ele. Não era a de uma mulher qualquer, mas de alguém que sabia lutar muito bem.
Estava tudo escuro no quarto. O governador sentiu a ponta de um revólver encostar em
seu peito. Ele deu um safanão e a arma caiu longe, porque não fez qualquer ruído. A
mulher devia estar atenta ao ruído para recuperar a arma e acabar com aquele invasor do
Palácio que colocava em risco a segurança do presidente. A agente especial, desde a
perseguição em São Paulo, estava convencida de que havia um complô para matar o
chefe de Estado. Ela só chegou ao Palácio do Planalto às três e meia da tarde, quando o
presidente estava recebendo uma comitiva de paulistas. Conhecendo todos os caminhos
do Palácio, não teve dificuldades para chegar à sala secreta sem ser percebida. Entrou
sem fazer ruído no momento em que o governador tentava abrir a porta e entrar no
gabinete Presidencial. Ela não sabia quem era, mas sabia quais eram suas intenções.

O governador, apesar da idade, demonstrou ser um guerreiro. Recebeu um murro


na cabeça e outro no estômago. A vista escureceu e ele teve ânsia de vômito. Reagiu
rápido, agarrando o tornozelo da mulher quando ela passou sobre seu corpo e começou
a tatear o piso de carpete em à procura do revólver. Ele usou toda a força para torcer o
tornozelo. Ouviu-se o barulho de tendões se arrebentando e um “filho-da-puta”. Você
nunca mais verá a luz do dia nem matará mais presidentes. No avião vim lendo uma
cópia de seu manuscrito, seu maldito maluco. Não será desta vez. Foi neste momento
que eu ouvi o som parecido com batidas de martelo e, depois, o silêncio.

– Que foi isso, presidente?

– Eu vou lá saber.

O embaixador, com a prepotência própria dos americanos, invadiu o gabinete e


sem saudar os presentes começou a ameaçar.

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– O senhor nos traiu. Está construindo a bomba com a ajuda dos franceses e dos
argentinos. Desconfiávamos disso quando nossos pilotos vieram buscar o Legacy e
fotografaram o arsenal que está sendo construído no Pará. Neste momento os agentes da
CIA estão dentro deste Palácio e vão vasculhar cada gabinete para descobrir os planos
para que nosso presidente possa fazer a denúncia numa reunião extraordinária da ONU.
– O adido militar e o subsecretário também gritavam em inglês. O presidente pulou na
garganta do embaixador e começou a apertar. O rosto dele foi ficando roxo. O homem
de barba atracou-se com o adido e o de bigodes com o subsecretário. Cecília pegou um
cinzeiro de metal que estava em cima da mesa com tampa de vidro e usou a arma para
quase esmagar o crânio dos americanos. Quando quis fazer o mesmo com o
embaixador, o presidente gritou:

– Quieta! – O cinzeiro parou a poucos centímetros da cabeça do embaixador. O


presidente vasculhou o bolso do representante dos Estados Unidos e encontrou um
minúsculo rádio.

– Diga a seus homens que suspendam a busca e que voltem para a embaixada
onde ficarão cercados por tropas do Exército até que todos vocês abandonem o País. O
embaixador reagiu, balançando a cabeça negativamente. Os dedos pequenos e fortes de
um torneiro mecânico voltaram a apertar a garganta do homem. Em volta, um círculo
com os homens de barba e de bigode, Cecília, a secretária com um colar de pérolas, o
garçom segurando a bandeja com o cafezinho pronto para ser servido. Aproveitei para
jogar o torrão envenenado na xícara que eu serviria ao presidente quando acabasse
aquela confusão. O rosto do embaixador começou a mudar de tom, de roxo para verde,
quando ele conseguiu balançar a cabeça tentando dizer um “sim”. Os agentes da CIA
abandonaram o prédio e a agente especial entrou na sala. Abaixou-se e falou ao ouvido
do presidente. Ele soltou o embaixador, pediu que a agente levasse todos para a
embaixada e ali mesmo assinou um decreto de expulsão de todo o corpo diplomático
norte-americano.

– Quero que saibam o por que estou fazendo isso. Além de invadirem o Palácio,
o que não se justificaria em hipótese alguma, jamais isso aconteceu e jamais se repetirá,
um dos agentes da CIA matou o governador de São Paulo, que pediu para repousar em
meu quarto particular antes de partir para seu Estado. Estes canalhas americanos vão
pagar caro pelo que fizeram.

– Tomemos um café, antes de colocar ordem na casa – eu sugeri.

– Vá pra porra – respondeu o presidente. Eu já estava com a xícara na mão


oferecendo-a ao chefe de Estado. Os espectadores estavam imóveis, paralisados, diante
de uma tragédia que não poderia ser evitada.

– Puta que o pariu! Não quero café, caralho! E deu um soco na xícara fazendo
com que o café caísse em meu rosto. Não tive como fechar a boca. A ação do veneno,
mesmo em dose mínima, era instantânea. Tive tempo apenas de colocar a mão no peito
e fingir um ataque cardíaco.Nada poderia ser feito para me salvar. Estava
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completamente paralisado. Cecília tentou respiração boca a boca, mesmo correndo o


risco de também se envenenar, enquanto sussurrava no ouvido do pai uma história de
quando era apenas uma menina de sete anos:

– Eu observava uma cobra no fundo do pomar da fazenda. A serpente descobriu


uma pequena rã na beira do córrego, construído artificialmente para irrigar as
jabuticabeiras, e preparou o bote. Tenho gravado na memória o som produzido pela rã
quando abocanhada. Um som muito parecido com o choro de uma criança recém-
nascida. Em segundos ficou imóvel, paralisada, com as pernas esticadas e a boca aberta.
Acompanhei a cobra a serpentear até que se perdeu entre as folhas caídas das
bananeiras.

– Há pouco mais de um ano comecei a desconfiar que o senhor não estivesse


bem de saúde. Notei algo estranho quando fui visitá-lo no Natal de 2006: bem mais
eufórico do que o de costume, cheio de entusiasmo com futuro de nosso grupo e do
Brasil e dissertando quase num sem parar sobre a política brasileira nos últimos 54 anos.
Quando estávamos juntos ou nos divertíamos contando bobagens ou falávamos sobre a
condução dos negócios do grupo, o senhor odiava falar sobre política e políticos. –
Cecília cochichava no ouvido do pai, entre uma respiração artificial e outra. O velho
estava paralisado mas vivo. A secretária chamou uma ambulância,

- Sua saúde agravou-se muito nos últimos dois meses. Sua fiel acompanhante me
telefonou para contar que o senhor repetia sem parar nomes de nossa História ao dormir
logo após fazer suas leituras noturnas (em sua cabeceira encontrei um livro da
Civilização Brasileira, Maquiavel, A Política e o Estado Moderno, de Antônio Gramsci,
e outro, O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, com as Notas de Napoleão Bonaparte.
Papai, li as notas que o senhor fez notas em todas as páginas: “Presidente forte é aquele
que está sempre preparado para ir à guerra, e vencer”; “Um presidente, ao assumir, deve
renovar totalmente o Estado”; “A fortuna cega o espírito dos homens quando não quer
que se oponham a seus próprios desígnios”.

– Sua acompanhante disse que entre os nomes citados nos delírios noturnos,
ainda no primeiro sono, estavam os de Getúlio, JK, Castelo, Costa e Silva, Tancredo,
PC, Ulysses, Goulart e Lacerda. O nome do nosso atual presidente surgia com
freqüência e monótona rotina ao longo do sono. Não acreditei no relato dela e perguntei:
por que você me dá estes nomes com tanta precisão, uma vez que só tem o primeiro
grau? Ela respondeu timidamente: “Minha filha, não agüento mais ouvir estes nomes.
Tenho todos eles na cabeça. Estou com medo de repetir um a um. repetir quando dormir,
que nem seu pai”. Decidi passar uma noite na casa do Pacaembu. Não só comprovei as
informações da sua fiel acompanhante, mas notei que ao dizer cada nome vinha uma
data: agosto de 54; agosto de 76; julho de 67; dezembro de 69; abril de 85; junho de 96;
outubro de 92; dezembro de 76; e maio de 77. Junto com o nome do atual presidente, a
data hoje e duas palavras: também assassinado! Imediatamente concluí que o senhor
estava muito pior do que eu imaginava.

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– Optei por segui-lo durante o dia. Jamais tomaria uma decisão como esta se não
fosse para ajudá-lo. Sempre respeitamos a individualidade um do outro. Eu, com meus
inúmeros casos que você, papai, desconhecia. E o senhor com os casos que nunca soube
nem quis saber. Trabalhara duro até os 80 anos para ampliar o império herdado de
vovô. Nas últimas duas décadas, estivemos ombro a ombro tornando nosso Grupo de
Comunicação tão grande quanto o de Murdoch.

– Em meu primeiro dia de espionagem, só surpresas: o senhor, em vez de ir para


a Academia como sempre garantia estar indo, dirigia o Passat para o Alto de Pinheiros e
o estacionava perto do Santa Cruz; o vi saindo por baixo do carro, vestido com roupas
de mendigo, caminhando tranquilo até a avenida Jaime Fonseca Rodrigues para uma
espécie de acampamento de Sem-Teto, onde se sentava-se numa cadeira com lixo em
volta – papel velho, garrafas vazias e outras coisas velhas; vi muito bem quando tirou,
de dentro do bolso da calça, um monte de papel e passou a escrever, furiosamente, com
uma BiC vermelha.

– Aquela estranha transfiguração não fazia sentido para mim, papai. Coloquei
uma peruca negra, peguei meu carro e fiquei presa, como todos os motoristas, quase a
seu lado na Fonseca Rodrigues. Escutava música clássica e movia os braços e a cabeça
para um lado a para o outro, numa tentativa de conseguir ver algo que me ajudasse a
decifrar aquele mistério. Impossível. Na minha frente parou um senhor careca, longas
barbas e óculos, que parecia divertir-se com a minha situação e a sua.

– Aproveitei a sua ausência para fazer uma primeira busca, infrutífera, porque
um desses incômodos guardas noturnos implicou comigo: “Por que está mexendo nas
coisas do doido manso, minha senhora?” Tinha um objetivo: encontrar aqueles papéis
que você estava escrevendo. Talvez eles me dessem indicações sobre o que estava
realmente acontecendo. Abri garrafas com restos de papel, levantei a porta da cabana
onde o senhor supostamente dormia, e nada. Antes de sair, me lembro, fuzilei o guarda
noturno com o olhar.

– Na segunda ida ao escritório, fiz uma busca mais detalhada. Revirei todas as
suas coisas. A única que me chamou a atenção foi uma seringa com um vidrinho que
estava sob um travesseiro dentro da cabana. Não dei muita importância porque meu
objetivo era o de encontrar as folhas. Não me preocupei em colocar tudo em seu devido
lugar porque isso era praticamente impossível.

– A conclusão óbvia a que cheguei, papai, foi de que os escritos só poderiam


estar com o senhor. Durante o dia não pude encontrá-lo. Não foi ao acampamento de
Sem-Teto. Fui esperá-lo na nossa casa do Pacaembu. Você chegou tarde, lembra?, e
parecia extremamente cansado. Naquela noite, esperei que dormisse antes de entrar no
quarto. Não foi difícil achar seu manuscrito.

– O seu manuscrito me chamou a atenção: de um lado, porque sabia que tudo


que escreveu sobre a morte de seis presidentes e de outros dois ou três políticos
importantes não passava de delírio. De uma mente doentia. Nada do que estava escrito
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tinha qualquer fundamento. Fiquei preocupada mesmo com o que ele havia escrito
sobre nossos encontros e a decisão que havia tomado de matá-lo e assumir seu lugar. O
manuscrito de papai, escrito com tinta vermelha e não com a BiC vermelha, descrevia
dois planos alternativos para matar o nosso chefe de Estado. Na verdade, ao longo do
manuscrito ele misturava, como faz todo louco, invencionices com situações reais. Uma
delas: o presidente Lula, que ele chamava de o atual presidente, estava vivo e ele
desenvolveu no livro uma tese de que acabaria morto também. Achei ridículas as
histórias dos torrões de açúcar e o delírio de mandar um presidente se suicidar e ele não
esboçar qualquer gesto de defesa. Nada fazia sentido. Fazia sentido, sim, o desejo de
matar o presidente Lula.

– Pensei em interná-lo imediatamente. Mas tinha a certeza de que se fizesse isso


ele morreria em pouco tempo. Como chegaria com pelo menos uma hora de
antecedência ao Palácio do Planalto e ficaria na antessala do presidente e, na hora do
cafezinho antes da despedida, estaria ao lado de papai, poderia evitar o pior se ele
estivesse mesmo acreditando naquele personagem maluco que criou para si mesmo. Foi
uma sábia decisão.

O longo discurso de Cecília, como a justificar seu envolvimento e cumplicidade


com o pai, caído no chão do gabinete presidencial e paralisado, só não foi mais patético
porque o Palácio em menos de três minutos estava tomado por forças do Exército, por
agentes da Polícia Federal, pelos homens da Abin, pelos militantes políticos e pela
primeira-dama, que olhou com olhos de ciúme para Cristina. Ela estava debruçada sobre
o pai, deixando à mostra os seios mais bonitos que seu marido poderia ver, se olhasse.

O presidente decretou luto oficial por três dias pela morte do governador,
cancelou o churrasco que teria às oito da noite junto com seus principais ministros. Mas
não cancelou o encontro com o encontro com o velho.

– Você está preparado?

– Como? Não entendo.

– Dentro de um mês, passada esta confusão danada, vou anunciar ao Brasil que
você é meu candidato à Presidência da República.

– Eu?!

– Você não quis ser governador de São Paulo? Já não foi encostado pelos seus
filhos e sobrinhos? Terá tempo de sobra para governar este país. E bem, porra!

– Aceito.

– O compromisso é: você fica os quatro anos, serão quatro anos duros, mas nós
o ajudaremos a superá-los e, depois, eu volto. Tenho capital político para isso, ainda
mais agora com a campanha do homem de barba, que consolidará minha imagem para
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sempre, o apoio do homem de bigode, aliado fiel e de minha total confiança, e do


império de comunicação que será dirigido por Cecília. Teria medo de que uma coisa
terrível acontecesse com você. Ser assassinado por Cecília. Ela herdou a mesma
compulsão do pai. E hoje, sabendo que eu quero colocar Capital e Trabalho em turnos
no poder, ela preparou o meu assassinato. Eu descobri numa noite de tertúlia. Hoje à
noite terei outra. – O presidente esfregou as mãos.

– Temos um acordo, ou melhor, um pacto. Aceito e devolverei a você a faixa


presidencial.

Eram dez horas da noite quando Cecília viu um fusquinha azul escuro, ano 73,
bem conservado, chegar à Granja do Torto. Na direção, o presidente.

São Paulo/Brasília, setembro de 1976 a outubro de 2008

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