A Carne Brasileira

Deu Bode:
Importações Baratas Ameaçam
Fazendeiros e Consumidores da UE
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A carne bovina do Brasil pode ser saborosa e ter preço atraente, mas os motivos
para banir sua importação pela União Européia — UE estão começando a
aumentar. Apesar da sobretaxa de 176 por cento sobre a carne bovina brasileira
na UE, fazendeiros de gado na Irlanda, na Escócia, no País de Gales, na Itália e em
outros países dizem que a carne importada ainda é tão barata que ameaça levá-los à
falência.
A carne bovina brasileira também representa numerosos Uncovered (Brasil Revelado) foi baseado em visitas
riscos para os consumidores europeus — desde o que vários funcionários da IFA fizeram a 42 fazendas
uso de hormônios proibidos na UE até problemas de brasileiras, incluindo entrevistas detalhadas e debates em
rastreamento e de biossegurança. Mesmo não tendo 15 delas. As fazendas variavam, em tamanho, de 200-300
erradicado a febre aftosa, o Brasil ainda pode enviar carne a 2.500 animais abatidos por ano.
bovina para a Europa. Fazendeiros europeus cujo gado foi
atingido pela doença, no entanto, enfrentam interdições Nenhuma das 15 fazendas estudadas em profundidade
que os fazem perder milhões de euros em vendas de carne tinha sistemas de rastreamento completo instalado
canceladas. — e o gado de 11 delas não tinha brincos ou chips que
possibilitassem sua identificação. Em sete das fazendas,
A proteção ambiental e os direitos humanos também a equipe da IFA encontrou marcas de identificações
correm riscos. Para abrir espaço para grandes fazendas que haviam sido retiradas dos animais. Os funcionários
de criação de gado bovino, as florestas tropicais no viram gado destinado à exportação com orelhas rachadas
Brasil estão sendo devastadas e queimadas, inclusive e com buracos, o que significa que os instrumentos de
por trabalhadores escravos, que vivem em barracos e, identificação haviam sido removidos, para ocultar a
aparentemente, são acorrentados a árvores e mortos a origem dos animais.
tiros.
Sem essa identificação não é possível saber, por exemplo,
O dilema criou uma divisão entre os membros do se os animais vieram dos três estados brasileiros
Parlamento Europeu, que querem a carne bovina proibidos de exportar devido à febre aftosa, uma doença
brasileira banida da UE, e a Comissão Européia, que viral, altamente contagiosa e muitas vezes fatal, que
reconhece sérios problemas com o sistema brasileiro de ataca o gado e que atingiu regiões da América Latina,
produção de carne, mas diz que a proibição é prematura e Ásia e África. O gado pode vir também do Paraguai,
injustificada. onde a doença está disseminada. Assim, o gado de áreas
atingidas pela doença pode ir para outras sem a doença, e
a carne destes animais pode acabar sendo exportada para
a Europa.
Esclarecendo os Fatos
Em junho de 2007, a Associação dos Fazendeiros A equipe da IFA ouviu relatos sobre gado sendo
Irlandeses (Irish Farmers Association – IFA) publicou um transportado do Paraná, proibido de exportar carne
relatório destacando os muitos problemas veterinários e bovina para a UE, para o Rio Grande do Sul, onde não há
sanitários associados à carne bovina brasileira. O Brazil proibição. A equipe não encontrou provas de controle de
 A Carne Brasileira Deu Bode

biossegurança do gado transportado de estados proibidos
de exportar para estados que podem, ou na fronteira
do Brasil com o Paraguai. As estatísticas comerciais
confirmam a declaração da IFA de que o transporte de
gado das áreas restritas para as não-restritas é “muito
difundido”. Ainda que a exportação de carne bovina
dos estados brasileiros, que já representaram 60 por
cento das importações da UE, esteja proibida, o total de
carne brasileira exportada para a UE caiu apenas 2 por
cento, de acordo com o relatório da IFA.1 As importações
somaram 330 mil toneladas em 2006.2
Para reforçar seu efeito, o relatório da IFA foi lançado
na mesma época em que a Autoridade Européia de
Segurança Alimentar apoiou a proibição da presença
de hormônios de crescimento na carne e no leite, na
UE. No mesmo mês, a Organização das Nações Unidas
para Agricultura e Alimentação também enfatizou a
importância do rastreamento na produção industrial
de carne que, segundo ela, tem “conseqüências
potencialmente sérias, com risco de doenças locais e
globais.5

Em uma das fazendas, a equipe da IFA encontrou Do Brasil para Bruxelas

hormônios de crescimento
que estão proibidos na UE. Em julho, a Associação dos
Uma garrafa de “Synovex S” Fazendeiros Irlandeses
e uma pistola de aplicação lançou seu relatório em
foram encontradas nas Bruxelas. Lá, o Comitê de
dependências de manuseio Agricultura do Parlamento
do gado. O controle destas Europeu declarou-se a
e de outras substâncias favor da proibição das
restritas é „inexistente”, importações de carne
segundo o relatório da brasileira. Dois meses
IFA. Uma vasta gama de depois, uma Declaração
antibióticos está disponível Escrita de apoio à proibição
nos balcões de lojas foi registrada por cinco
agropecuárias, e a venda e Membros do Parlamento
o uso de inseticidas estão Europeu (MEPs) — Jill
“amplamente difundidos”, Evans (País de Gales),
diz o relatório. Mairead McGuinness
(Irlanda), James Nicholson
“Ao aceitar as importações (Irlanda do Norte), Neil
de carne bovina brasileira, Parish (Inglaterra) e Alyn
que está claramente abaixo Smith (Escócia).
dos padrões europeus, a
comissão da UE omite-se “Isso é um ultraje”,
em seu dever para com os disse Smith, do Grupo
consumidores europeus dos Verdes/Aliança
e prejudica os produtores Livre Européia. “Se os
europeus”, conclui o fazendeiros da UE agissem
relatório da IFA.3 como os brasileiros,
estariam na cadeia e seu
André Bouchut, Secretário- gado seria sacrificado.”6
Geral do Sindicato dos Fazendeiros Franceses -
Confédération Paysanne -, adverte sobre os impactos A Declaração Escrita é a ferramenta política mais
que a carne brasileira está causando na Europa. “Se o importante que o Parlamento Europeu tem à sua
Brasil continuar a exportar carne de acordo com suas disposição. Ao final de novembro, 50 MEPs haviam
aspirações, 30 mil fazendeiros europeus perderão seu assinado a Declaração, número que cresceu mas que
sustento. Enquanto o Brasil se gaba do poder de suas ainda está bem abaixo da maioria de 50 por cento mais
exportações, os fazendeiros europeus e o potencial um dos 393 membros, necessária para a aprovação da
agrícola da Europa enfraquecem.” medida.

Até a confederação COPA-COGECA se uniu à IFA em seu
pedido por maior rigor. “Estamos muito preocupados
com as conseqüências sobre a segurança do consumidor
europeu”, disse o Secretário Geral da COPA-COGECA,
Pekka Pesonen. “Se estas sérias questões estiverem
mesmo ocorrendo, a UE deve implementar outras
medidas, como a proibição da importação de carne
brasileira, sem hesitações.”4
A Declaração Escrita colocou parte do Parlamento
Europeu em conflito com a Comissão Européia, que
desprezou o relatório da IFA. A discórdia também
provocou declarações conflitantes de comissários da
UE sobre o assunto. No início de julho, a Comissária de
Agricultura da UE, Mariann Fischer Boel, solicitou uma
“investigação mais profunda” sobre a possibilidade da
carne brasileira atender aos padrões da UE. Em resposta
a Boel, o Comissário de Saúde Markos Kyprianou

2
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rejeitou as conclusões do relatório, alegando que este
havia se baseado em “interpretações equivocadas sobre
os requisitos da UE para importação de carne”.7 Além
disso, Kyprianou avisou ao Brasil que a UE poderia
proibir totalmente a importação de carne se “importantes
cuidados com a segurança alimentar” não fossem
tomados até o final de 2007.8 Assim, a própria posição de
Kyprianou é incompreensível.
O fato levou o Presidente da IFA, Padraig Walshe, a
acusar Kyprianou de “uma tentativa de dissimulação”.
Em vez de trabalhar para resolver o problema, disse
Walshe à Reuters, “o Comissário Kyprianou passou mais
tempo defendendo o indefensável”. Ele deve parar de
negar o risco que a carne brasileira oferece.” 9
Walshe também acusa Kyprianou de esconder resultados
de uma inspeção do processamento de carne no Brasil
conduzida por oficiais da CE em março de 2007. A
inspeção, realizada pelo Escritório de Alimentos e
Veterinária da CE, concentrou-se nos esforços do Brasil
para conter a febre aftosa. Durante uma ocupação dos
escritórios da CE em Dublin, em outubro, Walshe disse
que o relatório não estava apenas sendo escondido do
público, mas que também autoridades brasileiras tiveram
oportunidade de revisar e modificar o documento.
“Sete meses se passaram desde a visita”, disse Walshe.
“É absurdo que o relatório tenha sido mandado primeiro
para o Brasil, para que eles pudessem fazer emendas, e
que os consumidores e produtores europeus não tenham
tido a chance de vê-lo.” 10
proibir toda a exportação de animais vivos, assim como
da carne e dos laticínios. Mas a CE não tomou a mesma
medida para proteger os consumidores europeus da carne
de bois brasileiros potencialmente infectados.
Os EUA, a Austrália, a Rússia, o Japão, a Coréia do Sul,
o Canadá e o Chile estão entre os países que proibiram
a carne brasileira até que as medidas de prevenção da
doença sejam efetivadas. Mas na Europa, nada muda. As
importações da carne brasileira cresceram 20 por cento
desde 2003 e somaram dois terços de toda a importação
de carne em 2006, apesar da tarifa de importação de
176%.13
Nas lojas da Europa, a carne brasileira é mais barata
do que o produto local, prejudicando fazendeiros na
Irlanda, no Reino Unido e na Itália que se especializaram
na produção de carne. O baixo custo da carne brasileira
afeta os preços até mesmo em países da UE onde ela
não é vendida, como a Polônia. “Existe uma ameaça
ao comércio”, disse a Ministra da Agricultura Mary
Coughlan. “Como os fazendeiros da UE podem competir
com produtos que custam menos, mas que não têm a
mesma qualidade?” 14
Ainda assim, Coughlan afirma que a carne brasileira é
segura para o consumo humano. Isso levou o Presidente
da IFA, Walshe, a acusá-la de “apoiar e encorajar os
burocratas da Comissão Européia”, e a ignorar os critérios

Pressionado para liberar o relatório, Kyprianou

reconheceu que, embora os resultados preliminares não
justifiquem a proibição da carne brasileira, inspetores
da CE descobriram que o Brasil está tendo “algumas
dificuldades práticas” com a identificação e controle do
transporte dos animais, e que podem autorizar “qualquer
medida adicional que seja necessária para proteger os
consumidores da UE”.11

Rumo a um Padrão Único

Enquanto Kyprianou segue resistindo aos pedidos de
proibição, a UE ainda é a segunda maior importadora
da carne brasileira. Isso reforçou as acusações dos
fazendeiros europeus, de que a CE está utilizando um
critério duplo no que diz respeito à maior segurança
alimentar, ambiental, ao bem-estar animal e às exigências
trabalhistas na Europa, comparativamente a países
da América Latina, como o Brasil. De acordo com um
fazendeiro da Irlanda, exige-se que ele tenha todos os
animais identificados e que estes passem por inspeções
locais sem prévio aviso. Seus colegas brasileiros, no
entanto, são avisados com dois meses de antecedência.
para se prepararem para as inspeções.12

Os critérios duplos não terminam aí. A epidemia de febre

aftosa no Reino Unido, no verão de 2007, levou a CE a

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 A Carne Brasileira Deu Bode
duplos sobre a carne brasileira. “Quero dizer à Ministra
Coughlan que, hoje, a subsistência de 100 mil criadores
de gado está em perigo.” 15
Escravos do Século XXI
Além da segurança alimentar, ambiental e de questões
comerciais, a carne brasileira carrega o peso de questões
morais. Para abrir espaço para o pasto do gado, as
florestas tropicais brasileiras estão sendo devastadas,
inclusive por trabalhadores escravos. Morando em
barracos com teto de plástico e manuseando ferramentas
rústicas, os trabalhadores trazidos de áreas pobres do
Nordeste do Brasil freqüentemente não são pagos e nem
recebem assistência médica. São tratados brutalmente,
acorrentados a árvores e até mesmo mortos a bala. Com a
promessa de salários altos, muitas vezes ficam sem nada
depois que a alimentação é deduzida de seu pagamento.
O problema é tão bem documentado que até mesmo o
governo brasileiro os chama de escravos. As equipes de
repressão ao trabalho escravo, criadas para encontrar
alguns dos últimos trabalhadores escravos do mundo,
libertou 11.946 desses trabalhadores forçados entre 2000
e 2004.
Duff Burrel, chefe da Associação Nacional de Carne
Bovina do Reino Unido (NBA), disse que a carne
produzida sob essas condições está sendo, provavelmente,
consumida na Europa. “Há uma grande chance de que
parte da carne de áreas desmatadas por escravos esteja
indo para o comércio alimentício”, diz ele. Mesmo que
a carne que você compra nunca tenha visto um escravo,
a produção adicional nas áreas desmatadas permite a
exportação de outros alimentos.”
De acordo com o grupo, testes de DNA em carne da
Irlanda, da Escócia e do País de Gales revelaram que
parte dela vem do gado Brahman, que é criado apenas
nos trópicos.16
4
Que Tipo de Liderança?
O fato de a União Européia, com seus aclamados altos
padrões de segurança alimentar, proteção ambiental,
bem-estar animal e direitos dos trabalhadores, continuar
permitindo a entrada da carne brasileira em seu
território é um escândalo no cenário internacional. Ao
importar quantidades massivas de carne do Brasil, a UE
está ampliando a catástrofe ambiental na Amazônia,
perpetuando padrões de trabalho escravo, demonstrando
falta de preocupação com seus próprios fazendeiros e
ignorando os riscos potenciais para os consumidores.
A mensagem enviada ao mundo é que preservar e
promover o livre comércio é mais importante que
preservar e promover a saúde dos consumidores
europeus, o meio ambiente e os direitos humanos. Em
uma época em que a UE coloca-se como um exemplo para
o mundo, o alvoroço em torno da carne brasileira ameaça
enfraquecer seu status de líder de sustentabilidade, por
retardar o progresso internacional em direção à solução
de desafios ambientais, sociais e econômicos de longo
prazo.
1 Associação dos Fazendeiros Irlandeses. Brasil Descoberto: Relato
de uma Missão Realizada no Brasil. Dublin, junho/2007.
2 Buglass, Dan. “Por que a UE deve proibir a importação de carne
brasileira.” The Scotsman, 4 de junho de 2007.
3 Associação dos Fazendeiros Irlandeses, op. cit.
4 Ennis, Darren. “Chefe de Saúde da UE apóia Brasil em inspeção
da carne” Reuters, 16 de julho de 2007.
5 Otte, J. et al. Produção Industrial de Gado e Riscos à Saúde
Global. Organização das Nações Unidas para Agricultura e
Alimentação, Johns Hopkins University Bloomberg School of
Public Health (EUA), Royal Veterinary College (Reino Unido) and
Rural Development Research Consortium (EUA), junho de 2007.
6 Ennis, Darren. “Conflito entre o Chefe de Saúde da UE e
Legisladores sobre a Carne Brasileira.” Reuters, 16 de julho de
2007.
7 Ennis, Darren. “Chefe de Saúde da UE apóia Brasil na inspeção da
carne” Reuters, 16 de julho de 2007.
8 Ennis, Darren. “Conflito entre o Chefe de Saúde da UE e
Legisladores sobre a Carne Brasileira.” Reuters, 16 de julho de
2007.
9 Ibid.
10 Associação dos Fazendeiros Irlandeses, “Supressão Estranha do
Relatório sobre a Febre Aftosa no Brasil pela Comissão da UE.”
Comunicado à Imprensa, 31 de outubro de 2007.
11 Escritório de Alimentos e Veterinária da Comissão Européia.
“Relatório sobre a Carne Brasileira de Março de 2007.” 30 de
outubro de 2007.
12 Edwards, Elaine. “Protesto dos Fazendeiros Contra a Carne
Brasileira.” Irish Times, 25 de julho de 2007.
13 Ennis, Darren. “Conflito entre o Chefe de Saúde da UE e
Legisladores sobre a Carne Brasileira.” Reuters, 16 de julho de
2007.
14 Ibid.
15 Edwards, op. cit.
16 Clover, Charles e Wigan, Michael. “Importações de Carne
Brasileira Barata são ‘Subsidiadas Pelo Trabalho Escravo.’” Daily
Telegraph, 5 de janeiro de 2006.
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