Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
Neste artigo realizamos o exercício de pensar na
companhia de Deleuze, o Atlas Escolar de Sumaré. Este
exercício se justifica, na medida em que, nos últimos anos,
o desenvolvimento da Cartografia Escolar no Brasil,
principalmente a partir da década de 90 tem sido
significativo, com a realização de encontros e colóquios de
caráter internacional, nos quais se observa o número
crescente de pesquisas voltadas para as práticas educativas
com mapas, fundamentadas predominantemente na teoria
psicogenética de Piaget, na fenomenologia de Lefèbvre e
na semiologia gráfica de Bertin, além da elaboração de
Atlas escolares voltados para o estudo do lugar.
Inúmeros Atlas escolares municipais vêm sendo
produzidos utilizando diferentes metodologias. Várias
dificuldades são apontadas na articulação entre a escola
pública que oferece o ensino fundamental e a universidade
para uma produção compartilhada dos Atlas escolares
municipais, no entanto, percebemos que a reflexão sobre a
cartografia escolar é interna ao seu próprio
desenvolvimento e aos resultados alcançados.
Observamos poucas teorizações como dimensões de
acesso a diversos problemas, especialmente aqueles
referentes à linguagem, à identificação do conhecimento
com o conhecimento científico e deste com o poder, à
constituição dos sujeitos, que perpassam todo o discurso
da cartografia escolar e que se agravam com o
distanciamento entre a geografia e a cartografia.
Entre as preocupações teóricas, nos parece importante
traçar perspectivas de entendimento sobre o que vem
acontecendo com a nossa experiência perceptiva, como os
mapas e a práticas educativas acentuam ou resolvem a
produção de um regime de visualidade que prescinde do
olhar.
Outra preocupação diz respeito ao mapeamento do espaço:
a experiência de ver moderna como cumplicidade entre a
oralidade e a visualidade nos levou ao analfabetismo da
imagem. Daí a necessidade de problematizar as práticas
educativas com mapas como busca do encontro entre o
conceito e a sua provável visibilidade e, também, o mapa
como desmaterialização do espaço.
A espacialização através dos mapas também se constitui
em outro problema: do desenho ao mapa, complexos
caminhos do saber ver requerem necessariamente a
aprendizagem da disjunção entre o ver e o falar nas
práticas educativas com mapas através de Atlas escolares
municipais.
Mapa signo-sinal
O mapa se constitui como linguagem porque resulta de
relações sociais e, como tal, transforma-se numa prática
significante, ou seja, prática de produção de linguagem e,
portanto, de sentido; a geografia se constitui como a grafia
de signos que recobrem o espaço, cujo sentido depende do
olhar de quem vê, das regras de funcionamento não
capturadas pelas coordenadas dos estratos ou formações
históricas, da invenção de novos signos.
Como objeto em si, o mapa é resultado de processos
cognitivos e as representações cognitivas produzem signos
que podem dispensar a linguagem. Nesta situação a
palavra se transforma em sinal, índice, símbolo, ou seja, se
esvazia, tanto quanto a imagem.
Na perspectiva fenomenológica é o vivido que contém o
objeto da intencionalidade funcional entre os organismos e
o espaço, ou seja, que contém uma identidade imanente, e
também, transcendente porque é percebida.
Para Foucault , o saber é um agenciamento prático de
palavras e coisas e a análise de sua positividade implica a
explicitação de regras segundo as quais se formam grupos
de objetos, interações de forças, conjuntos de enunciações,
os jogos de conceitos, séries de escolhas teóricas, modos
de expressão para as relações e para as formas.
A representação é uma maquinaria que produz o mundo
como um texto, uma ficção, um modelo. Os instrumentos
servem como suporte ou ainda para conformar os corpos
ao mundo da ficção, do texto, do modelo. Neste
movimento os corpos individuais são transformados em
corpos sociais unidos por uma linguagem objetiva que
organiza o espaço social como o texto de uma ficção, de
um modelo.
A linguagem e, especialmente a linguagem cartográfica
pode ser abordada a partir de diferentes pontos de vista e
interpretações, mas partimos do pressuposto de que um
discurso não se limita a transmitir informações porque
entre o que se diz no discurso e o que se lê há uma trama
de sentidos bem situada social e historicamente.
Girardi (1997), apoiada na semiologia de Roland Barthes
(1986, 1993) afirma que a importância do mapa na
geografia “reside na sua leitura e não exclusivamente na
sua elaboração técnica” e que é preciso investigar
“maneiras diferentes de abordar os mapas.”
Aprender a operar relações espaciais e expressar-se
graficamente decodificando este sistema de representação
comunicativo através de situações de ensino planejadas,
reguladas e controladas para este fim produz práticas que
definem formas de subjetividade, experiências de nós
mesmos, que por sua vez, definem se nos desenvolvemos
ou não plenamente, se atingimos os objetivos, as metas
contidas em planos de ensino, programas e projetos
educacionais: matrizes movediças de relações
naturalizadas de auto-reflexão crítica que só podem
acontecer num espaço já dado que é cada vez mais
imanente, rizomático, vivido como conexão, inclusão e
exclusão.
A linguagem não está enraizada no mundo vivido,
percebido ou concebido, por isso, não basta aprender a ler
o mundo na superfície plana dos mapas porque a
formalização e a interpretação já supõem aquilo que
pensamos descobrir lendo o mundo nos mapas.
A linguagem está enraizada nos sujeitos, na possibilidade
dos encontros de onde emergem os signos, por isso somos
capazes de dar sentidos às coisas que percebemos; não
aprendemos as palavras sozinhas, isoladas, mas as
palavras construídas na trama que enreda uma história; é
esta trama que constitui os enunciados e define os regimes
de verdade, ou seja, de visibilidade daquilo podemos ver
ou conhecer.
Podemos observar que a produção sobre a cartografia
escolar durante as últimas décadas teve a preocupação de
aproximar o cotidiano, o lugar, categoria geográfica que se
atualiza no interior dos processos de globalização do
mundo contemporâneo, propondo eixos de abordagem
pedagógica que incluíam a procura de uma interação com
a cultura da escola, os processos agenciados ou não de
saberes escolares que permitiram à cartografia escolar
transitar nos domínios da pesquisa qualitativa.
Em nosso exercício de pensar na companhia de Deleuze o
saber cartográfico é poder, mesmo quando se constitui
como campo transversal de saberes; não existe uma
natureza subjetiva, mas, processos de subjetivação e que a
cartografia escolar em sua funcionalidade é um dispositivo
pedagógico que constitui ou transforma a experiência de
nós mesmos; que a realidade é constituída de processos
interpessoais coordenados pela linguagem, articulações
que permitem a realização da cultura, a viabilização de
conexões, de rizomas.
Durante as últimas décadas a produção sobre o
ensino/aprendizagem de cartografia acontece no contexto
de propostas metodológicas que articulam a teoria de
Piaget sobre a construção do espaço pelas crianças, a
teoria da semiologia gráfica de Bertin e a pesquisa
qualitativa em sua vertente fenomenológica e dialética.
Os experimentos pedagógicos que vivemos durante a
elaboração do Atlas escolar de Rio Claro (2002) e de
Sumaré (2008), nos evidenciam que o tempo de formação
não é nem linear, nem cumulativo, mas, movimento de
sair, de ir ao encontro, perder-se, (re) encontrar, estranhar
e descentrar-se, ir embora, inventar desvios, por isso,
pensamos que a formação, em geral, não apenas
cartográfica, tem um caráter espacial, implica o
deslocamento, tem necessidade do acontecimento, da
reminiscência no devir.
O problema da criança, da adolescência é civilizatório.
Nascemos num mundo pronto, culturalmente já dado,
nossos trajetos já definidos na escola pelos ciclos, séries, ir
para a escola, estudar para conhecer a verdade, trabalhar
para reproduzir, encontrar os instrumentos da razão e a
racionalidade dos instrumentos. Pensar, dentro do espaço
que nos é reservado, a escola. Ser, o que esperam que
sejamos. Aprender, as respostas antecipadamente dadas
pelas perguntas, pelas fórmulas. Nas rotinas da linguagem
e da sua trivialização em códigos vamos deixando para
trás a criança, o “espírito que se faz criança” e a imagem
se fazendo mundo.
Através da cartografia escolar e de suas práticas de ensino
articuladas teoricamente e metodologicamente, os mapas
podem não apenas serem considerados como suportes
operacionais, mas também suportes imagéticos
recuperando o espírito da aventura e dos relatos de viajem
para desmanchar os territórios e reterritorializá-los através
da porosidade que experimentamos nas superfícies planas
dos mapas; voltar a contribuir para que nossos alunos
vivam a experiência de aprender como se tivessem que
escavar nos nós das redes rizomáticas para encontrar as
hibridizações positivas dos seres e das coisas, as cidades
invisíveis, as tempestades, os paraísos e os infernos
produzidos pela cultura humana, portanto fruto da
educação.
Considerações Finais
A questão que se coloca à cartografia escolar é sobre o seu
papel pedagógico na produção ou (re) produção do
discurso territorial, como ensinar a cartografia de modo
que ela não seja apenas instrumento da racionalidade
instrumental e comunicativa de “cidadãos consumidores.”
Como linguagem, a cartografia escolar, está preocupada
com a invenção de outros regimes, outras narrativas
visuais, outros signos para tecer outro modo de ocupar o
espaço e viver o tempo na cadência da vida, conforme um
modo de ser e de estar no mundo.
Cabe à cartografia escolar, entre inúmeras práticas
desenvolvidas para ensinar a ler os mapas, contribuir para
educar o olhar. Parece que carecemos de um relato que
nos torne novamente habitantes do nosso mundo.
Bibliografia
Almeida, R. D. e Passini, E.Y. O Espaço Geográfico.
Ensino e Representação. Editora Contexto: São Paulo,
2008.
Almeida, R. D. Cartografia Escolar. Editora Contexto:
São Paulo, 2007.
Certeau, M. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer,
vol.1. Editora Vozes: Petrópolis, 1994.
Deleuze, G. Foucault. Editora Brasiliense: São Paulo,
2005.
Deleuze, G. e Guattari, F. O que é Filosofia? Editora 34:
São Paulo, 2004.
Foucault, M. Microfísica do poder. Edições Graal: Rio de
Janeiro, 2008.
Harley, J. B. La nueva natualeza de los mapas. Ensayos
sobre la cartografia. Fondo de Cultura Económica:
México, 2005.
Kastrup, V. A invenção de si e do mundo, uma introdução
do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Editora
Autêntica: Belo Horizonte, 2008.
Larrosa, J. Pedagogia Profana, danças, piruetas e
mascaradas. Editora Autêntica: Belo Horizonte, 2001.
Rorty, M. Rorty, M. A Filosofia e o espelho da natureza.
Publicações Dom Quixote: Lisboa, 1988.
Santos, M. O espaço do cidadão. Studio Nobel: São
Paulo, 2002.
Santos, M. A natureza do espaço. Técnica e Tempo. Razão
e Emoção. Editora da Universidade de São Paulo/EDUSP:
São Paulo, 2008.