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Caderno CRH 19, Salvador, 1993

Centrada na obra maior de Louis


Dumont, a discussão que aqui pre-
tendo não se quer necessariamente
crítica, ou será, no máximo, apenas
parcialmente crítica, porque se
constitui, antes de tudo, em tenta-
tiva de traduzir para mim mesmo
uma das noções cruciais de sua
reflexão: a de indivíduo. Não é só
o fato de a considerar crucial que a
isso me leva, no entanto; de maior
peso foi, sem dúvida, ter sido essa
a questão que mais problemas le-
vantou no seminário que, sobre
Em torno à noção Dumont, Luís Tarlei de Aragão
conduziu no Museu Nacional1.
Exatamente por isso parece recla-
de indivíduo no mar que sobre ela se volte; ao fazê-
lo, porém, não acompanharei sem-
Homo pre, de perto e na íntegra, o que diz
aquele autor, ficando obrigado tão
Hierarquicus de só a cingir-me àquilo que achar
essencial, e simultaneamente de-
Louis Dumont sobrigado de manter a argumenta-
ção nos mesmos termos e limites
em que ele a desenvolve. E isto
Pedro Agostinho* pelas exigências do gênero de tra-
dução que agora tento. Ao mesmo
No pensamento antropológico de tempo, e apesar de as exposições e
Louis Dumont é central a oposi- o debate em seminário terem sido
ção entre sociedades que define importantes para iluminar a leitura
como holístico-hierárquicas e de Dumont, por um deliberado es-
individualístico-igualitárias, forço procurei abstrair-me deles
quando consideradas em seu ní- para pensar, o mais possível, a
vel ideológico. Como exemplos partir de seus próprios escritos. Daí
extremos aponta a sociedade que na lista bibliográfica só estes
hindu, que ele mesmo descreve, e figurem, e que, tomando-os como
a norte-americana, que Alexis de base de uma reflexão que por força
Toqueville descreveu. Nesse con- será breve e provisória, me exima
texto, a noção de indivíduo é fun- de constantes citações e referênci-
damental. Discute-se aqui, for- as bibliográficas.
malizando-a, a questão do indiví-
duo e sua emergência na Índia e Atendo-me ao nível do ideológico,
no Ocidente de influência no qual se move Dumont sem que
iluminista. semelhante mover-se implique em

1 Rio de Janeiro, segundo semestre de 1979.


*Professor Adjunto do Departamento de Esta artigo é uma versão reformulada e
Antropologia da Universidade Federal da restringida, do texto que nessa altura escre-
Bahia vi.
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negar o empírico - retomar seu Índia tradicional — com o


caminho da Índia ao Ocidente afi- concomitante e respectivo reco-
gura-se como a melhor via para, da nhecimento do igualitarismo e da
compreensão do que seja ali o indi- hierarquia como princípios funda-
víduo ("renunciante"), chegar à do mentais da organização da socie-
que ele seria no Ocidente moderno. dade. Creio que esse agente
Para tanto tomarei, como instru- empírico me poderá servir, aqui,
mentos principais, por um lado o de ponte entre uma e outra perspec-
esboço de teoria dos sistemas que tiva, de modo a numa e noutra
adota na Introduction a deux situar o indivíduo, entendido este
theories d'anthropologie sociale, no sentido que lhe dá Dumont.
e, por outro, o posfácio à edição Tel
do Homo Hierarchicus, "Vers Com desculpável exagero, seria
une théorie de l'hierarquie". Quer possível dizer que na ideologia do
isto dizer que estarei, no quadro sistema de castas hindu (jati) o
deste artigo, raciocinando em ter- futuro agente já é social antes de
mos estruturais (stricto sensu) e ser socializado, na medida em que,
sistêmicos tais como ele os define; ao nascer, o organismo que surge
mas não que acarrete, de modo na população tem já uma posição
imediato e completo, a aceitação aprioristicamente dada no sistema,
de suas idéias, que se ocorrer ocor- que ao seu aspecto biológico acres-
rerá no futuro e como resultado de centa outro de ordem cultural. Essa
uma reflexão referida ao plano do posição, à qual só lhe é dado esca-
observável. Quer também dizer par pela morte (?), pela expulsão
que, se algo o pode tipificar, o que definitiva de sua casta, ou pela
aqui faço se resume a uma busca renúncia, define-se não por qual-
de compreensão do outro — no quer qualidade substancial que lhe
caso Dumont. seja intrínseca, mas sim por suas
relações, isto é, pela totalidade de
Ele, o autor, reconhece como co- oposições distintivas entre ele e os
mum a qualquer sociedade o agen- demais elementos dos conjuntos
te social empírico, ou, noutras pa- que compõem o sistema, em seus
lavras que não são as suas, o orga- vários níveis. Partindo do mais ele-
nismo humano socializado, vado e abrangente, que é o do
enculturado e culturalizado sistema no seu todo, ficam no nível
observável tanto por aqueles que imediatamente inferior as castas,
com ele participam da condição de as quais, se são subsistemas por-
membros da sociedade, quanto quanto internamente estruturadas,
pelos que a ela forem estranhos. É são também elemento componente
esse agente empírico que, ao ser do conjunto maior. Por sua vez,
retomado como objeto de pensa- opondo-se entre si tal como as cas-
mento pela ideologia, passa a se tas se opõem umas às outras, as
ver representado de modos que subcastas apresentam-se como ele-
podem divergir radicalmente, con- mentos do subsistema que é a cas-
forme a sociedade seja vista sob ta, e ainda como subsistemas com-
uma perspectiva atomizante ou, postos por elementos. Estes ele-
pelo contrário, totalizadora. De tais mentos, mínimos, são os status
perspectivas seriam instâncias ex- ocupados pelos agentes (pessoas)
tremas o individualismo do Oci- de que atrás falei, membros da
dente moderno, e seu oposto, o subcasta, que têm seus status defi-
holismo que Dumont encontra na nidos por aquela totalidade de opo-
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sições distintivas. Elas, no entanto, Por outro lado, o exato cumpri-


só se dão, diretamente, entre os mento de todas as prescrições e
ocupantes de status diversos no evitações permite ocupar, a maior
interior de uma subcasta qualquer: parte do tempo, a posição mais
deste nível para cima, as oposições elevada que por nascimento seja
distintivas são mediadas pelos atribuída. Teoricamente, e sob tais
subsistemas de nível condições, cada agente parece não
gradativamente superior reconhe- poder estar, nunca, num grau de
cidos no sistema global, ou seja, pureza com exata equivalência ao
pelas subcastas e castas. de qualquer dos outros, em relação
aos quais a dele varia quase que a
Se o status atribuído ao agente todo instante; varia, o que é mais,
q uando nasce lhe advém da socie-
ade de castas, sua permanência
em relação a si mesmo, se da con-
sideração sincrônica passarmos à
nele depende não só dela como de diacronia de seu viver quotidiano.
sua ação pessoal, na medida em Sendo assim, uma igualdade dos
que as pertinentes oposições dis- agentes e dos status seria, momen-
tintivas são aí feitas em termos de to a momento, conceitualmente
valor, e em que todas elas podem quase impossível no sistema de
ser reduzidas à oposição funda- castas. Por sua parte, as castas e
mental entre o puro e o impuro: e subcastas também se opõem em
também na medida em que o grau termos de pureza relativa, em gran-
de pureza está sujeito a ser diminu- de parte derivada do lugar que ocu-
ído ou anulado por circunstâncias pam na divisão sócio-ritual do tra-
ou fatores de poluição, que cons- balho, mas não apenas disso. Uma
tante e obrigatoriamente no quoti- infinidade de indicadores pode ser
diano se fazem presentes. Assim, e usada para estabelecer as oposi-
do ponto de vista de cada agente ções distintivas pertinentes no clas-
particular imerso no sistema, é sificar dos vários elementos que
como se seu status dependesse da ocupam os sucessivos níveis do
manutenção de uma pureza mé- sistema, mas tais indicadores apon-
dia", que atos de purificação po- tarão sempre uma pureza maior ou
dem restaurar após o fato poluidor, menor e são, em última análise,
ou, o que me parece mais interes- atualizadores da oposição básica e
sante, garantir antes mesmo de que prevalente entre o puro e o impu-
ele ocorra. É o que por exemplo se ro.
dá — se não estiver errada a inter-
pretação — com o purificar-se do Se essa oposição for agora repre-
Brahman antes da refeição, "au- sentada por um conceito central,
mentando-lhe" a pureza na previ- pureza (P), qualificado por um si-
são de que ela se veja diminuída nal positivo ou negativo, em que P+
pela introdução de alimento no = puro e P- = impuro, emerge que
corpo: esse "aumento preventivo" a oposição distintiva {P+: P-},
teria por resultado reconduzir o sendo também valorativa, não só
agente, após comer, ao estado ritu- distingue como hierarquiza entre
al de "pureza média" compatível eles os elementos dos diferentes
com seu status atribuído. Ao impe- níveis do sistema. E esses
dir uma perda de pureza, impede elementos, não é preciso dizê-lo,
uma simultânea e proporcional opõem-se e hierarquizam-se,
queda de status; e isto é, no siste- enquanto tal, em relação ao
ma, o que realmente importa. sistema total que em si os tem
englobados. Retornando aos
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elementos e à sua oposição, medi- de um "agente de referência" exige


ada pelos níveis aqui reconhecidos introduzir-se um valor "neutro",
no sistema de castas, tentarei um expresso pelo sinal +, a partir do
esboço de formalização capaz de o qual se distinga o que está abaixo e
expressar a partir da perspectiva de acima dele em pureza e correlativo
um agente que o veja a partir de status. Por fim, a argumentação
dentro, e, simultaneamente, da pers- levará a considerar uma instância
pectiva de um observador que lhe em que a oposição distintiva não se
seja externo. Ao fazê-lo, por um dará em termos de pureza superior
artifício de método ignorarei a ou inferior, mas sim em função da
multiplicidade empírica do presença ou ausência de pureza
incontável e variante número de como critério +de classificação so-
castas, e buscarei captar o conjunto cial. Assim, P e -P apontarão,
mínimo de relações elementares e respetivamente, essa presença ou
necessárias que presidem à ausência no mais alto dos níveis
estruturação do sistema. daquilo a que adiante chamarei
Para formalizar, usarei uma nota- "sistema hindu"; e os sinais < e >
ção simples, em que H indica o demarcarão os limites deste últi-
sistema holístico de castas; S o mo. Resumindo:
status ou posição do agente no sis- H = sistema holístico de castas
tema, qualificado pela posposição ("mundo das castas").
dos sinais ++ou - significando, como
atrás em P e P -, os dois diferentes SH = "sistema hindu" englobante.
e possíveis graus de pureza relativa
numa oposição distintiva e P = pureza relativa, critério
hierarquizante, isto é, entre um sta- classificatório.
tus definido por maior pureza e
outro por pureza menor. Esses si- P+ = pureza superior (relativamen-
nais qualificam da mesma maneira te puro).
os níveis superiores do sistema,
quando escritos imediatamente P- = pureza inferior (relativamente
após os que sinalizam os limites de impuro).
tais níveis, parênteses para a +
subcasta e colchetes para casta. P = presença/aplicação do crité-
Dois pontos significam oposição rio de pureza.
distintiva, e as chaves demarcam o -
"mundo das castas". Na primeira P = ausência/não-aplicação do
fórmula apresentada, o sublinhado critério de pureza.
aponta progressivamente o status
pessoal, a subcasta e a casta do que S = status.
chamarei "agente social de refe- £ = status do agente de referência.
rência" e julguei necessário isolar.
E nas outra fórmulas, o mesmo E = elemento, em qualquer nível
sublinhado indica o elemento E ao do sistema.
ser tomado como referência na dis-
cussão. Guardando coerência com E = elemento de referência, em
o nosso sistema de escrita, nas fór- qualquer nível do sistema.
mulas a hierarquia decresce da es-
querda para a direita. A existência S+ = status de pureza superior
de status pessoal, subcasta e casta (=puro).
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S- = status de pureza inferior e a partir dos elementos marcados


(=impuro). como "neutros", vê-se como se
constróem as oposições que garan-
E+ = elemento de pureza superior, tem aposição hierárquica do agen-
em qualquer nível do sistema. te de referência", e como elas se
fazem de forma direta ou indireta
E- = elemento de pureza inferior, —neste último caso, sempre medi-
em qualquer nível do sistema. adas pelos subsistemas do sistema
total do "mundo das castas":
* = valor de pureza neutro, relati-
vamente (p. ex. E#, S#). (VIDE PÁGINA SEGUINTE, FI-
GURA)
# = oposição distintiva entre
quaisquer elementos E do siste- É essa, parece-me, a fórmula geral
ma. dedutível de toda a exposição de
Dumont (v. esp. 1972:95), ficando
+ = englobamento de dois ele- nela patente a necessidade, para
mentos E de qualquer nível do que chama a atenção, de, ao me-
sistema, para se oporem a um ter- nos, empregar dois indicadores de
ceiro. pureza relativa na classificação de
qualquer elemento E do sistema
( ) = limites de subcasta. que se tome como referência. Este
será, por isso, E#, sendo E- em
( ) = limites de subcasta, do relação ao elemento E+ que lhe
"agente de referência". fique acima de acordo+ com deter-
minado indicador, e E em relação
[ ] = limites de casta. a um E- que lhe esteja abaixo con-
forme o segundo indicador usado.
[ ] = limites de casta, do "agente Além disso, o uso de dois indicado-
de referência". res e de duas posições sucessivas
faz com que, sendo E# o elemento
{ } = limites do sistema de castas de referência,+ em um primeiro
+
("mundo das castas"). momento {[E +
+ E-]
+
: E} , e no
seguinte {E : [E + E-]-}. Isso
// = limites do conjunto dos "re- implica na complementaridade de
nunciantes". todos os elementos do sistema, que
só se definem e existem na oposi-
<> = limites do "sistema ção (hierarquizante) a seus contrá-
hindu". rios, e em que o conjunto das opo-
+
sições é que define os limites do
= posposto ao demarcador final sistema. Como é deste, no entanto,
dos limites de qualquer nível do que deriva cada um dos elementos
sistema: pureza superior desse ní- posicionais, e como estes são pre-
vel. enchidos por agente ou agentes
sociais que o são na qualidade de
- = posposto ao demarcador final pessoas cujo status e, essencial-
dos limites de qualquer nível do mente, atribuído, no interior do
sistema: pureza inferior desse ní- sistema de castas hindu o indivíduo
vel. (stricto sensu) não é ideologica-
mente possível, só o sendo em seu
Uma primeira aproximação per- exterior: e é aí que ele emerge, na
mite chegar ao resultado expresso
na fórmula que adiante segue. Nela
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+ + + + + + + # # + # + + +
H={[(S :S-) :(S :S-)] :[(S :S-) :(S :S :S-) :(S :S-)-] :[(S :S-) :(S :S-
)-]-}

qualidade do renunciante religioso caria, na qualidade de observador,


que se situa para além da oposição obrigado a reconhecer na índia uma
puro : impuro. imensa coleção de "sociedades"
justapostas, quando o que ali per-
Até entrar em linha de conta a cebo é uma grande sociedade di-
questão do indivíduo renunciante, versificada onde o sistema hindu é
o sistema de castas, se é complica- apenas um dos subsistemas que
do, da perspectiva de Dumont não nela coexistem. Mais antigo sem
é difícil de entender. O problema dúvida, mas sincronicamente de
surge é exatamente neste ponto. estatuto muito próximo — só não
Ao indivíduo o autor se refere ora o tendo igual por ser o dominante
como "fora do sistema de castas", — ao dos outros subsistemas.
ora como "fora do mundo", ora Assim, estaria tentado, para meu
como "fora da sociedade"— uso enquanto observador, a
sendo este "fora da sociedade" que estabelecer separação entre o
se me afigura problemático. É conceito de um "mundo hindu" e o
fácil admitir que estar "fora do de uma "sociedade indiana". Com
sistema de castas" seja estar "fora isto, lidar com o renunciante parece
do mundo", pois a delimitação tornar-se mais simples, pois, se lhe
ideológica daquele sistema cria, é possível renunciar ao "mundo
por si mesma, a representação de hindu", não vejo modo pelo qual o
um "mundo" socialmente dado, possa fazer quanto à "sociedade
isto é, de uma ordem regida pela indiana"2 : ideologicamente
oposição puro.: impuro. O que a porque esta lhe reserva um locus
esta fuja estará, portanto, conceituai, ignoro se de forma
inapelavelmente fora des-se explícita ou implícita; e
"mundo", que é, no caso, um empiricamente porque nela
"mundo" hindu por essa sociedade
e religião criado. Isto exclui, de
pronto, não só o renunciante mas as
outras religiões — historicamente
tardias na Índia —, como a dos
maometanos e a dos cristãos com 2. Poderia imaginar-se a hipotética exceção
suas diversas denominações, e pelo de um renunciante que ao renunciar emi-
menos a de uma seita (Lingayat) grasse, excluindo-se, tanto ideologicamente
que não obedece, ao organizar-se do "mundo das castas", quanto
socialmente, àquela oposição. empiricamente da sociedade e da população
indianas. Mas, ainda que o fizesse, ao sair
Mas se essas manifestações religi- das três e por seu próprio ato de renúncia,
osas tardias, e o renunciante tam- estaria passando a uma posição possível e
bém, se acham fora—que Dumont admitida na ideologia do "mundo das cas-
me permita a paráfrase—do "mun- tas" e de seu complemento, o renunciante.
do do sistema de castas hindu" Sendo, portanto, pela mesma sempre ideo-
(embora às vezes seja nítida a in- logicamente atingido, em sua implícita qua-
fluência que dele sofreram), custa- lidade de "indiano". A isto voltarei, quando
me aceitar que estejam "fora da tratar da distinção entre o "mundo das cas-
sociedade" hindu. Aceitando-o fi- tas" e o que designarei de "sistema hindu".
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existe e subsiste, e só nela pode posição que ela permite adquirir


existir e subsistir no estado3 de (adquirir, note-se), incluída como
quem renuncia ao "mundo das cas- uma das alternativas em sua cultu-
tas". ra.
Renunciante o considerarei agora, Sendo assim, nova oposição distin-
única e exclusivamente, em rela- tiva haveria, então, desta vez entre
ção a esse "mundo", prosseguindo o fora e o dentro, ou—para manter
o raciocínio, se puder, até às conse- a simetria com os citados critério e
qüências últimas da abordagem princípio organizador—, entre um
estrutural e sistêmica desde o prin- campo social onde pureza é crité-
cípio adotada. As limitações de rio relevante de classificação, e um
meu conhecimento etnográfico da outro em que ela não o é. Denotan-
Índia e a evidente falta de um con- do agora, com os sinais + ou- pre-
tato de campo, fazem com que cedendo o P significante de pureza,
muito do que se segue seja consci- sua relevância ou irrelevância, sua
ente especulação e conjetura. presença ou ausência como crité-
rio para assignar posições sociais,
A essa especulação, apresenta-se a oposição entre o indivíduo renun-
como primeiro dado que, para ciante e o "mundo das castas" em
Dumont, a oposição do puro e do seu todo expressar-se-ia +P : -P ,
impuro. P+: P-, é, diria eu, a própria +
sendo P o campo correspondente
atualização do princípio da hierar- ao sistema de castas, e -P o campo
quia; não se submetendo a ela o ocupado pelo renunciante. Nou-
renunciante, está de imediato fora tras palavras, mais adequadas ao
de qualquer possível posição no pensamento de Dumont, +P e -P
interior do "mundo das castas", e definem sub-conjuntos de um con-
escapa, é claro, da hierarquia que junto dentro do qual
nesse interior vigora. Sem me refe- contrastivamente se opõem. Unin-
rir ao empírico, e continuando no do esse princípio ao princípio de
plano do ideológico, se alguém se hierarquia do sistema de castas, e
furta ao status atribuído pela soci- antepondo este sistema ao renunci-
edade e transita para o estado liminar ante que dele e nele se origina,
de renunciante. só o faz porque obter-se-ia para a operação combi-
esse estado é, também ele, previsto nada de ambos a expressão {+P=P+ :
pelo sistema de castas como uma P-} : -P. Lembrando que em fór-
posição que lhe é externa. Para um mula anterior as chaves indicaram
agente socializado no "mundo das o limite do "mundo do sistema de
castas", renunciar só é factível por castas", lê-se, então, que "no sub-
estar a renúncia, tanto quanto a conjunto onde o critério de pureza
é relevante, o princípio organizador
é a oposição puro : impuro: e no
conjunto que o contém, o princípio
organizador seria a oposição pre-
3. Emprego "estado" no sentido que lhe dá sença do critério de pureza: ausên-
Victor Turner: "É um conceito mais amplo cia do critério de pureza".
do que "status" ou "função", e refere-se a
qualquer tipo de condição estável ou recor- A esta altura, parece impor-se a
rente, culturalmente reconhecida." (O pro- idéia de que a ideologia hindu não
cesso ritual. Rio de Janeiro: Ed. Vozes Ltda., se detém no sistema de castas, e de
1974: 116). que a figura do renunciante pressu-
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põe um sistema mais abrangente entre indivíduo-renunciante e


— onde a oposição distintiva rele- "mundo das castas"", em termos
vante obedece ao segundo dos prin- de valor.
cípios indicados, tendo como ele-
mentos posicionais o "mundo das Intervém aqui, mais uma vez, mi-
castas" e seu oposto, o renuncian- nha escassa familiaridade com a
te. Ou, para ser mais preciso, o etnografia indiana; mas certos fa-
campo em que todos os renuncian- tos inclinar-me-iam para uma res-
tes possíveis se inserem, formando posta afirmativa. A reverência das
conjunto distinto. O "mundo das seitas hindus, que atuam no "mun-
castas" seria pois um subsistema do", pela autoridade de seus gurus
do todo maior, um "mundo" que se que estão fora dele, seria um indí-
define como tal e fora do qual está cio; outro, a difusão do
o renunciante, sem que este deixe vegetarianismo, ou, de modo mais
por isso de ser parte do sistema geral, de ahimsa. no seio de um
total e abrangente. Se ao primeiro processo de emulação religiosa em
chamei "mundo das castas", ao que o Brahman adota tal dieta para
segundo, para o distinguir e quali- não se tornar inferior ao renuncian-
ficar, chamaria simplesmente "sis- te. Sendo o vegetarianismo das di-
tema hindu", situando-se, cada um etas a mais pura, fico diante de uma
dos dois, em níveis diferentes e séria suspeita: a de que, mesmo
específicos. Estando isso correto, pondo-se quem renuncia para além
obrigatório será reescrever a fór- do puro e do impuro, na distinção
mula da oposição entre esses dois entre ele e o "mundo das castas"
termos, para introduzir nela a de- continue operante o princípio de
marcação dos limites do conjunto oposição puro : impuro... Quando
total que os contém e engloba, ou mais não seja, do ponto de vista dos
seja, dos+ limites do "sistema hindu": agentes que não saíram do "mun-
SH = <{ P = F+:P-}: P>. do". Quereria isto dizer que, pelo
menos em um primeiro momento
Não sendo essa embora a consciên- histórico, o valor do renunciante
cia que de seu sistema têm o renun- seria superior ao do Brahman e por
ciante e o agente integrado no isso ao do "mundo das castas"; e
"mundo das castas", a um observa- que, portanto, no "sistema hindu"
dor, disposto a acompanhar até ao os dois elementos estariam
fim as idéias de Dumont, caberia hierarquizados. Paradoxalmente,
perguntar se o que foi dito acima renunciar a pautar-se pelo critério
não obriga a reconhecer, no que de pureza traria pureza maior; nou-
denominei "sistema hindu", tam- tras palavras, -P acarretaria P+.4
bém um todo (holístico) e sua ine-
rente hierarquia. Esta, pelo menos,
na "relation englobant-englobé ou
relation entre l'ensemble et
l'élement (....) indispensable a une
pensée structurale au même titre 4 Levar tal raciocínio a seu extremo lógico
que l'opposition distinctive ou seria, talvez, surpreendente, desde que pro-
relation de complementarité" visoriamente se admita que ele esteja certo.
(Dumont 1966b: 401) que aquele Isto obrigaria a reescrever de novo a última
reconhecimento fatalmente acar- fórmula proposta. Nela, SH continuaria a
reta. Nova pergunta surge então, indicar o "sistema hindu" englobante a que
sobre se haveria hierarquização pertencem, como subsistemas, o conjunto
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Não obstante a argumentação dos também e sobretudo um "sujeito


dois parágrafos anteriores, resta o pensante" (Dumont 1972: 44), ou,
dado etnográfico de que na consci- diria eu agora, uma entidade dota-
ência e na ação os que não renun- da de cultura no sentido genérico
ciaram se orientam para o todo e do termo. O que não é reconhecido
por ele holisticamente se pautam; é que ser pensante e portador-cria-
enquanto o renunciante se orienta dor de cultura derive da construção
para si e para a supressão de qual- do agente pela sociedade, e que o
quer desejo capaz de o desviar do passo básico desse processo seja o
caminho da salvação. O social para de atribuir uma posição cultural-
ele não importa; o que importa é mente predeterminada ao organis-
exatamente o seu contrário, e isso mo que surge na população. Pelo
o transforma em indivíduo: sendo contrario: é por um ato de vontade
fundamental que este se define pela que o indivíduo já plenamente do-
oposição distintiva ao "mundo" que tado literalmente se associa a ou-
lógica e temporalmente o antecede tros de igual teor, e que, assim,
na ideologia do sistema de castas. contratualmente constrói a socie-
E que, individualizando-se por um dade. Sob esta perspectiva, ela é
ato de vontade que rejeita o social um meio que se deve adequar aos
(tal como este e ideologicamente fins do indivíduo, e nisto estaria o
representado), se caracteriza como essencial da ideologia individua-
um "indivíduo endógeno" — pois lista, que elimina a noção de uma
aquele seu ato volitivo o leva, do totalidade social em cujo sentido
social que lhe atribui uma posição, seus membros se orientem. Asso-
a um não-social onde a posição só ciados para melhor se dirigirem a
pode ser voluntariamente adquiri- fins, os indivíduos que o fazem
da. Se, para a Índia hindu, a carac- criam, no dizer de Dumont, um
terização do indivíduo como "indivíduo coletivo" composto de
"endógeno" for válida, talvez en- elementos todos iguais. Admitida
tão sirva para o contrastar com seu a igualdade entre os agentes da
congênere do Ocidente europeu. construída sociedade, desaparece
qualquer meio de entre eles estabe-
Da maneira como Dumont o des- lecer oposições distintivas, pois
cobre na ideologia ocidental, o cara estas o contrário e não o igual
agente social é representado como e exigido, desaparecendo com isso
indivíduo que em si se contém e também, no plano do ideológico,
contém em si a essência do huma- um ordenamento estrutural-hierár-
no. O organismo independente não quico dessa parcela da realidade.
precisaria aí de socialização para
humanizar-se: sua humanidade lhe Ao observador externo, porém,
é naturalmente dada no homem parece-me dado discernir, implíci-
natural, que, entidade biológica, é ta na ideologia ocidental, uma opo-
sição distintiva e hierarquizante—
constituído pelo "mundo das castas", e o a que existe entre o indivíduo pro-
conjunto, atomístico, que lhe é externo e priamente dito e o "indivíduo cole-
está formado (ou ocupado, enquanto cam- tivo" que de sua associação resulta.
po) pela totalidade dos "renunciantes" — e Ou entre o indivíduo e a sociedade,
que o estaria ainda que destes, por hipótese, entre a unidade discreta e um alter
houvesse apenas um. Este SH, no plano plural, estando o valor mais alto
conceituai, apresentar-se-ia então como com aquela e não com este, fatali-
subsistema que, tomado globalmen- dade inevitável mas sempre
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limitadora. Na medida em que o preexiste, o ocidental seria exógeno


indivíduo ocidental se opõe ao. por preexistir à sociedade na qual
conjunto de agentes tidos como um ato de vontade o imerge — ou
voluntariamente unidos em socie- o faz criá-la. Deste modo, duas
dade (associativa), torna-se possí- oposições distintivas nos respetivos
vel compará-lo ao indivíduo india- domínios permitiram aproximar e
no, hindu, oposto ao conjunto de comparar os indivíduos de culturas
agentes aprioristicamente muito distantes, para logo uma ter-
interdependentes na sociedade ceira (endogeno: exógeno) garan-
(holística), a que prefiro continuar tir a cada um sua especificidade
chamando "mundo das castas". inegável, sem perder de vista a
Nessa oposição a seu contrário, tentativa de manter, sempre, uma
que é o conjunto do mundo social abordagem estrutural. Se esta tra-
como as respectivas ideologias o dução de Dumont foi fiel ou traido-
definem, equalizam-se o indivíduo ra, só outros o poderão dizer.
da índia e o do Ocidente — para
logo a seguir voltarem a se opor. Bahia, 16.03/15.05.1993
Porque se o indivíduo hindu é
endógeno e emerge da sociedade
("mundo das castas") que lhe Referências
te, teria, em nível mais alto, o estatuto de
Bibliográficas
elemento do sistema que é a "sociedade
indiana". Por sua vez, os sinais / e / indicari- DUMONT, Louis
am os limites do conjunto dos "renuncian- 1965 The modem conception of the
tes". Tomando agora em conta a presença individual. Notes on its Genesis.
ou ausência do critério de pureza como
operador classificatório interno nos dois
subsistemas que compõem o "sistema
hindu"; admitindo a por mim suposta
hierarquização entre o subsistema em que critério de pureza não opera para classificar
está internamente ausente o critério de pure- os indivíduos que o compõem; no segundo
za (posição hierárquica superior) e aquele (o do "mundo das castas"), o critério de
em que ele está presente (posição hierárqui- pureza opera universal e sistematicamente
ca inferior); e aceitando, condicionalmente, para hierarquizar em superiores e inferiores
que essa hierarquização entre os subsistemas as castas, subcastas e status pessoais daque-
se daria por ser um considerado mais puro les que lhe pertencem".
que o outro, seria possível a fórmula que
segue
Assim se expressaria, portanto, o "siste
ma hindu" como sistema holístico regido,
SH = </-P/*:{+P = P*:P-}->
até em seu nível mais elevado, pelo princí
pio da hierarquia e pela valorização da pure
e que se lê: "O "sistema hindu" englobante,
za como critério classificador. Nessa fórmu
no seu nível mais elevado, seria igual a dois
la o elemento de mais alta posição
sub-conjuntos opostos e hierarquizados en-
hierárquica parece ser, precisamente, o úni
tre si em termos de pureza, superior e inferi-
co dos subsistemas englobados em cujo in
or, que são o dos "renunciantes" e o do
terior não se aplica, para classificar, o crité
"mundo das castas". Em seu nível imediata-
rio de pureza com a decorrente
mente inferior, interno aos sub-conjuntos,
hierarquização. No campo a que os "renun
no primeiro destes (o dos "renunciantes") o
ciantes" pertencem, por
Caderno CRH 19, Salvador, 1993

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Granada Publishing (Paladin). Especial-
mente parágrafos 1-7, 11, 21-26, 31-37,
42.3, 43, 51, 56, 57, 61, 63-65, 71, 81, Obs.: Excluí da presente consideração o
cerne do Homo Aequalis. reservando-o
para tratamento posterior. Por razões
práticas, trabalhei especialmente com a
edição inglesa de Homo Hierarchicus
definição conjunto de indivíduos, estes, en- (1972).
quanto tal, estariam equalizados entre si.
Impor-se-ia, então, concluir que no "siste-
ma hindu" englobante, regido por princípi-
os holístico-hierárquicos inegáveis e seu
critério classificatório absoluto, o topo da
hierarquia, o máximo de pureza, estariam
atualizados por um subsistema no seio do
qual imperam os princípios opostos, isto é,
princípios individualístico-equalitários que
eliminam a aplicação daquele critério? É
isto que surpreende.

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