Este trabalho pretende destacar algumas invenções da modernidade
como preparativos da população para o crescimento das cidades, como uma maneira de entende-las e de se defender delas.
Walter Benjamim, como teórico da modernidade, ressalta que
as relações entre as pessoas nas cidades se destacam pela preponderância da atividade visual sobre a auditiva. É uma circunstância estranha: antes da invenção dos transportes públicos no século XIX (bondes, trens,ônibus), as pessoas não conheciam a situação de ficarem de frente uma para as outras sem se falar. Essa situação não é nada confortável e, de certa forma, assustadora. Daí que entra em cena um sistema de produção de imagens para lidar com o choque proveniente das novas circunstâncias. Um deles é a literatura panorâmica, cuja inspiração vem do panorama (tela circular e continua, iluminada por cima, pintada de maneira enganada sobre uma rotunda), que mais tarde ajudaria a batizar um movimento de câmera, que fez história no cinema. A literatura panorâmica é um produto típico da capital, oriundo da necessidade de se coletar dados e catalogar um mundo que começa a crescer desordenadamente. Entendido dessa forma, a literatura panorâmica é um dispositivo de disciplina. “Nesse gênero 2
ocupavam lugar privilegiado os fascículos de aparência
insignificante, e em formato de bolso, chamados de “fisiologias”” (p.33) Panorâmicas: O livro dos cento e um, Os Franceses Pintados por si mesmos, O Diabo de Paris, A Grande Cidade. Fisiologias: Paris à Noite, Paris à Mesa, Paris a Cavalo, Paris na Água, Paris Pitoresca, Paris Casada.
Como obras coletivas, que contavam com a colaboração de
vários observadores, as fisiologias passaram a catalogar tudo (tipos humanos, cidade, festas, escola, teatros, animais), que era devolvido a população de forma inofensiva, de maneira a mostrar as pessoas e coisas de maneira amistosa. A crítica de Benjamin, em relação às fisiologias reside na construção de imagens idealizadas e retratos amigáveis. De uma influência marxista advém o comentário: “As pessoas se conheciam como devedores e credores, como vendedores e fregueses, como patrões empregados – sobretudo como concorrentes” (37). A intenção das fisiologias era mostrar que um novo mundo de contigüidades era inofensivo. Os dioramas são espécies de fisiologias visuais, em miniaturas, assim como os panoramas são, na alegoria de Walter Benjamin, “a cidade na garrafa”. A cidade vira seu próprio presépio. 3
Os panoramas com suas telas gigantescas, não deixam de ser uma
miniatura da cidade. São tentativas de organização da sobreposição dos diversos materiais, suportes, tempos e dimensões colocados no mercado pela produção industrial. Johnatan Crary: São quadros visuais taxinônicos para as coisas que não são mais percebidas como coisas distribuídas no espaço. “A época das passagens coincide com o momento de maior difusão dos panoramas. Não por acaso, eles eram construídos, muitas vezes, numa das extremidades das galerias. As “estampas de viagem” eram fixadas numa tela circular, com os espectadores no centro” (Peixoto, 110). “Os panoramas tentavam se transformar, mediante efeitos técnicos, em “teatros de uma imitação perfeita da natureza”. A obsessão de tudo ver, compartilhada com o folhetim, a obsessão classificatória do colecionismo, é a mesma dos aparelhos de olhar que proliferam na mesma época. As comparações entre folhetins e os panoramas se justificariam pelo auxílio na reorganização do regime da visão. Constitui-se um observador autônomo, cujo protótipo de visão se encarna figura do flâneur . O leitor do folhetim não observa paisagens fixas. “O diorama iria mais longe, retirando a autonomia do observador, situado numa plataforma que se movia lentamente, 4
possibilitando vistas de diferentes cenas e mudanças nos efeitos de
luz. O olhar é adaptado a formar mecânicas de movimento”. Quanto menos segura se torna uma cidade, maiores são as orientações para se viver nela. O folhetim pretende aconselhar a a partir da experiência, porém adicionando choques, golpes inesperados e reviravoltas, de acordo com o crescente clima de excitação nervosa e risco corporal, preparando o leitor para um mundo de extremo movimento. O folhetim é considerado no século XIX o que foi o cinema na primeira metade do século XX: uma preparação para o choque da modernidade, um treinamento para o surgimento de uma esfera pública radicalmente alterada, definida pelo acaso, pelo perigo e por impressões chocantes, abalando as noções tradicionais de segurança, de continuidade e destino autocontrolado. O suspense, como tônica da diversão moderna, vira técnica de escrita, se transforma no famoso “continua amanhã”. É o mundo suspenso em prol do comercio de choques sensoriais. Também conhecido como colportage, por se referir à sobreposição de imagens, os folhetins misturavam a realidade social próxima com acontecimento em terras longínquas, misturava o passado e o presente. 5
Colporter é é anunciar, atividade do mercador ambulante, que
vende quinquilarias; alude às formas populares de representação como as pinturas de barracas de parques de diversão.
Tudo ao mesmo tempo. Inspirado na sensação jornalística,
inserindo na vida dos leitores novidades cotidianas a conta gotas, o folhetim desafiava a máxima que argumenta que a vida é mais repetição do que diferença. O folhetim, que se dirige ao mercado, é o sonho do movimento, a instabilidade do suspense.
Vão valer para o jornalismo e para a literatura folhetinesca as
mesmas leis de produção que regem as mercadorias.
A multidão também tem, ao mesmo tempo, algo de excitante e
de repugnante. O crescimento das cidades apela para uma nova sensibilidade em que o olhar passa a ser item de segurança. A cidade agora, além de espaço de contemplação, é local do crime. É disso que o romance policial vai cuidar. Neste aspecto, pode-se considerar Edgar Alan Poe um fisiognomista por escrever histórias com imagens. Porém a multidão se mostra como problema.. 6
Daí a tentativa da fisiognomia na descoberta de um padrão que
pudesse ser aplicado a cada rosto, traduzindo a exterioridade em caráter, sentimentos e, principalmente, intenções, uma vez que essa ciência se presta ao controle das atitudes da população (Minority Reporter). Uma tentativa de previsão. Mas é no romance policial que se junta fisiognomia e antropologia criminal, dando mostra de que toda linguagem é uma organização vinculada a uma perspectiva. Acompanham o gênero romance policial máximas disciplinares como “o crime não compensa” e “não existe crime perfeito”. É o antídoto contra o anônimato da multidão, que surge como probabilidade de risco. É o sujeito sem registro, ou melhor, aquele que pode não ser assujeitado. Para anular os perigos desse anonimato, desenvolveu-se uma técnica de olhar correspondente, que anula os desvios a partir de uma nova técnica. O detetive policial sabe perseguir e observar dentro da massa concreta de gente e “organizar” os elementos pulsantes da desordem. É o “Homem da multidão”, de Poe. Assim, o romance policial é como uma fábula com uma lição bem clara. Os crimes da rua Morgue, de Edgar Alan Poe, escrito em 1841, considerado o primeiro romance policial, transfere as táticas de visão dos jogos para o exercício profissional do detetive. Poe ensina: “Examine a fisionomia de seu companheiro, comparando-a 7
cuidadosamente com a de cada um dos seus oponentes...Nota todas
as variações que se operam nas fisionomias à medida que o jogo prossegue, reunindo grande número de idéias através das diferenças que observa nas expressões dos companheiros: expressões de segurança, de surpresa, de triunfo ou de pesar” (113-114). A busca do rosto da modernidade é uma obsessão corrente nos textos do século XIX, presente nos textos de Balzac, Baudelaire, Poe e Engels, lembrando o fundador da fisiognomia moderna Joahn Caspar Lavater (1741-1801), que com a obra Fragmentos Fisiognômicos para o Fomento do Conhecimento e do amor entre os homens, pretendia preparar fisiognomistas. A descrição (que é um tipo de texto imagético) do homem na literatura no século XIX se deve, segundo Benjamin, à fisiognomia de Lavater. Apesar do seu acentuado tom fantasioso e do determinismo biológico, Lavater teria influenciado uma geração de autores devido ao seu empirismo autêntico de colecionador. A geração influenciada passou da coleção de pitorescos tipos urbanos para a pesquisa da motivação dos interesses das pessoas nas cidades. Para Benjamin, “a imagem possibilita o acesso a um saber arcaico e a formas primitivas de conhecimento, às quais a literatura sempre este ligada, em virtude de sua qualidade mítica e mágica. Por meio de imagens – no limiar entre a consciência o e inconsciente – é possível ler a imagem de uma época” (43 Willi). 8
Edgar Allan Poe, em Os crimes da Rua Morgue, transfere os
saberes da observação de um jogo de xadrez para a investigação criminal. Portanto acreditava que os saberes poderiam ser transferidos de fronteiras desde que se construísse um padrão, um código de passagem, que estabelecesse entre as partes uma linguagem comum. Dessa forma, as coisas visíveis possuíram em si uma essência. A abertura de O Homem da multidão, Poe promove a classificação a partir dos aspectos mais persistentes do corpo, do gesto e do vestuário. Mas deixando mostra de que acredita que a essência de todo crime continuaria irrevelada por pertencer a consciência individual, portanto intransferível. Poe se farta no seu projeto taxinômico: fidalgos, negociantes, advogados, comerciantes, agiotas, homens de lazer, mendigos, prostitutas, inválidos débeis e cadavéricos, jogadores, cafetão de indumentária infame, robustos mendigos profissionais, a nojenta e absolutamente decaída leprosa em andrajos, a bruxa enrugada, a mera criança de formas imaturas, camelôs judeus, dândis e militares. A habilidade do detetive está na virtuose de leitura das características externas, como a identificação imediata de um batedor de carteira, que chegavam a ser confundidos pelos próprios cavalheiros. Poe os identifica: “O tamanho exagerado de seus punhos de camisa e um ar de franqueza deveriam traí-los 9
imediatamente”. A categoria dos altos funcionários de firmas sérias
ou dos senhores estáveis é identificada também de maneira não menos curiosa: “Eram todos levemente calvos e aponta de suas orelhas tinha adquirido, pelo longo hábito de suster uma pena, um desvio esquisito”. O Homem da multidão é o relato do corpo que pode ser lido, como um livro. Daí a metáfora do corpo como um livro aberto, no qual se lê a lisura e a bondade de caráter e o contrário. Mas o próprio texto de Poe já apresenta o limite dessa técnica, como se ele estivesse abandonando a “clínica” fisiognômica. . O mundo estava crescendo e nem tudo era passível de administração, de leitura, de catalogação. Ele começa o seu famoso conto referindo-se a um certo livro alemão que não se deixa ler. “Er lasst sich nich lesen”. É o novo. O homem da multidão e não o homem que está na multidão. Este já foi catalogado, aquele ainda não foi assujeitado. O século XIX viu prosperar outras formas de catalogação dos tipos humanos que diziam eliminar todo tipo de relatividade, baseando-se na capacidade de reprodução do real da fotografia. Na antropológica criminal de Lombroso, o rosto é uma composição no qual estão inscritas as intenções. Então, além de solucionar problemas, a técnica visa antever problemas. O Homo delinquens de Lombroso serve também para marcar o selvagem, identificar o 10
estrangeiro e para criar nos que estão fora do quadro classificatório
de risco um sentimento de mesmice grupal, portanto identitária. A fotografia como índice do real estaria na base do trabalho de Alphonse Bertillon que acreditava que selecionando os traços principais de um rosto pela fotografia era possível recitar um rosto. Novamente, a metáfora do corpo como um livro aberto para a leitura. Os estudos de Bertillon a partir de seu tableu sinoptique des traits physionomiques pour servir à l`étude du “portrait parlé” serviram de base incremento do retrato falado. Bertillon implementou no sistema judiciário uma classificação antropométrica baseada na cor dos olhos, na impressão digital, e nas fotografias de face e perfil. Esse sistema de mensuração deveria encontrar respaldo na descrição verbal dos elementos fisionômicos. Paralelamente aos projetos fotográficos ligados à antropologia criminal, foram várias as tentativas de se registrar com a fotografia todos os rostos possíveis. É famoso o projeto do alemão August Sander. Mas logo se percebeu que o não esquecimento do rosto estava menos ligados ao registro mecânico do que as qualidades e propriedades da atenção. Diante de toda utilização da fotografia como índice do real e da fisiognomia como ciência de leitura da interioridade a partir da exterioridade, a caricatura se interpõe como movimento anti- antropométrico. Com a chancela do humor, os rostos eram 11
deformados, desmedidos. O apogeu da caricatura se dá momento
em que a antropologia começa a medir os corpos. Embora parecendo um contramovimento, a caricatura acaba colaborando com a consolidação das leis que região os retratos falados da antropologia criminal. Apesar de todas as distorções, os rostos mantinham o que Umberto Eco chamou de invariáveis, responsáveis pela manutenção de traços identitários e inquestionáveis. Por esse víeis, o rosto passa a ser essencializado, passível de uma leitura objetiva, o que pressupõe que qualquer cidadão é passível de monitoramento, de identificação, de catalogação. As máquinas sensórias.