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Bordejando o silêncio

desenho do Mestre na India ( ano 15..)

David Alpuente
-Primeira Parte-
Da Viagem do Mestre e seu ajudante, o narrador,
à Índia e dos mistérios e maravilhas que ali encontrámos

As caravelas estavam a sair de Belém. As prateadas águas do rio Tejo agitavam-se


levemente por impulso de uma ligeira brisa, que também insuflava ar nas brancas velas
das caravelas. O meu amo olhava para o céu, tratando de adivinhar o azar da viagem
que iniciávamos para a India. A mirada dele ficava escura, enquanto os gritos das
gaivotas ensurdeciam o ir e vir dos marinheiros com as diferentes cargas e materiais
para ficar no porão ( alimentos contra o escorbuto, tonéis de água, velas e mastros de
reposto, garrafas de vinho do Porto e demais objetos misturados com pessoas e animais
de toda classe ). O vento açoitava a sua capa. Eu sabia que abaixo dela levava os seus
valiosos papéis e pergaminhos, apertados ao peito com umas faixas de couro. Essa era a
nossa carga, o nosso peso, o motivo de partirnos tão longe: assim salvávamos a nossa
vida.

A mesma vontade de el-rei para lutar contra os infiéis levava-nos a fugir das afiadas
garras da Inquisição: o Mestre foi investigado pelos seus estudos sobre o voo de aves e
bruxas, umas com assas, as outras com vassouras...O perigo era tal que todas a
recomendações de amigos e conhecidos foram desaparecer quanto antes de Portugal.

Podia olhá-lo naquele momento: a sua figura magra, a longa barba, as mãos
delicadas...tudo parecia-lhe tremer ao mesmo tempo. Não era medo. Na verdade, tremia
de tristeza, pela interrupção das investigações que tão meticulosamente levava adiante
entre as suas obrigações como astrónomo real. Agora partia para aquela viagem
conturbada, só, com os seus próprios pensamentos, e comigo, seu jovem ajudante.

Ainda gozava de alguns privilégios e poderíamos mudar entre as diferentes naus e


caravelas que o Capitão-mor Vasco da Gama tinha sob o seu comando.

Um sorriso ao escutar a ordem para levantar âncora, fez-me saber que ele tinha
adivinhado bem na visão dos pássaros a traçarem signos entre as nuvens. De seguida os
seus lábios voltaram a fechar-se com força e penetrou no camarote , com o olhar
perdido nas suas próprias nuvens.

Sabendo que procurava solidão me aproximei a proa e contemplei como a frota inteira
afastava-se do porto de Belém. Fechei os olhos e murmurei para mim um de tantos
encantamentos que tinha escutado tantas vezes na boca das mulheres que visitavam o
Mestre.
Naquela noite dormimos como passarinhos até que os gritos da tripulação nos
acordaram. O sol ainda parecia molhado e as nuvens semelhavam farinha estendida
sobre a mesa do padeiro... De seguida uma grande actividade encheu a coberta:
marinheiros a limpar, os oficiais a manobrar o astrolábio, aprendizes consultando a
bússola e a balestilha, naturalistas da Academia de Ciências a examinar a pesca de
amanhã e diplomáticos e nobres falando sobre as grandes possibilidades de negócio na
Índia.

Assim decorreu a viagem até a chegada ao porto de Calecute, tras vários meses de vagas
alterosas e de inúmeras ocasiões em que estivemos em perigo de naufragio. Uma vez
desembarcamos fomos a nos instalar nas dependências do Samorim de Calecute.. Ao
mesmo tempo que o Capitão-mor e o Malemo Canaca ( o piloto mouro que levou com
ele ) falavam sobre instrumentos de navegação e mapas antigos, nós saímos a passear
pelas ruas cheias de pessoas, animais esquisitos e cores sem fim.

Caminhamos por estreitos becos, onde a luz do dia quase não chegava e onde o silêncio
era um rumor audível. Foi numa destas quando encontramos uma janela aberta e
iluminada tênuemente. Ali, uns grandes olhos de mulher contemplavam os nossos
passos curiosos com uma fixidez embruxadora...Nesse preciso momento, começou a
chover e uma cortina de água empapou-nos de imediato. Entretanto, a misteriosa mulher
desapareceu. A seguir uma trovoada sacudiu o céu e escapamos por entre as casas de
telhados achatados, ouvindo detrás das paredes os acordes musicais que invisíveis
instrumentos faziam estremecer à própria chuva...Simultaneamente as cores e cheiros
golpearam os nossos sentidos extasiados. Nem soubemos como atingimos chegar à
morada.
Mais tarde, quando a chuva cessou e estávamos deitados nos leitos com os olhos
abertos, não podíamos esquecer aqueles outros: como duas luas decoradas com os
pigmentos que tínhamos visto nos postos das mercearias de especiarias. E como dois
lobos-homens ficamos até bem entrada a madrugada.

No dia seguinte voltamos à nave. O Mestre andava com o olhar fixo naquelas nuvens
que semelhavam talhadas numas pedras brancas e vaporosas: dias depois partiríamos
para Cochim, a Branca.

O dia da chegada estava calor. Tudo era movimento no porto. Sem afastarnos muito
caminhavamos entre os postos de peixe, quando um cheiro particular deteve os nossos
passos. Entre um montão de especiarias ( grandes como pessoas ) uma mulher movia-se
com graça de ave. Ao inclinar o seu corpo, o pescoço ficou à nossa vista e pudemos
contemplar uma tatuagem de hena que desenhava um dragão vermelho. Aquilo foi uma
sinal para os dois. E para o confirmar o céu calmo mudou em ventania. Uma grande
confusão seguiu na fugição da gente para se protegerem do forte vento. Umas mãos
amigas levaram-nos até a nave.

Entre o rugir do vento apercebíamos que o nosso caminho se aproximava mais ao seu
destino.Marinhávamos à gávea para o assinalar na distância.

۵
-Segunda Parte-
Onde continuam os Milagres da Viagem
E escuta-se o Discurso da Sereia

A tempestade prolongou-se durante oito dias. Como num sonho as pessoas pareciam
flutuar a cada passo e as conversações tornaram-se impossíveis. Todo o mundo sofria
imenso, excepto o Mestre, que aproveitou o forte vento e a ausência da tripulação na
coberta para fazer experiências: aproveitando paus, pedaços da vela e outros materiais
construiu uns passarinhos que voavam quase invisíveis, ascendendo em espiráis velozes
até se perder no confuso céu...

As noites passava-as a escrever, hora após hora, com um entusiasmo que nem sequer eu
compreendia. Quando finalmente o sono o vencia, os lábios tremiam-lhe, murmurando
palavras num idioma desconhecido para mim.

Dias depois, acalmada a tempestade, abandonamos Conchim e partimos para Kerala. O


Mestre e eu passamos aquele percurso a contemplar o mar de âmbar por onde as naus
deixavam traços de ouro. Ao entardecer as aves marinhas começavam a descer e dançar
sobre essas águas misteriosas, à procura do alimento. Então podíamos afagar seus
plumagens dourados e metálicos, escutando fascinados o som dum milhar de assas
sobre as nossas cabeças.

Mais tarde, quando as estrelas brilhavam duplas no céu e no mar, falávamos da nossa
terra e algum marinheiro tomava a viola, enquanto outro entoava com voz rasgada
alguma canção de saudade. Todos compartilhavamos aquele sentimento, incluindo o
capitão-mor, que desde o castelo de proa cantava com os mapas na mão.

Chegamos a Kerala numa manhã fresca e tranquila. A costa era rochosa, cheia de
buracos, onde as algas se acumulavam como naufrágios naturáis. Uma pequena frota
aproximou-se, construindo com as próprias barcas e muitas tábuas, uma espécie de
embarcadouro para poderem descer. Dado que o mar estava tão calmo a segurança
daquela construção era confiável.
Desembarcamos e baixo os nossos pés a madeira rangia e arranhava a roca. A brisa
salgada, o som da água, o sol refletido mil vezes na superfície, excitaram os nossos
sentidos. Devagarinho afastamo-nos por entre as pequenas selvas, onde assomavam
curiosas criaturas: caranguejos diminutos, peixes que pareciam respirar pelas bocas
sufocadas, estrelas de mar amarelas e grandes, eriços azuis, medusas transparentes e um
sem fim de animais que escapuliam entre as algas multicores.

Ao dobrarnos uma grande rocha, encontramos a maravilha das maravilhas: numa balsa
formada por uma cavidade na rocha olhamos o corpo duma sereia. A pele brilhava com
os diamantes da sal e as mãos afagavam os longos cabelos que lhe caíam sobre os
peitos. A cauda mergulhava-se na água e movimentava-se como assas de borboleta,
quase respirando. Mas, o que ficou na nossa memória daquele encontro foram os olhos.
Rasgados, orientais, abertos como conchas, fitavam para nós, como descobrindo um
tesouro esperado...E então ela falou com a linguagem dos sonhos do Mestre. Os dois,
porém, compreendimos naquela música uma mensagem destinada para nós dois:

Viageiros que de tão longe vêm, esperávamos a vossa chegada. Estávamos à procura
de corações-nuvens para afastar o perigo que ameaça às bruxas... O homem fica
abismado quando só o seu pensamento tenta arranjar a realidade. Fica cego, assassina
a magia... Vocês não esvaziaram os corações, estão cheios como as nuvens de água...
As bruxas falam com a Natureza de olhos transparentes. Escutam a voz sagrada... Com
a vossa ajuda pretendemos fazer um encantamento para dar fim as persiguições que
esta cegueira provoca na vontade humana...Há uma Força que todo o alcança,
compartilhada por cada coisa e ser vivente..E nessa Força podemos intervir..
Emcontrem o Cristal de Haryana!!!

Naquela altura do seu discurso, acompanhando à urgência das últimas palavras, um


barulho afogou a voz dela e logo a seguir as vagas chocaram contra as rocas, formando
uma cortina de água. Depois voltaram a ascender construindo no ar colunas que
pareciam ser empurradas pelo océano todo. Escutamos então os gritos de terror dos
companheiros de travessia ao verem aquela manifestação terrível do mar. Quando as
vagas baixaram outra vez, acalmando-se tudo, a sereia já não estava. Voltamos à nave,
onde a tripulação ainda tremia. A voz do capitão-mor dava já as ordens para reparar os
desperfeitos, enquanto ditava aos cronistas o que a história lembraria. Por fortuna
ninguém resultou ferido e as naves estiveram prontas a sair de novo.

À noite, com os ánimos mais calmos, recuperou-se a normalidade. Os marinnheiros


cantaram e as estrelas escutaram, os frades rezaram longamente e a luz do castelo
mantinha acordada a nave inteira...Horas depois a figura do Capitão emergeu para falar
com os contramestres: tomávamos rumo a Goa.

Ao escutarmos a notícia o Mestre tomou-me do braço e camninhamos até a popa. A


nave deixava uma esteira onde a noite se escorava junto a voz dele:

―A nossa viagem toca destino. Mal cheguemos a porto devemos inquirir sobre esse
cristal de Haryana. Anda de olhos abertos, rapaz. Com certeza receberemos mais uma
mensagem de outra bruxa.

Eu assenti e fiquei calado, enquanto as estrelas caíam ao mar, como flechas acesas que o
céu atirasse.

۵
-Terceira Parte-
Onde os olhos são sonhos e a história não tem fim

Fomos os primeiros occidentais que chegavam a Goa. A frota foi recibida por uma
multidão de pescadores nas suas barcas, agitando bandeirolas e fazendo soar trombetas
e tambores. O conhecimento da nossa chegada ( e dantes de outros navegantes ) tinha
recorrido aquelas terras de um extremo a outro e a alegria pela novedade competia com
a nossa curiosidade e maravilha pelas roupas, cores e diversidade de ohlares e falas.

Acompahamos ao capitão e fomos levados para o palácio do Marajá de Vijayanagar,


uma das cidades do estado de Goa. Ali fomos recibidos pelas autoridades religiosas,
ansiosas de qualquer conhecimento novo fora das suas terras. O Mestre aproximou-se a
eles e com a ajuda de um intérprete apresentou-se e falou-lhes sobre as suas actividades
e estudos.

Aquela noite, na ceia que foi dada no nosso honor, os boddhisattvas contaram-nos
muitas histórias e ensinos. Um daqueles sábios relatou a legenda do “Olho no Céu”:

Há muitos anos – começou – numa manhã de Maio, quando o Sol já estava alto, um
grande olho apareceu sobre as montanhas. A primeira pessoa que o viu ficou espantada
com o milagre. Era um olho tranquilo, que parecia olhar a terra com serenidade. Um só
olho em meditação. A voz correu-se pela comarca e dias depois centenas de pessoas
contemplavam o Olho de Deus desde uma planície desértica, rodeada de escarpadas
montanhas ( onde os mais valentes ascendiam para o admirar. O olho continuava
plácido, embora o barulho das vozes e do polvo que cubriam como um manto a planície
toda.

Muitos alcançaram a iluminação. Outros tranquilizaram a alma e corpo com a visão do


olho. A maioria, depois de o contemplar, mudavam a sua existência de maneira total.

Meses depois eram miles as pessoas que viajavam para assistirem a Paz Clara
(Perjalanan, como se disse lá ). O silêncio foi estendendo-se até atingir uma única voz
calada. Então o olho começou a diminuir o tamanho, ao tempo que descia devagarinho.
Uma grande expectação recorreu a multidão. A pálpebra fechou-se uma vez, e quando
voltou abrir, uma luz muito intensa ocupava o lugar da pupila. Ao fechar outra vez um
jorro de luz, como leite, caiu para a terra. Logo o olho desapareceu.

Alguns vieram como junto ao jorro caía uma joia e tentaram de buscá-la, mas nunca foi
encontrada.

As pessoas voltaram para as suas vilas e cidades, com os coraçoẽs cheios de luz, e a
legenda continuou até hoje.

Um segundo sábio acrescentou que a procura do cristal de Haryana ( chamado assim


pela primerira cidade que proclamou té-lo encontrado ) era considerada um caminho de
sabedoria, que uma vez iniciado permitia entrar em contacto com forças espirituais
muito profundas. Até tinha surgido uma Escola Haryana cujos adeptos atingiam estados
de iluminação semelhantes a quem contemplou o Olho. O Mestre perguntou então onde
podia encontrar-se o mágico cristal, lembrando-se das palavras da sereia.

O tercer sábio olhou para ele, mostrando-lhe uma caixinha dourada que apertava entre
os dedos. Lá estava, disse com voz sussurrante. Logo abriu a tapa e nos mostrou um
povinho cor de cinza. Com a punta da unha depositou uma pequena quantidade nos
nossos copos de água-mel.

O Mestre fez um movimento de gratitude com a cabeça e bebeu devagarinho. Eu fiz o


mesmo, enquanto a conversa continuava, misturando-se com o som do sitar e as vozes
do capitão-mor e o Marajá que falavam de viagens em longínquas terras.

No meio da sala uma fogueira iluminava com chamas verdes todos os rostos que me
pareciam então fantasmas líquidos. Num momento senti que flutuava mexido pela
dança da labareda e achei que tudo estava óptimo. A seguir, sonhei acordado como
nunca tinha sonhado dormido e despertei, feliz, no nosso aposento.

O meu amo estava deitado no seu leito, feito de almofadas com desenhos de aves,
coberto de papeis onde, ao me aproximar, a sua letra labiríntica cobria até o último
pedazinho. Ele dormia, assim que tomei uma folha qualquer e li:
Dentro do fogo vislumbrei um olho formado por outros muitos olhos mais pequenos
que dançacam dentro dele. Depois, uma água encheu o meu peito e uma voz feminina
falou-me com palavras de consolo que acalmaram a minha alma.

Levantei os olhos, espantado com aquela escrita-sonho. O Mestre tinha o mesmo rosto
de felicidade que eu devia ter quando acordei. A sua respiração movimentava a pilha de
folhas. Tirei uma outra do montão e continuei a ler:

Então uma grande dor ficou no meu peito. Alguma força tentava atravessá-lo. Podia
contemplar o meu próprio corpo como se fosse um ave e me viesse desde o
céu.Verifiquei assim que o que me estilhava era uma joia luminosa que esticava a
minha pele tentando sair. Podia escutar os meu próprios berros pela intensa dor. Mas
então tomei consciência de ser uma ave: escutava o som das minhas assas, sentia a
respiração trespassando todos os ossos e órgãos do meu corpo; era ligeiro, leve, feito
de ar. Mal percebi esta nova realidade o meu outro corpo deixou de sofrer. Nesse
momento voltei ao corpo humano e a este mundo..

Em cada papel desenhos, confussos às vezes, intercalavam-se com a narração. Nesta


apressurada memória reproduz-se um deles, pois fica cheio de todo o misterio que
naquele momento eu sentia.

Aguardei até o Mestre acordar. Ele ficou deitado mais uns momentos com os olhos
abertos. A luz da manhã enchia as paredes das sombras de lá fora; os sons da rua
entravam pelas janelas; o ar cheirava a cominho e a pó de amapola; cada detalhe
resplandecia de novidade. Tínhamos olhos recém nados... Então bateram à porta.

Fui abir. Era o Chefe do Correio Real. Devia entregar ao Mestre uma carta que tinha
sido levada à India por um frade com ordens da Santa Inquisição...Má notícia, pensei. A
carta foi entregue e o Mestre leu. Eram poucas linhas pois num abrir e fechar de olhos já
dobrava a folha e a entregava ao Chefe.

Na carta, contou-me o amo depois, o Padre Calafrio aconselhava-lhe não voltar para
Portugal, advertendo do perigo de fazé-lo se voltarmos. Além, acrescentava, lhe
lembrava da inutilidade de toda magia contra a vontade de Deus. Isto, aclarou-me, era
uma sehnal do começo de certos planos dos que tinha tido conhecimento quando esteve
na corte.

O Mestre ficou em silêncio. Alguma visão da noite anterior davla-lhe a certeza do


acontecer futuro. Como num espelho, presente e fututo se reflectiam. E aquelas palavras
suspeitosas eram como uma pedra atirada num poço.

Conversamos sobre o que fazer. Falou o Mestre com voz pausada.Como o Olho
devíamos deixar um tesouro para o futuro, uma procura: a possibilidade da magia
embora o mundo ficara cego, para a descobrirem os de olhos abertos. Era a missão que
nos tinham encomendado as sereias. Encontrámos o cristal de Haryana ( no nosso
interior ) e agora devíamos transmitir essa sabedoria para os vindouros.

Mas, qual era o plano?, perguntei. Tudo está nos sonhos, tudo resta cá, disse ao tempo
que afagava o maço de papeis. Nesta escrita sobrevivemos.

FIM

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