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Sonho e Desejo dos Perpétuos – Uma relação fratricida

Uma análise psicoanalítica do envolvimento entre os personagens Sonho e Desejo na obra


“Sandman”de Nei Gaiman

Thiago Bersou
Resumo

O objetivo desse trabalho é articular os conflitos e atritos entre os personagens Sonho e


Desejo dentro da ótica psicoanalítica. A relação conflituosa entre os dois irmãos não é meramente
casual nem gratuita. Eles têm sua gênese a articulação teórica desenvolvida por Freud entre as
pulsões de vida e morte (Desejo) e o inconsciente, este último manifestado através da linguagem
onírica.

O estudo da relação entre ambos os personagens visa estabelecer que o autor, dentro da sua
narrativa, vale-se de uma argumentação psicoanalítica tanto na construção conceitual dos
personagens como principalmente da relação entre si.
Introdução

Neil Gaiman, autor da série em quadrinhos “Sandman”, constrói uma mitologia própria,
porém ricamente intertextual, metafórica e referencial para contar a jornada de seu protagonista –
Sonho
“Sandman” (homem de areia) é uma referência encontrada em várias culturas. A mais
consagrada é a dinamarquesa, através de um conto de Hans Christian Andersen, chamado Ole
Lukoeje (ou Olavo fecha-olhos). Esse personagem, de contos infantis, é uma figura mitológica que
sopra areia nos olhos das crianças para que elas durmam.

Com essa linha mestra, o autor desenvolveu todo um universo próprio transpondo grande
parte do imaginário mítico ocidental dentro da cultura pós moderna. Dentro desse universo criado
pelo autor, sem dúvida sua maior contribuição foi o estabelecimento de uma “família” para Sonho.
Composta por sete irmãos, batizados de “Perpétuos”.

Os sete irmãos sãos os seguintes: Destino (Destiny), Morte (Death, Sonho (Dream),
Destruição (Destruction), Desejo (Desire), Desespero (Despair) e Delírio (Delirium).

Os perpétuos descritos por Gaiman não são deuses, apesar de que alguns deles terem sido
eventualmente adorados como tal. São conceitos, ou idéias presentes no coletivo psíquico humano
representadas antropomorficamente. Apesar de serem conceitos metafóricos, Gaiman dá aos
personagens personalidades e falhas bem humanas (assim como os deuses pagãos).

O próprio Gaiman os define na edição X do arco Estação das Brumas (a descrição de Destruição
não está presente nessa edição. Até aquele momento a identidade dele não era conhecida):

“Sandman:

É um verdadeiro enigma.

Neste aspecto ele


é magro e esguio, com pele
tão pálida quanto a neve que cai.

Sonho acumula nomes para si


da mesma forma que outros fazem
amigos. Mas pouquíssimos são
os que recebem tal título.

Se existe alguém mais intimo dele,


esse alguém é sua irmã mais velha,
Morte, a quem, mesmo assim,
vê muito raramente.

Destino:

É o mais velho dos Perpétuos.


No princípio havia a Palavra, e ela
foi escrita à mão na primeira página
de seu livro, antes mesmo de
ser pronunciada.
Para os olhos mortais,
Destino é, também,
o mais alto dos Perpétuos.

Alguns crêem que ele seja cego,


enquanto outros, talvez mais
sabiamente, alegam que ele tenha
viajado além da cegueira e que,
na verdade, não possa ver nada,
exceto - enxergar - os finos
traçados espirais das galáxias
no vazio, observando os intricados
padrões da vida em sua
jornada através do tempo.

Destino cheira a biblioteca empoeirada à noite

Ele não deixa pegadas.

Ele não projeta sombras.

Delírio:

É a mais jovem dos Perpétuos.

Ela cheira a suor, vinho azedo,


noites tardias e couro velho.

Seu reino é próximo, e pode


ser facilmente visitado.
As mentes humanas, porém,
não foram feitas para compreender
seu domínio, e os poucos
que viajaram até ele conseguiram
relatar apenas fragmentos perdidos.

Sua aparência, um amontoado de


idéias vestidas no semblante da carne,
é a mais variável de todos os Perpétuos.
A forma e o contorno de sua sombra
não têm relação com a de nenhum
corpo que esteja usando.
Ela é tangível como veludo gasto.
Delírio tende a se tornar borboletas
ou peixes dourados, agora e sempre.

Alguns dizem que a grande frustração


de Delírio é saber que, apesar de ser
mais velha que as estrelas e mais antiga
que os deuses, ela continua sendo,
eternamente, a mais jovem da família,
pois os Perpétuos não medem tempo
como nós nem vêem mundos
através de olhos mortais.

Desespero:

Sua pela é fria e pegajosa. Seus olhos são da cor do céu, naqueles dias cinzas e úmidos que
desbotam o significado do mundo. Sua voz vai pouco além do sussurro. E, embora ela não tenha
odor, sua sombra é almiscarada e pungente, tal qual a pele de uma cobra.

Desespero, irmã gêmea de Desejo,


é rainha de seu próprio domínio sombrio.
Diz-se que, dispersas pelo reino de
Desespero, há uma infinidade de
pequenas janelas penduradas no vazio.

A cada janela aberta uma cena diferente


se revela. Em nosso mundo, a vista é
um espelho. Assim, quando você fita
seu próprio reflexo e nota os olhos
de Desespero sobre si, é fácil senti-la
agarrando e apertando seu coração.

Sua pele é fria e pegajosa.


Seus olhos são da cor do céu,
naqueles dias cinzas e úmidos que
desbotam o significado do mundo.
Sua voz vai pouco além de um sussurro.
E, embora ela não tenha odor, sua
sombra é almiscarada e pungente,
tal qual a pele de uma cobra.

Desejo:

É improvável que qualquer retrato


consiga fazer jus a Desejo,
pois vê-la (ou vê-lo)
seria o mesmo que amá-lo
(ou amá-la) - apaixonadamente,
dolorosamente, até a
exclusão de tudo o mais.

Desejo exala um perfume


quase subliminar de pêssegos
no verão e projeta
duas sombras: uma negra
e de nítidos contornos; a outra
sempre ondulante,
como neblina no calor.

Desejo sorri em breves lampejos,


da mesma forma que o brilho
do Sol reluz no gume de uma
faca. E há muito, muito mais do gume
de uma faca na essência de Desejo.

Jamais a(o) possuída(o), sempre o(a) possuidor(a), com pele tão pálida quanto fumaça e olhos
aguçados como vinho, Desejo é tudo o que você sempre quis Quem quer que seja você. O que quer
que seja você.

Tudo

Morte:

E há a morte...”

Tema da Pesquisa
Um sonho é um desejo que seu coração faz

Um sonho é um desejo.

Um sonho é um desejo que seu coração faz


Enquanto você estiver dormindo
Nos sonhos você abrirá seu coração
O que quer que você deseja para você, você terá
(Luisa Guerra)

Dentro das relações que o autor trabalha em sua obra, uma das mais interessantes é entre
Sonho e sua/seu irmã/irmão Desejo. A relação deles é tratada como a mais conflituosa e passional, o
que inexoravelmente leva à tragédia.

Partindo da premissa usada como letra de canção de Luisa Guerra, o presente trabalho é
demonstrar que uma vez que os conceitos de sonho e desejo foram levados a status de
representações antropomórficas, suas relações também devem ser pautadas como tal. Assim, ao
contrário do que a pequena estrofe da canção de Guerra dá a entender, o convívio entre Sonho e
Desejo (personagens) não tem nada de poético. Levado a condição de seres com emoções, o
sentimento mais afluente de Desejo é a inveja. Ora, como não seria, pois segundo Freud “o sonho é
a realização (disfarçada) de um desejo (suprimido ou recalcado)” (FREUD, 1900, p. 193). Ou seja,
só nos sonhos, o desejo é plenamente realizável. Desejo como personagem não é por si só capaz de
realizar o que deveria.

Já em suas próprias descrições transcritas acima a dicotomia entre às personagens fica


evidente. Sonho é o mistério que nos fascina. Aquilo que está submerso em brumas aonde vemos
apenas seus contornos mesmo assim atiça nossa curiosidade (e porque não desejo?) de adentrar em
seus domínios.
Desejo por outro lado, é o explícito jogada em sua cara. Não há mistério, não há o que
esconder, ela/ele é tudo o que qualquer um ou qualquer coisa sempre quis. É o gozo absoluto, o
objeto a e em última instância a sua própria morte (em sua obra, entretanto, Gaiman estabelece
como irmã gêmea de Desejo, Desespero. Uma relação que permite outros desdobramentos, uma vez
que morte é uma conseqüência, mas o desespero um companheiro de nossos desejos).
Sonho e Desejo

A série Sandman é dividida em dez arcos, subdivididos em setenta e cinco histórias que se iniciam
com o aprisionamento de Sonho por um feiticeiro mortal e terminando com sua morte.

A sua relação conflituosa com sua/seu irmã/irmão no entando tem suas carcterísticas mais bem
delineadas no arco “A Casa de Bonecas” (Sandman V. 2 – A Casa de Bonecas, Ed. Conrad 2005), na
história “Três setembros e um janeiro” (Sandman V.6 – Fábulas e Reflexões pg. 20, Ed. Conrad
2006) e na história “O coração de uma estrela” (Sandman – Noites sem Fim, cap. 3 Ed. Conrad
2003) em que o presente estudo se pautou para estabelecer a articulação com os conceitos
freudianos.

Casa de Bonecas

O arco “A Casa de de Bonecas” é o segunda parte das dez em que são dividas a série “Sandman”
por Neil Gaiman.

Após os acontecimentos do arco “Prelúdios e Noturnos” (Sandman volume 1 – Ed. Conrad, 2005),
Sonho começa a reconstrução de seu reino após 75 anos em que ele esteve preso no mundo
desperto. Em paralelo somos apresentados a Rose Walker que após receber um misterioso convite
para viajar à Inglaterra, será levada a uma seqüência de eventos que convergirão ao seu encontro
com Sonho e sua verdadeira identidade.

Também conhecemos Nada uma antiga paixão em Sonho em uma história não diretamente ligada a
narrativa cronológica dos eventos principais em um prólogo chamado “Contos na Areia”.

Nesse arco, é demonstrado que tais acontecimentos (incluso “Contos na Areia”) foram arquitetados
por Desejo.

Três setembros e um janeiro

Trata-se de uma história sobre Joshua Abraham Norton, personagem real nascido na Inglaterra em
1819 e morto 61 anos depois sob o título de Imperador dos Estados Unidos e Protetor do México.

Após perder tudo que tinha, Joshua se vê sem esperança e flertando com o suicídio. Desafiado por
sua irmã Desespero, Sonho dá a Joshua um sonho para se agarrar e dessa forma não adentrar aos
domínios do desespero. O sonho é de que ele é o imperador dos Estados Unidos da América, o que
lhe dá uma razão para continuar sua vida. Tentando por Desejo a aceitar um casamento com uma
princesa de verdade (o que dessa forma mostraria a irrealidade da vida que levava e por
consequência a derrota de Sonho em sua disputa), Joshua recusa levando a ira de sua irmã/irmão e
aos acontecimentos subsequentes do arco “A Casa de Bonecas”.

O Coração de uma estrela

A história “Sonho” ocorre há milhares de anos dos acontecimentos de “A Casa de Bonecas” e “Três
setembros e um janeiro”.

À época, Desejo era a irmã/irmão favorita de Sonho, pois é entendido que foi por causa de Desejo
que Sonho encontrou sua consorte mortal Killalla da Luminescência.

Levada para conhecer a família de Sonho, Lillalla tem um diálogo com Desejo e após alguns
acontecimentos ela o deixa para ficar com Sto – Oa, o sol de seu mundo. Levado a crer que Desejo
é responsável por isso, Sonha rompe os laços de amizade que outrora aliementava para com sua/seu
irmã/irmão, sendo cronologicamente o evento que os levam à relação beligerante atual.

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