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Peça de Teatro 3º E.

M – CONCERTO CAMPESTRE

NARRADOR: Thiago Ramalho

PERSONAGENS:
Major Eleutério Fontes – Mateus Perez
Clara Vitória – Bruna Lauermann
Maestro – Cássio Souza
Dona Brígida – Simone Schuck
Silvestre – Mateus Castro
Vigário – Fernanda Alves
Rossini – Fernanda Alves
Siá Gonçalves – Djulie Ferreira

(Major Eleutério encontra-se sozinho no palco, contando dinheiro)

NARRADOR: - Ignorando seu aspecto físico, seria possível imaginar – e errar – que Major Antônio Eleutério
dedicava paixão antiga pela música, protegido pelos vagares que lhe davam a imensidão dos bens. Mas nem
sempre fora rico. Sua história era conhecida de todos: construíra fortuna aproveitando a sorte e armando
situações irreversíveis para seus devedores. O contrabando de gado foi seu meio de vida por duas décadas, o
que lhe deu o posto de Major Honorário da Guarda Nacional. Durante a Revolução farroupilha ampliou os
haveres vendendo para ambos os lados em luta, com o término do conflito dedicou-se a charqueada, e enfim
porque começa a envelhecer, à amizade dos padres.

(Entram em cena Dona Brígida e Vigário)

VIGÁRIO: Mas me conta Major, é verdade ou é só mais um causo essa história de tempestade que levantou o
sangue dos seus bois?

MAJOR: Não meu padre, o pior de tudo é que é verdade, a “chuva de sangue”. Naquele dia deu um pé de
vento furioso, ergueu todo o sangue dos bois que tava no tanque, e girou todinho no céu.

DONA BRÍGIDA: Girou e foi desabar em cima da casa da estância, olha meu padre, ainda tem as manchas ali
nas telhas. Falando nisso, que vagabundagem, já pedi para os escravos limparem! E aqueles músicos de
merda em Eleutério? Já que não fazem nada o dia inteiro poderiam ajudar os negros na lida da casa. Só
decepção! Vou continuar com meus bordados!

MAJOR: Falando em música, o senhor bem soube que meus dois índios fugiram?

VIGÁRIO: Mas como? Mesmo com proposta de salário e moradia? Lembro-me bem deles beijando suas mãos.
Pobres criaturas, pareciam anjos ao cantar.

MAJOR: Agora ao invés de anjos tenho um bando de vagabundos, que de vinho e farra entendem bastante,
mas de música nada. Bando de vagabundos, ei de mandá-los embora hoje mesmo.

VIGÁRIO: Acho que tenho uma solução para o caso.

MAJOR: Mas me diga logo homem de Deus!

VIGÁRIO: Um homem, um Maestro, de Minas Gerais. Veio pra cá e foi preso no lance mais ridículo da
revolução, mas como artistas são inofensivos, foi solto. Tem bastante experiência e posso assegurar ser o
melhor músico da Província. Tem seu passado de indolência, com algumas criadas das casas em que passou,
mas vem bem avisado e o senhor major, mantenha os olhos abertos, sabe como é, é homem.

MAJOR: Mas é claro que eu aceito!

VIGÁRIO: Vamos buscá-lo!

(Os dois saem de cena para buscar o Maestro. Dona Brígida continua bordando. Clara Vitória entra em cena)

CLARA VITÓRIA: Bom dia mamãe!


BRÍGIDA: Quase atrasada para teus bordados!
(Entram em cena Major e Vigário trazendo o Maestro)

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MAJOR: Esposa, filha, aqui está o Maestro que contratei para fazer música nos nossos pampas!
(Clara Vitória e Maestro olham-se e sorriem)

MAESTRO: Major, o senhor não terá motivo de queixas.

MAJOR: Severidade e virtude meu guri, apenas isso. Então vamos testá-lo agora mesmo!

(Major e Maestro saem de cena. Clara e Brígida bordam. Ouve-se uma barulheira ensurdecedora.)

BRÍGIDA: Seu pai anda ficando velho e gagá, não agüento mais essa barulheira, incomoda meus ouvidos.

CLARA: E que idéia foi essa de trazer esse desconhecido aqui para dentro de casa, só por que o padre pinta-o
como um Santo da música? Tenho que concordar com a senhora mamãe, papai está ficando louco.

BRÍGIDA: Então borde minha filha, que quando se casares com Silvestre, um fazendeiro rico que teu pai
arranjou, livra-te de tudo isso! Já eu...

(Os homens voltam sala)

MAESTRO: Sinto muito Major, mas com esses músicos, se é que posso chamar isso de músicos, sua orquestra
não terá sucesso. Peço permissão para escolher meus próprios companheiros em Porto Alegre...

MAJOR: Pelo bem de nossos ouvidos, podes ir amanhã!

(Siá Gonçalves serve uvas, Vigário prova e diz:)

VIGÁRIO: Se já está tudo acertado, peço-lhe uma retribuição Major.

MAJOR: Pode falar meu bom e velho padre, depois que me arrumaste esse guri não há nada que eu possa
negar ao amigo.

VIGÁRIO: Pois bem, peço que me leve até o boqueirão, onde dizem que o senhor cultiva essas uvas
maravilhosas, as uvas do fantasma, tão famosas por esses pampas!

MAJOR: Está ficando louco padre? Não... Não, jamais. O boqueirão é um lugar asqueroso, de dificílimo acesso.
Eu mesmo só estivesse lá uma vez, há uns dez anos!

VIGÁRIO: Mas Major, tenho estudado muito esses pampas! Preciso verificar as condições cientificas do local,
quem sabe possamos fazer vinho com aquelas uvas maravilhosas? O vinho é santo, está nos Salmos, o senhor
não vai negar isso a Deus não é Major?

MAJOR: Ah tchê! Vou mandar encilhar os cavalos!

VIGÁRIO: IREMOS COM A PROTEÇÃO DE DEUS MAJOR.

(Brígida e Clara Vitória levantam)

BRÍGIDA comenta com clara: Esses dois caducos vão, mas não voltam.

(Brígida e Clara Vitória saem de cena)


(Major e Vigário caminham com muita dificuldade pelo palco, SENTINDO MUITO FRIO)

SOM DE VENTO

VIGÁRIO: Estranho não é mesmo, estamos a dois graus Celsius negativo.

MAJOR: Isso aqui é um lugar mui triste.

VIGÁRIO: Já andamos mais de duas horas.

MAJOR: É lá, a tapera onde fica o fantasma!

(vigário consulta o termômetro)

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VIGÁRIO: Menos 4 graus. (olha pra cima) nuvens baixas, pesadas... Bárbaro! E dizer que a pouco estávamos
no verão, Major! Coisas estranhas acontecem por aqui.

SOM DE ORQUESTRA

MAJOR: Padre, a orquestra! Vamos embora, vamos assistir ao ensaio.

VIGÁRIO: Tudo como no inicio dos Tempos, mas daí surgirá a Ordem. Ou a música. Batizo-a então de Lira
Santa Cecília, em homenagem a padroeira da música. Vou-me embora Major, vá apreciar tua música!

(Vigário e Major saem do palco, entra Maestro lendo partituras, com uma cara de dúvida)

MAESTRO: ROSSINI!

(entra Rossini apressado com muitas partituras, entrega algumas ao Maestro)

MAESTRO: Ah! Aqui estavam as partituras que me faltavam!

(Entra o Major)

MAJOR: Buenas Maestro! Já de volta?

MAESTRO: Sim, senhor. Aqui estão, Rossini e meus músicos, vieram de Porto Alegre, agora sim tenho o que
preciso!

MAJOR: Então toque! (Risadas de felicidade)

SOM DE ORQUESTRA

(Saem Major, Maestro e Rossini)

NARRADOR: Clara Vitória, a filha do Major, mal entrara na adolescência, já era uma dama.

(Clara Vitória entra em um lado do palco e começa a bordar)

NARRADOR: Seus dedos pálidos, quando levados para ajeitar um pouco a cascata dos cabelos, não faziam
contraste com a pele do rosto, e os olhos eram tão largos e verdes que ultrapassavam a fronte, projetando ao
ar pestanas abundantes e vibráteis. Os filhos dos estancieiros á volta afirmavam que morreria virgem, pois
ninguém teria a audácia de macular aquela inocência angélica – e casavam com outras. Para ela não mais
importava esses juízos levianos, nem esses matrimônios de varejo: se havia algo de certo na vida, que a
empolgava até latejaram as têmporas e doerem os ossos, fazendo com que perdesse a fome e até as
palavras, era a sua paixão pelo Maestro.

(Maestro entra em outro lado do palco, escrevendo partituras. Clara fica olhando para ele)

NARRADOR: MAS NENHUMA PAIXÃO É SURPRESA PARA SUAS VÍTIMAS.

(Entram Brígida e Major)

Clara Vitória: Como pode? Um homem com má educação ser Maestro! Senta-se de pernas cruzadas igual a
um carroceiro. É uma tortura essa música, chega a doer nos ouvidos.

Major: Vocês estão gostando essa maravilha?

Brígida: Que maravilha? Quem vai perder tempo escutando essas bobagens?

Major: Nós, os vizinhos, ora. E toda essa gente que chega por aqui, e se não chegarem, eu convido. Isso! Um
concerto! Vou dar um concerto! E deveria me agradecer Brígida, ótima oportunidade de convidar Silvestre,
futuro noivo de Clara Vitória.

(Clara Vitória levanta pega uma vassoura e começa a varrer a parte da frente da casa.)

Brígida: Mas e com essa música? Com esse Major insolente? Não confio nesse negro...

Major: Negro não, mulato! Tudo é mulato, lá pra cima no Brasil.


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Brígida: Pois pior, muito pior! Aqui no Sul é como Deus fez: ou é negro e é escravo, ou é branco e homem
livre. Mulato é uma coisa que não se entende.

(Ficam em silêncio. Clara Vitória, varrendo, encontra maestro.)

MAESTRO: Se não se importasse, poderia varrer em outro lugar, para que possamos ensaiar aqui?

CLARA: O serviço não vai parar por sua causa!

MAESTRO: Como queira, senhora.

(Saem Major e Brígida de cena, Clara Vitória volta para o outro lado, senta-se emburrada)

MAESTRO: (imitando clara vitória) O serviço não vai parar por sua causa! Tenta ser rude, mas és tão doce...
Ah menina!

(Maestro começa a tocar uma música no violão, Clara Vitória vai até o quarto dele)

CLARA VITÓRIA: Senhor, eu ouvi uma música, uma linda música e resolvi vir v...

MAESTRO: É uma canção que eu fiz para uma moça.

CLARA: E quando vamos escutar a canção?

MAESTRO: Logo que a moça me quiser ouvir.

(Maestro pega na mão de clara vitória e ela sai correndo do palco. Rossini entra no quarto).

ROSSINI: O pão é uma merda, mas o café é ótimo aqui no sul.

MAESTRO: hã?

ROSSINI: É Maestro, as damas são as estrelas do anoitecer...

(Apagam-se as luzes)

SOM DE ORQUESTRA (esmaecendo)

MAJOR: Venham dançar com minha orquestra! Venham!

(Todos dançam, menos Clara que fica parada à frente, pensando)

NARRADOR: Aquele era mais um concerto dentre tantos outro que o Major já tinha oferecido a seus amigos e
vizinhos. Dona Brígida não reclamava tanto, pois Silvestre comparecia a todos eles, e assim ficava mais perto
de sua noiva, Clara Vitória. O que não ficou muito claro, até para você meu caro ouvinte, é que havia tempo,
todas as noites, Clara Vitória saía da cama, apagava a vela e como uma sombra entre as sombras, se
esgueirava para dentro do quarto ao lado e deitava-se com o Maestro, até alta madrugada.

(Silvestre pede a mão de Clara para dançar)

SILVESTRE: Ora meu amor, lembra que eu te disse a poucos dias que tu estavas cada dia mais gorda e sem
motivos ficaste ofendida com meu elogio? Pois hoje digo que pareces uma rosa, continuas gorda, mas uma
linda rosa gorda.

CLARA: E tu, um tordilho vinagre!

(Continuam dançando, silvestre pisa no pé de clara, ela reclama. De longe maestro e Rossini observam.)

(A música acaba e todos batem palmas e saem. Permanece Clara no palco, nervosa e enjoada)

NARRADOR: Clara Vitória tem de se levantar para ir à janela, sorver o ar fino e engolir aquela espécie de
amargor que lhe vem à garganta a qualquer momento, desde que se soube grávida.

CLARA (vomita): Desgraçada que sou! Uma puta, desgraçada, desgraçada, uma puta! (vomita)
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(entra em cena discretamente Siá Gonçalves)

SIÁ GONÇALVES: A senhora está bem, moça?

(Clara faz que não com a cabeça)

SIÁ GONÇALVES: Por quê?


CLARA: É o Maestro... (passa a mão na barriga)
SIÁ GONÇALVES: (com a mão na barriga de Clara) A menina deixou passar muito tempo. Isso agora só
rezando...
CLARA: Está bem, mas não conte para ninguém!

(Sai Siá, entra Brígida, Major e Vigário. Clara continua com cara de enjoada)

MAJOR: Mas o que tem essa menina?

BRÍGIDA: Nada, é a preocupação com o enxoval.

CLARA: Não estou me sentindo bem, peço licença.

(Clara vai mais para frente do palco e Vigário segue-a)

CLARA: Já estou melhor padre.

VIGÁRIO: Melhor ficará se me contar o que está acontecendo.

CLARA: Eu, eu estou grávida... (chora no colo do vigário) Do Maestro padre, do Maestro!

(Vigário fica espantado e consola Clara)

(Clara sai de cena e Vigário volta para o centro do palco onde estão Brígida e Major)

VIGÁRIO: A menina está bem, por ora.

MAJOR: Estão ensaiando. Vamos lá?

VIGÁRIO: Quer saber? Ás vezes o Maestro me aborrecer. Passei a me sentir mal quando vejo. Sei, vai dizer-
me que há pouco eu o elogiava. Mas a gente muda. Sabe, estive pensando... Quem sabe casemos logo a
menina. Quando digo logo, digo daqui a umas duas semanas.

MAJOR: As famílias às vezes encurtam o casamento, mas só as famílias sem moral, e quando a noiva já se
desgraçou.

VIGÁRIO: Talvez seja o caso.

MAJOR: Cuidado, Vigário, o que está me dizendo?

VIGÁRIO: Não é o que o senhor está pensando. Ela sim si desgraçou, como o senhor diz, mas de puro amor.
Tudo o que ela sente essas perturbações dos humores que o senhor viu no almoço... É preciso que se case já.

MAJOR: Jamais. Não vou passar essa vergonha. Filha minha, mesmo com essas tais perturbações dos
humores, se casa direito, com proclamas e no tempo certo. Ou é assim ou é nada. Peço que o senhor não
toque mais no assunto.
- Tem certeza que não quer ouvir a orquestra?

VIGÁRIO: Não, preciso chegar cedo em casa...


MAJOR: Eu acompanho o senhor...
(Vigário e Major saem de cena. Clara entra e entrega os bordados para mãe. As duas bordam)

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NARRADOR: D. Brígida estava com as idéias inflamadas. A filha mantinha-se como nos últimos dias, no
estado lastimável de quem não dorme, a todo instante lançando um olhar mortiço para fora, para o campo,
dando um suspiro que vinha das imensidões da alma intranqüila. Hoje D. Brígida perdia toda a desenvoltura
diante da filha. Aquela conversa do Vigário fora muito estranha, o que ele estaria escondendo? Sentia-se
paralisada, como se o céu se abrisse e Santo Antônio lhe soprasse nos ouvidos, um pensamento fantástico
passou pela sua cabeça.

(Brígida arregala os olhos e joga o lenço pra cima)

BRÍGIDA: VOCÊ ESTÁ GRÁVIDA!

(Clara levanta a blusa e mostra-lhe o ventre)

BRÍGIDA: Miserável (tapa na cara) Era isso! Enquanto eu ficava aqui como uma boba, vocês se refestelavam
como cachorros, você e Silvestre! (Clara cai no chão, e Brígida dava pancadas mais fortes) E eu ainda mandei
de fossem passear, louca que eu era!

(Entra siá Gonçalves e tenta segurar D.Brígida)

GONÇALVES: Para Dona! Assim você mata a menina!

BRÍGIDA: É isso que ela merece! Alguém que eu pari e criei, agora me faz isso! Ainda faço uma loucura. Ah,
seu pai vai ficar sabendo! Saia daqui! Gonçalves chame o Eleutério, já!

(Clara sai correndo. Siá Gonçalves sai. Entra Major)

MAJOR O que houve?

BRÍGIDA: Nossa filha GRÁVIDA, GRÁVIDA! O que vais fazer?

MAJOR: O que devo. Clara Vitória!

(entra Clara apoiada da Siá)

MAJOR: É a última vez na vida que tu me vê. Brígida arrume as coisas dela!

BRÍGIDA: Para onde ela vai?

MAJOR: Vai para a tapera, lá no boqueirão.

(Major e Brígida ficam num canto do palco. Siá e Clara vão para outro)

CLARA: Quanto tempo alguém consegue ficar vivo no boqueirão?

GONÇALVES: Antes de perguntar bobagens, a senhora deve contar para D. Brígida que o Maestro que é o pai
da criança. E contando para sua mãe, a senhora salva o Silvestre!

CLARA: Não vou contar para a minha mãe, nem para ninguém. (Segura as mãos da ama) Jure que vai dizer
para o Maestro voltar para Minas Gerais.

GONÇALVES: Que conversa sem fundamento. A senhora vai logo sair do boqueirão e dizer isso pra ele.

CLARA: Quanto mais tempo eu ficar, melhor para o meu amor.

GONÇALVES: Ah menina... Vamos.

(Siá passa com Clara e uma maleta)

BRÍGIDA: O que está fazendo?

MAJOR: Não se meta!

BRÍGIDA: Como não? Para com isso. Largue ela!

MAJOR (pegando Brígida pelos ombros): Eu disse para não se meter!


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(Sai Siá e Clara do palco)

MAJOR: É ISSO QUE ACONTECE COM AS PUTAS! E DE HOJE EM DIANTE NÃO SE FALA MAIS NELA NESTA CASA!

(Sai Major e Brígida)

NARRADOR: Desde a hora em que percebera Clara Vitória desaparecer na porteira, o Maestro entregara-se a
um atoleiro de remorsos.

(entra Maestro com Siá)

NARRADOR: Pudera imaginá-la pálida de desespero, a procurá-lo entre aqueles rostos mortificados, a
chamar em silêncio pelo seu nome. Tentou ir ao boqueirão, mas o Major havia posto vários de seus homens
bloqueando a passagem. Agora o Maestro começava a levar em consideração o pedido de Clara Vitória,
porém não ia voltar Minas, iria para Porto Alegre.

MAESTRO: Vou embora, eu amo a menina, mas devo ir. O Major enlouqueceu, não há mais o que fazer, vou
para Porto Alegre. Rossini irá comigo.

GONÇALVES: Tu já deverias ter feito isso. E deixe a menina comigo. Ela está bem, e quando acontecer o bom
sucesso, vou estar junto dela.

(abraça a escrava e os dois saem de cena.)

(Entram Vigário e Silvestre.)

SILVESTRE: Não espere nada de mim Padre. Vim só dizer que vou embora. Tenho ainda campo em São
Gabriel e Alegrete , o senhor sabe.

VIGÁRIO: O que aconteceu, como tudo terminou assim?

SILVESTRE: Um homem não pode ser humilhado dessa forma. Só não abati o Major porque não sou covarde
de matar um velho.

VIGÁRIO: E Clara Vitória?

SILVESTRE: Não quero mais ouvir falar nela.

VIGÁRIO: Ela está sendo vítima de uma injustiça.

SILVESTRE: E cabe a mim reparar? Eu não quero mal a ninguém. Nem a Clara Vitória. Adeus.

VIGÁRIO: Vá em paz.

(Sai Silvestre, entra Major)

VIGÁRIO: Bom dia Major. (estende a mão e não obtém resposta.) É uma desumanidade tudo isso, você deve
acabar com essa falta de cristianismo. A menina não pode ficar sem os sacramentos. Tu não podes abandoná-
la!

MAJOR: Que sacramentos? Que menina?

VIGÁRIO: Clara Vitória. Sua filha.

MAJOR: Padre, nossa amizade terminou hoje, proíbo o senhor de voltar aqui.

VIGÁRIO: Se assim desejas, assim será. Meu dever me obriga a dizer que se acontecer alguma coisa com a
menina, o senhor será o culpado. Não se deixa ninguém sem o conforto espiritual. Depois, não me procure
para o perdão.

(Saem de cena Major e Vigário. Clara Vitória entra, atira-se no chão e começa a ter as dores do parto. Siá
entre em cena)

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GONÇALVES: Menina, vim trazer comida e... SENHORA!! (ajuda no parto)

GONÇALVES: (com a criança no colo): É uma menina! E pesada. Agora está livre. Vou levar a criança para
estância, pois uma negra que deu à luz e pode dar o peito pra ela.

(Clara faz gesto de que quer ver a criança. Siá mostra a menina.)

CLARA: Bonita.

GONÇALVES: Bobagem. Nenhum recém-nascido é bonito. E vai ter a cor do pai. Venha, te ajudo a voltar para
a tapera.

(Sai Clara e Siá. Entram Maestro e Rossini)

NARRADOR: O Maestro desde que chegara em Porto Alegre caiu de um mal indecifrável, tinha febres que o
prostravam como um moribundo. Recusava-se a sair da cama, Rossini observava seu doente: um lenço de
cambraia, encharcado por suor maligno, modelava as formas do rosto, não falava nada, e o peito mal se
movia numa respiração curta e angustiada.

MAESTRO: Será que Clara Vitória está vendo este céu lindo?

ROSSINI: Ah homem, não vá morrer em minhas mãos que nem dinheiro para o enterro eu tenho.

MAESTRO: O que me diz, será que ela ainda pensa em mim? Será que ainda está viva?

ROSSINI: Decerto. Primeiro: as mulheres não morrem. E a prova é que no mundo só há viúvas e não viúvos.
Segundo: as mulheres não esquecem. Para a alegria e tragédia dos homens.

MAESTRO: Quero voltar Rossini, não agüento mais... Vamos voltar!

(Rossini dá um tapinha nas costas do Maestro. Os dois saem. Entra Major e Gonçalves)

MAJOR: Gonçalves, meus músicos voltaram! Deixe a casa toda arrumada para o grande concerto de amanhã:
a volta da Lira de Santa Cecília e meu aniversário. Mande as cozinheiras preparem as uvas! Todos os vizinhos
vão comparecer.

MAJOR: Dia bom, vem bastante gente para o concerto. Traga mais vinho Siá!

(Major bebe e aguarda...)

MAJOR: MERDA, onde estão todos?

SOM DE TEMPESTADE

MAJOR: Eles me abandonaram sim, todos eles. Ignoraram tudo que eu já fiz por eles e por suas porcas vidas.
Eles não são capazes de entender nada e por isso se vingam agora, usando motivos cretinos. CRETINOS
COMO SÃO!

(Major vai para frente do palco)

MAJOR: Boa tarde seus cretinos, vieram ouvi da minha boa música seus porcos? Podem sentar, à vontade.
Sabe quem é o culpado de tudo isso? Foi Deus que os fez tão medíocres, tão mesquinhos... Seus porcos
imundos!

BRÍGIDA: E tu esperavas que viesse gente, depois das coisas que fez?

MAJOR: Olha quem está falando... Deixe-me só!

BRÍGIDA: À vontade.

MAJOR: Tu não vens?

BRÍGIDA: Vou, mas vou é embora!

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MAJOR: Pois vá duma vez criatura dos diabos. VAMOS TER CONCERTO! Adiante!

MAJOR: Toquem uma música alegre que eu quero dançar! (Major pega Gonçalves e obriga-a a dançar,
caindo, tropeçando...)

NARRADOR: Como coisa de outro mundo, começaram a cair gotas escuras e viscosas, que varavam o ar e
projetavam-se nos rostos.

GONÇALVES: SANGUE! SANGUE! PELO AMOR DE DEUS MAJOR!

MAJOR: Tu falas em Deus, mas a onde ele escondeu os meus convidados? Apreciem, seus porcos!

SOM DA MORTE DO MAJOR

(MAJOR SE DÁ UM TIRO. Maestro segura Major, apavorado. Rossini bate palmas.)

ROSSINI: ... Final feliz! Vá meu amigo! Antes que as cortinas desse amor se fechem!

(Apagam-se as luzes, todos saem de cena)

NARRADOR: No boqueirão, o céu, um cristal translúcido, exibia abertas de luz. Toda atmosfera respirava um
novo ar, pássaros de bom tempo giravam nas alturas, descrevendo arcos de felicidade, e o arroio voltava a
correr.

(Acende-se a luz com Clara no meio do palco)

NARRADOR: Ela foi até a margem, tirou a roupa e lavou-se. Estava assim, meio submersa, refrescando-se na
delícia da tarde, quando sentiu que alguém vinha em sua direção, atravessando as águas. E logo soube quem
era, sempre saberia dali por diante, pelos anos afora: não precisou cobrir-se, nem correr de vergonha, apenas
abriu os braços e entregou-se ao primeiro beijo de todos os beijos de sua longa vida.

SOM ALEGRE DE REENCONTRO

(Entra Maestro e abraça Clara. Fecham-se as cortinas)

NARRADOR: A história da moça abandonada no boqueirão me foi contada por uma amiga, a escritora Hilda
Simões Lopes, e aconteceu no século passado, nos campos de sua família. É, portanto uma história real, o que
lhe dá certa nota picante; mas aqui, como em todas as realidades, a fantasia ocupa lugar do trivial e do
desconhecido – e isso é apenas uma homenagem a literatura.

(Abrem-se as cortinas, todos agradecem)


FIM

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