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Disciplinas e Interdisciplinaridade

Há décadas professores e educadores em geral procuram formas de superar a fragmentação do


conhecimento provocada pelo olhar acadêmico disciplinar na Educação Básica (Educação Infantil,
Fundamental e Ensino Médio). No segmento de 5ª a 8ª série e no Ensino Médio essa
fragmentação se torna ainda mais profunda, com professores de formações e visões educativas
diferentes trabalhando com os mesmos alunos. Superar essa fragmentação, tornando a
aprendizagem um processo significativo para crianças e jovens, é um desafio que procuramos
superar em nosso cotidiano de sala de aula.

Quais as condições necessárias para encarar tal desafio? Como podemos planejar e desenvolver
nossas práticas educativas de modo a superar, ainda que parcialmente, a fragmentação do
conhecimento? Como evitar a velha pergunta "professor, por que eu preciso aprender isso?",
tantas vezes ouvida por nós professores, tantas vezes formulada por nós mesmos no tempo em
que éramos alunos? Como superar a fragmentação do conhecimento em uma instituição escolar
cujo horário de funcionamento é um reflexo dessa própria fragmentação?

:: Conhecimento científico e conhecimento escolar

Para responder a essas questões devemos começar fazendo uma


distinção importante: diferenciar as finalidades entre o conhecimento
científico e o conhecimento escolar. Para o estudante as disciplinas
acadêmicas "não devem ser o objeto de estudo, mas sim o meio para
obter o conhecimento da realidade".

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) estabelece que a


educação básica deve assegurar ao educando "formação comum Ilustração: Michele Iacocca
indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em
estudos posteriores". Para que essa formação se concretize, a mesma LDB estabelece, nas
finalidades do Ensino Médio, "a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos
processos produtivos, relacionando teoria com a prática, no ensino de cada disciplina".

Estes trechos da LDB foram escolhidos para dar início a uma reflexão sobre o papel das
disciplinas científicas na educação básica do estudante. Essa reflexão é necessária por um
motivo que não pode deixar de ser considerado desde o início: as universidades brasileiras
escolhem seus estudantes por meio de uma prova de seleção que tem como conteúdos
principais os conhecimentos próprios das disciplinas científicas. As provas que constituem os
vestibulares exigem que os estudantes tenham conhecimentos próprios das disciplinas
acadêmicas, em um nível de detalhe muito exagerado. Essa hipertrofia dos conhecimentos
disciplinares acadêmicos tornou-se uma imposição que se reflete em todo Ensino Médio,
chegando mesmo às séries finais do Ensino Fundamental. A principal conseqüência desse
processo é a confusão que se estabelece entre as finalidades do conhecimento científico e as
finalidades do conhecimento escolar.

De acordo com o texto da LDB, um cidadão que termina a Educação Básica deve ter a
capacidade não só de compreender os fundamentos científico-tecnológicos dos processos
produtivos, mas também, de aprimorar-se como pessoa humana, incluindo [...] o
desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico. Ou seja, ao terminar a
Educação Básica, o educando deve ter autonomia para, compreendendo os fundamentos
científicos e tecnológicos dos processos produtivos, posicionar-se criticamente com relação aos
investimentos em ciência e tecnologia que o país faz, utilizando os recursos conseguidos por
meio dos impostos. No entanto, a hipertrofia dos conhecimentos disciplinares promovida pelos
exames vestibulares, impede que a Educação Básica cumpra sua real tarefa.
"Você é capaz de visualizar imagens? Então pense no senso comum como as pessoas comuns. E
a ciência? Tome esta pessoa comum e hipertrofie um dos seus órgãos, atrofiando os outros.
Olhos enormes, nariz e ouvidos diminutos. A Ciência é uma metamorfose do senso comum. Sem
ele, ela não pode existir. E esta á a razão por que não existe nela nada de misterioso ou
extraordinário".

:: Educação unificadora ou fragmentária

Já na antiga Grécia, os filósofos se preocupavam com uma educação que fosse unificadora dos
conhecimentos, procurando o desenvolvimento do indivíduo como um todo. Essa tradição se
manteve até o surgimento da Ciência moderna. A partir do século XVIII, com o desenvolvimento
da Física, da Química e da Biologia, começa a haver uma preocupação em distinguir o que
seriam as ciências naturais dos conhecimentos ligados às produções humanas.

"Essa unidade de conhecimentos é quebrada definitivamente quanto Napoleão, em 1808,


organiza o sistema de ensino da França criando a Universidade Imperial, na qual pela primeira
vez na história diferenciam-se as faculdades de letras e as faculdades de ciências. Essa
concepção estende-se a todo o mundo ocidental, formando, assim, uma diversificação
intelectual ao criar a necessidade entre os alunos de escolher entre a cultura literária e a cultura
científica, já que cada uma dessas culturas é separada da outra. Tal compartimentação do saber
provoca o seguinte: um setor considerável do campo epistemológico é construído como se o
outro não existisse".

Essa divisão do conhecimento em dois campos distintos repercutiu na educação dos jovens
muito intensamente. Para se ter uma idéia, até o ano de 1971, no Brasil, havia dois cursos que
correspondiam ao atual ensino médio, seus nomes eram
Clássico e Científico. A escolha entre um ou outro era feita
em função da carreira profissional que o estudante
almejava. Escolhia o Clássico quem pretendia fazer Letras,
Direito, Sociologia e áreas afins. Escolhia o Científico
quem ia estudar Engenharia, Medicina, Física, Biologia,
etc.

Atualmente, a educação escolar vive um dilema: precisa


se transformar para atender as reais necessidades de Ilustração: Luiz Maia
formação dos cidadãos brasileiros, cumprir sua finalidade de assegurar ao educando formação
indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e
em estudos posteriores. Porém, é compelida a manter uma rotina de aulas expositivas voltadas
a conteúdos que são determinados quase imperiosamente pelas disciplinas acadêmicas. Há uma
identificação entre conhecimentos escolares e conhecimentos científicos, quando, a rigor, estes
últimos deveriam se constituir a fonte e o meio para a compreensão da realidade.

Apesar dos grandes esforços empreendidos pela sociedade brasileira com relação à
democratização da educação escolar, esta tem ocorrido apenas no que diz respeito ao ingresso à
escola. Podemos dizer que no Brasil, atualmente, 97% das crianças em idade escolar conseguem
ingressar no sistema educacional. No entanto, essa possibilidade de ingresso não se concretiza
em formação escolar, pois a maior parte dos alunos que inicia a 1ª série do ensino fundamental
não chega a terminá-lo.

Esse enorme desastre tem como uma de suas principais causas o fato de que, apesar de
permitir a entrada de todos, a escola continua funcionando de acordo com a mesma concepção
de educação que possuía em décadas anteriores: o ensino praticado em nossas escolas continua
sendo propedêutico e seletivo.

Ensino propedêutico é aquele organizado com o único objetivo de levar o aluno a um nível mais
adiantado. É sempre um ensino preparatório. A educação infantil prepara para o ensino
fundamental que, por sua vez, prepara para o ensino médio. Este prepara para a universidade.

Ensino seletivo é aquele voltado à escolha dos melhores. Os que conseguem fazer as provas, os
que conseguem aprender sem precisar de ajuda específica, os que já vêm "preparados de casa".

Nossa escola atual não pode selecionar quem entra, mas seleciona quem pode ficar. Fica quem
tem condições de agüentar o difícil caminho de aprender os conteúdos científicos tornados uma
quantidade enorme de informações. Uma escola na qual aprender é quase sempre sinônimo de
"ter decorado".

Essa escola continua, portanto, seletiva e propedêutica, porém, suas finalidades (ao menos em
intenção) mudaram, ela precisa ser uma escola democrática. Uma escola que, além de preparar
os cidadãos para a vida democrática, seja o principal agente de democratização do saber em
nossa sociedade.

A construção de uma escola democrática passa, necessariamente, pelo rompimento com essa
visão "seletiva e propedêutica", e uma das formas de
empreender essa construção é desenvolver um ensino
interdisciplinar. Um ensino no qual as atividades de
aprendizagem dêem prioridade à capacidade de pensar os
problemas reais que afligem a sociedade, problemas esses
que não pertencem a uma disciplina específica e que para
serem resolvidos precisam dos conhecimentos científicos
disciplinares.

Falando de forma mais direta. No ensino de ciências da Ilustração: Luiz Maia


natureza devemos valorizar o aluno que sabe a lista de
raízes comestíveis de cor, ou o aluno que ao ver uma mandioca se pergunta "Isso é uma raiz ou
um caule? Em que fonte de informação eu poderia tirar essa dúvida?"

O ensino interdisciplinar deve ser uma preocupação permanente em todas as atividades


propostas pelos professores a seus alunos. Para isso, é importante ter claro as diversas relações
que podemos estabelecer entre os conhecimentos das diversas disciplinas acadêmicas:
Lingüística, Literatura, Matemática, Biologia, Física, Química, Astronomia, Astrofísica, Geologia,
Geografia, História etc.

"No campo do ensino, pode-se dizer que:

• A multidisciplinaridade é a organização de conteúdos mais tradicional. Os conteúdos


escolares apresentam-se por matérias independentes umas das outras. As cadeiras ou
disciplinas são propostas simultaneamente sem que se manifestem explicitamente as
relações que possam existir entre elas. [...]
• A pluridisciplinaridade é a existência de relações complementares entre disciplinas
mais ou menos afins. É o caso das contribuições mútuas das diferentes "histórias" (da
ciência, da arte, da literatura, etc.) ou das relações entre diferentes disciplinas das
ciências experimentais. A constituição dos diferentes departamentos do ensino médio é
um possível exemplo de pluridisciplinaridade.
• A interdisciplinaridade é a interação de duas ou mais disciplinas. Essas interações
podem implicar transferências de leis de uma disciplina a outra, originando, em alguns
casos, um novo corpo disciplinar, como, por exemplo, a bioquímica ou a psicolingüística.
Podemos encontrar essa concepção nas áreas de ciências sociais e experimentais no
ensino médio e na área de conhecimento do meio do ensino fundamental.
• A transdisciplinaridade é o grau máximo de relações entre disciplinas, de modo que
chega a ser uma integração global dentro de um sistema totalizador. Esse sistema
facilita uma unidade interpretativa, com o objetivo de construir uma ciência que explique
a realidade sem fragmentações. Atualmente, trata-se mais de um desejo do que de uma
realidade. De alguma maneira, seria o propósito da filosofia. Dentro dessa concepção, e
descontando as distâncias, poderíamos situar o papel das áreas de educação infantil, em
que uma aproximação global de caráter psicopedagógico determina algumas relações de
conteúdos com pretensões integradoras.
• A metadisciplinaridade, como dissemos, não implica nenhuma relação entre
disciplinas. Ela se refere ao ponto de vista ou à perspectiva sobre qualquer situação ou
objeto, mas não é condicionada por apriorismos disciplinares. Na escola, deveríamos
entende-la como a ação de se aproximar dos objetos de estudo a partir de uma ótica
global que tenta reconhecer sua essência e na qual as disciplinas não são o ponto de
partida, mas sim o meio de que dispomos para conhecer uma realidade que é global ou
holística. De alguma maneira, podemos situar nessa visão os denominado eixos ou
temas transversais."

Pensando nessa metadisciplinaridade, podemos afirmar que muitos "objetos de estudo" podem
ser selecionados por professores e alunos de uma escola. Exemplos: a produção e o destino do
lixo em uma cidade (na própria escola ou no bairro em que ela se encontra); o controle de
epidemias transmitidas por insetos na região em que se situa a escola; a produção e distribuição
de energia no país e os problemas que levaram ao risco de "apagão" no ano de 2001. Questões
amplas como essas podem desencadear um trabalho pedagógico interdisciplinar. As reflexões
sobre suas possíveis soluções levam à eleição dos conteúdos disciplinares que precisam ser
compreendidos para que as soluções possam ser construídas, tornando então as disciplinas "o
meio que dispomos para conhecer uma realidade que é global ou holística".

Texto original: Vinicius Signoreli


Edição: Equipe EducaRede
Os sites indicados neste texto foram visitados em 07/10/2003

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