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:

A
TEORIAS ACUMULADAS

a palavra é trabalho do espanto


que a gerou, gira sobre o falso e o real
que o mundo
gesta
diante e por trás da porta
de sua curta existência: assim, a palavra

CASCA DA IRA
DARLAN M CUNHA
poemas

Editora VOORARA
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A CASCA DA IRA
Darlan M Cunha
poemas
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Título: A CASCA DA IRA

Autor: Darlan M Cunha

Editora VOORARA. Belo Horizonte / Rio Acima, MG, Brasil

Arte gráfica do Autor.

Novembro 2009
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A CASA DA SOMBRA GUARDADA: O DESERTO


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A CASA DA SOMBRA

Subjugada está a sombra nesta casa


próxima de onde beis e tuaregs
saíram das suas para outras dunas e tendas
domarem, por força

das raízes da fala e da adaga.

Vive calado, mas fundo na sua memória


de água e sal o que essa casa – hoje, deserto - foi: mar, mar
que ainda planeja, enquanto desfia inquieto
sono, reaver-se, mas guardada está
sua herança, pelas raízes do que lhe desfez

a fala: as adagas dessa tribo solar.


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9

O DESERTO 1 - Caligrafia(s) do Deserto

Melhor é ler com cautela a caligrafia do pó, os rumos de quem


busque uma fictícia ramagem por trás das dunas, cascas
de tempo e cascavéis desfiando
guizos nas tendas uniformes, pensamentos díspares revolvendo
céu e terras, mas na outra

mão da vida
há mais areal. Sapiência é estar morto, se morto estás, se morta
está a convicção, porque também o deserto reparte
a sua mobilidade, assim

melhor estudar melhor o que há sob o nó górdio


das caligrafias, porque ovos ainda há sob o chapéu das estações.
10 :
O DESERTO 2 - Mãos cheias de luas

fracos reflexos no areal, já que não vai senão a meio


a lua cantando baixo, descansando
em seu itinerário
saárico, de leve, a guerreira leva o pote de areia
aos seios, sabe
que lá é lugar de se perder, pensa em que desertos tornaram-se-
lhe

os seios, as mãos, o pensamento


11 :
O DESERTO 3 - Mãos cheias de sabores

ecos no deserto advertem que servidos já foram


o ócio e a suspeita, quase íntimos
do que os possa mais absorver, aderem
ao fio de esperança os nômades, pelo que há muito tempo (parece)
o pavor
não mora em lugar

algum, pelo menos

não perto daqui, de quem não comete mais


do que apenas alguma ressalva à permanência roaz
da insônia, que é duro o encostar-se

numa duna, e não sonar


12 :
O DESERTO 4 - As montanhas desfeitas

ficou no areal
entre as dunas ficou
o amor, e já não se sabe,
de soslaio ou de frente,
o que é o semblante futuro
do amor, e o que é sabor
de antigas montanhas
de granito, feitas pó
13 :
O DESERTO 5 - A perda do reino

a garganta do diabo
é o deserto, folia de reis e beis,
guerreiros e pastores nômades,
devassidão solar
assopra as patas dos répteis
misturados ao silêncio, correndo
cada vez mais
de sua loucura irreversível, única,
amada e temida pelos deuses,
que o deserto é a conta
maior que se tira

em vida
14 :
O DESERTO 6 - Fila indiana de formigas

andam rápido
porque o deserto requer sabedoria
especial

para se lidar com ele, o inferno exije


pompa, para que contigo possa ele perder
algum dedo de prosa eterna
15 :
O DESERTO 7 - Gente no meio do caminho

o areal move-se feito gato


escaldado, rastejante bicho humilhado por ser
somente

enorme cordilheira de granizo


esfacelada, chora

o deserto mia feito gente, chora


feito gato
16 :
O DESERTO 8 - A moeda

e porque o deserto não admite confrarias, trustes ou exorcismos,


nada nele se faz

sem o aval da morte lídima, morte em vida cristalina, ora,


perguntar-lhe pelo poder de compra e venda ? ao deserto ? não.

no deserto (cinema
rude, mudo) só há uma moeda

(dizem que jesus ficou por lá


40 dias e 40 noites, mas o cacife dele logo acabou-se na jogatina
de compra e venda de almas)
17 :
O DESERTO 9 - Uma sensação conflitante mói o deserto

cansado de abraçar nuvens perdidas, chora


suas luas o deserto, desancado, filtra
paz nas formigas, mas
ama a teimosia
em suas pernas e sexos (dois
sexos travam e destravam o deserto)
18 :
O DESERTO 10 - O bilhete do invasor

Sinto muito que a vida tenha sido deserdada demais


por mim, com seus encargos psíquicos, membranas distendidas
ou recolhidas ao fogo do deserto, aos pruridos
do desespero que é a solidez da solidão que sobre todos se
espraia, como, numa praia,
um solitário bêbado que acorda todo assado pela vida

e pelo sol; por isso

e por muito mais, sinto muito que a vida tenha sido demais
para mim que, nada tendo apostado com ela, com ela deixo as
sementes
do seu próprio fruto, eu, que pelas invasões prosperava,
mas que, de verdade, o fruto-base (eu mesmo) não vingou, tornado
algo torto e feio como o olho de cima do linguado.
19 :
O DESERTO 11 - Baobá

premissas e promessas do mundo, baobá,


não atravessam bem o deserto, graves e inúteis
e agudos são os remorsos do mundo
procurando guarida
onde a cascavel almoça em silêncio a sua destreza,
onde expõe seus grãos de medo
cada rato

não, do mundo não queremos notícia,


que os ombros do deserto são as dunas, e as ancas
o seu movediço palácio onde só os camelos
e seus amos e amas sabem sob que horizonte
armam suas tendas
20 :
O DESERTO 12 - Deus, Diabo, Dados

sob promessas de luz


(quem mais falso:
Fausto ou Mefisto ?)
o olho pressente úmida
a trilha fechando-se
sobre seu entorno, trono
manchado de sangue,
todos os bichos
viventes no olho do deserto
redobram a guarda
nas dunas: deus
e o diabo jogando dados
21 :
O DESERTO 13 - Wrestling the ghosts of History ?

pele negra, desértica herança, quente e áspera é a pele


da desrazão que o deserto faz incidir sobre os perdidos
em seu longuíssimo véu, longo é o céu
da boca do deserto, de sua argúcia
não se leva nada, a não ser a música que de suas dunas
nos chama para com elas dançar
e ficar
22 :
O DESERTO 14 - Instrumentos para a música das dunas

Ter nomes trocados ? isto se pode, mas se ninguém tem a senha


de onde o deserto guarda flores e asas, então, o que há
de novo ?

a mulher ainda é o que há


de novo, é assim

ela sabe ser instrumento: toca o alaúde e a ventania


de dedos desviados do inicial
objetivo

esterilizados e ávidosestão os homens, indo


aonde haja no interior da gente
mais opções de venenos, dunas e tempestades

de areia e de palavras, que o deserto


medra, e deves com ele haver-te (como fugir, amor, do que mói
tíbios e fortes ? de sectários sermos, se as marcas nas dunas
são nossas pegadas, marcadas pelo eterno e seu dorso de
enganos ?)
23 :
O DESERTO 15 - Pólen

antigo é o pólen
ciência de ir
pelo ar ou
no bico de alguma des-
conhecida vazão viaja
o pólen assando os
miolos da razão
até pousar num deserto
e florescer, nu
de qualquer eu, nu
24 :
O DESERTO 16 - A adaga fala

longas batas e barbas hirtas,


hordas lascivas vieram aqui
(bispos, políticos, soldados)
ao deserto vieram histéricas
(princesas e outras atrizes)
pregar amores pelo vil garrote,
metálico estupor, vieram, mas
desaforos de adagas levaram
(sem nenhuma exceção)
do deserto onde todo sacrifício
é natural como tudo aqui é:
o exato meneio da camela
sobre a qual, desde sempre,
vê o horizonte o nativo das dunas
25 :
O DESERTO 17 - Sonhar ação

sonhar é dos bichos


homens e mulheres
apenas vivem o comum
sem sonharem
porque sonhar é algo
cheio de areia e vida,
sabem disso ambos:
o nativo e a sua camela,
e lá vão eles
fazer pegadas nas dunas
do amanhã, nunca
nas pegadas de ontem,
sonhar é dos bichos
26 :
O DESERTO 18 - Ecos de um lagarto

o grande amarelo arrasta seu fascínio


estelar, mas inerte está o lagarto, o qual talvez se pergunte
“o que há de mais solar

do que, às tantas da desértica noite, o nativo lutar


com o vazio legítimo e saudável
da respiração

de sua camela,
já toda ela, assim como o seu dono, incendiada
pelo calor que sobe noturnamente das dunas onde repousam
as ancas ?”
27 :
O DESERTO 19 - A raiz da fala

treva não é ele

o deserto é
manta

nunca treva

ó Atacama, tu me desejas
sobre a tua cama: nu

branco de sal e saudades, só


ossos

num trevo de cinco


grãos de areia
28 :
O DESERTO 20 - O Nada

tudo no deserto tem mil


milhões de tempos, arde
em cada grão o antigo, o sexo
de seus pais (rochas diluídas)
arfa neles, arde neles
uma sede antiga
de mar, foi mar o que hoje é mar
de areia, arena, areal, sinônimo
de agruras e silêncio
em seu estado puro, difere
da água de bica, antônimo
de fácil é o Grande Areal,
ativa-se sobre o teu ativo
de invasor, ludo e leis pessoais e
intransferíveis, tudo no Nada
tem mil milhões de provas
duras como o granizo e o silêncio
29 :
O DESERTO 21 - Tâmaras & Crianças

abriga a dor da camela o areal que parece nunca terminar, aberto


em leque, o areal se consome e assume a sua sina,
sua boca (a do areal) e a dela (a da camela) nunca se encontram
sozinhas: arde nelas o ofício de viverem a persuadir a morte (O
Grande Deserto) a visitar-lhes a tenda e conhecer-lhes o encanto
de seus tapetes e chás (no deserto, silêncio é moeda forte)

e a não molestar as crianças, antes ou depois de brincarem com o


sol
e as tâmaras as crianças
:
30

O DESERTO 22 - Solstício único

a Loucura sabe
não haver lugar no deserto
para ela, só

o rabo
e o solriso do lagarto
lhe cabem
:
31

O DESERTO 23 - The Sky Under Us

sobre o Deserto do Tènèrè


(que significa “lugar onde não há nada”)
a frase de uma canção estrangeira:

People say I'm crazy doing what I'm doing *

e todas as camelas entenderam

e continuaram com renovadas


calorias a marcha antiga de suas ancas

*: JOHN LENNON. Watching the wheels.


:
32

O DESERTO 24- Diferenças bem reunidas

diferem dos lábios dos atores


os braços do deserto: ardem
ambos, lutam, ambos cedem
quando a fria noite lhes domina
as dunas, mas, então: diferem
em quê
humanos e desertos ?
na contagem dos grãos salvos
das respectivas tempestades
de areia e de palavras, sim,
o deserto difere de homens e mulheres
:
33

O DESERTO 25 - O Livro da areia

para o livro de areia, mil e mais


toques não
bastam para revirá-lo e ver
minúcias contidas na estrutura
antiga, tornada grãos
e, em breve, pó

e esquecimento, pequena
vaga na memória do Homem
:
34

O DESERTO 26 - Memória & Psicanálise

história ressecada, ou úmida


certeza, vive com premissas
e promessas o vizinho, sob cáusticos dizeres

do Outro.

Eis o Homem e o Nada, seus grãos


como extensa e feroz nuvem rumo ao interior
do continente, similar à degradação

da Memória, ao que ela, a Memória, foi,

isto porque a gente esquece, mas o Nada é implacável


com a sua memória de deserto,
não de elefante nem de humanos
:
35

O DESERTO 27 - Arte guerreira e baobá

roupa de guerreiro é o escudo de sua lança


(pintado de claras intenções)
e nada mais lhe é tanto de serventia (exceto
o gado

e os ossos dos ancestrais),

nada lhe importa tanto quanto a voz


das cores bailando nas dunas, coçando os pés
e o sexo

debaixo da pachorra de um baobá


:
36

O DESERTO 28 - Dos sigilos

no deserto, poder-se-ia manter sigilo, se interligadas não fossem


as dunas, se não se fortalecessem com o que no Homem
é escasso, de moeda

baixa, besta quadrada


ou não, lá vem um tutor com seu baralho de falavras, vestindo
cores símiles às nossas – mas falsas
cores, já o sabemos pelo modo da andadura,
pelo que em nós - os das terras secas - é inútil, é medido e

zerado: o riso fácil, falso


37 :
O DESERTO 29 - H de Haschisch

Vivem nas contas dos dedos, e mais do que dos dedos (ó usura ),
as razões de toda captura (o Homem é preênsil, caro símio). Nada
sendo inerte, necessário é que se faça logo o que a mente e o
corpo pedem: apertar os dedos sobre a beleza, abrindo o olhar
sobre o movimento, sobre o mínimo múltiplo comum e o máximo
divisor comum, sim, acicatando o medo, rumo a um medo maior.
38 :
O DESERTO 30 - Alusões e outros truques

Alguém bebe chistes & mazelas; bebas o que é do povo do deserto,


bebas a tua poção, teu árak, teu leite de ovelhas; mas a mim, o
Deserto, bebam-me todos assim: devagar, com atenção redobrada,
pois a minha Escritura é plena de truques, alusões, disfunções,
sombras e corrimentos que o deserto põe nos venturosos.
:
39

AS CASAS AO LADO: GÊMEAS DA DOR - A CIDADE


.
40 :
A SUICIDADE 1: Os nós do betume, as falanges dos dedos

esquinas sem nome e sem data


(mais de um milhão, quero ver, então...)*

verve maquinal
impondo laudos e autos de devassa
nos cartórios em dia
com a própria lei do pão

acre, a rústica corrida


pelos nós dos dedos brancos de pressão

*: Clube da Esquina n. 2 - Lô Borges, Márcio Borges, M Nascimento


41 :
A SUICIDADE 2: Asas de porcos & lombo de frangas

perdida a capacidade de indignarem-se, as criaturas


entram e saem e caem sob rodas, a poda constante
no metálico jardim onde a pane se liquefaz

e o que escorre em seus degraus e trilhos não é só plasma

nada disso: o que escorre é


“a breve arquitetura do choro” (a lágrima) *
já completamente ácida & seca, em todos e todas

*: Eugénio de Andrade (Portugal), no poema Lágrima.


42 :
A SUICIDADE 3: Águas turvas e problemáticas

o pão que a cidade


amargou (“estou comendo o pão dos outros, e o pão dos
outros é cada vez mais amargo”)*

aqui está, no profano desta mesa (já não mais um improviso),


sob ponte igual a tantas, abrigando vidas

residuais, ora, cada qual mendigando com a sua


específica e mesma

canção: bridge over troubled water **


e poema: para os bichos e rios / nascer já é caminhar ***

*: Máximo Górki
**: Paul Simon – Art Garfunkel
***: João Cabral de Melo Neto. O rio.
43 :
A SUICIDADE 4: Digamos que se fala de ti

Ir a Madrid, sacar de sus calles y balcones, perros y cuchillos,


o benefício da dúvida: estar ou não estar ali ou aqui, em Madri,
en una escalera abierta al triunfo
do salto (ó conquistadores e mercenários, ó piratas e bucaneiros
de todo o mundo, uní-vos !), quedarse bajo una ventana,
ou ficar neste pátio fechado aos olhares indiscretos da súcia
urbana, ir a Madri, ou ficar aqui, tudo tem lá os seus encantos, sim,
a beleza também
tem seus encantos e enganos.
44 :
A SUICIDADE 5: Mapa psíquico: o mapa diminui cada vez mais

torna-se do tamanho do quarteirão


o mapa dos usuários
do pavor

da luxúria
que é a idiotia, idioma de predadores,
de vítimas e algozes de si mesmos
(uccellacci e uccellini)*

mais seco, piroclástico, torna-se


o ar de pavor
que a ilusão, quando cessa, dá, tornando-nos endividados
com a clareza
45 :
A SUICIDADE 6: Ascendências espúrias e vagas descendências

Sabe-se que a tua mãe não é flor que se cheire, rameira deslavada,
maltrata-te ao diário, de inúmeras formas e intensidade são os
derrames e delírios dela, e os teus sintomas começaram cedo,
devido às anomalias que sobre ti caíram, caem e cairão; teu
padrasto é o bar, birosca ou bitaca, mafuá ou zurraparia, teu
padrasto é o bar da saideira, teu lugar de, de outros modos,
apanhares vírus de maldades e bactérias da idiotia, bem como
germens da apologia ao devaneio ou, o que é ainda pior, virtualizar
o sentimento de frustração constante (o teu, o de toda a suicidade),
dando ecos falsos de sofrimento e bons sentimentos que não tens,
nem ela, misturando as coisas para a tua platéia de meia dúzia de
ruas e avenidas do teu bairro, mondo cane, onde estilhaços de
desamor andam de mãos dadas, onde os crimes passionais são
mais comuns do que batatas à mesa da súcia que aqui vive (moro
aqui também, mais na delegacia), sim, é isso:

sei que a tua madrasta está em todo lugar neste lugar que é dela,
sei que ela é a melhor cliente dela mesma, e o teu pai, cada vez
mais hirsuto e fedorento, ares e gestos e fatos de bastardo, afunda-
se naquele tipo de dívida impagável, e assim é que ambos -
madrasta e padastro – não te largam de jeito nenhum, pois és tu o
dependente e o mandante, és quem sustenta a suicidade, ou seja,
a tua madrasta, e és tu quem sustenta o teu padastro, ou seja, o
bar, e os ecos do teu desespero chegam aqui, onde outras muitas
perversidades esperam, a não ser que uma bala perdida te beije,
ou um beijo partido te ache no meio dos delírios da tua mãe - a
suicidade -, ou no seio do teu triste pai - o bar.
46 :
A SUICIDADE 7: Cadeados & Senhas

um silêncio aflito não restaura a suicidade, dedos ao avesso, muitas


oportunidades atravessam a cidade, por dentro das pessoas,
suas artérias, “dou tudo”
ela diz

na próxima esquina
quero uma

chance, não um eco de chance, que transmita, sem alarde, as


muitas palavras e sensações guardadas na suicidade, mais ainda
para quem souber imaginá-las à flor da pele

deste silêncio aflito


47 :
A SUICIDADE 8: Ensaio na quadra

Com qual ritmo semear


a fartura acumulada, se os passos que ensaiamos
(os que nos restam) não encontram
rastros que os possamos
imantar com o acervo desta fortuna

de anseios ?

Onde estão os teus


seios, que deles não dou notícia ? O que se fez daquele rastro
em torno da esperança à nossa espera, rumo ao teto (repto)
da felicidade ?

Vê: como se fosse uma


llama, a cidade cospe seu ritmo na cara da gente.
48 :
A SUICIDADE 9: Pirotecnia

o estágio atual dos fogos na monstróple


é o de que os dedos
caros à modéstia do sonho
encontrem medos prontos
na feira: ali, certo jogo da amarelinha faz crianças saltarem
aos pedaços, diz a faculdade
de pensar diz que o estágio geral
da vida é círculo, que a distância maior, de um para o outro,
dentro de um círculo, é de 180 graus

todos los fuegos el fuego


49 :
A SUICIDADE 10: Amnésia, Mímese, Claustrofobia, Neurose,
Acusma, Anamorfose e Antinomia, Cancro e Simbiose

Aferrar-se ou desaferrar-se ao nó da dúvida ? viver o que vive


quem vive por trás do vidro, e de lá salta ?
Saltar é verso urbano, cujo grito é uma longa queda,
é isso mesmo o braço citadino, também a íris
rural , e louvado gado sejas tu, cristão velho judeu
que a boca do metrô come e cospe, de tóquio a sampa, com
“bruscas frases que aos meus lábios vêm”*

e nada de remorsos pelas tradições, eis os móveis da casa


e o móvel do crime, de quase nada se sabe
neste convívio de ferros entre ferros, de astros sob nódoas
venenosas, diluídas com solventes

Gente é solução exata para qual fórmula ? – perguntou


o cavalo de um carroceiro à porta do bar, esperando cargas e
descargas de neurose, algum beijo partido às portas do Nada.

*: Da canção Emissário de um Rei. Fernando Pessoa (PT) - Milton


Nascimento (BR)
50 :
A SUICIDADE 11: Sal

primitivo é o sal, coava luz

antes de feiras e mercados,


os pés dos nômades coçava,
viveu na boca das vítimas
e na mão dos algozes roçou
até descobrirem seu doce
comercial, e aí
outra etapa começou, e assim é
o meu espanto por saber que por um
quilo de sal o punhal se dá de litro
num peito, no centro
da suicidade, sim

primitivo é o sal, sendeiro


luminoso onde me esterilizo
de quem humano se diz
51 :
A SUICIDADE 12: Realismo social numa estátua equestre ?

acima dos tetos há


o corpo de um lençol
cinza (antes, azul)
acima dos tetos há
um grande coelho
negro (antes, branco)
acima dos telhados
da suicidade há, sim,
tempo de granizo nas
falas abruptas sobre
o perímetro onde gente
alisa suas plásticas
flores, todos sob total
controle, dados aos
ecos de seu impasse
social, moral, sim, eis
como se forma a arqui-
tontura do silêncio, a
fabricação da loucura
52 :
A SUICIDADE 13: Graves & agudas

pelos talhos no dorso


do pão, sovado à luz de antiga
necessidade, trégua
não há, menos ainda se pouco
ou nenhum é o rosto
da tua moeda, e no dorso
da mão que assimila
o furto, algemas gritam, riem
de bom rir as mulheres
embarcando para o pesadelo
sexual num distante lugar
53 :
A SUICIDADE 14: Meditando na praça

Não pedir nem a deus nem ao diabo (meros


escapes, humanas dilações) para te levarem
ao bem, para te livrarem do mal - ou seja, deles mesmos.

Não crivar as horas da manhã com meditações, baratas


filosofias ou mantas de algodão espiritual, não: o teu termo
de posse seja outro (não o outro), outra
seja a tua via (não esta praça de espúria sonoridade)

rumo à Negação, e dizei que só teu


é o rio que molha o chão da tua imaginação.
54 :
A SUICIDADE 15: A boca da rosa

o transeunte é cabuloso
ao travar a bufa da grua
uivando para a rua;
ela, a noite, é nebulosa,
e em cada mão dela
e na boca dela
há uma escura rosa...
o transeunte pressente
que a noite é ilesa a toques
de recolher, não é dela
ficar corada, sem beber

o transeunte é sestroso
ao parar na avenida
onde já não uiva a grua;
antes, corta os alarmes
da suicidade e entra
no pátio maior do perigo,
ferra no sono o guarda
do dia, apanha a senha
da felicidade, e se torna asas

sim, há passantes jeitosos:


55 :
atores de terceira no trem
fantasma, matéria de escusos lances
de dados e de frívolos
risos sob lençóis amargurados,
a noite expande-se neles
(nos mínimos atores)
até que o transeunte se valha
dela para se esconder de si,
para se encontrar consigo, talvez,
sentir o que nele é inverno,
do quanto nele vige o inferno
56 :
A SUICIDADE 16: Anexos

anexos à esquerda e à direita da arquitontura


as pranchetas ringem

logo abaixo do solo, antigos nos perigos, operários


coletam ossos que mil enxurradas trouxeram, antes das religiões,
do tempo das primeiras botas
dizerem: norte, sul, leste, oeste

e se fez a suicidade
com seus anexos biliosos e suas coberturas aptas a
suicidas
57 :
A SUICIDADE 17: Asfáltico

nomeia o intento
feroz rota, suspeita-se

do instinto que, parece, ainda


vige, remédio há
para dormir

diz: roaz é a rota

o custo
de abrasivas lições no dorso
moderno: sabes tu
morrer ?
58 :
A SUICIDADE 18: Os díspares

Ciano, páginas que leste


não são de salvar
cidade, não são de ir às ervas filosofais ali encerradas
nos bulbos das praças, nada além
disso, nada aquém de nós
viverá

impune, Ciano, a tua cor é amada


pelos díspares: crianças, marlins, estrelas
59 :
A SUICIDADE 19: O bar vai fechar

de pernas para o ar estão


de cadeiras, respiram seu cansaço
da vida

noturna; vazias,
quase sismógrafos, as cadeiras advertem que não se saírem
sem carapaça, a exemplo do caracol, sempre
com a própria casa

às costas, mundo moderno, de barras


de ferramentas e senhas vive-se esvaziando o salário
do medo, cadeiras
de pernas para o ar, no bar, homens danificados

pensam no futuro, comem


o presente, bebem o passado
60 :
CARA SUICIDADE 20: O rio

A natureza do rio desconhece tóraxes


tonificados, tendões e músculos e fibras
de qualquer tipo, que é de sua índole
arrastar datas comemorativas, estátuas,
pondo no lugar delas uma data inesquecível
cheia de barrancos derruídos e mortes.

O sentido em que o rio viaja é sempre


o mesmo, sempre com uma espuma
diferente nos cantos de sua boca, chama
a si os nômades, fazendo deles dependentes,
cúmplices, aliados, até que eles e elas
o apunhalam pelas costas, sim, o rio
sofre fortes represálias, à jusante
e à montante, cheias e secas, outras cheias

de decretos por gruas, dinamite e venenos,


mas a natureza do rio, seu sentido
de cumprir-se total, sua sina de mineral
desobediente é renitente, e as suas quatro faces
ou margens só se contentam de modo único
quando sobre ele começa a erguer-se,
de ambos os lados, a maravilha maior

da Humanidade: a simbologia da ponte.


Então, o rio ri, caudalosamente, gargalha.
61 :

THE CITY
So… she shares what it's like to be a bikini model
or a serial killer model
62 :
O DESERTO E A SUICIDADE: Abrasivas lições

Em torno às gentes uma alta febre


grita, crescendo-lhes um deserto
e uma suicidade cada vez mais
dementes no seu entorno, peregrinos
vêm, mas logo procuram saltar de seus
trinados, trilhos e estribos, salvarem-se
de seus dentes e de sua escrófula,
e cada vez mais o estorvo é a moeda,
e o deserto e a suicidade (ou ambos
são uma coisa só ?) parecem um vestido
muito decotado, mostrando curvas
e fervuras indescritíveis, levando
desavisados ao abismo, em torno
geme a casa dos karamázovi, (b)ecos
de crimes sem castigos, asilos & creches,
casas iguais a rios assoreados, gente
transtornada com seu copo de cólera
e sua lavoura arcaica, rebolando feio
la casa de muñecas, tempestades
rasgam a casa dos espíritos, cada dia
racha o silêncio com mais cômodos
para os usuários de seus seios,
pernas e sexo letais, sim, cresce
o deserto em torno e dentro de nós,
a suicidade medra em torno e para dentro
de ti e do Outro, e já não se pode
prescindir do que fazem conosco: números
rotos num varal rubro, a memória
exaurida, o futuro sem dentes nem olhos.
63 :
SEM ANTOLOGIA: Formas & Ecos

vista ou desvista o biquini, é pela manhã que ela mais ama


a cidade que já vai alta, alta noite
o aparato levando-a de encontro às carretilhas
de sempre, ao nós e ao outro, ao eles e elas de sempre
e de nem sempre, o pão todo de um oco dia, padaria é colo
quase de mãe, vestindo
ou tirando o biquíni a garota da alta noite, o gato
ajeita o horizonte, nunca rejeita seu gosto o gato saltando silêncios,
pipoca & tiros, a esquina é visionária que diz coisas
de sancho a quixote, coisas ditas por fausto a mefisto,
na esquina impúdica e imprudente, maquinal,

satã diz: “os cantos dos olhos limpos como pontas de lança”.*

*: SHARON OLDS. Do livro Satã diz, no poema Primitivos. Editora


Antígona. Lisboa. Tradução de Margarida Vale de Gato.2004.

VÓRTICE
64 :

Sem prumo de partilha ou de herança cabal, sem nada


que desincrimine e limpe a sombra
social, a criatura vagueia, sem açúcar e sem nexo,
pela cidade submersa, mas
onde está a notícia, mesmo que ruim ? onde está
a teimosia que faz a notícia, que faz com que o Mundo se mostre
tal como é: vórtice
dentro do qual nenúfares e camaleões, a rosa
e o azul provinciano compareçam com seus dons
e táticas ? Onde vive a notícia,
se ainda respira junto aos muros algum par
aberto em leque ? se se pressente que uma boca
cheia de indizíveis colares dirá a frase terrível, redentora ?

TEORIAS ACUMULADAS
65 :

a palavra é trabalho do espanto


que a gerou a partir do falso

e do real que o mundo gesta


diante e por trás da porta, o espetáculo
está pelos suores no imaginário
da platéia, ansiosa,

a vida não faz ressalva nenhuma ao perguntar


por que você não vem até aqui ?

O NADA
66 :

Quem entrar aqui, abandone qualquer nesga de esperança


de que o silêncio e o grito dos inocentes venham lascar
o reboco desta moradia sem paredes, usura
sem teto e sem soalho, aqui é a casa do Nada – portanto,
percam aquela esperança comum a leigos e leigas, às filhas e filhos
de algo tão pífio quanto a fé, pois a fé é o medo ao Nada,
e quem entrar aqui logo saberá o conforto das chamas, logo
pedirá mais lábios para a inenarrável algazarra das chamas.

Quem entrar aqui, será levado ao esquecimento total


do que foi, das sublimações a que se viu subjugado, dos endereços
nos quais deveu cuidar de um jardim cujas bromélias e orquídeas
eram de cinza e mofo, vencidas em seu tempo de encantamento,
jardim com cinzas de homens ocos e de mulheres usando
saltos diferentes nos sapatos, luvas com seis dedos, já se disse
que o mundo é pouco para satisfazer uma mulher,
mas aqui a danação tem vez, na casa do diabo a mesa está
sempre de cama, melhor, na cama.

Quem entra aqui, fica. Inútil paisagem é o medo ao Nada.


Quem entra aqui, fica.
67 :

FINAL, MENTE. FINAL.


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81 :
82 :
83 :
84 :

Amizades minhas são as mulheres; com os homens, apesar das mulheres


também serem, hoje, grandes financistas, com os homens só trato de
negócios. E estamos conversados.

11nov

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