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LEONOR ARFUCH ANTIBIOGRAFIAS ? Novas experiéncias nos limites Quando comecei, ha mais de 10 anos, a pesquisa sobre o que chamei de “o espaco biografico”,’ fazendo um corte sincré- nico, & maneira saussuriana, do que entendia como um estado da cultura ~ um espaco onde se entrecruzam velhas e novas formas, desde a auto/biografia classica ou o didrio intimo até a intimidade piblica da televisao; do testemunho ou a histéria de vida a autoficgao ou ao reality show ~ nao imaginei que esse espago, dilatado por si s6, continuaria sua expansio no futuro, difundindo ainda mais seus limites, impulsionado pelas novas tecnologias da comunicacao — blogs, forologs, redes sociais — e que despertaria o interesse reflexivo e analitico nao somente da critica e da teoria literdrias como também das ciéncias sociais, da filosofia, da psicologia, das artes visuais, da educagdo, campos com 0s quais tenho tido dislogos frutiferos em diversos paises = como aquele semindrio sobre Arquivos Literérios, em Belo Horizonte em 2005. tudo faz supor que o “futuro do presente” trard inerentes e novas experiéncias nos limites — ou fora deles— tanto no que diz respeito as teorias quanto as priticas. E nesse umbral que quero deter-me hoje, retomando alguns postulados com relagio a esse espaco para pensar na singularidade de certas formas que talvez. possam ser definidas como “antibiografias”. Sem pretender tracar uma genealogia, cabe recordar que o que hoje reconhecemos, apesar de suas incessantes transformagoes, como auto/biogrdfico, se inscreve em uma ampla tradicao, cuja ancoragem mitica remonta s escrituras autografas do século 18 que moldaram a sensibilidade do sujeito moderno ~ confissses, autobiografias, memérias, didrios intimos, correspondéncias, géneros que se tornaram “cannicos” sem perder a vigéncia e que esto em didlogo com as novas, novissimas formas. E esse universo narrativo, onde 0 eu se desdobra em suas miiltiplas méscaras, em uma mistura heterdclita e até impertinente que imprime sua marca na cultura contemporénea, 0 que tenho pretendido abranger com o conceito de “espaco biogrdfico”, que tomo de Philippe Lejeune, pioneiro dos estudos sobre o tema, para reformulé-lo sob outra perspectiva. Com efeito, Lejeune, levado pelo afi estruturalista dos anos de 1970, tentava definir as caracteristicas da autobiografia como tum “relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz da prépria existéncia acentuando sua vida individual, em particular a hist6ria de sua personalidade”,’ definicao que deveria refazer-se diante de cada exemplo contrario, desencorajando assim toda tentativa de formalizagio. Uma busca que culminou finalmente com a aceitagio do caréter elusivo das escritas do eu, em que © principio de identidade fracassa,e fic¢do e factualidade se unem de modo indissocidvel, mas que deixou como saldo a ideia de um “pacto autobiografico” que se estabeleceria na cumplicidade da leitura e operaria como regime de verdade — uma ideia que a Paul de Man, que também se interessou pelo tema, Ihe parece restritiva demais—ea de um “espago biografico”, que encerraria de forma undnime os distintos modos como se podem narrar a vida e a experiéncia humanas. Esse foi justamente o ponto de partida de minha pesquisa: 0 ir mais além da mera inclusao de “exemplos” ou géneros dentro de um reservat6rio das formas cambiantes que essa narra¢ao pode assumir ~ sem degradar o interesse de tal propésito ~ para lex, na simultaneidade dessas formas, em sua heterodoxia, em sua avassaladora busca pela presenca ~ 0 eu, 0 corpo, a vor, a pessoa, a vivéncia -, ¢ em sua insisténcia nos mais diversos regis- tros do discurso social, wn traco sintomdtico da subjetividade de nosso tempo. Por que sintomético, caberia perguntar, se 0 relato de uma vida, apesar de suas reconhecidas raizes hist6ricas, tem a aura de um “mito de eternidade”, nas palavras de Lejeune? £ um Arduo caminho o que leva, nas tiltimas décadas, a essa reconfiguragao da subjetividade que pode traduzir-se - com uma acentuagao negativa - em um declive da vida e da cultura piblicas, na multiplicagéo de “pequenos relatos” que desagregam a miriade do social ~ para alguns, um trago da p6s-modernidade -, na ceescente indistingdo entre 0 piblico e 0 privado e a radical abertura da intimidade, na énfase narci- sistica, no individualismo e na competigio feroz, no mito da realizagao pessoal como objetivo maximo ~ se nao 0 tinico- da vida. No entanto, essa “guinada subjetiva” também poderia ser entendida, com uma acentuagao positiva, como estratégias de autoafirmagao, recuperagdo de memérias individuais ¢ coletivas — sobretudo, com relagio a experiéncias trauméticas ~, busca de reconhecimento de identidades e minorias ~ no conceito de Deleuze -, afirmagio ontoldgica da diferenga ~ sexual, étnica, cultural, de género -, registros todos em que 0 autobiogrifico tem um papel determinante. Esse notério privilégio da voz “propria” se manifesta também no auge atual do testemunhos no “documentério subjetivo” ~ aquele que, sem abdicar de dar conta de “fatos”, inclui o proprio cineasta como protagonista = até na crescente tendéncia da literatura a distanciar-se da histéria da ficcdo para transformar-se, quase genericamente, em “qutoficeao”, Fala-se inclusive de uma “guinada autobiogréfica” na literatura argentina.’ Nessa multiplicagdo das vozes, nessa tensio derridiana entre o que pode ser uma coisa e seu contratio, podemos ler, talvez ~e aqui o sintomético -, angistia, solidio, desencanto, perda dos grandes ideais, monotonia, dificuldade das relagdes afctivas ~ apesar da “hipercomunicacio” tecnol6gica -, mas também opressio, rebeldia, inadequago a nossas sociedades que exaltam modelos impossiveis de alcancar. Significantes — uns ¢ outros ~ que operam, talvez, na busca de sentidos da vida distanciados de nossos predecessores, seja no modo “light” do cuidado consigo ou em exercicios de liberdade e autonomia ~ ainda que possam redundar em maior sujeigo —, na exaltagao das singularidades frente & crescente uniformidade dos destinos, na necessidade de identificagao “horizontal” com o proximo, 0 “semelhante”... Abordar essa constelagao problematica, este “espago biogré- fico” que vai além da caracterizacao de géneros discursivos com “parecidos de familia” para transformar-se em um vetor analitico € critico da sociedade contemporiinea, requereria, por certo, a articulagéo de diferentes olhares disciplinares - da psicandlise, da filosofia, da semiética, da critica literéria e cultural -, articu- lacdo nao como um mero “somatério” de saberes, e sim como a postulagao de relagbes nao necessairias nem evidentes, tendentes a uma visdo superadora da parcialidade, uma visio, além do mais, politica em todos os sentidos da palavra, Tal leitura implicaria uma reelaboragao das proprias ideias de espaco, sujcito, subje- tividade ¢ identidade © uma definigdo adequada dos géneros discursivos e da narragio. ‘A concepeao de sujeito da psicandlisc, sobretudo em sua vertente lacaniana, foi funcional em nosso empenho: um sujeito constitutivamente incompleto, modelado pela linguagem, cuja dimensio existencial é dialdgica, aberto a (e construido por) um Outro: um outro que pode ser tanto o voc? da interlocugio quanto a prépria condigdo de ser outro da linguagem ea ideia de tum Outro como diferenca radical, Falar de subjetividade nesse contexto ser, entio, falar de intersubjetividade. No entanto, ha também a ideia de um “puro antagonismo” como auto-obstaculo, autobloqueio, limite interno que impede o sujeito de realizar sua identidade plena, que, contudo, busca através de processos de identificagio: nessa busca, as narrativas do eu sao parte essencial. Se a identificagao com outros se desdobra desde as figuras primarias, parentais, até as interagGes sociais ea todos os registros significantes, ndo ha divida de que as narrativas que remetem a personagens “reais” introduzem uma tonalidade particular na identificacao, seja esta glamorosa, com ricos ¢ famosos, ou com a debilidade, a falha, 0 infortiinio, o “poderia ser eu”, tal como opera a insisténcia miditica no registro da adversidade, agora “globalizada”: um estado de violéncia perpétua, onde convivem a crdnica vermelha e guerras, atentados, migragdes forcosas catastrofes “naturais”, ¢ onde se naturalizou também a perda das vidas e a destruig4o dos corpos. Curiosamente, também 0s retalhos dessas vidas e a oferenda publica dos anedotirios pessoais—como restos depois da tragédia ~ fazem parte, de modo crescente, do espago biogréfico. © caso recente dos mineiros resgatados no Chile, onde a vida triunfou sobre a morte, mostrou. igualmente a preeminéncia do biogrAfico por sobre os outros registros do acontecimento. A nogio de espaco exigiu, do mesmo modo, um questio- namento. Enquanto se tentava tragar uma “cartografia do presente”, a ideia de um espago-temporalidade pareceu a mais apropriada: 0 espaco nao como uma superficie plana, sem riscos, onde se acumulam diversos objetos ~ em nosso caso, géneros discursivos -,¢ sim essencialmente como multiplicidade, plura- lidade, heterogeneidade, relacio, interagdo, um espago sempre inacabado, aberto a transformacao com cada novo elemento que o habita. Em outras palavras, um espaco que se refaz constante- mente através das interagdes que o constituem. Em harmonia com tais conceitos, a definigio de identidade se volta obrigatoriamente para o plural, as identidades, para enfatizar seu carater nao essencial, relacional ¢ contingente — ainda que sem desdenhar ancoragens, tradigées, materialidades-, uma identidade que se constr6i na temporalidade e na narraco, suscetivel invenco, apesar da necessidade de autorreconheci- mento e permanéncia. Nos termos de Ricoeur,’ uma identidade narrativa, que se desloca, sem nunca se fixar, em um intervalo entre 0 mesmo € 0 outro. A teoria da narrativa de Ricoeus, com seu componente tanto formal quanto ético — a forma como é posta em sentido, a temporalidade como eixo que atravessa a experiéncia humana, deixando a marca do ter vivido enquanto dimensio ética da existéncia -, se articula, por sua vez, quase naturalmente, a concepgao dos géneros discursivos de Bakhtin, outro dos pila- res de minha pesquisa. Os mesmos significantes que definem 0 espaco biogratico definem também esses géneros, que, distantes de toda pretensio hier4rquica ou taxonémica, acompanham cada instncia da préxis humana: multiplicidade, inter-relagio, heterogeneidade, hibridacao... Géneros da cotidianidade, infes- tados de expresses familiares, géneros elaborados, produto do trabalho da escrita, uns e outros inseridos na comunicagio enquanto interagio dial6gica que tende a um outro, por e para quem se fala (ou se escreve). No entanto, ha um conceito bakhtiniano que é, talvez, 0 que melhor permite entender a énfase que motiva nosso espago: 0 de valor biogréfico. Um valor ~ um bonus de valor, poderiamos dizer—que faz com que o relato de uma vida a ponha em ordem, ou seja, em forma e, portanto, em sentido, no apenas para quem © narra como também para quem o recebe. Identificagao espe- cular que me coloca no lugar do outro ~ sem me confundir com ele~ com uma proximidade maior do que quando me encontro diante de um relato de ficeao, por mais que todo relato de vida seja inevitavelmente ficcional. 6 esse valor, essa proximidade que ata a crenga, se no nos “fatos” (narrados), no fato de uma existéncia, o que fax das formas biograticas, na indistingao proposta por Bakhtin entre “auto” ¢ “bio” grafias ~ um eu ou tum outro eu ~, uma inesgotavel fonte de atragao e identificago que prevalece sobre as outras. Contudo, estamos longe de considerar que valor e proxi midade se identificam perfeitamente com verdade e autenti cidade. Bakhtin nos alerta rotundamente sobre a impossivel equiparacdo entre vida ¢ relato, € portanto - contrariando Lejeune - sobre a nfo identidade entre autor ¢ narrador, ainda que ambos tenham o mesmo nome no relato € na vida: cria- -se um personagem até mesmo na confissao mais sincera ou no testemunho da verdade mais apegada aos fatos. £ que nao ha como se apresentar diante do outro, a nao ser dotado de uma mascara. Portanto, no ha nenhum rosto “verdadeiro”, como Paul de Man afirmara, assemelhando a autobiografia 4 figura ret6rica da prosopopeia, 2 mascara que da rosto € vor a algo — pessoa ou coisa personificada — que nao o tem por si s6. Contudo, pessoa e personagem parecem se unir no “eu”, no imaginério de uma hiporética completude. Seno podemos equiparar o relato e a vidas se, extremando os termos, até poderiamos dizer que a vida, enquanto unidade inteli- ivel, 56 existe na forma do relato antes dele hi o surdo rumor da existéncia, forcas que se agitam sem cessar, pulses, memérias, rajadas, sensagdes, pensamentos ~; se nao ha identidade possivel entre autor e personagem nem modo de aproximar-se do rosto “yerdadeiro” de alguém; se 05 procedimentos de ficcionalizagio € as ret6ricas so comuns ao relato de vida € ao romance... Por que tal obsessio, em nossas sociedades midiatizadas, por essa miriade de géneros e formas, por essas presencas em letra ou em tela, por esses eus que se multiplicam, que afloram nas mais variadas inflexées do discurso, por essas vidas “reais” dos outros que vemos como voyeurs com interesse midiatico, informativo, compassivo, cientifico, literdrio e muitos outros et ceteras nao tio positivos...? Ou, dito de outro modo, a partir da teoria ~ e também a partir de nossa pratica de receptores experientes -, pode-se sustentar a crenga de verdade, transparéncia, adequacao, imediatismo, autenticidade, espontaneidade desse tipo de relato, ‘que levou a esse desdobramento sem fim que nos permite falar de hoje, de um espaco ou de uma “guinada biogréfica”? Podem-se aventurar muitas respostas, entre elas, alguns regis- tros do sintomatico que apontévamos mais acima. O que poderia- mos agregar, como correlato obrigat6rio do que foi dito, €a forga performatica, modelar, exemplar e exemplificativa desse tipo de relato, na inapreenstvel variedade de suas ocorréncias. Seja uma entrevista, um filme, uma autobiografia, um testemunho, uma hist6ria de vida das ciéncias sociais ou a mera fofoca de um show televisivo, sempre estar em jogo um sistema de valorizagao: 0 que se deve, o que nao se deve, os sentimentos bons e os “outros”, as condutas previsiveis, suas infragdes, as marcas do poder ~ a biopolitica - ¢ as formas de enfrenté-lo, os sentidos comuns —¢ portanto compartilhados ~ e os ensinamentos que derivam de uum “aprender a viver — poderiamos acrescentar ~ todos os dias” Nessa necessidade constante de identificacao e autoafirmagao, 0s “outros” verdadeiramente existentes nao perderam o estatuto de realidade por mais que as tecnologias os ponham cada vex mais distantes do acontecimento do ser. Nessa busca, da qual, por outro lado, compartilham tanto a escrita autobiografica quanto o romance, com suas transfor- mages através do tempo —e sem desdenhar outros registros da expresso artistica ~, 0 que se tentard sempre, mais além dos eventuais tragos moralizantes, exemplificativos, que provocam distupeao ¢, ainda, escandalosos, é encontrar justamente um sentido, 0 famoso “sentido da vida”, mesmo quando se chega, como em muitos dos casos, a comprovacio, desesperancada, de sua “falta de sentido”, Porém, h4, além disso, um lugar onde todos somos autobié- grafos: 0 didlogo, a conversa cotidiana, o expressar em palavras © préprio acontecer ¢, nessa narragio, postular um sentido para 0 acontecimento e a vivéncia, Assim, a propria biografia € 20 mesmo tempo um assunto dos outros; nossa vida também pertence aqueles com quem a compartilhamos, dimensao inquie- tante que nos mostra mais uma vera impossibilidade da presenca, aquilo que somos que nos é absolutamente inapreensivel, que s6 existe na experiéncia dos outros, A telacdo com os outros também se manifesta na dimensio social da biografia, no que ela expressa a respeito de um ambito, uma familia, uma comunidade, uma nagio, Marcas do coletivo ‘individual — que nunca chega a sé-Lo totalmente ~e que tornam jografico-social, como poderiamos dizer, aquilo reconhecivel bém como “proprio” na experiéncia de antecessores ou ‘A multiplicidade de formas do espago biogréfico ea sintonia jpossamos postular entre elas no impedem, por certo, a ise de cada género cm particular, seus tragos distintivos, suas de influéncia, seus sistemas de valorizagao, seus destina- srobiografia tém sido os mais estudados, ea bibliografia sobre sunto € quase impossivel de se abarcar. De minha parte, 0 ido do género da entrevista, o qual também incluo nesse co, foi iluminador para meu trabalho posterior, também \4 muito dito em torno dos chamados “métodos biogréticos” ‘ciéncias sociais - nominagdo com a qual nao concordo -, seja, com relacao aos usos (e abusos) das historias ¢ dos stos de vida. O testemunho, privilegiado na énfase memorial - nossa época, ligado ao resgate e 4 elaboracao de memérias sumaticas - guerras, genocidios, ditaduras — tem sido, desse do, sumetido & critica. As formas auto/biogréficas que tive- ‘um grande papel na configuragio das politicas da diferenca inismos, estudos de género, gay lesbianos etc. — também sido profusamente abordadas em diversos horizontes disci- es, assim como a tendéncia confessional dos meios, a nova idade publica” que reina na televisao e na internet, com endmeno das redes sociais, tem suscitado interesse analitico. 'se desdobram formas hibridas, resistentes a uma cataloga- ovas ¢ nem tanto, que poderiamos chamar ~ provisoria- , talver ~ de “antibiografias”, que nio foram analisadas Jessa perspectiva ou foram consideradas em sua singulari- de, como obras de autores mais do que como tendéncias de época. Contudo, mal se comega a olhar, se veem semelhangas ¢ proximidades, tracos que se reiteram, ainda na diferenca tema- tica, estilistica ou no modo da composicao. So obras onde 0 “eu” nao leva a0 equivoco, a0 mascara- mento ~ como na autofic¢4o, por exemplo -, mas realiza esse “por-se fora de si mesmo” ~ que Bakhtin chamara de exoto- ia — no como um “outro eu”, ¢ sim em um desdobramento objetal, nao desligado de um investimento afetivo, Objetos como signos ou signos transformados em objetos, marcando tanto uma temporalidade obsessiva quanto uma espaciali- dade deslocada, como se poderia dizer. Um exemplo disso é do artista francés “pés-conceitual” Christian Boltanski, em cuja obra as memérias pessoal e coletiva - em particular a do holocausto -, tém um papel decisivo. Ja nos anos de 1970, trabalhava em séries, inventarios, arquivos e uma espécie de “automuscificagao” com a fotografia e os objetos que eram, na verdade, um desafio a temporalidade e & fugacidade - e, portanto, a morte -, @ maneira como o presente se esfuma, levando consigo recordagées e vivéncias. Assim, chamou uma de suas primeiras instalagdes — uma acumulacao de objetos em sua perfeita banalidade — de Busca e apresentacio do que resta de minha infancia, 1944-1950; e outa obra similar de Colegao de objetos que pertenceram a Christian Boltanski,e essa objeti: vacdo ~ fotografias, caixas, roupas, luzes — se transformou em sua modalidade expressiva para trabalhar outras teméticas, as vezes em acumulagdes aterrorizadoras que evocam as dos campos de exterminio. A meméria dos objetos, a biografia enquanto icrupgio de imagens de ou ent um lugar ¢ os lugares como cendrios obrigatérios de uma biografia também tém sido amplamente trabalhados no cinema, de maneiras mais ou menos explicitas. Jean-Luc Godard é talvez, um exemplo emblemético, sobre- tudo em seu “autorretrato” JLG/JLG (1995) que filmara, em rentincia expressa ao anedtico, a partir da articulagio poética ¢ filoséfica de imagens nas quais 0 contraste metafSrico impera sobre toda referencialidade. Lugares, recantos das casas que habita, frases, datas, alusdes, paisagens dilatadas, uma trama significante em que a interioridade se refrata na propria obra indiferente a toda temporalidade narrativa, bem mais na fusio do instante e da meméria, como que ilustrando a potencia- lidade da vivéncia tal como a define a tradigio filos6fica. A semelhanga de Roland Barthes par Roland Barthes — por outro lado, o modelo obrigat6rio de toda ficgao autobiografica ~ esta justamente no deslocamento do ponto de vista, na paisagem do mundo que se desdobra diante dos olhos ~ que a camera convida a acompanhar ~ que o “eu” do narrador fala: a obra endo o autor, Por coincidéncia, Juan José Saer, o notavel escritor argentino recentemente falecido, dizia que a autobiografia ndo consiste, na verdade, no relato dos acontecimentos de uma vida, e sim em um rumor profundo e secreto, que, no auge, seria perceptivel na escrita, Paul de Man sugeria também que, no limite, toda escrita é autobiografica, Porém, a biografia pode ser até mesmo o que resta, 0 que fica do tempo da vida, o que permanece, como vibragao, como ener- gia, quando se abandona para sempre um lugar: Jonas Mekas, o cineasta/documentarista lituano emigrado depois da guerra 0s Estados Unidos ¢ considerado um “pai da vanguarda ameri- cana”, filmou, em Letters from Green Point, 0 iltimo dia na casa onde vivera por décadas, seus objetos e recantos, refletindo sobre os rastros invisiveis da presenga de quem havia passado por ali, Seus miltiplos trabalhos ditos “autobiograficos”, por outro lado— As I was moving Ahead...; Meanwhile, a butterfly flies... etc. ~, ou seus “didrios”, mostram uma preeminéncia absoluta do “eu”, mas no desajuste entre palavra e imagem, na desarticulagao da voz e da temporalidade, na impossivel tecelagem de um relato ~ de um retrato -, na voragem de imagens dispersas onde a imagem de si mesmo esté ausente, em contraste com outros filmes em que a camera fixa registra a repeti¢ao obsessiva do gesto cotidiano ~ falar por telefone, comer diante da camera, perambular — produzindo inclusive um efeito de exasperagao. O curioso, talvez, é que seus filmes, de culto, acessiveis apenas em festivais, esto agora, embora fragmentados, disponiveis na web, sujeitos a serem copiados ~ em todos os sentidos do termo. Também é curioso 0 efeito do blog, o novo modo de registrar sua obra, que se distingue de seus primeiros didrios fflmicos, cadticos, quase surrealistas — ou “antididrios” — por uma cronologia pontilhosa de aces fecha- das, explicadas, ¢ registradas em video ~ espeticulos aos quais assistiu, encontros, livros lidos — tratados sempre na articulagao caprichosa entre cinema, poesia e experiéncia. Em um livro recente, Autobiografias viswales, a historia- dora da arte ¢ curadora catald Anna Maria Guasch analisa, sob uma tica muito semelhante 4 minha ~ coincidéncia que foi mutuamente gratificante -, obras de varios artistas, entre eles, On Kawara, artista conceitual japonés que vive em Nova York, ¢ Sol LeWitt, “conceitual-minimalista” norte-americano, enfatizando, mais além de suas diferencas estilisticas, os modos obliquos, deslocados, de falar do eu, que néo sio considerados canonicamente “auto/biogrificos” e tampouco - na minha opiniao — suscetiveis a serem catalogados como “autoficcies”. Ambas as obras me interessaram em particular para pensar © conceito de “antibiografia”. A respeito de On Kawara, a autora destaca a série Today, Date Painting (registro pict6rico da data de cada dia, localizado em uma caixa e acompanhado de anotagdes de diério, “Journal”; a série “I”: I read (artigos de periddicos lidos ¢ marcados), I got up (postais enviados do lugar do mundo onde se encontra apenas com a hora em que despertou), I met (lista de pessoas encontradas a cada dia), I went (marcas em um mapa dos trajetos didtios), I'm still alive! (telegramas enviados dos lugares que percorre, com apenas esse texto}. Segundo Guasch, o que se pde em jogo nesses “jogos” é tum falar s6 para si, retomando o eco nietzschiano de “Conto a vida a mim mesmo” ou postulando a assergo: “deixo rastro, logo existo”, ainda que esse rastro nao diga coisa alguma da interioridade ou da subjetividade, nio mostre mais do que 0 suceder mecinico da vida cotidiana, todavia marcada pelo estra- nhamento de lugares distantes ou remotos. Nesse sentido, ercio que se poderia pensar, até mesmo como expressio do coletivo, aquilo socialmente compartilhado: o despertar, 0 acontecer, a repetigao, o evanescer de cada dia na lembranea. ‘As obras de On Kawara — cujas imagens também esto disponiveis na internet ~ me trouxeram & mente outras obras, com certos “parecidos de familia” e 4 mesma distancia do convencional: as de Eugenio Dittborn, por exemplo, o artista chileno que faz suas obras sobre lengos, as dobra para que caibam dentro de um envelope, as envia por correio, ¢ essa destinagdo, com seus dados precisos, faz parte da obras a série Ruanda, de outro artista chileno, Alfredo Jaar, que, tomando 0 exemplo de Kawara, enviava a seus amigos postais de pontos turisticos de Ruanda durante uma viagem que realizou por esse territério depois do atroz genocidio dos yensay (1994), com as frases “Jyamiya Muhawenimawa is still alive!”, “Caritas Namazuru is still alive!”, “Canisius Nzayisenga is still alive!”, marcando, dese modo, seus encontros com sobreviventes, 0 préprio itinerdrio e seu compromisso pessoal ~ ético, politico = com esse terrivel acontecimento, deslocando 0 centro do “I” para “they”, do eu para eles. O livro fotografico de Sol LeWitt, por sua vez, como titulo de Autobiografia (1980), expressa de outro modo a mesma obses- sdo do registro cotidiano, a tensdo entre o intimo e o publico, entre os lugares, os objetos e o olhar: séries objetais em que se entretecem os recantos minimos do esttidio ou a vivenda, os dctalhes da construcio, limpadas em distintas posigOes, estantes de livros, fragmentos de cartas, post-its, figuras geométricas; séries pessoais de fotos familiares, temporalidades disjuntas, em contraste com outros filmes em que a mera fixa registra a repeticéio obsessiva do gesto cotidiano ~ falar por telefone, comer diante da cémera, perambular ~ produzindo inclusive um efeito de exasperacdo. O curioso, talvez, € que seus filmes, de culto, acessiveis apenas em festivais, estiio agora, embora fragmentados, disponiveis na web, sujeitos a serem copiados — em todos os sentidos do termo. Também é curioso o efcito do blog, o novo modo de registrar sua obra, que se distingue de seus primeiros didrios filmicos, caéticos, quase surrealistas — ou “antidiérios” — por uma cronologia pontilhosa de ages fecha- das, explicadas, e registradas em video ~ espetculos aos quais assistiu, encontros, livros lidos — tratados sempre na articulagdo caprichosa entre cinema, poesia e experincia, Em um livro recente, Autobiografias visuales, a historia- dora da arte e curadora catalé Anna Maria Guasch analisa, sob uma ética muito semelhante 4 minha ~ coincidéncia que foi mutuamente gratificante -, obras de varios artistas, entre cles, On Kawara, artista conceitual japonés que vive em Nova York, ¢ Sol LeWitt, “conceitual-minimalista” norte-americano, enfatizando, mais além de suas diferengas estilisticas, os modos obliquos, deslocados, de falar do eu, que nao so considerados canonicamente “auto/biogréficos” e tampouco ~ na minha opiniao — suscetiveis a serem catalogados como “autoficgdes ‘Ambas as obras me interessaram em particular para pensar © conceito de “antibiografia”. A respeito de On Kawara, a autora destaca a série Today, Date Painting (registro pict6rico da data de cada dia, localizado em uma caixa e acompanhado de anota ss de didrio, “Journal”); a série “I”: I read (artigos de periddicos lidos e marcados), I got up (postais enviados do lugar do mundo onde se encontra apenas com a hora em que despertou), I met (lista de pessoas encontradas a cada dia), I went (marcas em um mapa dos trajetos diéios), I’m still alive! (telegramas enviados dos lugares que percorre, com apenas esse texto). Segundo Guasch, 0 que se pie em jogo nesses “jogos” é um falar s6 para si, retomando 0 eco nietzschiano de “Conto a vida a mim mesmo” ou postulando a assergao: “deixo rastro, logo existo”, ainda que esse rastro nao diga coisa alguma da interioridade ou da subjetividade, néo mostre mais do que 0 suceder mecanico da vida cotidiana, todavia marcada pelo estra- mhamento de lugaces distantes ou remotos. Nesse sentido, ereio que se poderia pensar, até mesmo como expressio do coletivo, aquilo socialmente compartilhado: o despertar, o acontecer, a repetigao, o evanescer de cada dia na lembranga. |As obras de On Kawara — cujas imagens também esto disponiveis na internet ~ me trouxeram & mente outras obras, com certos “parecidos de familia” e & mesma distancia do convencional: as de Eugenio Dittborn, por exemplo, o artista chileno que faz suas obras sobre lengos, as dobra para que caibam dentro de um envelope, as envia por correio, € essa destinagao, com seus dados precisos, faz parte da obra; a série Ruanda, de outro artista chileno, Alfredo Jaar, que, tomando 0 exemplo de Kawara, enviava a seus amigos postais de pontos turisticos de Ruanda durante uma viagem que realizou por esse territério depois do atroz genocidio dos Yensay (1994), com as frases “Jyamiya Muhawenimawa is still alive!”, “Caritas Namazuru is still alive!”, “Canisius Nzayisenga is still alive!”, marcando, dese modo, seus encontros com sobreviventes, 0 proprio itinerdrio ¢ seu compromisso pessoal ~ ético, politico = com esse terrivel acontecimento, deslocando o centro do “I” para “they”, do eu para eles. O livro fotogeafico de Sol LeWitt, por sua vez, como titulo de Autobiografia (1980), expressa de outro modo a mesma obses- sao do registro cotidiano, a tensdo entre o intimo e 0 piiblico, entre os lugares, os objetos e o olhar: séries objetais em que se entretecem os recantos minimos do estidio ou a vivenda, os detalhes da construcio, limpadas em distintas posicdes, estantes de livros, fragmentos de cartas, post-its, figuras geométricas; séries pessoais de fotos familiares, temporalidades disjuntas, articulagdes sem texto que traduzem, contudo, certas configu- ragGes de sentido, épocas, tragos culturais, selecdes, predile- es... Modos de construir uma subjetividade sem “sujcito”, a distincia do eu ¢ da voz, que revela, todavia, “interiores” — no duplo sentido do “interior da casa/o estiidio/o lar” e a interio- tidade ~ ¢ fundamentalmente a fragmentacdo, a parcialidade, a interrupeao, o detalhe ~ equipardvel a rajada de uma recor. dacao, a lembranga que irrompe em um momento sem antes nem depois -, 0 martelar do cotidiano em contraposi¢io ao acontecimento, a minticia como significante frente aos grandes eventos da vida, os que tradicionalmente fazem a dignidade de uma auto/biogeafia. Ja faz tempo que estou profundamente interessada nesses tipos de exploracdes pseudo/auto/biograficas ou autoficcio- nais do cinema, do teatro e das artes visuais, que ampliam —e desafiam — os limites sempre abertos do “espago biogréfico” © competem com a metaforicidade da palavea. Porém, por que ndo defini-las com esses nomes, por que pensé-las como “antibiografias”? Talvez porque, A maneira do “antimonumento” — uma defi- nigo cara para as politicas atuais de memérias, especialmente traumaticas -, ndo conseguem nem aspiram a reconstruir uma “totalidade” hipotética, uma coeréncia retrospectiva dos acon- tecimentos ou uma restituicéo da perda ~ dos dias, das horas, dos afetos, do nio vivido, do nio realizado — e tampouco um “eu” testemunhal, afirmado no relato factual ou ficcional, nem sequer wm relato ¢ sim justamente ~ como o anti ou contra- ‘monumento ~ marcar, enfaticamente, inclusive como reagio corporal, essa disjuncao da temporalidade, a impossibilidade da presenca ¢ 0 irremissivel da perda, mas também uma abertura ética, interpretativa e critica, com relagao a vida como um valor, a vida de um, a vida de todos, ‘Trapugao De Dénia Sad Silveira NOTAS Ch. Leonor Arfuch, © espaco biogréfico: dilemas da subjetvidade contempori- ‘ea, trad, Paloma Vidal, Ro de Janeiro, FAUERJ, 2010, 2 philippe Lejeune, Le pacte antobiographique, Paris, Ed. du Seuil, 1975, p. 14 3 Cf. A, Giordano, Bl giro autobiografico en la literatura argentina, Rosario, Adriana Hidalgo, 2009, + Cf. Paul Ricoeur, Temps er récit, Paris, Ed. du Seu, 1984, 1, Ie TI REFERENCIAS AREUCH, Leonor El espacio biogrifico: dilemas de la subjetividad contem- pordnea, Buenos Aires: Fondo de Cultura Econémica, 2002. BAKHTIN, Mikhail. Estética de la creacién verbal, México: Siglo XX1, 1982, DE MAN, Paul. Autobiography as de-facement. In: The rhetoric of romanticism. New York: Columbia University Press, 1984. p. 67-81. GUASCH, Anna Maria. Autobiografias visuales. Madrid: Cétedra, 2009,

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