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P rojeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTAQÁO
DA EDIQÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos estar
preparados para dar a razáo da nossa
esperanca a todo aquele que no-la pedir
{1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos conta


da nossa esperanca e da nossa fé hoje é
mais premente do que outrora, visto que
somos bombardeados por numerosas
correntes filosóficas e religiosas contrarias á
fé católica. Somos assim incitados a procurar
consolidar nossa crenga católica mediante
um aprofundamento do nosso estudo.
Eis o que neste site Pergunte e
-— Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
~ ;, controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
: dissipem e a vivencia católica se fortalega no
. Brasil e no mundo. Queira Deus abengoar
-■ - — este trabalho assim como a equipe de
Veritatis Splendor que se encarrega do
respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Estevao Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga depositada
em nosso trabalho, bem como pela generosidade e zelo pastoral
assim demonstrados.
Ano xlii Novembro 2001 474
"Tu és um pensamento de Deus" (Joáo Paulo II)

Os Números na Biblia

Religiáo opio do Povo?

Perseguicáo Religiosa na China

Por que foram perseguidos os cristaos até 313?


Pessoa e Sociedade em confuto

A Igreja e o Racismo
PERGUNTE E RESPONDEREMOS NOVEMBRO2001
Publicacáo Mensal N°474

SUMARIO
Diretor Responsável
Estéváo Bettencourt OSB "Tu és um pensamento de Deus" (Joáo
Autor e Redator de toda a materia Paulo II) 481
publicada neste periódico
Problema complexo:
Diretor-Administrador: Os Números na Biblia 462
D. Hildebrando P. Martins OSB
Diante das maravilhas da tecnología:
Religiáo opio do Povo? 497
Administracáo e Distr¡bu¡9áo:
Edigóes "Lumen Christi" Igreja ñas catacumbas:
Rúa Dom Gerardo, 40 - 5° andar - sala 501 Perseguicáo Religiosa na China 503
Tel.: (0XX21) 2291-7122
Sangue dos Mártires:
Fax (0XX21) 2263-5679 Por que (oram perseguidos os cristáos
até 313? 507
Enderezo para Correspondencia:
Ed. "Lumen Christi" Na ordem do dia:
Caixa Postal 2666 Pessoa e Sociedade em confuto 513
CEP 20001-970 - Rio de Janeiro - RJ Em Durban (África do Sul):
A Igreja e o Racismo 519
Visite o MOSTEIRO DE SAO BENTO
e "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
na INTERNET: http://www.osb.org.br
e-mail: lumen@alfalink.com..br

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA

NO PRÓXIMO NÚMERO:

Vivendo Tempos Apocalípticos? - O Anticristo vem ai? - Nostradamus previu a 3a Guerra


Mundial? - Os Suplicios dos Mártires até 313.-0 Nome na Biblia. - Os Sonhos na
Biblia. - Madre Teresa de Calcuta foi exorcizada?

- Assinatura ano 2001 (Janeiro a dezembro) R$ 40,00.


- Número avulso R$ 4,00.

- ENCADERNADO: Anos de 1997, 1998, 1999 e 2000, em percalina, com índice,


590 págs., cor verde, (cada colecáo) R$ 70,00.

Observacáo:
- Número limitado.
- Pedido somente pelo Reembolso Postal.
- Nao mande pagamento antecipado.
- Entre em contato com nossos enderecos para consulta de estoque.
"TU ÉS UM PENSAMIENTO DE DEUS" (Joáo Paulo II)
O mes de novembro se abre com duas celebracoes muito signifi
cativas: a festa de Todos os Santos e a comemoracáo de todos os fiéis
defuntos. Despertam no chstáo a pergunta fundamental do sentido da
vida: de onde venho? Para onde vou? Que haverá após a morte? Afinal
quem sou eu?

O Papa Joáo Paulo II propós tais perguntas a jovens universitarios


em sua recente visita ao Casaquistáo. E respondeu: "Jovem, tu és um
pensamento de Deus; tu és uma pulsacáo do coracáo de Deus". Esta
linguagem aparentemente ousada pode ser assim desdobrada: desde
toda a eternidade o Pai concebeu cada ser humano como imagem e
semelhanca sua {cf. Gn 1, 26); no tempo oportuno deu realidade históri
ca a este seu pensamento, e acompanha com a sua graca a criatura
peregrina neste mundo afim de levá-la á consumacáo na gloria celeste.
Todo ser humano portanto pode dizer com Cristo: "Sai do Pai e vim ao
mundo; de novo deixo o mundo e vou para o Pai" (Jo 16, 20).

Em conseqüéncia é plausível afirmar que toda criatura humana traz,


gravada no mais fundo de si, a marca do Infinito e Absoluto. É isto que a
torna inquieta. Nunca satisfeita, quer algo de melhor, que ela mesma nao
sabe definir e que, em última análise, é Deus,... Deus muito distante (por
ser perfeito) e, nao obstante, muito próximo de cada criatura. Felizes sao
aqueles que tém alguma nocáo disto e, na penumbra da fé, procuram o
Algo Mais para o qual foram feitos! Mais felizes do que aqueles que nao
créem no Transcendental e se deixam sufocar pelo vazio e pelo nada,
cafando bolhas de sabao coloridas por fora, mas vazias por dentro. O
nada é o contrario do Infinito para o qual foi criado o coracáo humano.

O homem contemporáneo pode gloriar-se de seus avancos cientí


ficos e tecnológicos; a inteligencia humana tem conseguido maravilhas,
que a deleitam. Mas o homem nao é somente intelecto, nao é só fabri
cante de máquinas e aparelhos. Ele tem um coracáo, um anseio de vida
e felicidade a que a filosofía do nada nao satisfaz. A historia atual, com
seus desatinos e crimes o atesta sobejamente; o mundo está desconten
te e angustiado. Os desconcertos de nossos dias sao um aceno que aponta
para o Infinito,... Infinito que nao é só a Verdade, mas também é o Amor
e a Vida, sem os quais murcha o coracáo humano.

Esse Absoluto já sacia muitos semelhantes nossos, comemorados


no principio de novembro. Saciará também todos aqueles que, santamente
teimosos, andam á procura de uma resposta cabal para seus anseios no
claro-escuro da fé, sustentada pelo Criador, que jamáis abandona a cria
tura proveniente da eternidade e caminheira para a eternidade.

E.B.

481
PERGUNTE E RESPONDEREMOS'

kJJ

Ano XLII - Ne 474 - Novembro de 2001

Problema complexo:

OS NÚMEROS NA BÍBLIA

Em síntese: Os números na Biblia parecem, por vezes, nao


corresponder á realidade ou porque elevados demais ou porque insigni
ficantes. A dificuldade se dissipa desde que se levem em conta tres lato-
res: 1) os números freqüentemente tem valor simbólico, qualitativo, e nao
quantitativo, matemático; 2) os copistas do texto sagrado podem terse
engañado ao transcrevernúmeros; 3) os números podem ser usados em
sentido precisivo (prescindindo) e nao exclusivo (nao excluindo).
* * *

Os números suscitam, na Escritura Sagrada, questoes múltiplas e


arduas...

Acontece que, em algumas passagens, chamam a atencáo por re


ferir quantias extraordinariamente elevadas ou também insignificantes,
que pouco fidedignas parecem; tomam assim caráter aparentemente fan
tástico. Em outros casos, sao as variantes dos textos (bíblicos ou profa
nos) paralelos entre si ou a oscilacáo dos manuscritos antigos que provo-
cam dificuldades de interpretacáo: entre dois ou tres números indicados
pelas fontes é preciso optar, e nao se sabe sempre que criterio seguir.
Ora, para resolver tais problemas, é indispensável tenha o leitor
em mente alguns principios gerais, a seguir discriminados.

1. Os Números Símbolos de Qualidade

Os números figuram muitas vezes na Sagrada Escritura nao como


¡ndidacóes de quantidade, mas como enunciacóes de qualidades; sao a
expressao de um juízo que o autor formula a respeito de tal ou tal sujeito.
Nesses casos, está claro que os números se mostram ¡nverossímeis para
quem os queira entender como expoentes matemáticos; tornam-se, po-
rém, altamente significativos para quem conheca a mentaiidade do autor

482
OS NÚMEROS NA BÍBLIA

e a afinidade que os antigos estabeleciam entre certos números e deter


minadas qualidades.

A tendencia a associar números a certos predicados ou também a


certos seres (a Divindade, os espíritos, o homem, as criaturas inferio
res...) é muito antiga, táo antiga mesmo quanto o uso de contar. Ela se
baseia no fato de que os números estáo essencialmente ligados com a
idéia de regularidade, periodicidade, harmonía e, também, diferenciacao,
quebra. Além disto, a serie dos números apresenta algo de misterioso
para o homem: ela parece poder prolongar-se sem que este a consiga
acompanhar; as combinacóes dos números entre si parecem ultrapassar
a capacidade do espirito humano. É o que faz que espontáneamente se
liguem com os números as idéias de "Transcendente, Divino" ou "Mais
Forte, Mais Pujante".

Fenómenos significativos neste setor sao os seguintes: mesmo entre


povos primitivos cuja faculdade de contar é muito limitada, os pastores
sabem exatamente verificar a falta de um ou mais animáis nos seus re-
banhos; com efeito, o proprietário de quatrocentas ou quinhentas ove-
Ihas, ao ver o gado voltar do pasto para o aprisco, percebe de longe se
alguma falta e sabe dizer qual ou quais as que se tenham perdido. Da
mesma forma, o cacador primitivo, ao convocar os seus numerosos caes
para a caca, é capaz de verificar a ausencia de um só que seja. E - nóte
se bem - isto se dá sem que tais homens saibam contar além de urna ou
poucas dezenas!

Os estudiosos explicam estes fenómenos pelo fato de que, para o


homem primitivo, cada unidade está intimamente associada a notas indi
viduáis de um sujeito; pouco dotados de capacidade de abstracáo, os
homens rudes nao jogam com unidades abstratas, despojadas das notas
concretas com que se realizam na natureza, mas toda unidade Ihes fica
na mente, ¡nseparável de determinados predicados individuáis. Basta
entáo que o homem rude tenha boa memoria (e, em geral, esta nao falta
ñas tribos de civilizacáo pobre), para que proceda praticamente como se
soubesse contar. Sim; o pastor primitivo guarda na memoria as notas
características de cada animal; estas notas todas reunidas dao urna con-
figuracáo de conjunto ao rebanho, configuracáo que define o rebanho.
Em conseqüéncia, quando o aspecto do grupo é mutilado, o proprietário,
em virtude da sua memoria, o percebe e sabe dizer quais as notas que
faltam no conjunto, ou seja, quantos e quais individuos desapareceram.
Em tais fenómenos, bem se vé que a observacáo da qualidade precede a
da quantidade;1 o homem "conta" ou faz como se contasse, porque asso-

' Diz-se que o homem primitivo considera primevamente no número nao a "grande
za, o valor quantitativo", mas a "figura, o valor qualificativo" do mesmo.

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

cia com cada unidade e com o conjunto das unidades predicados carac
terísticos.1 Entende-se entáo que, de maneira geral, ele venha a conce-
ber cada número intimamente relacionado com alguma qualidade.
Esta "Filosofía do número", porém, no decorrer dos tempos, pare
cía fadada a cair em desuso. Normalmente em cada tribo a civilizacáo e
a vida cotidiana se váo tornando mais e mais complexas; a memoria en
táo já nao é capaz de reter tudo que caracteriza os múltiplos individuos
com que o homem lida; forma-se, em conseqüéncia, a nocáo de unidade
abstrata, e de números de índole meramente quantitativa, matemática,
destituidos de significado filosófico ou moral (sem atribuicáo de qualidades).2
2. Alguns Aspectos do Simbolismo dos Números

O "simbolismo dos números" ácima explicado era patrimonio da


sabedoria nao só dos famosos pitagóricos e platónicos (gregos), mas
também dos povos orientáis e, diga-se explicitamente, dos israelitas. Eis
as principáis expressóes desta mentalidade na Sagrada Escritura.

2.1. O simbolismo do número como tal

O número por si costuma significar ordem, harmonía. É o que ex


plica a afirmacáo de Sb 11, 20: Deus tudo dispós "conforme medida,
número e peso". É também o que ilustra a admoestacáo de Jesús: "Mes-
mo os cábelos de vossa cabeca estao todos contados. Nao temáis"; o
Senhor, com isto, ensina que a Providencia Divina dispóe ordenadamen
te até as mínimas circunstancias da vida humana.

Por conseguinte, a historia dos justos é geralmente apresentada


dentro de um quadro numérico, ou seja, com a indicacáo de datas ou
números equivalentes a datas - coisa que freqüentemente falta na linha-
gem dos impíos.

Exemplo típico disto verifica-se ñas genealogías dos cainitas (pre


varicadores) e setitas (fiéis a Deus) em Gn 4,17-24 e 5,1-32: enquanto
naquela nao se encontra a mencao de um só número, o nome de cada
um dos descendentes de Sete é acompanhado de números, que Ihe ser-
vem de moldura (o número de anos em que comecou a gerar, a duracáo
total de sua vida...). Algo de semelhante se dá na linhagem dos semitas,
portadores da promessa messiánica, em Gn 11, 10-32. Tal uso dos nú
meros significa que a vida destes justos era harmoniosa, correspondente
ao ideal que Deus Ihes tracou.

1 É notorio que o homem rude só sabe contar se/v/ncfo-se dos dedos das máos ou
dos artelhos ou aínda de seixos (cálculos), ossinhos, nos feitos em cordame, os
quais dáo figura concreta, individual, as unidades e aos seus múltiplos (daí o verbo
"calcular", que originariamente significa "manejar cálculos, seixos").
2 Cf. T. Boman, Das hebraeische Denken im Vergleich mit dem griechischem, 144s.

484
OS NÚMEROS NA BÍBLIA

Jó, desejando que o día de seu nascimento nao fosse contado en


tre os días do ano, nao fazia outra coisa senáo proferir sobre o mesmo
urna fórmula de maldicio (cf. Jó 3, 6).

Já que os números freqüentemente indicam qualidades, entende-


se que as expressoes de plural na Sagrada Escritura nao designam sem-
pre multidáo, extensáo, mas intensidade de um predicado.

É o que se verifica, por exemplo, na genealogía dos Patriarcas bí


blicos; a extraordinaria longevidade (centenas de anos) que Ihes vem
atribuida, exprime enfáticamente a alta venerabilidade que competía a
esses homens; á figura de um Patriarca parece, sem dúvida, pertencer
longa vida, que Ihe confíra experiencia e autoridade. Em outros termos:
longa vida é, conforme os autores israelitas, premio que Deus outorga á
virtude; donde se segué que extraordinaria longevidade tem por pressu-
posto extraordinarias virtudes. O declínio da longevidade á medida que
passa o tempo, desde Adió até Abraáo, é sinal de que a corrupcao, o
pecado, váo exercendo cada vez mais os seus efeitos no género huma
no; o mal se alastra mais e mais, e o bem-estar, a felicidade diminuem no
mundo.1

Ocorrem no texto hebraico da Sagrada Escritura substantivos em


forma plural que inegavelmente designam o único Deus, o Deus de Isra
el. Assim:

'Elohim, plural de 'El, Deus ou Forte (?) (Gn 5, 22; 6, 9.11 ■ 7 18- Dt
4, 35; Is 46, 9);

Qedoshim, plural de Qadosh, Santo (Js 24,19; Os 12, 1; Pr 9 10-


30, 3);

'Elyonim, plural de 'Elyon, Excelso (Dn 7, 18).

Estas formas de plural nao indicam multiplicidade de sujeitos ou


deuses, mas sao maneiras de realcar a qualidade expressa pelo respec
tivo nome: a fortaleza, a santidade, a sublimidade do único Deus. Apli
cando a Deus os termos concretos "Fortes, Santos, Excelsos", os israelitas
queriam dizer que o Senhor é a Fortaleza, a Santidade, a Sublimidade
mesma (em hebraico, o conceito abstrato era expresso pelo plural do
termo concreto).

Alias sabe-se que também os povos pagaos, referindo-se a urna


Divindade, empregavam formas de plural. O deus lunar Sin era chamado
ilanischa ilani, os deuses dos deuses, isto é, o deus supremo. Os vassalos
cananeus do Egito dirigiram-se ao Faraó mediante a fórmula ilania, "os
seus deuses".

1 Cf. Dt4,26; 8, 1; 11, 8s; 16, 20; 30, 19; Pr8, 35s; 9, 6.11; 14, 27; SI 33, 12-14; Br3, 14.

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

2.2. O Simbolismo peculiar de alguns números

Dentre os números, gozavam de preferencia os impares. Julgava-


se em certos círculos (mormente no pitagorismo, a partir do séc. VI a.C.)
que o número um é por excelencia o Principio nao produzido, perfeito; o
número dois, que se origina pela intervencao do vazio ou do intervalo na
unidade, parecía essencialmente ¡mperfeito. Em geral, os números pa
res eram considerados inferiores, moles ou femininos, quebradizos por
admitirem divisáo em duas partes inteiras; ao contrario, os números im
pares, opondo-se a isto, eram tidos por fortes, viris, perfeitos.

a) o número sete

O número sete é dos mais dotados de valor simbólico na mentali-


dade antiga e na Escritura Sagrada.
O significado importante do septenario entre os orientáis compre-
ende-se pelo fato de que estes povos dividiam o tempo conforme as fa
ses da lúa. Em Israel, a estima geral dedicada ao número sete parecía
sancionada pela própria Biblia, que reconhecia e promulgava, já em suas
primeiras páginas, a distribuicáo do tempo em semanas (cf. Gn 1,1-2,4a).
Visto que o número sete determina períodos mais ou menos com
pletos, definidos, da vida humana, atribuíam-lhe o significado de totalida-
de, plenitude e perfeicáo.1 É com este sentido que ele ocorre, por exemplo,
aa) ñas fórmulas de contratos e juramentos: Abraao deu a
Abimeleque sete ovelhas como penhor de que cumpriria sua palavra (cf.
Gn 21, 30). De resto, os hebreus derivavam o verbo shaba, prestar jura
mento, dizer palavra firme, da mesma raiz que sheba, sete;

bb) sempre que se queira exprimir a totalidade, táo grande quanto


seja; assim o discípulo de Cristo há de perdoar setenta vezes sete vezes,
isto é, indefinidamente, sempre que haja ocasiáo para isso (cf. Mt 18,
21 s; Le 17, 4).2 O autor de Pr 24,16 se refere a sete (= todas as) quedas
do justo. Veja-se ainda Gn 4,15.24 (a vinganca de Caim e a de Lameque).
Um fenómeno literario interessante ainda solicita atencáo: no texto
hebraico de 2Sm 12,6 lé-se que o homem que haja roubado urna ovelha,
1 Já na Babilonia sete (=kissatu) era sinónimo de totalidade, plenitude. Os caldeus
fizeram do septenario um número sagrado, que ocorría freqüentemente ñas suas
historias religiosas e ñas cerimónias de culto. A figura da máo dotada de sete dedos
era na Caldéia símbolo da plenitude da forga e do poder, plenitude que é própria da
Divindade.
2 Em um cántico penitencial babilónico, o orante confessava ter cometido sete vezes
sete pecados, isto é, faltas numerosissimas ou de incomensurável gravidade. Em
outra oragáo, pedia sete vezes perdao.
Cf. J. Hehn, "Siebenzahl und Sabbat bei den Babloniern und im Alten Testament",
em Leipziger semitische Studien, II 5 (1907), 34s.

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OS NÚMEROS NA BIBLIA

é obrigado a restituir quatro outras (de acordó com a leí formulada em Ex


20, 37; cf. Le 19, 8). Eis, porém que os judeus de Alexandria, ao traduzir
o trecho para o grego, em lugar de "quatro" puseram "sete ovelhas". Esta
traducáo, á primeira vista, é estranha; contudo ela se explica muito bem,
se se penetra na mentalidade dos tradutores: no caso, longe de atribuir a
"sete" significado quantitativo, matemático, quiseram por meio deste nú
mero indicar melhoro que o texto original subentende, a saber: que se há
de fazer a compensacáo cabal, exata do furto cometido (de resto, em Pr
6, 30 está dito que o ladráo deve restituir seré vezes o que roubou!);
ce) quando se quer indicar um dia ou ano de repouso, de renova-
cáo, ano que mais se assemelhe á perfeicáo da vida celeste; tal dia ou tal
ano é determinado pelo número sete (sétimo dia ou sábado, sétimo ano
ou ano sabático, ano jubilar ou qüinquagésimo (7x7+1) Cf Gn 2 2- Ex
20, 10; Lv 25, 1-17. ' '
b) o número tres

O número tres gozava também de grande estima entre os semitas,


nao somente por ser o primeiro composto impar, mas também porque o
triángulo equilátero constituí um dos símbolos mais expressivos de fir
meza e perfeicáo; é figura que sobre qualquer de suas bases está sem-
pre em pé, nao se deixando de modo nenhum derrubar.

O ternario ocorre com freqüéncía na Escritura, embora mais


parcimoniosamente do que o número sete. Sejam aqui mencionados
apenas:

Os tres filhos de Noé (Gn 6, 10), os tres amigos de Jó (2, 11), os


tres justos de Ezequiel (14, 14), os tres companheíros de Daniel (3, 23),
os tres anjos que apareceram a Abraáo (Gn 18, 2), os tres dias passados
por Joñas no ventre do monstro marínho (2, 1)...

Em cada um destes trechos, o sentido do número tres há de ser


analisado á luz do género literario adotado pelo hagiógrafo.
c) o número dez

O número dez tornou-se importante entre os antigos pelo fato de


que o homem primitivo, ao contar, recorría aos dedos de suas máos;
desta praxe se originou o sistema decimal. Em tais circunstancias, o nú
mero dez foi tido como símbolo de um "todo completo, fechado em si". É
certamente este o significado que Ihe compete ñas genealogias dos setitas
(Gn 5, 1-32) e dos semitas (Gn 11, 10-32): o hagiógrafo, ao mencionar
dez Patriarcas em cada uma, de modo nenhum entendía dizer quantas
geracoes mediaram respectivamente entre Adáo e Noé, Noé e Abraáo,
mas apenas quería referír-se a todos quantos (...) tenha realmente havi-
do, ficando o número exato desconhecido tanto ao escritor como ao lei-

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

tor. O que ¡nteressava ao autor sagrado era dizer que entre Adáo e Noé,
Noé e Abraáo, a serie dos tempos fo¡ preenchida sem algum aconteci-
mento digno de nota para a historiografía religiosa.

Sejam mencionados ainda:

os dez servos (= um grupo completo), as dez dracmas {= número


redondo), as dez virgens (= todos os cristáos), ñas parábolas de Cristo
(Le 19,13; 15, 8; Mt 25,1);
o catálogo (taxativo, nao exaustivo) de dez adversarios que nao
conseguem arrebatar ao cristáo o amor de Cristo (Rm 8, 38s);
a mencáo de dez vicios (nao exaustiva), que excluem do reino de
Deus (1Cor6, 9s);
a serie de dez milagres narrados sucessivamente para comprovar
a autoridade de Jesús após o importantíssimo sermáo sobre a montanha
(Mt 8s);
as dez prescricoes dirigidas a quem queira subir á montanha do
Senhor(SI 15).1

d) o número doze

O número doze adquiriu apreco em virtude da divisáo do ano em


doze meses, divisáo que já babilonios e egipcios observavam. Era natu
ral que o número, abrangendo um período definido em si, simbolizasse,
por sua vez, totalidade ou plenitude.
Na Sagrada Escritura, o número doze é básico para a historia do
povo de Deus. Este constava de doze tribos, portadoras da fé e da espe-
ranca messiánicas; em conseqüéncia, o reino messiánico mesmo é fre-
qüentemente assinalado pelo número doze. Com efeito, ele se propaga
mediante a pregacáo dos Apostólos, escolhidos pelo Senhor para cons-
tituírem o elo entre as doze tribos (a totalidade) do antigo Israel e a pleni
tude do novo Israel, agora recrutado dentre todas as nacoes. Baseado
sobre os doze Apostólos quais pedras fundamentáis, o reino messiánico
é descrito no Apocalipse como Cidade Santa, a nova Jerusalém, cuja
estrutura é impregnada do mesmo número: tem doze portas, guardadas
por doze anjos, ornada cada qual por urna pérola e o nome de urna das
1 "Wa antigüidade, todo santuario apresentava regras próprias, ordinariamente ritu-
ais, que deviam observaros que lá quisessem entrar para participar das béngáos do
cuito. Em Israel essas regras eram enunciadas nos formularios da "liturgia de entra
da", todos impregnados de moralismo... Um destes... constituí o salmo 15, salmo em
que é realgado o número dez...
A tradigáo israelita conhecia outros formularios que catalogavam em listas de doze
os atos e as pessoas que mereciam maldigáo" (Dt 27, 14-27), ou também os atos de
obediencia á Lei (Ez 18, 5-9).

488
OS NÚMEROS NA BÍBLIA

trlbos de Israel; sobre cada qual das pedras da base acha-se o nome de
um dos Apostólos; a cidade, sendo quadrada, tem doze mil estadios de
lado; a muralha perimetral mede cento e quarenta e quatro cóvados (cf.
Ap 21, 12.14.16s.20s). Tais ¡ndicacóes significam o caráter de plenitude,
consumacáo, que toca á nova Jerusalém ou á Igreja de Cristo; esta cons
tituí o reino teocrático por excelencia, em que os bens outrora outorgados
as tribos de Israel se acham multiplicados e oferecidos a todos os homens.
3. Enumeracóes Proverbiáis e Arredondadas
Dizia-se á p. 483 que os números na Sagrada Escritura por vezes
nao sao a expressáo de quantidades, mas designam qualidades.

É mister agora observar que, mesmo ao significar quantidades, sao,


por vezes, adaptados a artificios de linguagem; os orientáis admitiam
fácilmente certa latitude ao enunciar urna quantidade. É aos gregos, cuja
civilizacáo surgiu posteriormente á dos semitas, que o mundo ocidental
deve a tendencia á precisáo matemática, á exatidáo em geral; dos gre
gos receberam os demais europeus a geometría, a arte das medidas,
etc. Considerando este particular, os exegetas reconhecem haver na Sa
grada Escritura enumeracóes ¡ntencionalmente enfáticas, também enu
meracóes arredondadas, que nao corresponden! matemáticamente á
realidade.

Exemplo evidente de uso enfático proverbial encontra-se na histo


ria de Davi: para louvar a bravura deste guerreiro, cantavam os coros
populares:

"Saúl matou os seus mil;


Davi, porém, os seus dez mil."
(1Sm21, 12)

O sentido do verso é claro: "por muito aguerrido que tenha sido


Saúl, Davi aínda o é mais".

Outro artificio de números, alias muito expressivo, é a dísposicáo


dos elementos enunciados em duas series: n e n + ]. Haja vista, por
exemplo, o texto de Am 1, 3-2, 8: o profeta anuncia a seis povos pagaos
e as duas fracóes do povo eleito (Judá e Samaría) o castigo divino; ora,
ao se dirigir a cada um dos réus, usa a fórmula introdutória estereotípica:
"Assím fala o Senhor:
Por causa de tres crimes de... (Damasco, Gaza, Tiro...)
E por causa de quatro crimes,
Nao revogarei o meu decreto (de punicao)."
(Am 1,3.6.9.11.13; 2, 1.4.6)
A mencáo gradativa de tres e quatro crimes nao é de ordem mate
mática nem, por outro lado, é meramente retórica, mas tem seu signífica-

489
10 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

do próprio, proverbial. Com efeito, tres, no contexto, possui valor de su


perlativo; indica que o réu é grandemente culpado.1 A instancia quatro,
acrescentada logo a seguir, significa que a iniqüidade ultrapassa mesmo
toda medida e, por isto, provoca irrevogavelmente a punicáo divina.2

Afirmacoes em que números sao mencionados conforme o esque


ma n.n + 1 ocorrem freqüentemente na Sagrada Escritura, em particular
nos livros didáticos ou sapienciais. O artificio servia parte para ajudar a
memoria dos discípulos (que deviam aprender de cor as máximas
sapienciais), parte para dar énfase ao discurso: em vez de dizer simples-
mente e de urna só vez o valor total, o orador prefería enunciá-lo
parceladamente, prendendo mais a atencáo do ouvinte;3 nao raro o ora
dor visava com isto acentuar o último membro da serie, fazendo recair
mormente sobre este a forca da sua afirmacao. Eis alguns exemplos:

a figura um-dois ocorre em Jó 40, 5; SI 62, 12;


a figura dois-trés, em Jó 33, 29; Am 4, 8; Eclo 26,19; 50, 25s;
a figura dois-trés-quatro, em Pr 30,15s;
a figura trés-quatro, em Am 1s; Pr 30,18s.21-23.29-31; Eclo 26,5;

a figura quatro-cinco (associada a dois-trés), em Is 17, 6;


a figura cinco-seis, em 2Rs 13,19;
a figura seis-sete, em Jó 5,19; Pr 6,16;

1 Haja vista o que se disse sobre o simbolismo do número tres a pág. 487.
2 É bem de notar que, após a dita fórmula introdutória, o hagiógrafo nao enumera
nem tres nem quatro faltas, mas incrimina o erro ou os erros (quantos sejam!) do
respectivo povo.
3 Este artificio de énfase parece táo espontáneo a psicología humana que ele ocorre
também na literatura extrabiblica.
Os filólogos tém comprovado que os números enunciados em tais fórmulas nao
possuem valor matemático, mas sao símbolos, que háo de ser entendidos á luz do
simbolismo oriental dos números. Eis, entre outros, um exemplo proveniente de do
cumentos fenicios (ugaríticos), o qual claramente inculca nao se dever atribuir aos
números sentido quantitativo:
"Urna terca parte, os homens idóneos, morrerá; urna quarta parte, os principes,
morrerá; urna quinta parte será vitimada pela peste; urna sexta parte, osjovens he-
róis do mar, será vitimada; urna sétima parte, eis que ela perecerá pela espada."
Como se vé, as fragoes enumeradas dáo urna soma de 459/420, a qual excede a
unidade. Tratase, pois, de números irreais concebidos para indicar que todas as
categorías de responsáveis de determinado povo serio atingidas por flagelos diver
sos (a última fragáo é a do sétimo, número da totalidade!)
Cf. A. Bea, "Der Zahlenspruch in Hebraeischen und Ugarítischen', em Bíblica, 21
(1940), 198.
Note-se também o bis terque de Cicero, o ter quaterque beati de Vergílio.
Nao há dúvida, o emprego dos números em proverbios supóe por vezes o valor
simbólico dos mesmos de que tratavam as páginas anteriores.

490
OS NÚMEROS NA BÍBLIA

a figura sete-oito, em Ecl 11, 2; Mq 5, 4;


a figura nove-dez, em Eclo 25, 7.1

Acontece também que a enunciacáo seja feita diretamente sem


graduacáo enfática (cf. Eclo 25, 1-4; Pr 30, 24).2

Aínda se deve observar que certos números na Sagrada Escritura


nao parecem ser nem indicacoes matemáticas, nem expressoes prover
biáis, mas simplesmente cifras aproximativas ou arredondadas. Exem-
plo marcante é o seguinte: o autor sagrado em 1 Rs 7, 23 e 2Cr 4, 2,
refere que o mar de bronze, grande piscina colocada por Saiomáo sobre
'A fim de tornar mais significativas as referencias ácima, transcrevemos um ou outro
dos textos citados:
"Eis, Deus faz isso ludo,
Duas vezes, tres vezes, em favor do homem,
A fim de o salvar da rhorte
E iluminá-lo com a luz dos vivos"
(Jó 33, 29s)
"A sanguessuga tem duas filhas: Dá, dá!
Tres coisas sao insaciáveis,
Quatro mesmo nunca dizem: Basta!
A regiáo dos mortos, o seio estéril,
A ierra que nao se satura de agua,
E o fogo que ¡amáis exclama: Basta!"
(Pr30, 15s).
"Seis coisas há que o Senhor odeia,
E sete que ele abomina;
Os olhos altivos, a língua engañadora,
As máos que derramam sangue inocente,
O coracáo que medita planos pecaminosos,
Os pés apressados a correr ao mal,
A falsa testemunha que profere mentiras,
E aquele que dissemina a discordia entre irmáos"
(Pr6, 16-19).
"Quando o assírio invadir nossa térra
e seu pé calcar nosso palacio,
taremos levantar contra ele sete pastores
e oito príncipes do povo."
(Mq 5, 4)
2 E o que se dá em Eclo 25, 1-4:
"Meu espirito compraz-se em tres coisas
Aprovadas por Deus e pelos homens;
A uniáo entre os irmáos, o amor ao próximo,
E um marido que se entende bem com a esposa.
Há, porém, tres tipos de pessoas que minha alma detesta
E cuja vida me é insuportável:
Um mendigo soberbo, um ricaco mentiroso,
E um anciáo tolo e insensato."

491
12 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

doze estatuas de bois á entrada do Templo do Senhor, era circular e tinha


um perímetro de trinta cavados por dez de diámetro. No caso, a propor-
9§o entre a circunferencia e o diámetro seria simplesmente igual a tres; o
valor pi, que na matemática é de 3, 1416, foi, portante expresso redon
damente pelo número fres. Outros exemplos seriam: o total de tres mil
proverbios que Salomáo proferiu em sua vida, de acordó com 1 Rs 4,12;
os setenta milhares de vítimas da peste desencadeada sobre o reino de
Davi, conforme 2Sm 24,15. Ao menos, segundo bons comentadores cató
licos, nada há que obrigue a se atribuir sentido literal a estes números.
4. Números mal transmitidos

Mais urna observacáo se ¡mp5e na exegese dos números bíblicos.


Há problemas de números na Sagrada Escritura ocasionados por
erros de copia ou por deficiente conservacáo do texto sagrado. Está cla
ro que em tais casos a auténtica interpretacáo se obtém pela aplicacáo
das normas da arte crítica do texto, que em certo grau levam a reconstituir
o teor original da página estudada.
Nao era difícil que um copista hebraico incorresse em erros natrans-
missáo dos números. Os números eram assinalados pelos caracteres do
alfabeto; ora estes por vezes se assemelhavam tanto entre si que se
podiam fácilmente confundir uns com os outros.
Eis alguns textos em que as máos dos copistas introduziram vari
antes erróneas:

Gn 2, 2. O texto hebraico atual, assim como a traducáo latina da


Vulgata (séc. V d.C), apresentam a forma:
"Deus terminou no sétimo dia a obra que fizera, e repousou
no sétimo día."
Ao contrario, as traducóes grega dos LXX {séc. III a.C.) e siria (séc.
l/ll d.C.) dao a ler:

... terminou no sexto dia... e repousou no sétimo...


Dentre estas duas variantes, nao se hesita em julgar que a segun
da é a original, embora só esteja conservada em traducóes. O contexto a
exige, e exige imperiosamente. A confusáo entre "seis (sexto)1 e "sete
(sétimo)" se explica fácilmente, considerada a afinidade gráfica de vau =
6 e zain = 7.

Segundo o texto hebraico de 1 Rs 5,6 (Vg 4,26) e 2Cr 9,25, Salomáo


possuía quarenta m//mangedouras para os seus cávalos. Ora a traduc.áo
grega dos LXX em 2Cr 9, 25 fala apenas de quatro mil mangedouras,
variante que mais fidedigna parece, embora nao atestada pela forma atual

492
OS NÚMEROS NA BÍBLIA 13

do texto hebraico. Os tradutores gregos, no caso, nos teráo transmitido o


teor de um arquetipo hebraico mais bem conservado do que os nossos.

Em 2Cr 36, 9 (texto hebraico) lé-se que Jeconias tinha oito anos
quando comecou a reinar, ao passo que as traducoes grega e siria, as-
sim como a secáo paralela de 2Rs 24, 8, Ihe atribuem dezoito anos no
inicio do seu reinado. Eis mais urna divergencia que muito provavelmen-
te se há de explicar por deficiente transmissáo do texto original.

O texto hebraico hoje conservado de 1Sm 13, 1 se apresenta


lacunoso: "Saúl tinha a idade de ... anos, quando comecou a reinar; rei-
nou ... anos em Israel." A causa do defeito nao poderia ser indicada com
precisao. As traducóes dos LXX e da Vg suprem a deficiencia, mas de
modo descabido, interpretando fontes ou seguindo criterios atualmente
desconhecidos. Asslm é que dáo a ler: "Saúl tinha um ano quando come
cou a reinar; reinou dois anos em Israel." Sao Paulo, em At 13,21, refere
outra tradicáo judaica, a qual assinala a duracáo de quarenta anos ao
reinado de Saúl. Diante destas variantes, difícil se torna reconstituir a
realidade histórica.

Ao se estudarem os problemas de números na Biblia Sagrada, é


necessário outrossim se levem em consideracáo as glossas ou
interpolacóes praticadas por máos posteriores á do autor. Com efeito,
acontecía por vezes que, diante de um texto aparentemente obscuro, um
leitor desejoso de resolver a presumida dificuldade acrescentava um dado
que, em vez de esclarecer, só fazia suscitar um problema exegético; ou-
tras vezes o interpolador visava a tornar mais semelhantes entre si dois
textos que Ihe pareciam afins um com o outro. Assim se originavam com-
plicacóes para o futuro intérprete da Escritura Sagrada...

Haja vista apenas o seguinte exemplo:

Em 1Cr 21, 5 lé-se que sob o rei Davi "todo (o povo de) Israel con-
tava 1.100.000 o- .reíros, e Judá 470.000 guerreiros". Ora o autor de
2Sm 24, 9, em texto paralelo, menciona "800.000 guerreiros em Israel, e
500.000 em Judá..."1

A solucáo do problema é complexa...

Em primeiro lugar, note-se que algumas recensóes gregas de 1Cr


omítem o número de 470.000 guerreiros em Judá. Além disto, observa
se que o primeiro número (1.100.000 homens armados) se refere a todo
o povo de Israel (incluindo a tríbo de Judá, a quanto parece). Sendo as
sim, bons exegetas admítem que o número de 470.000 em 1 Cr 21,5 seja
0 produto de interpolacáo.

1 "Israel", neste último texto, é entendido como o reino cismático do Norte; "Judá",
como o reino do Sul.

493
14 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

Eliminado este número, o leitor se vé diante de duas tradicóes exis


tentes no povo de Deus a respeito do número de soldados do Rei Davi: a
tradicáo de 1 Cr 21 e a de 2Sm 24. Já que estes dados sao indiferentes á
mensagem religiosa da Biblia, o Espirito de Deus nao revelou aos
hagiógrafos o número exato de guerreiros, mas permitiu que cada qual
referisse simplesmente o que aprenderá por via humana; tais indicacóes
bastavam para transmitir as verdades de índole religiosa que a historia
de Davi era destinada a comunicar aos leitores.

Feitas, porém, estas observacóes, ainda se deve reconhecer que


qualquer dos números - 1.300.000 (2Sm 24) ou 1.100.000 homens de
guerra (1 Cr 21) - é excessivo; supóe um total de quatro ou cinco milhóes
de cidadaos em Israel nos tempos de Davi - o que é inverossímil. Esta
última dificuldade se esvanece se se considera que o termo hebraico
'eleph, significando "milheiro", podia designar a fracáo de urna tribo, de
terminada subdivisáo administrativa, como é o caso em Jz 6,15; 1Sm 10,
19; 23,23; Mq 5,8. 'Eleph, milheiro, pois, em linguagem militar, designa
ría um batalháo (ordinariamente de mil homens), como centuria em latim
significava o batalháo (ordinariamente de cem soldados). Ora pode-se
bem admitir que os nomes 'eleph {= milheiro) e centuria hajam sido con
servados na linguagem cotidiana, mesmo quando o efetivo dos batalhóes
já nao era respectivamente de mil ou cem homens. Aplicando-se tal hipó-
tese aos textos de 1 Cr 21 e 2Sm 24, conclui-se que sob o rei Davi havia
1.100 ou 1.300 batalhóes em Israel, sem que cada qual tivesse necessa-
riamente o montante de mil homens. Desta forma se chega a plausível
solucáo do problema.

O fato de que Deus haja permitido a introducáo de erros de copia


no texto sagrado, assim como a deficiente conservacáo ou a perda do
original de alguns livros, nao chega a atetar a mensagem religiosa da
Biblia. Com efeito, relativamente poucas sao as variantes de alcance
dogmático ou teológico registradas nos códigos sagrados. Assim nos li
vros do Novo Testamento, que tém sido os mais copiados e estudados
no decorrer da era crista, apontam-se cerca de 200.000 variantes, con
signadas num total de aproximadamente 4.500 códigos; destas varian
tes, porém, a grande maioria versa sobre ortografía, uso ou omissáo de
preposicóes, artigos, emprego de sinónimos, posicao de palavras na fra
se, nao atingindo o sentido do que o autor sagrado quería dizer. Um pou-
co menos de 200 variantes tocam o significado do texto em pormenores
secundarios (cf. Rm 12,13; Le 2,14; 1Ts 2,7...). Cerca de quinze apenas
dizem respeito a assuntos dogmáticos (cf. Mt 1, 16; Me 1,1; Le 22, 19s;
Jo 1,18; 1Cor 15, 51; 1Tm3,16...). Nao obstante, para resolver as dúvi-
das teológicas provenientes de tais oscilacóes, a Sagrada Escritura mes-
ma fornece outros textos, mais ou menos paralelos, sobre cuja fidelidade
literaria nao pairam questóes.

494
OS NÚMEROS NA BÍBLIA 15

Desta maneira a Providencia Divina, sem querer impedir as vicissi-


tudes por que naturalmente passam os manuscritos antigos, velou, nao
obstante, para que a defectibilidade das criaturas nao deturpasse a men-
sagem do Criador.

5. Sentido exclusivo e Sentido precisivo

Entre os principios que norteiam a exegese dos números bíblicos,


nao se poderia deixar de mencionar mais o seguinte: os semitas as ve-
zes atribuiam as suas enumeracóes sentido precisivo, nao exclusivo, ou
sentido taxativo, nao exaustivo.

Que quer isto dizer?

Entre nos, ocidentais modernos, as enumeracóes costumam ser


exatas, excluindo quantia mais elevada do que a referida; aos números,
portanto, se acrescenta tácitamente o adverbio "sonriente, apenas"; dá-
se-Ihes assim sentido exclusivo, a menos que o contrario se imponha
pelo contexto.

O semita, embora usasse deste nosso modo de falar, fazia tam-


bém enumeracóes que apenas prescindiam de quantidade maior, sem a
excluir, contudo, assim falando, nao julgavam dever advertir o leitor a
respeito do artificio. O orador deixava simplesmente de mencionar toda a
quantidade, porque nem tudo vinha ao caso ou era de interesse na narra
tiva. A quantia enunciada correspondía á realidade considerada sob cer-
to aspecto; nao excluía, porém, que outro número, mais vultoso, fosse
também fiel á realidade (considerada entáo sob aspecto diverso). Usa-
vam assim o número em sentido precisivo, nao exclusivo, absoluto.

Eis como tal modo de falar repercute em passagens da Sagrada


Escritura:

S. Marcos (10, 46-52) descreve como, ao sair de Jericó, o Senhor


curou um cegó; S. Mateus (20, 30), porém, no texto paralelo, fala de dois
cegos. S. Marcos (5, 2) e S. Lucas (8, 27) mencionam um homem pos-
sesso, que Jesús libertou do demonio, ao passo que S. Mateus (8, 28)
refere dois homens endemoniados. Ora ensina a sá exegese, estas sao
outras tantas divergencias em que o principio atrás exposto encontra apli-
cacáo.

Também ñas suas indicacóes cronológicas os semitas faziam uso


dos termos ora no sentido exclusivo ora no precisivo.

Exemplos deste último tém-se em:

Mt 26, 32: "Depois que tiver ressuscitado, preceder-vos-ei na


Galiléia", disse Jesús aos Apostólos; cf. Me 14, 28. De modo semelhante

495
16 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

anunciaram os anjos as mulheres santas: "Preceder-vos-á na Galiléia; lá


O veréis" (Me 16, 17; cf. Mt 28, 7). Contudo os evangelistas mesmos
referem que no dia da ressurreicáo Jesús se mostrou em Jerusalém nao
somente as santas mulheres (cf. Mt 28, 9; Jo 20,11s), mas também aos
Apostólos (cf. Le 24, 36; Jo 20,19.26). Disto se concluí que as profecías
de aparicóes na Galiléia tínham sentido precisivo, nao exclusivo. Em ou-
tros termos, significavam: "Na Galiléia certamente veréis a Jesús (e aque-
las manifestacóes seráo as principáis)", nao "Na Galiléia, pela primeira
vez, veréis a Jesús".

Famoso é também o uso bíblico da conjuncáo "até que":

em Mt 1, 25 está dito que José nao se uniu a María "até que desse
á luz o seu filho..." Ora, conforme a tradicáo exegética vigente desde os
tempos mais antígos, ¡sto nao quer dizer que, após haver María dado á
luz, José tenha tído com ela contato conjugal. Portanto, "até que", no
caso, nao excluí o "depois que", apenas "prescinde" ou faz abstracáo do
que aconteceu depois;

o S1110,1 anuncia:
"Javé falou a meu Senhor (o Messías):
Senta-te á minha díreita,
Até que eu faca de teus inimigos o supedáneo de teus pés."

O oráculo nao significa que, após debelados os inimigos do reino


messiánico, o Messias haverá de perder o seu primado ou a sua realeza;
tal interpretacáo contradiría a toda a teología bíblica. É o que nos leva a
dízer que também neste versículo nao se deve atribuir ao termo "até que"
sentido exclusivo, mas apenas precisivo.

As consideracóes deste artigo visam táo somente a indicar as prin


cipáis vias que conduzem á genuína interpretacáo dos números ocorrentes
na Sagrada Escritura. O recurso a tais instrumentos exegéticos há de
variar, naturalmente, de caso a caso; dependerá sempre do exame do
género literario usado pelo hagiógrafo. De antemáo, porém, ficará o leitor
consciente de que nem todo número na Biblia quer e deve ser entendido
como a expressáo quantitativa, matemática, da realidade.

496
Diante das maravilhas da tecnología:

RELIGIÁO OPIO DO POVO?

Em síntese: A historia mostra que a religiáo foi um elemento pro


pulsor de muitos empreendimentos do homem: a casa, as estradas, a
agricultura, a industria... muito se beneficiaram da inspiracáo religiosa. A
Escola de Etnología de Viena, após minucioso estudo dos povos primiti
vos, afirma que a religiáo era inicialmente monoteísta; com o progresso
da civilizagáo fot declinando para o politeísmo com seus mitos, o
endeusamento da natureza (da qualohomem depende)... até o culto do
Imperador.
* * *

Dado que os povos primitivos manifestavam evidente senso religi


oso, pergunta-se: nao seria a religiáo a expressáo do medo, da ignoran
cia e da simploriedade do homem? Nao estaría ultrapassada em nossos
tempos, incapaz de resistir ao crivo da inteligencia?

Abordemos a temática.

1. Religiáo - elemento propulsor

Longe de se prender á ignorancia e a covardia, a Religiáo tem sido


poderoso estímulo da cultura: verifica-se que as grandes conquistas da
civílizacáo no decorrer dos sáculos foram empreendídas primeiramente
por interesses religiosos. Para ilustrar ¡sto, os geógrafos apontam longa
serie de instituicoes culturáis que a Religiáo inspirou ou, ao menos, fo-
mentou pujantemente:

a) A casa. O domicilio do homem difere do ninho ou do antro do


animal irracional nao só por sua complexidade, mas principalmente por
ser em seus primordios um santuario religioso. Com efeito, o tipo carac
terístico da casa entre os romanos, por exemplo, se deve ao culto do
fogo sagrado, fogo junto ao qual residiam os deuses Lares e Penates;
para defender dos profanos o fogo santo, os homens construíram errí
torno dele um enquadramento, no qual aos poucos conceberam a idéia
de estabelecer sua própria residencia. Algo de semelhante se deu entre
os gregos, os quais díziam que o fogo havia ensinado os homens a cons
truir seu domicilio. O fogo parece ter entrado ñas casas em geral primei
ramente a título religioso; só posteriormente foi dentro de casa utilizado
para fins domésticos (aquecer, cozinhar...); ainda há tribos antigás que

497
18 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

deixam a cozinha com o fogo fora de casa, só introduzindo no domicilio o


fogo de caráter religioso. - Numerosos sao os vestigios de crencas religi
osas na arquitetura e na localizagáo das casas, na disposicáo de portas,
janelas e pocos, entre os diversos povos.

b) As cidades. Também a formacáo e a configuracáo das cidades


foram fortemente inspiradas por motivos religiosos. Era em torno de um
templo ou de um recinto de culto que se ia aglomerando a populacáo de
urna regiao, dando assim origem a urna aldeia ou cidade; Enéias, por
exemplo, fundou a cidade de Lavinium, levando para o santuario do mes-
mo nome os deuses de Tróia; na Idade Media era em torno de urna igreja
situada no alto de urna colina, ou em torno de um mosteiro, que freqüen-
temente se fundavam as cidades (tenham-se em vista os nomes com-
postos com moutier, mosteiro: Romainmoutier, Moyenmoutier,
Noirmoutier...; em alemao Münster...).
Observe-se também que desde cedo se foram constituindo cida
des entre os egipcios, os mesopotámicos, os cretenses, porque a reli-
giáo Ihes favorecía; julgavam que os deuses queriam cidades; as gran
des cidades gregas nasceram em período de efervescencia religiosa. Ao
contrario, os germanos, os celtas, os albaneses só tardíamente conhece-
ram cidades, porque a sua sabedoria religiosa nao as fomentava; foram
nao raro estrangeiros que entre eles fundaram as cidades.
c) A agricultura. Foi também muito estimulada por concepcóes
religiosas, que atribuíam a certas plantas um valor sagrado ou urna fun-
cáo qualquer no culto. Tal foi o caso da figueira, que na india traz o nome
de ficus religiosa; os gregos diziam que o figo era símbolo de iniciacáo
a melhor vida, A oliveira gozou de semelhante estima. - O opio, ao con
trario, sendo proibido pelo budismo e o islamismo, é cultivado com estra-
nha irregularidade no Oriente.

d) Os animáis. Também nao poucos animáis tém recebido venera-


cáo religiosa. Em varios casos a passagem do animal selvagem para o
estado de animal doméstico se fez mediante o estado de animal sagra
do. O elefante, por exemplo, antes de ser animal doméstico, era animal
sagrado na india. No antigo Egito, os gatos sagrados eram
numerosíssimos (descobriram-se milhares de múmias desse felino); jul-
ga-se com probabilidade que foram domesticados por constituírem obje
to de culto religioso. Outros animáis entraram no convivio do homem, a
fim de honrarem a Divindade pela sua beleza; assim a ibis, no Egito; o
paváo, na india; o gamo, no Japáo.
e) A industria. Nao menos profunda é a influencia benéfica da
Religiáo no desenvolvimento da industria. A fabricacao de laticínios, por
exemplo, está em grande parte a servico do culto no Oriente; nos tem-

498
RELIGIÁO OPIO DO PQVQ? 19

píos do Tibete centenas de lamparinas ardem dia e noite, alimentadas


por manteiga; os "lamas" tém o rosto, as pernas e as máos untadas com
manteiga. A fabricacáo do papel e do Nvro tém dependido muito das ne-
cessidades do culto e da piedade; o mesmo se dá com os téxteis e a
metalurgia.

f) O comercio. Está claro que as aglomeracóes vultosas de fiéis


motivadas pela religiáo acarretaram intensificacáo benéfica do comercio;
as primeiras moedas eram objetos estimados por seu caráter ritual ou
seu valor religioso. A contabilidade dos Bancos e escritorios tem suas
origens nos templos da Mesopotámia, onde os sacerdotes, movidos por
respeito sagrado, faziam o inventario de tudo que dizia respeito ao culto
e ao sustento do templo.

g) Os transportes, as vias e as pontes devem grande parte do


seu incremento ao fervor religioso de peregrinos e missionários. Nao raro
a afluencia a determinado santuario provocou a abertura de estradas,
assim como a multiplicacáo e o aperfeicoamento de veículos. - Em par
ticular, as pontes tém sido obras de sacerdotes ou de pessoas dedicadas
a Deus. Com efeito, os romanos pagaos, por exemplo, julgando que os
rios tinham algo de sagrado, reservavam a construcáo de pontes a um
grupo especial de sacerdotes. Entre os cristáos da Idade Media, era a
caridade que levava os fiéis a formar confrarias construtoras de pontes:
havia os "Irmáos Pontífices", aos quais se devem as pontes de Avinháo e
do Espirito Santo, sobre o Ródano (Franca).

h) Por fim, note-se outrossim que no surto das artes está em geral
a inspiracáo religiosa; as primeiras pecas literarias das antigás e moder
nas civilizacoes sao documentos religiosos; costumam estar redigidos
em poesía, que é a forma literaria mais correspondente ao entusiasmo
sagrado {tenham-se em vista, por exemplo, as obras de Hornero e dos "teó
logos" gregos). A pintura e a escultura nao sao menos tributarias á Religiáo.
Em suma, registra-se o seguinte: sempre que nos é dado observar
as origens ou as fases iniciáis de determinada cultura, verificamos que
as suas diversas manifestacóes estáo todas indistintamente fundidas com
a Religiáo; é no seio materno da Religiáo que elas nascem e por muito
tempo sao nutridas.

Donde se vé que considerar a Religiáo como algo de pré-lógico ou


como produto da covardia do homem significa, de certo modo, lancar
urna nota de desprezo sobre a própria cultura humana, que nasceu no
seio da Religiáo.

Vém a propósito aqui as observacoes de famoso geógrafo do sé-


culo XX:

499
2o "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

"A maioría dos homens atesta sobre a Térra a existencia do sobre


natural; a especie humana, em graus diversos, mas de maneira geral, é
religiosa; esta, alias, vem a ser urna de suas características; o 'homo
faber et'sapiens' é também primordialmente um homo religiosus. Por
obra dele, a térra está impregnada de religiosidade. A pujante tarefa cul
tural dos homens nao foi efetuada somente em vista da instalagao da
especie humana sobre o globo, mas parte muitas vezes grandiosa des-
ses esforgos foi empreendida mais ou menos diretamente a fim de pro
clamar ou exaltar a existencia de seres sobrenaturais ou sagrados...
A religiao nos aparece como um dos grandes fatores que transfor-
mam a face da Tena e, em qualquer caso, como o motivo de atividades
característicamente humanas... A semelhanga do homem, o animal (irra
cional) lutou contra os elementos da natureza; mas o que somente o ho
mem fez, foi dar vulto á idéia da Divindade sobre a face do globo. A Ge
ografía religiosa vem a ser a Geografía mais específicamente humana..."
(P. Deffontaines, Géographie et Religions. París 1948, 8. 12).
2. Progresso material e decadencia religiosa

Contrariamente as teorías do século XIX, verifica-se que os povos


primitivos professam a crenca num só Deus bom, Autor de tudo e todos,
a quem os homens devem obediencia e prestacáo de contas dos seus
atos. Esta afirmacáo está hoje assentada sobre denso material colhido
pelos exploradores. Foi com o progresso da civilizacáo que o homem
comecou a deturpar o seu monoteísmo inicial, caindo nos tipos de reli-
giáo grosseiros que certos autores julgavam ser anteriores á crenca num
só Deus.
Entende-se bem tal roteiro da historia das religióes. Á medida que
se desenvolve a civilizacáo, o homem entra em contato com a natureza e
seus misterios; percebe a sua dependencia frente aos grandes fatores
da prosperidade e da desgraca: o sol, a lúa, a térra fecunda, a chuva, o
trováo, etc. Daí surge-lhe a tentacáo de transferir para estas criaturas o
conceito de Deus, o qual é entáo esfacelado.
Mais ainda: para explicar a diversificacao da religiao inicial, levar-
se-á em conta o seguinte. Todo homem traz em si duas aspiracóes es
pontáneas: a de saber e a de poder ou dominar. Ora a religiao primitiva
era muito simples, ensinando ao homem apenas o essencial a respeito
de Deus e da vida moral; em conseqüéncia, o desejo de saber ou de
explicar os misterios levou muitos dos antigos a tentar suprir, com o bom
senso ou com a fantasía, as lactinas deixadas pela sua crenca religiosa;
assim tiveram origem os mitos, historias fantasistas concernentes á Di
vindade e aos homens, ñas quais o conceito de Deus é geralmente rebai-
xado. - Outros individuos, impelidos pela ambicáo ou pelo desejo ¡nato
500
RELIGIÁO OPIO DO PQVQ? 21

de dominar, comecaram a explorar a Religiáo (fator certamente podero


so) para obter prestigio junto aos seus semelhantes, apresentaram-se
como detentores de segredos (fórmulas e artes) capazes de torear a Di-
vindade a intervir em favor dos homens. Tais sao os magos, que, como
se vé, também derrogam aos conceitos de Deus e Religiáo, pois preten-
dem colocar a Divindade a servigo do homem.

Recolhendo-se os dados propostos na presente explanacao, póde


se reconstituir a evolucáo da cultura humana e dos fenómenos religiosos
conforme o quadro seguinte, proposto pela Escola Etnológica de Viena
(Schmidt, Gusinde, Schebesta, Kóppers):

1) Cultura originaria: comecou há uns 600.000 anos, com o apa-


recimento dos primeiros homens, no período paleolítico antigo.
Os homens nao sabem cultivar a térra industriosamente nem do
mesticar os animáis; por isto vivem do que colhem dentre os produtos
nativos do solo, ou do que conseguem cagar. Daí a designagáo de cole-
tores e cacadores primitivos que Ihes é dada. Os homens dedicam-se
á caca (trabalho mais arduo), ao passo que as mulheres colecionam fru
tas, bulbos e raízes (tarefa mais suave).

O matrimonio é monogámico, havendo primazia moral do varáo e


suficiente reconhecimento dos direitos da mulher. A uniao conjugal é es-
tável; o divorcio, coisa rara, tida como excecáo.

É reconhecida a propriedade particular. Nao há aristocracia nem


se pratica a escravidáo.

A religiáo é monoteísta, cultuando-se um Deus que é Pai e Remu-


nerador dos homens.

2) Cultura media, também dita primaria: o segundo grau de cul


tura é o dos cacadores superiores, cultivadores e pastores, iniciado
no período paleolítico recente há uns 100.000 anos atrás.

O homem conseguiu fazer progressos na industria, fabricando ins


trumentos (ainda simples) que Ihe permitem dirigir verdadeira caga aos
animáis, de modo sistemático. Do regime dos cacadores superiores se
origina posteriormente o tipo de cultura pastoril (dos pastores); há, sem
dúvida, urna distancia entre cagar industriosamente para consumir in
continente, e criar, domesticar, o animal.

Os instrumentos permitem também cultivar o solo de maneira me


tódica e eficiente.

O progresso económico assim obtido é acompanhado de deca


dencia moral e religiosa.

501
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

No regime dos cacadores predomina a figura do varáo, consciente


de seu poder e sua importancia. Daí nasce a forma de vida patriarcal,
poligámica, nao mais monogámica; constitui-se o direito da primogenitura.
- Em religiáo, cultuam-se os astros, em particular o Sol, considerado
como símbolo do varáo e fonte de energías naturais, beleza e vida. A
tendencia do varáo a dominar se exprime na magia, que surge e toma
grande incremento, visto o contato freqüente dos cacadores com a natu-
reza e suas forcas ocultas. Admitem-se deuses secundarios, que sao os
elementos da natureza personificados e os espíritos superiores ao ho-
mem.

No regime dos cultivadores predomina a figura feminina e, por con-


seguinte, o matriarcado. Em religiáo, cultuam-se a Terra-Máe sempre
fecunda, deusa inexaurível da vida, e a Lúa, que é tida como símbolo da
mulher Os varóes se organizam em sociedades secretas, que prestam
culto especial aos mortos; donde o animismo, que é derrogacáo á reli
giáo do Ser Supremo.

3) Cultura mista; fundem-se num so género de vida o tipo do pas


tor e o do agricultor, dando origem ao camponesato. Este abre o período
mesolítico, entre 5000 e 3000 a.C.
A vida de familia se torna mais estável e definida; a distribuicáo
equitativa do trabalho entre marido e mulher contribuí para equilibrar as
relacoes entre os dois sexos.

A consciéncia religiosa se vai obscurecendo cada vez mais: o culto


dos astros e dos elementos da natureza, o animismo e a magia, desen-
volvendo-se; chegam por vezes a submergir o culto do Ser Supremo.
4) Alta cultura: formaram-se por fim as civilizacoes estritamente
documentadas por monumentos históricos, os quais apareceram em toda
a sua eflorescencia por volta do ano 3000. Constituíram-se os grandes
imperios do Egito, da Assíria, da Babilonia, etc., em que as classes soci-
ais se foram diversificando, o despotismo se introduziu junto com o culto
ou a divinizacáo do monarca. Numerosos deuses e semideuses foram
sendo cultuados, o que acarretou a máxima exuberancia do politeísmo e
grande decadencia da moral; o imoral e o anti-social foram como que
legalizados ou divinizados.

Assim passou o homem do monoteísmo primitivo ao politeísmo.


No século XIX a.C. o Patriarca Abraáo, chamado por Deus, encabecou
em Canaá o ressurgimento do monoteísmo. Há quem julgue que na épo
ca de Abraáo havia resquicios do monoteísmo, pois aparece entáo
Melquisedeque como Rei e Sacerdote do Deus Altíssimo; cf. Gn 14, 18.

502
Igreja ñas catacumbas:

PERSEGUigÁO RELIGIOSA NA CHINA

Em síntese: Desde 1949 a China Comunista persegue a Igreja


Católica. O presente artigo descreve dois episodios relativos á violencia
sofrida pelos católicos: a destruigáo do Santuario de Nossa Senhora de
Dong Lu e os padecimentos de Margaret Chu, heroína que sobreviveu
após 21 anos de trabalhos toreados.
* # *

A China caiu sob o regime comunista em 1949. Em conseqüéncia


o governo ateu comecou a pressionar fortemente a Igreja Católica, proi-
bindo o ensino da Relígiáo ñas escolas católicas, onerando com pesados
impostos as escolas e as igrejas católicas, expulsando os missionários
estrangeiros... A Igreja Católica viu-se impossibilitada de comunicar-se
com o exterior. Nesse contexto dois episodios sejam narrados á guisa de
espécimens do furor persecutorio.1

1. A Destruigáo do Santuario de Nossa Senhora de Dong Lu

Há pouco mais de tres anos o Presidente da China Jiang Chi-Ming


visitou os Estados Unidos; nessa ocasiáo o Ministro chinés do Exterior
declarou ao Departamento de Estado norte-americano que o bispo Su
Chi Ming fora libertado do cárcere num gesto de boa vontade do Presi
dente Jiang. Infelizmente, porém, esta boa noticia foi clamorosa mentira
da parte do governo chinés. Na verdade, o bispo Su nao foi posto em
liberdade. E ninguém sabe onde se encontra.

Su é bispo de Baoding na provincia de Hebei, a uns 124 quilóme


tros de Bejing. Baoding e as cidades vizinhas tém sido católicas durante
muitas geracóes. Essa regiáo professa urna tradicáo de fé forte, cora-
gem e martirio. É também a térra natal de mais de 40 entre os 120 már
tires canonizados pelo Papa Joao Paulo II a 1o de outubro de 2000.

Na cidade de Dong Lu, pertencente á diocese do bispo Su, havia


um Santuario Mariano dedicado a Nossa Senhora de Dong Lu. O Santu
ario foi alvo de continuas peregrinacóes por mais de 100 anos. Anual
mente, apesar do risco de ser perseguidos pelo governo comunista chi
nés, dezenas de milhares de peregrinos provenientes de toda a China
visitaram o Santuario. Procurando deter a afluencia de peregrinos, o gover-

1 Textos extraídos do artigo de Joseph Kung: Persecución y martirio de católicos


en China, publicado na revista ECCLESIA em janeiro-marco de 2001, p. 123-143.

503
24 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

no restringiu a venda de passagens do transporte público para essa re-


giio e confiscou a lícenca de dirigir de todos aqueles que, como peregri
nos, procuravam o Santuario. Apesar de tudo, diariamente chegavam
pessoas de bicicleta e em caminhoes ou a pé. Os habitantes da cidade
levavam os peregrinos em suas bicicletas ou em carretas puxadas por
burros até o alto do Santuario. Principalmente no mes de maio era gran
de o afiuxo de devotos que celebravam com grande soienidade a festa
de Maria Auxiliadora aos 24 de maio.

Anualmente naquele Santuario vinte ou trinta sacerdotes se senta-


vam ao ar livre durante o dia inteiro para ouvir milhares de confissóes.
Muitos dos peregrinos nao tinham visto um sacerdote durante meses ou
anos. Muitos tinham que gastar seus emolumentos para fazerem esta
viagem. Tal Santuario era o único centro de peregrinacóes que pertencia
á subterránea Igreja Católica. Outros templos, inclusive a conhecida
basílica She Shan em Changai, foram entregues á igreja cismática ou á
Associacáo Patriótica fundada pelo governo.

Visto que nao havia nem hotéis nem hospedarías no pobre povoa-
do de Dong Lu, todas as casas dos católicos estavam abertas aos pere
grinos. Outros peregrinos se refugiavam debaixo das árvores. As aldeias
católicas vizinhas guardavam farinha no decorrer do ano para poder ofe-
recer aos peregrinos tortas gratuitas.

Aos 23 de maio de 1995, quatro bispos e mais de 100 sacerdotes


concelebraram nesse ampio campo aberto. Participaram algumas cente
nas de seminaristas, religiosas e 30 mil peregrinos. Varios sacerdotes
provinham de Hong Kong e de Taiwan. Durante a Santa Missa os sacer
dotes e os 30 mil peregrinos foram testemunhas de urna espetaculartrans-
formacáo do sol, algo de semelhante ao que aconteceu em Fátima. As
testemunhas oculares descreveram tal evento em muitos jomáis interna-
cionais. A noticia se difundiu por toda a China. Como se compreende, o
fato nao agradou ao governo chinés.

Quase um ano mais tarde, em abril de 1996, pouco antes da pere-


grinacáo anual de maio, cinco mil soldados chineses, apoiados por deze-
nas de tanques e helicópteros, arrasaram o povoado de Dong Lu. Os
soldados destruíram o santuario. O governo confiscou a estatua da Vir-
gem Maria. Prenderam o bispo Su Ch¡ Ming juntamente com o seu bispo
auxiliar e muitos dos sacerdotes e dirigentes leigos. Atualmente, cinco
anos mais tarde, o bispo Su e muitos sacerdotes e leigos continuam no
cárcere, em prisáo domiciliar ou sob severa vigilancia.

Tentemos visualizar: cinco mil soldados, tanques, helicópteros,


golpes e prisóes! Tudo isto contra gente desarmada e sem protecáo al-
guma. Parecía repetir-se nesta pequeña aldeia, em menor escala, o que

504
PERSEGUICÁO RELIGIOSA NA CHINA 25

se dera na praca de Tiananmen. A única diferenca consistía em que em


Dong Lu nao havia jornalistas nem cameras fotográficas. O santuario
centenario de Nossa Senhora de Dong Lu foi totalmente destruido sem
que se tenha ouvido algum protesto oficial por parte de algum governo
deste mundo. O santuario deixou de existir, e o bispo Su desapareceu
sem deixar vestigio; é um mártir vivo, que segué fielmente as pegadas de
muitos mártires da provincia de Hebei, que o precederam.
2. A Odisséia de Margaret Chu

Aos sete de maio de 2000, no Coliseu Romano o Santo Padre prestou


homenagem á coragem que muitos católicos e outros cristaos demonstra-
ram ñas horas mais obscuras do século XX. Minha irmá, Margaret Chu (es-
creve Joseph Kung), foi escolhida pelo Papa como heroína católica da Chi
na e leu um parágrafo do seu relatório: "Urna voz católica fora da China".
Mostra como urna jovem passou 21 anos de sofrimento num campo de tra-
balhos toreados. Quero enfatizar que a perseguicáo ainda continua. A bru-
talidade descrita no texto está amplamente divulgada em toda a China.
Por que urna jovem de 22 anos deveria renunciar á sua Igreja e ao
Papa como preco da sua liberdade? Creio que a explicacao de Margaret
representa o sentimento de muitos jovens na diocese. Escreveu ela: "Amo
Jesús, meu Senhor. Amo a minha Igreja... Amo e respeito meus sacerdo
tes. Também amo meus amigos... Nos lutamos juntos. Rezamos juntos.
Gritamos juntos. Pedir-me que traísse meu querido bispo, meus sacer
dotes e amigos, para apoiar a perseguicáo do Estado á Igreja Católica,
era pedir-me que abandonasse minha fé e traísse meu Senhor. Nao. Nao.
Minha fé nao me permitía trair meu Deus. Meu amor aos meus amigos
tornou-me impossível a traicáo".

Para quem nao tem idéia do que seja urna prisáo chinesa, Margaret
escreveu: "Meu primeiro sentimento quando entrei dentro da minha cela
foi a náusea. A cela media uns cinqüenta metros quadrados e nela havia
16 prisioneros. Existia únicamente urna pequeníssima janela. Havia um
forte mau cheiro proveniente dos companheiros de cela, que obviamente
nao se haviam lavado por muito tempo. Os excrementos humanos esta-
vam recolhidos num canto da cela. Tudo era simplesmente sufocador.
Pensei em minha familia, em minha casa. A dor da separacao foi inten
sa. Estava psicológicamente menos preparada do que eu julgava.

No campo trabalhávamos 18 horas por dia durante os sete dias da


semana. O tambor nos despertava as quatro horas da manhá. Em breve
perdi o apetite por causa do extremo cansaco. De noite caía na cama
sem mesmo me lavar o rosto. Esta ratina durou um ano inteiro. Poucos
dias depois de chegar ao campo de trabalhos toreados, um oficial per-
guntou-me: 'Que crime cometeste?'. Respondi-lhe bruscamente: 'Nao
cometí crime algum. Fui presa porque sou católica e determinei conser-

505
26 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

var minha fé'. O oficial aborreceu-se muito e gritou: 'Se nao cometeste
crime algum, por que estás aquí?'. O seu aborrecimento muito me como-
veu. Calei-me. O campo inteiro caiu em silencio mortal. Gracas a este
incidente, descobri alguns católicos. Sem demora nos unimos. Entre eles
havia urna jovem chamada Tsou, que fora levada ao campo por um sa
cerdote da Associacáo Patriótica. Ela tornou-se amiga minha. Infelizmente
após quatro anos, caiu mentalmente enferma. Os oficiáis atribuíram seu
estado mental ao fato de ter violado as normas do cárcere. Amarraram-
na. Espancaram-na e duplicaram o tempo da sua condenacáo. Mas mes-
mo após ter terminado esse tempo permaneceu no campo de trabalhos
toreados sem a menor atencáo do respectivo comando."
Na China Comunista há sessóes de luta, organizadas para instigar
a acusacao contra um individuo ou um pequeño grupo por causa de um
pretenso crime. Minha irmá descreveu urna dessas sessóes: "O verdadeiro
motivo da sessáo era forcar-me a admitir todos os crimes que me imputa-
vam... Duas pessoas pularam sobre mim e me cortaram a metade dos cábe
los. O oficial perguntou de novo: 'És culpada?' Respondí com firmeza:
'Nao sou culpada1; entáo ataram-me as máos com urna corda de tal modo
que um simples movimento de minhas máos me causava intensa dor...
Nao podia tomar banho nem mudar de roupa. Minhas vestes se
molhavam de suor, secavam e tornavam a molhar-se de suor, meus sofri-
mentos se tornaram insuportáveis.
Durante o veráo tínhamos duas horas de descanso ao meio-dia.
No campo havia caixotes de madeira nos quais acumulavam os
excrementos a fim de usá-los como fertilizante. O lugar era fétido e ¡mun
do mais do que se possa descrever. Ninguém podia permanecer ali além
do tempo necessário.
Nao podia mais suportar dia e noite as blasfemias contra Deus e a
Virgem Maria. Finalmente admití um dos crimes de que me acusavam.
Admití que era contra-revolución ario o persuadir os jovens a nao se uni-
rem á organizacao da juventude comunista, mas continuei recusando
submeter-me a qualquer das instítuicóes religiosas ditas patrióticas".
Margaret concluiu: "Peco-vos oracóes pela China. A Igreja Católi
ca está sendo perseguida. O governo continua encarcerando bispos,
Religiosos e fiéis. Destruiu nossas igrejas, nosso santuario. Precisamos
nao só das vossas oracóes, mas também da vossa acáo. A Igreja Cató
lica subterránea necessita da vossa voz e acáo organizadas para garan
tir aos fiéis chineses a liberdade religiosa de que gozáis aqui no Ocidente".
Estes dois relatos falam eloqüentemente nao só aos crístáos, mas
também a todo homem de bom senso, despertando em todos o interesse
por melhores días para os fiéis católicos da China.

506
Sangue dos Mártires:

POR QUE FORAM PERSEGUIDOS


OS CRISTAOS ATÉ 313?

Em síntese: Assinalam-se tres causas para a perseguicáo dos crís-


táos no Imperio Romano: os preconceitos populares, o temor dos políti
cos e as paixoes pessoais dos soberanos.
* * *

Sao conhecidas as razóes que motivaram as perseguicóes aos cris-


táos no século XX, das quais resultaram aproximadamente 27 milhóes
de mártires: regimes totalitarios, sociedades secretas, principios étnico-
religiosos explicam o odio á fé crista. Pergunta-se, porém: quais as cau
sas da perseguicáo aos cristaos nos tres primeiros séculos? - O profes-
sor Paúl Allard (t 1916), em sua obra Sur le martyre; conférences, Paris
1937, aponta tres razoes para a oposicáo aos cristaos no Imperio Roma
no. As ponderacóes do autor sao válidas até hoje; trata-se de preconcei
tos populares, temor dos políticos e paixóes pessoais dos soberanos.
Percorramo-las sucessivamente.

1. Os preconceitos populares

No principio confundiam-se os cristaos com os judeus no Imperio


Romano, de modo que aqueles compartilhavam a nao popularidade des-
tes no mesmo Imperio.

O povo acusava os judeus de ateísmo, porque a religiáo israelita


nao admitía imagens; acusavam-nos também de exclusivismo, porque
se afastavam de qualquer culto que nao fosse da sua crenca; acusavam-
nos aínda de odio ao género humano, porque, por seu modo de vida, se
separavam do comum dos cidadáos. Na verdade, por todo o Imperio os
judeus foram sempre um povo á parte, e as leis romanas Ihes concedíam
ampia autonomía.

Por muito tempo os pagaos julgavam que o Cristianismo era urna


variante do Judaismo. Todavía, na medida em que se ia difundindo o
Evangelho na sociedade romana, tornou-se evidente que judeus e cris
taos eram bem diferentes, embora estes procedessem daqueles. Urna
vez identificados os cristaos como tais, também eles, ainda com mais
furor, foram acusados de ateísmo e de odio ao género humano.

Este fato é documentado pelos apologetas cristaos como também


por autores pagaos: Sao Justino, Atenágoras, Eusébio, Luciano, Minúcio
Félix, Tertuliano, Tácito...

507
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

Os cristáos pareciam até mais ateus do que os judeus, pois estes


ofereciam sacrificios cruentos e aqueles nao. Fora do povo romano por-
tanto havia tres classes de homens: gregos ou gentíos, judeus em se
gundo lugar, e cristáos, o tertium genus (Tertuliano, Adnationes I, 8, 20).

Todo tipo de crimes abomináveis era atribuido a esta terceira clas-


se, que parecía ser inferior á própria raca humana, a ponto que Tertuliano
julgou necessário em seu Apologeticus confirmar que os cristáos tém a
mesma natureza que os outros homens {Apol. 16).

Como se pode depreender dos autores citados, os cristáos eram


acusados de incesto, assassinatos e antropofagia ritual. Eram divulgadas
a respeito deles historias fantasiosas, afirmando que ñas trevas pratica-
vam indizíveis crimes de crueldade e depravacáo.

Eram também considerados gente incapaz de assumir tarefas pú


blicas, prostrados em mórbida inercia (Tácito, Annal. XIII, 30; Hist. III, 75;
Suetonio, Domit. 15).

Durante o século II, nao somente o povo ignorante e crédulo, mas


também nao poucos autores latinos e homens cultos acreditavam nessa
caricatura dos cristáos, julgando que todos os crimes citados eram ine-
rentes á confissáo crista. Baseado nesta opiniáo geral, Ñero atribuiu-lhes
o incendio de Roma.

Propagaram-se denuncias generalizadas contra os cristáos na


Bitínia, registraram-se tumultos na Asia e na Grecia, violacáo dos sepul
cros em Cartago e em Liáo, calúnias pesadas relativas a delitos contra a
natureza. Em Roma e Alexandria rumores supersticiosos lancavam so
bre os cristáos a culpa de todas as catástrofes. Em Esmirna, como em
Cartago a multidáo no circo gritava: "Abaixo os ateus! Os cristáos aos
leóes!".

Esta aversáo popular supersticiosa, na qual se apoiou Ñero para


lancar a primeira perseguicáo, foi crescendo no século II. Os Imperado
res desta época eram cultos e honrados; nao tinham medo dos cristáos
tidos como criminosos, pois proibiam aos magistrados que os inquiris-
sem. Por isso concederam-lhes urna semi-protecáo jurídica, procurando
defender a ordem pública. Mas mandavam condenar aqueles cristáos
que, acusados perante os tribunais, nao abjurassem a sua fé. Por conse-
guinte consideravam a persistencia no cristianismo como fato merecedor
de punicáo, pois era clara desobediencia á antiga lei, nunca ab-rogada,
que proibia a existencia dos cristáos.

Plínio, seguindo as instrucóes de Trajano, castigou a inflexível obs-


tinacáo dos cristáos (Epístola X, 96). Marco Aurelio censurava os cris
táos pela impassibilidade com que enfrentavam a morte.

508
POR QUE FORAM PERSEGUIDOS OS CRISTÁOS ATÉ 313? 29

2. O temor dos políticos

O preconceito político contra os cristáos tem inicio com o Impera


dor Septímio Severo, que considerava excessivo o número de conver-
sóes ao Cristianismo. Vía nisso um perigo. Esse temor se tornou mais
grave em meados do século III, ao tempo de Décio e de Valeriano.

Décio colocou os cristáos diante do dilema: voltar ao paganismo


ou morrer. Valeriano a principio foi favorável aos cristáos a tal ponto que
seu palacio se assemelhava a urna igreja (Dionisio de Alexandria na His
toria Eclesiástica VI, 10, 3 de Eusébio de Cesaréia); todavía voltou-se
logo contra os cristáos, principalmente contra os seus chefes, porque
considerava que a Igreja se tornara incompatível com a seguranca e a
vida do Imperio.

Nao é fácil descobrir por que razóes os romanos chegaram a con-


ceber a incompatibilidade entre a Igreja e o Imperio. Em meados do sé-
culo III, os antigos preconceitos populares, ao menos os mais grosseiros,
haviam sido desmentidos pela própria realidade. Nao obstante, os políti
cos continuavam a olhar para os cristáos com grande reserva: eram vis
tos como alheios aos cargos públicos, afastados das festas públicas, to
talmente avessos aos cultos nacionais e á adoracáo idolátrica e - mais
ainda - empenhados em afastar outros cidadáos de urna religiáo cujos
principáis pontífices eram o Imperador e as altas autoridades políticas.
Essas atitudes eram interpretadas como misantropía ou odio ao género
humano.

Na verdade, os cristáos eram obedientes as leis, aos magistrados


e ao Imperador, mas recusavam adorar os falsos deuses do Estado e,
por isso mesmo, mantínham-se alheios, tanto quanto possível, as festas
que ¡mplicassem culto religioso. Também reprovavam os espetáculos las
civos e os jogos sangrentes.

Desta maneira os cristáos introduziam no Imperio um novo modo


de vida, que o podia renovar. Erguíam-se perante o Estado com liberda-
de tal que os políticos os julgavam incompatíveís com a vida romana.
Tratava-se de um delito leve, pois consistía principalmente em abster-se,
mas era castigado com terríveis penas porque os políticos do século III
interpretavam esta abstencáo como urna desercáo cívica.

No fundo, havia um mal-entendido que o Estado romano levou ses-


senta anos para descobrir. E, quando o descobriu, já era tarde demais
para salvar o Estado pagáo. Fácilmente pode-se entender que o precon
ceito político contra os cristáos carecía de base real. No século III, muitos
eram aqueles que se alheiavam-se aos cargos públicos ou ao servico
militar, que já nao era obrigatório entáo. Os cristáos nada tinham contra o
servico público cívico ou militar, e na verdade assumiam tais cargos sob

509
30 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

imperadores tolerantes, como Alexandre Severo e Filipe, que nao exigi-


am atos de culto ¡nadmissíveis para a consciéncia crista.

É certo que houve autores cristáos particularmente intransigentes


a tal propósito, como Tertuliano, Orígenes, Latáncio. Nisto tomavam po-
sicáo oposta á doutrina da Igreja. Esta nunca impós aos fiéis a obrigacáo
de separar-se sistemáticamente da vida pública.

Em suma, o género de vida crista de modo nenhum implicava ame-


aca contra a sociedade vigente. Nao adoravam os Imperadores, mas ora-
vam por eles. Nem sequer sonhavam com um regime político novo, mas
apenas tencionavam melhorar o que já existia.

Doutro lado, enquanto as autoridades romanas perseguiam o Cris


tianismo, permitiam em todo o Imperio a difusáo de cultos orientáis que
cultuavam Mitra, Cibele, Apolo e nao raramente congregavam seus fiéis
numa especie de franco-maconaria estranha e misteriosa. As autorida
des nao mostravam receio de que estes novos cultos pusessem fim as
antigás divindades do Imperio. Nao entendiam que os antigos costumes
severos da cultura romana se viam ameacados por esses cultos exóti
cos, ao passo que poderiam fortalecer-se e renovar-se mediante a difu
sáo do Cristianismo, muito mais afim ao genio latino.

Quem mais grosseiramente parece ter-se equivocado neste ponto,


foi o perseguidor Imperador Aureliano. Quando o Oriente e o Ocidente
foram unidos num Imperio único, Aureliano quis restabelecer a unidade
moral e para tanto promulgou um edito "sangrento". Todavía, ao mesmo
tempo em que perseguía a nova religiáo crista, constituiu urna sacerdoti
sa de Mitra junto ao culto imperial, instituiu o culto ao sol, "Senhor do
Imperio Romano", com um segundo colegiado de pontífices.

Para resumir, nada prova que a liberdade de consciéncia ameaca-


va a vida do Imperio; ao contrario, muitos indicios demonstram que era
capaz de consolidar a sociedade romana. Os muitos anos durante os
quais no século III o Imperio deixou a Igreja respirar, sem que ela sofres-
se daño algum, provam claramente que o Imperio Romano teria podido
conviver perfeitamente com a prática do Cristianismo.

3. As paixoes pessoais

Contra a Igreja desencadearam-se nao somente preconceitos po


pulares e políticos, mas também paixóes pessoais.

Ñero atribuiu aos cristáos a culpa do incendio de Roma.

A horrível legislacáo persecutoria de Maximino perseguiu os cris


táos por odio ao seu predecessor Alexandre Severo, que os tinha favore
cido.

510
POR QUE FORAM PERSEGUIDOS OS CRISTÁOS ATÉ 313? 31

Décio perseguiu os cristáos, deixando-se levar por sua aversáo


contra Filipe, cujo cargo ele havia usurpado e que fora tolerante.

Valeriano perseguiu os chefes cristáos, porque era ocultista, dan


do as artes mágicas e sujeito á influencia de adivinhos. Além do mais,
queria apoderar-se dos bens da Igreja.

De modo semelhante, Diocleciano comecou a última perseguicáo


estimulado por oráculos e agouros. Também o moveu o odio anti-cristáo de
seu colega imperial Galério, filho de urna aldea que fora sacerdotisa paga.

4. O número dos Mártires

Nao nos é possível definir o número de mártires dos tres primeiros


séculos, pois nos faltam estatísticas. Todavía podem-se colher alguns
dados ñas obras de autores antigos. Assim:

Há escritores pagaos, como Tácito, que falam "da grande multi-


dio" de morios em Roma em 64, por ocasiáo da perseguicáo de Ñero
(Annates XV, 44).

No século II escrevia Sao Justino sob o reinado de Antonino Pió:

"Judeus e pagaos perseguem-nos em toda parte, despojam-nos


dos nossos bens e só nos deixam a vida quando nao a podem tirar, por-
tam-nos a cabeca, pregam-nos em cruzes, expóem-nos as feras, ator-
mentam-nos com cadeias, com fogo, com suplicios atrozes. Mas, quanto
piores sao os males que eles nos fazem padecer, tanto mais aumenta o
número dos fiéis" (Diálogo com Trifáo, 110).

Celso, inimigo dos cristáos no tempo de Marco Aurelio, diz que "os
fiéis se ocultam porque em toda parte sao procurados para ser levados
ao suplicio" (Orígenes, Contra Celso Vil).

Clemente de Alexandria, sob Septímio Severo: "Diariamente ve


mos com os nossos próprios olhos correr torrentes de sangue de márti
res queimados vivos, crucificados ou decapitados" (Stromateis II, 125).
Dionisio de Alexandria, numa carta escrita sobre os mártires de
Décio no século III, relata: "Outros, em muito grande número, foram de-
golados pelos pagaos em cidades e aldeias" (Eusébio, Historia Ecl. VI,
42). Em outra carta refere: "Nao vos direi os nomes dos nossos irmáos
que pereceram. Ficai sabendo, porém, que homens e mulheres, jovens e
anciáos, pessoas de todas as condicoes e idades venceram no combate
e ganharam a coroa do martirio, tanto pelos acortes como pelo fogo" (ib
Vil, 11,20).

Eusébio de Cesaréia pergunta: "Quem poderá dizer quantos foram


os mártires em todo o Imperio e particularmente na Mauritania, na Tebaida

511
32 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

e no Egito? Na Tebaida presenciei execucóes em massa de vinte, trinta e


até cem cristáos em um só dia: homens, mulheres, criancas... As espa
das se embotavam, nao cortavam, quebravam-se, e os carrascos cedi-
am ao cansaco e tinham que substituir uns aos outros" {Historia Ecl. VIII,
4-13).

Além de todos estes mártires banhados em sangue, é preciso re


cordar os mártires sem sangue, isto é, a multidáo dos confessores da fé
que sofreram desterro, deportacáo, trabalhos toreados, mas nao foram
entregues á morte. Eram tantos os cristáos deportados nos primeiros
séculos, os prisioneiros e os condenados aos trabalhos toreados que no
Oriente e no Ocidente a Igreja rezava publicamente por eles.

Nao resta dúvida, a verdade histórica assegura-nos o grande nú


mero dos mártires cristáos nos primeiros séculos. Em cálculos recentes,
chega-se á conclusáo de que nos vinte séculos da vida da Igreja houve
40 milhóes de mártires, dos quais 13 milhoes até o século XX exclusive e
27 milhóes no século XX.

Atos dos Apostólos. O Evangelho do Espirito Santo, pelo Pe.


Cristovam lubel. - Ed. Pao e Vinho, Guarapuava (PR), 2001, 56 pp.

O Padre Cristovam lubel é autor de varios livros de catequese e


formagao religiosa. Acaba de publicar um estudo sobre os Atos dos Apos
tólos, livro bíblico que está sendo muito comentado para esbogara Igreja
do terceiro milenio. O Padre lubel escreve sob forma de perguntas e res-
postas, que com simplicidade transmitem o conteúdo e a mensagem das
páginas sagradas. A obra é de fácil leitura, evitando interpretagóes sub
jetivas e tendenciosas; será de especial valor para os Círculos Bíblicos,
que se váo multiplicando no Brasil.

Milagres e Milagres, pelo Pe. Mario Femando Glaab. - Ed. Pao e


Vinho, Guarapuava (PR) 2001, 62 pp.

O Padre Mario Fernando Glaab é professor do Instituto de Filosofía


e Teología Santo Alberto Magno da Diocese de Uniáo da Vitoria (PR).
Oferece ao público um livro de 62 páginas com o título "Milagres e Mila
gres. A Presenga de Deus em Nossa Historia Quotidiana". O Padre Glaab
procura mostrar como se revelou o dedo de Deus em sua vida mediante
acontecimentos aparentemente insignificantes; sao os "milagres" de cada
dia: "Tudo o que acontece ao longo de nossa vida nesta térra, pode e
deve ser interpretado pela fé. A fé é urna realidade que acompanha a
vida do cristáo... Nao existem tempos neutros, porassim dizer, nos quais
a presenga ou a agáo de Deus em Cristo e na forga do Espirito Santo nao
esteja atuando... Nada acontece por acaso" (p. 60).

512
Na ordem do dia:

PESSOA E SOCIEDADE EM CONFLITO

Em síntese: Os dentistas tém produzido embrides humanos para


servirem a fim terapéuticos e científicos. Ora o embriáojá é ser humano
ou pessoa. Daí o confuto entre o bem do embríáo-pessoa e o bem da
sociedade. O presente artigo analisa o conceito de pessoa com toda a
variedade de predicados que Ihe cabem, e argumenta em prol do primado
da pessoa sobre o grupo.
* * #

A opiniáo pública, em nossos días, é colocada diante do binomio


pessoa e sociedade. Com efeito; os cientislas tém produzido embrides
para finalidades sociais (cura de molestias...) e científicas. Poem-se as-
sim em confronto o bem do embriáo (que já é ser humano ou pessoa) e o
da sociedade; aquele deveria ceder a esta. - Ora tal concepcáo nao se
coaduna com a doutrina crista. Daí evidencia-se a oportunidade de ex
planar o conceito cristao de pessoa e o de seu relacionamento com a
sociedade.

Comecamos observando que a sociedade se constituí de pessoas.


Pessoa difere de individuo, no sentido de que o individuo é urna unidade
de qualquer tipo (irracional, inanimado...)1; pessoa é o individuo de tipo
racional, humano; é o individuo mais marcado pela individualidade, pois
toda pessoa tem sua profundidade e seu misterio inconfundíveis.
A pessoa é a base da sociedade. Procuraremos, pois, examinar as
notas características da pessoa humana e a sua abertura para a socie
dade.

1. A Pessoa Humana

Segundo Sao Tomás de Aquino (t 1274), a pessoa é "o que há de


mais perfeito em toda a natureza" (Suma Teológica I, qu. 29, art. 3). - E
por qué?

1) A pessoa é um ser inteligente, que vai descobrindo a verdade


pelo raciocinio ou pelo seu pensar. Ora, a faculdade de pensar confere
enorme dignidade ao ser humano, como nota o filósofo francés Blaise
Pascal (t 1662);

1 Individuo vem do latim individuas; significa "o que nao pode ser dividido
lógicamente"; é o ser concreto, básico, de qualquer especie; é este cao, esta flor,
esta mesa...

513
34 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

"Pelo espago o universo me abarca e me traga como um pontinho.


Mas pelo pensamento eu abarco o universo" (Pensamentos n- 348).

"A grandeza do homem é grande pelo fato mesmo de que ele se


reconhece miserável. Urna árvore nao se reconhece miserável" (ib. n9397).
"De todos os corpos juntos nao se pode extrair ornáis simples pensa
mento. Isto é impossível, poispertence a outra ordem de coisas" (ib. ne 793).
A capacidade de pensar ou de conceber nocoes universais, defini-
coes, e concatená-las entre si provém do fato de que no homem existe
mais do que materia; existe um principio vital ou alma espiritual, que,
com o corpo, forma um sujeito único de todas as acóes. Assim o homem
é psicossomático. Precisamente a espiritualidade da alma humana torna
o homem "imagem e semelhanca de Deus" (Gn 1, 27) e confere-lhe a
sua dignidade própria.

2) Do fato de que é racional, segue-se que o homem é livre ou tem


o dominio sobre os seus atos; pode decidir soberanamente diante de
varias possibilidades, á diferenca dos animáis irracionais, que sao deter
minados pelo instinto a agir de tal ou tal modo. - Nao se pode negar,
porém, que o homem está exposto a manipulacoes diversas, por parte
da familia, da escola ou da sociedade. Principalmente os meios de co-
municacáo de massa influenciam o comportamento da pessoa. As varias
manipulacóes explicam a inseguranca de muitos ao optarem, e a multi-
plicacáo dos centros de aconselhamento.

3) Se é livre, a pessoa é responsável. Deve assumir os direitos e


deveres decorrentes de suas op?6es; nao Ihe é lícito fugir disto e atribuir
sistemáticamente aos outros a responsabilidade de éxitos e fracassos.

4) Ser pessoa implica também ter consciéncia: ... consciéncia


psicológica (estou lendo, e sei que estou lendo) e consciéncia moral.
Em todo ser humano, há urna voz íntima que Ihe diz: "Pratica o bem, evita
o mal", principio básico do qual se seguem ¡mediatamente outros: "Nao
mates, Nao roubes, Respeita pai e máe...". É a lei natural que assim se
configura e que é congénita em todo homem. Verdade é que a conscién
cia moral pode ser abalada ou conculcada, tornando-se aos poucos in-
sensível, porque habituada ao mal.

5) Dada a complexidade de sua composicáo psicossomática, cada


pessoa é única e trrepetível; é um pequeño mundo original, embora se
possa desfigurar, tornando-se "palhaco" imitador de outros seres humanos.

6) Toda pessoa traz dentro de si interrogacoes fundamentáis, pois


nutre aspiracóes nobres que sao cerceadas por limitacóes varias: a fragi-
lidade do corpo, que adoece e morre; a fragilidade moral, que leva a

514
PESSOA E SOCIEDADE EM CONFUTO 35

falhas ou a incoeréncias de comportamento. Donde provém essas con-


tradicoes? Como podem ser compatíveis com a dignidade do homem?
7) Mais ainda: toda pessoa, quando comeca a refletir, tende a per-
guntar: De onde venho? Para onde vou? Qual o sentido da vida? Aqueles
que nao encontram resposta para tais indagacoes, juigam que a vida é
um absurdo. Fácilmente sao presa do medo; medo de doencas, da velhi-
ce, do isolamento, da morte e, principalmente, do que vira após a morte.
Muitos jovens sao atetados por estas questoes e, na falta de resposta,
entregam-se aos prazeres momentáneos do sexo e da droga, que nao
raro levam ao suicidio.

O medo só pode ser amenizado ou superado pelo reconforto de


alguém que ama. Ora o grande amante é o próprio Deus, que criou a
pessoa humana nao para a desgraca, mas para a plenitude da vida.
8) Isto quer dizer ainda que no ser humano há o senso religioso
¡nato. A demanda do Absoluto ou do Bem Infinito é espontánea em toda
pessoa; esta nao se entendería a si mesma se nao houvesse a RES-
POSTA CABAL para as suas congénitas aspiracoes ao BEM INFINITO.
9) Distinguimos pessoa e personalidade. Pessoa é o individuo hu
mano desde que é concebido e por toda a sua vida, independentemente
de circunstancias. Personalidade é a pessoa cujas potencialidades em
brionarias desabrocharan! na fidelidade á Verdade e ao Amor. Quanto
mais alguém é personalidade, tanto mais é singular e irrepetível.
10) Acontece, porém, que, para desenvolver suas virtualidades e
adquirir personalidade, o ser humano precisa de contato com os seus
semelhantes. É precisamente nisto que se acha o fundamento natural da
vida do homem em sociedade.

2. O Fundamento da Sociedade

Nenhum ser vivo é táo dependente dos outros, nos primeiros me


ses e anos da infancia, como o homem. O animal irracional, guiado pelo
instinto, é muito mais seguro do que o homem no processo de seu de-
senvolvimento. O homem precisa de ser adestrado para a vida pelos
ensinamentos e experiencias de outros homens; cada pessoa é herdeira
de seus genitores e das geracoes de seus antepassados.
Isto significa riqueza, e nao pobreza, do ser humano. Com efeito;
este, criado pelo Deus bom, é, por sua própria natureza, aberto á comunica-
cáo ou aberto a dar e receber valores espirituais; é aberto ao tu e á socieda
de, a fim de receber e transmitir valores pessoais. O matrimonio, a amizade,
a colaboracáo... correspondem á necessidade da pessoa e enriquecern
a esta. Principalmente a palavra e o amor sao cañáis que fazem partilha
e que devem contribuir para o aperfeicoamento do individuo humano.

515
36 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

Merece especial atenc.áo a linguagem. É algo de típicamente hu


mano, que fundamenta o consorcio dos homens entre si. Pela palavra o
homem comunica o que Ihe é mais íntimo, e cria afinidade com outros
homens; tenhamos em vista o "Sim" dito no contrato matrimonial e o
"Aquí estou" no rito de ordenacáo sacerdotal. Dizemos que pessoas li
gadas pelo amor ou pela amizade "falam a mesma língua". Em Pente
costés a multiplicacáo dos idiomas congregou os homens na mesma fa
milia espiritual: a Igreja; cf. At 2,1-11.
A importancia dos meios de comunicacáo social em nossos días
demonstra bem o poder da palavra acompanhada pela imagem. A influ
encia de peritos de imprensa, radio e televisáo é, em certo sentido, mais
penetrante do que a dos Parlamentos; em muitos casos, porém, trata-se
de influencia irresponsável e deletéria.
A palavra, para ser eficaz fator de progresso do individuo e da so-
ciedade, precisa de ser dosada, evitando-se a avalanche de noticias ou
informagóes; a multiplicacáo desordenada destas pode afetar os senti-
mentos e as emocóes, mas nao permite assimüacáo profunda por parte
da inteligencia. Esta exige, ao lado da palavra, o silencio, para que haja
reflexóes e discernímento do que Ihe é comunicado. Sem reflexáo pau
sada, o intelecto pode assimilar o erro como sendo verdade, o sofisma
como se fosse um válido argumento.
3. O primado da pessoa sobre o grupo

Embora a pessoa humana esteja naturalmente orientada para vi-


ver em grupo ou em sociedade, ela vale por si mesma; o homem nao é
simplesmente parte anónima de um todo social, mas ele se integra den
tro da sociedade para se realizar plenamente. Ao mesmo tempo, porém,
deve contribuir para que se realize o bem da sociedade ou o bem co-
mum, mediante os esforcos de cada um dos seus membros.
O bem comum e o bem particular estáo intimamente ligados entre
si. Pode-se dizer, com toda a tradicáo filosófico-teológica, que, na mes
ma linha de valores, o bem comum (de todos) é superior ao bem particu
lar (de um individuo apenas). Mas o bem comum só é bem na medida em
que favorece a realizacáo de todos e de cada um.
E a autoridade nao é autoridade senáo enquanto está a servico do
bem comum, ou seja, a servico de todos e de cada um dos homens.
Compete-lhe atingir o optímum social, isto é, aquele estado de coisas
em que beneficios e sacrificios estejam de tal modo distribuidos que a
quota de sacrificios seja a menor possível, e a de beneficios a maior
possível para todos e cada um.
Isto quer dizer ainda que, no binomio "pessoa e grupo", a pessoa é
o fim, a meta; e a ordem social, o meio. O homem nao é para a sociedade

516
PESSOA E SOCIEDADE EM CONFUTO 37

ou para o Estado, mas a sociedade e o Estado sao para o homem. A


sociedade e o Estado nao se justificariam se nao promovessem o desen-
volvimento ou a realizacáo de seus membros. Ulteriormente, tanto a pes-
soa como o Estado sao subordinados ao Bem Supremo, que é Deus.
Donde se vé que é condenável todo tipo de absolutismo do Estado ou da
sociedade; a estatolatria significa a inversao da escala dos valores, pois
ao Estado e á sociedade toca proporcionar a cada um dos seus mem
bros que viva... e viva bem, praticando as virtudes.

Estas afirmacóes se derivam genuinamente da mensagem evan


gélica. Antes do Cristianismo, e nos sistemas totalitarios pós-cristáos, a
sociedade era o fim do homem, e o homem nao passava de mera parte
ou meio; o homem nao tinha valor senáo enquanto participava da vida do
grupo ou era útil ao grupo. Matavam-se criancas anormais, porque cau-
sariam dificuldades aos interesses do grupo; os doentes, os inválidos, as
mulheres, as enancas, os escravos, nao tinham direitos. A moral era sim-
plesmente sociológica, afirmando: o que aproveita ao grupo, é bom; o que
prejudica o grupo, é mau. Tal era o criterio para se definir o justo e o injusto.

4. Igualdade Fundamental e Fraternidade de todos os homens

1. Visto que todos os homens sao "imagem e semelhanca de Deus"


por terem urna alma espiritual, sao todos fundamentalmente iguais entre
si. Sao Paulo o dizia muito enfáticamente, tendo em vista ainda o fato de
que todos foram resgatados pelo sangue de Cristo: "Nao há judeu nem
grego, nao há escravo nem livre, nao há homem nem mulher, pois todos
vos sois um só em Cristo Jesús" (Gl 3, 28; cf. Cl 3, 11).

Todos sao iguais porque sao pessoas dotadas da mesma dignida-


de essencial de seres racionáis e livres. Donde se vé que é antinatural e
anticristá qualquer organizagáo social que privilegie a uns com detrimen
to de outros por motivo de raca, sexo, idade ou religiáo...

Notemos, porém, que a igualdade fundamental nao implica num


igualitarismo antinatural, que forcaria os individuos a nao serem aciden-
talmente diferentes uns dos outros. Com efeito; cada qual tem suas pe
culiaridades pessoais inconfundíveis que nao permitem seja identificado
com seu vizinho; Joao é músico e tem que ser tratado como tal; Pedro é
esportista e merece o tratamento correspondente; Maria é artista, Elisa
tem prendas domésticas, e devem ser reconhecidas como tais. Tais desi
gualdades nao atingem a respectiva ¡dentidade de cada um(a) como ser
racional, livre e responsável. Se as desigualdades sao tratadas como
fatores discriminatorios, tem-se um regime desumano e injusto, que me
rece reprovacáo.

Tal afjrmacáo é outra expressáo típica da mensagem crista. Ñas


civilizacóes pré-cristás, como também nos regimes totalitarios pós-cris-

517
38 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

táos, as pessoas nao valiam (nao valem) por serem pessoas, mas pela
sua produtividade ou sua casta, sua categoría, suas funcóes... - No mun
do greco-romano só o cidadao podía participar da vida pública e ter direi-
tos e deveres. O estrangeiro (bárbaro), o escravo, a mulher nao eram
sujeitos de direitos e deveres civis.

2. Urna ulterior conclusáo deduz-se de quanto acaba de ser dito:


se todos os homens sao fundamentalmente iguais entre si, sao também
todos irmáos uns dos outros. Isto nao implica que renunciem a seus
predicados próprios legítimos para serem membros da familia universal;
a fraternidade respeita as peculiaridades de cada qual, desde que ho
nestas. Esta proposicáo faz contraste com o modo de pensar pré-cristao;
outrora amor, fraternidade, justica, respeito... eram limitados á raga, a
nacáo, ao grupo; a discriminacáo era a norma. Jesús o lembrava no Ser-
máo da Montanha: "Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo, e
odiarás o teu inimigo" (Mt 5, 43). O Senhor, porém, logo acrescentou: "Eu
vos digo: amai os vossos inimigos, fazei o bem aqueles que vos odeiam,
abencoai aqueles que vos amaldicoam" (Mt 5, 43s).

A civilizacáo greco-romana mitigou a mentalidade primitiva, ten


tando reunir num só Imperio povos de nacóes, culturas e línguas diferen
tes; os romanos, em vez de escravizar os povos conquistados, transfor-
mavam-nos em "romanos", fazendo-os "cidadaos romanos", ufanos de
tal título; assim Roma sonhava com um mundo unificado ou urna comuni-
dade imperial sob a sua bandeira. Seriam todos "irmáos", contanto que
fossem todos "romanos"; nao seria possível, porém, imaginar que fos-
sem todos irmáos, permanecendo cada qual na sua identidade cultural.
Quando um grupo recusava romanizar-se, como se dava no caso dos
judeus, era obrigado a permanecer á parte como um quisto ou a viver em
guetos; tal povo continuava "bárbaro", isto é, estrangeiro, estranho, sus-
peito e potencialmente inimigo.

Eis as principáis implicacóes do conceito de pessoa, que está na


origem de toda a Doutrina Social da Igreja. Esta nocáo, desde o inicio,
imprime um caráter de transcendencia ao ensinamento social cristáo;
afinal "a razáo principal da dignidade humana consiste na vocacáo do
homem para a comunhio com Deus. Já desde sua origem, o homem foi
convidado para o diálogo com Deus. O homem existe somente porque
Deus o criou e por motivo de amor. Por amor é sempre conservado. E
nao vive plenamente segundo a verdade a nao ser que reconhega livre-
mente aquele amor e se entregue ao Criador" (Constituicáo Gaudium et
Spes ns 19). Preserve-se tal conceituacáo frente as tendencias que fa-
zem do homem um peáo ou um carváo que se queima na locomotiva da
humanidade, contribuindo para que esta avance, mas desaparecendo,
por completo, no fogo da locomotiva.

518
Em Durban (África do Sul):

A IGREJA E O RACISMO

Em síntese: A Igreja tem tomado aberta posigáo contra o racismo.


Nao somente em Durban, mas em ocasióes anteriores pronunciou-se
contra a discriminagáo racial. O presente artigo refere o conteúdo de ex
tensa Declaragáo da Pontificia Comissáo de Justiga e Paz, que enfatiza
a igualdade de todos os homens e aponta residuos múltiplos da proble
mática racista ainda hoje existentes.
* * *

De 31/08 a 07/09/2001 realizou-se em Durban (África do Sul) urna


Conferencia Mundial contra o racismo, a discriminagáo racial, a xenofo
bia (o medo de estrangeiros) e a intolerancia. A Santa Sé participou des-
sa assembléia mediante urna delegagao chefiada por Mons. Darmuid
Martín, que proferiu urna alocugáo sobre a problemática, referindo-se á
familia, á educagáo, á responsabilidade e á conversáo dos coracoes.

O assunto, alias, já fora amplamente abordado em anteriores do


cumentos da Igreja, dos quais vai, a seguir, explanada a Declaragáo da
Pontificia Comissáo de Justiga e Paz datada de 9 de novembro de 19881,
documento que até hoje conserva sua plena atualidade. Aborda tema
pelo qual a Igreja se senté vivamente interpelada. O documento,
abrangente e lúcido, compreende, além de Introdugáo e Conclusáo, qua-
tro partes: 1) Os comportamentos racistas ao longo da historia; 2) As
formas do racismo hoje; 3) A dignidade de toda raga e a unidade do género
humano (visáo crista); 4) Contribuicáo dos cristaos para a promogáo, junta
mente com os outros, da fratemidade e da solidariedade entre as ragas.

Como se vé, o documento comega com um percurso histórico; de-


pois detém-se no presente e no racismo contemporáneo; formula, a se
guir, a resposta teórica do cristáo ao problema; e, por isto, abre perspec
tivas de agáo concreta do cristao frente ao racismo.

A leitura de tais páginas abre os olhos para os aspectos diversos


do problema, podendo, por isto, ser altamente benéfica a todo homem
que hoje em dia queira refletir sobre urna realidade candente e
questionadora. Eis por que proporemos, a seguir, urna síntese do docu
mento, acompanhando passo a passo o seu desdobramento.

' Precisamente a data de assinatura do Documento era a da festa litúrgica de S.


Martinho de Pones ou de Lima (Peni), filho de um espanhol e de urna escrava negra.

519
40 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

1. Os comportamentos racistas ao longo da historia (2-7)

Por racismo entende-se "a consciéncia de pretensa superioridade


biológica de determinada raca em relagáo as outras". Isto costuma gerar
perseguicao, manipulacáo e explora9áo do homem pelo homem. As raízes
de tais comportamentos encontram-se na realidade do pecado, de que
falam as narracóes bíblicas de Caím e Abel e da Torre de Babel.
Na antigüidade greco-romana parece nao ter existido o mito da
rafa. Houve, sim, a prática da escravidáo; esta afetava individuos feitos
prisioneiros em guerra, sem que houvesse povos desprezados por causa
de sua raga.

O povo hebreu tinha consciéncia do amor de Deus por ele, mani


festado sob a forma de alianca gratuita. Julgava-se, pois, diferente dos
outros povos, que praticavam a idolatría. O motivo dessa distincao era de
índole religiosa, nao biológica. Nos escritos dos Profetas transparece
mesmo um certo universalismo ou a consciéncia de que todos os ho-
mens sao chamados á mesma fé.

O Cristianismo veio afirmar plenamente essa universalidade, pois


anuncia a salvacáo a todas as nacóes.

Em conseqüéncia, a Idade Media nao conheceu o racismo no sentido


estrito da palavra; os povos eram distribuidos em cristaos, judeus e infiéis,
segundo criterios religiosos; verdade é que essa distincáo fez que os judeus
sofressem muitas vezes graves humilhacoes, acusagóes e desterras.

A descoberta do Novo Mundo, no século XVI, provocou mudancas


de atitude. Se os grandes navegantes dos séculos XV e XVI estavam
¡sentos de preconceitos racistas, os soldados e os comerciantes nao fo-
ram igualmente respeitosos; para tirar proveito do trabalho dos indígenas
e, em seguida, dos negros, reduziram-nos á escravidáo. Os Papas nao tar-
daram em reagir; Paulo III, na Bula Sublimis Deus, de 2-06-1537, denun-
ciou aqueles que sustentavam que "os habitantes das indias ocidentais e
dos continentes austrais... deviam ser tratados como animáis privados de
razáo e utilizados exclusivamente para o nosso proveito e ao nosso servico".
Acrescentava solenemente o Papa:

"No desejo de remediar o mal que foi causado, Nos decidimos e


declaramos que os chamados indígenas, bem como todas as outras po-
pulagóes com que no futuro a cristandade entrará em relagao, nao deve-
ráo ser privados da sua liberdade e dos seus bens - nao obstante as
alegagoes contrarias - aínda que eles nao sejam cristaos, e que, ao contra
rio, deveráo ser deixados em pleno gozo da sua liberdade e dos seus bens".

O Papa Urbano VIII teve que excomungar aqueles que tinham es-
cravos indígenas.

520
A IGREJA E O RACISMO 41

Dentre os membros do clero, sobressa¡u-se a figura de Bartolomeu


de Las Casas (t 1566), dominicano e bispo, cujas atitudes foram segui
das por outros missionários: induziu os Governos de Espanha e Portugal
a rejeitar a teoría da inferioridade humana dos indígenas e a impor urna
legislacáo protetora, da qual se beneficiaram também, de certo modo,
um século mais tarde, os escravos negros trazidos da África. A obra de
Las Casas é urna das primeiras contribuicóes para a doutrina dos direi-
tos universais do homem, fundados sobre a dignidade da pessoa inde-
pendentemente da sua pertenca étnica e religiosa. Na sua esteira, os
grandes teólogos e juristas espanhóis Francisco de Vitoria e Francisco
Suarez, iniciadores do direito dos povos, desenvolveram a doutrina da
igualdade fundamental de todos os homens.

Acontece, porém, que a Lei do Padroado concedía aos monarcas


de Espanha e Portugal grande ingerencia nos assuntos da Igreja, impe-
dindo-a de tomar as decisóes pastorais que se impunham.

Sempre preocupada em melhor respeitar as populagoes indíge


nas, a Sé de Roma nao deixou de insistir para que se fizesse a distingao
entre a obra de evangelizacáo e o imperialismo colonial, com o qual ela
corria o risco de ser confundida. Neste sentido a Congregacáo para a
Propagacáo da Fé enviou urna Instrucáo aos missionários que partiam
para a China em 1659, dizendo-lhes:

"Nao ponhais zelo nem vos apliquéis a convencer estes povos a


mudar os seus ritos, os seus costumes e as suas tradigoes, a nao ser que
sejam evidentemente contrarios á religiáo e á Moral. Nada é mais absur
do do que transferir para junto dos chineses a Franca, a Espanha, a Italia
ou qualquer outro país da Europa. Nao deveis levar-lhes a cultura dos nos-
sos países, mas afé... Nao procuréis substituir os usos destes povos com os
da Europa, e tende a maior solicitude possível em vos adaptar a eles".

No século XVIII foi elaborada urna ideología racista, contraria aos


ensinamentos da Igreja. Procurou justificar os seus preconceitos a partir
da cor da pele e dos caracteres somáticos do individuo; estabelecia as-
sim urna diferenga substancial, de caráter biológico hereditario, para con
cluir que os povos submetidos á escravidáo pertenciam a ragas inferio
res. É no final do século XVIII que a palavra raga aparece pela primeira
vez para classificar os seres humanos do ponto de vista biológico. No
século XIX alguns autores interpretaram a historia de civilizacáo como
urna competicáo entre ragas fortes e ragas fracas. A decadencia das gran
des civilizagóes explicar-se-ia por cruzamento de ragas que empobrece
ría a pureza do sangue.

Estas teses geraram a ideología do nacional-socialismo na Alema-


nha, que tinha em vista eliminar as ragas "inferiores" (judeus, ciganos)
assim como as pessoas física ou mentalmente deficientes.

521
42 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

A Igreja nao deixou de levantar a sua voz: aos 25-03-1928 um de


creto do S. Oficio condenava o anti-semitismo. Em 1937 o Papa Pió XI
publicou contra o nazismo a encíclica Mit brennender Sorge (Com can
dente preocupacáo), na qual afirmava:

"Todo aquele que toma a raga ou o povo ou o Estado..., ou qual-


queroutro valor fundamental da comunidade humana... para os retirar da
sua escala de valores... e os divinizar com um culto idolátrico, perverte e
falsifica a ordem das coisas por Deus criada e estabeiecida" (Acta
Apostolicae Sedis XXIX, 149).

Aos 13-04-1938 o mesmo Papa impunha a todos os professores


de Teología nos Seminarios e ñas Faculdades Católicas que refutassem
as pseudoverdades científicas por meio das quais o nazismo justificava a
sua ideología racista. Notemos ainda as seguintes palavras de Pío XI
proferidas a 28-7-1938:

"Católico quer dizer universal, nao racista, nao nacionalista no sen


tido separatista destes dois atributos... Nada queremos separar na fami
lia humana... A expressáo género humano revela precisamente a raga
humana. Deve-se dizer que os homens sao, antes de tudo, um grande e
único género, urna grande e única familia de seres vivos... Existe urna só
raga humana universal católica e, com ela e nela, variagoes diversas...
Eisaresposta da Igreja" (La Documentation Catholique 1938, 1058-1061).

Em 1942, o Papa Pío XII, na sua mensagem de Natal, afirmou que,


entre os postulados erróneos do positivismo jurídico, "se deve incluir urna
teoría que reivindica para urna determinada nacáo, raca ou classe o ins
tituto jurídico, imperativo supremo e norma sem apelo... O anseio de urna
ordem social nova e melhor, a humanidade o deve a centenas de milha-
res de pessoas que, sem culpa alguma, mas simplesmente porque per-
tencem a tal raca ou nacionalidade, estáo destinadas á morte ou a um
definhamento progressivo" (Acta Apostolicae Sedis XXXV, 1943,14.23).

Ainda em nossos dias o fenómeno da escravidáo nao está total


mente superado. Além do qué, a Asia e a África sofrem, em algumas de
suas regióes, urna certa divisáo de castas bem como diferencas sociais
difíceis de ser superadas. Vejamos agora

2. As formas de racismo hoje (8-16)

1. A forma mais evidente do racismo é o racismo institucionalizado


pelas leis de um país, como ocorreu no apartheid da África do Sul: todo
sul-africano era definido pela raca que Ihe era obrigatoriamente atribui
da; em conseqüéncia, urna minoría branca dominava as populacóes ne
gra, mestica e indiana do país. Os cristáos tém denunciado esse regime.
As comunidades raciais oprimidas tendem a reagir com atitudes racistas,
táo deploráveis quanto aquelas de que sao vítimas.

522
A IGREJA E O RACISMO 43

2. Outra forma de racismo atual é a que se verifica em alguns paí


ses contra as populacóes aborígenes, testemunhas da populacho origi
naria dessas regióes. Sao sobreviventes de genocidios praticados pelos
invasores ou tolerados pelos poderes coloniais. A propósito dessas mi-
norias devem-se evitar duas coisas: 1)que sejam confinadas em reser
vas, como se tivessem de viver ali, para sempre concentradas no seu
passado; 2) que sejam vítimas de assimilacáo toreada, sem se respeitar
o seu direito a manter a identidade própria. A ¡ntegracáo desses povos
na sociedade que os cerca, deve efetuar-se por livre escolha.

3. Há também países que limitam os direitos de minorías religio


sas, que sao muitas vezes de origem étnica diferente daquela da maioria
dos cidadaos. Em tais países a conversáo á fé implica nao raro a perda da
cidadania; os cidadaos discriminados sao tidos como de segunda categoría,
prejudicados no setor do trabalho, da habitacáo, da educa?áo superior...

4. Seja mencionado ainda o etnocentrísmo, atítude segundo a qual


um povo tende a defender a sua identidade denegrindo a dos outros, a
ponto de Ihe recusar o pleno reconhecimento de sua humanídade; pode
conduzir á aniquilacáo cultural, que os sociólogos chamam etnocídio,...
etnocídío que só tolera a presenca do outro, na medida em que se deixa
assimilar á cultura dominante. Nos países da África e da Asia que se
tornaram independentes, as fronteiras políticas nem sempre coincidem com
os limites de urna nacáo, de modo que, no interior de fronteiras artificiáis, a
convivencia entre as populacóes de tradicóes, línguas, culturas e religióes
diferentes encontra o obstáculo de hostilidades recíprocas de tipo racista.

5. Há outrossim opressáo injusta quando populacóes inteiras sao


mantidas num estado de desarraigamento dos territorios onde se tinham
legítimamente instalado, e vivem como prófugos, muítas vezes sem teto,
ou quando, permanecendo na própria patria, se encontram em condi-
cóes humilhantes. Tal é o caso tanto do povo palestino como do povo judeu.

6. Nao é exagerado dizer que no interior de um mesmo país existe


um racismo social, quando, por exemplo, ¡mensas massas de campone-
ses pobres sao expulsas de suas térras e mantidas em condicóes de
inferiorídade social e económica por proprietáríos poderosos, que se be-
neficiam de inercia ou de cumplicidade ativa das autoridades. Trata-se
de novas formas de escravidáo, freqüentes no Terceiro Mundo.

7. Nos países de forte imigracáo existe o fenómeno do racismo


espontáneo, que se observa entre os seus habitantes em relacáo aos
estrangeiros, principalmente quando estes se distinguem pela sua ori
gem étnica ou pela sua religiáo. A repulsa, no caso, se deve a um nacio
nalismo exagerado e a um temor irracional, provocado pela presenca do
outro ou pelo confronto com as notas diferenciáis dos ¡migrantes. Os ve-
xames a que sao submetidos os refugiados e migrados, tém como efeito

523
44 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

levá-los a reagrupar-se em guetos - o que retarda a integracáo deles na


sociedade que os recebeu.

8. Merece particular referencia o anti-semitismo, que se desenvol-


veu trágicamente durante a segunda guerra mundial. Em nossos dias
ainda existem organizacoes que apoiam o mito anti-semita; multiplica-
ram-se também acóes terroristas contra pessoas ou símbolos do judaismo.

9. Quem considera as modernas técnicas de procriacáo artificial e


manipulacáo genética, pode temer novas formas de racismo. É preciso
que as Ieis fixem, quanto antes, limites intransponíveis a fim de que es-
sas técnicas nao caiam ñas máos de poderes abusivos, que procurariam
produzir seres humanos selecionados segundo criterios de rafa ou de
qualquer outro tipo. Restaurar-se-ia entáo o mito do racismo eugenético.
Onde desaparece o respeito á vida segundo as disposicóes do Criador, é
de recear que desapareca todo freio moral ao poder dos homens.

Para repelir com firmeza as manobras inspiradas pelo racismo, é


necessário haja profundas convicc.6es sobre a dignidade de toda pessoa
e sobre a unidade da familia humana. A Moral apregoada pela Igreja
deriva-se de tais conviccoes e deve ser espeihada em Ieis que garantam
o bem-estar de todos os povos.

3. Dignidade e unidade do género humano (17-23)

1. O pensamento da Igreja está cristalizado em varios documen


tos, dos quais seja citado como especialmente significativo o seguinte
trecho da Constituicáo Gaudium et Spes do Concilio do Vaticano II:

"Dotados de alma racional e criados a imagem de Deus, todos os


homens tém a mesma origem; redimidos por Cristo, todos gozam da mes-
ma vocagáo e destinagáo divina; deve-se portanto reconhecer cada vez
mais a igualdade fundamental de todos...

Na verdade, nem todos os homens se equiparam na capacidade


física, que é variada, e ñas torgas intelectuais e moráis, que sao diver
sas. Contudo, qualquer forma de discriminagáo nos direitos fundamen
táis da pessoa, seja ela social, seja cultural ou esteja fundada no sexo,
na raga, na cor, na condigno social, na língua, na religiáo, deve ser supe
rada e eliminada, porque contraria ao plano de Deus" (n. 29).

Fazendo eco a estas palavras, o Papa Paulo VI assim se expres-


sava perante o Corpo Diplomático:

"Para quem eré em Deus, todos os seres humanos, mesmo os


menos favorecidos, sao filhos do Pai universal, que os críou á sua ima
gem e guia os seus destinos com amor previdente. Paternidade de Deus
significa fraternidade entre os homens; é este um principio-base do
universalismo crístáo, um ponto em comum também com as outras gran-

524
A IGREJA E O RACISMO 45

des religioes e um axioma da mais alta sabedoría humana de todos os


tempos, e que tem o culto da dignidade do homem" (14-01-1978).
Tais afirmacoes encontram seu fundamento tanto ñas ciencias hu
manas quanto na Revelacáo Divina, como passamos a ver.
2. Com efeito. As ciencias humanas contribuem para fazer desapa
recer muitos preconceitos que alimentam o racismo. Assim, por exemplo, se
lé numa declaracáo de cientistas da UNESCO, datada de 8-06-1951:
"Os cientistas reconhecem geralmente que todos os homens atuais
pertencem a urna mesma especie, o homo sapiens, e se derivam de urna
estirpe"{Le racisme devant la science. UNESCO, París 1973, n. 1. p. 369).
3. A Revelacáo Divina corrobora e aprofunda estes dizeres.
Sim; a fé ensina que Deus criou o homem á sua imagem e seme-
Ihanca. Este vínculo do homem com o seu Criador é a base de inalienáveis
direitos {e deveres) de todo ser humano. "Nem o individuo, nem a socie-
dade nem o Estado nem instítuicáo alguma podem reduzir o homem - ou
um grupo de homens - á condicáo de objeto" (n. 19).

Com outras palavras: deve-se dizer que todos os homens, criados


por Deus, tém a mesma origem e sao chamados a formar urna só familia. A
escolha do povo judeu nao contradiz a este universalismo; Deus quis, medi
ante Israel, travar alianca com todo o género humano: "Em ti seráo abenco-
adas todas as nacoes da térra", declarou o Senhor a Abraáo (Gn 12, 3).
O Novo Testamento reforca esta revelacáo da dignidade humana.
Na verdade, o misterio da Encamacáo evidencia como Deus quis honrar
a natureza humana; mediante Jesús Cristo, todos os homens sao cha
mados a entrar em Alianca definitiva com Deus, independentemente de
preconceitos raciais. Tal Alianca é selada pelo sacrificio de Cristo na Cruz;
este aboliu o fosso existente entre judeus e pagaos e propiciou a recria-
cáo do homem. "Homem Novo é o nome coletivo da humanidade res-
gatada por Cristo, na diversidade de seus componentes, reconciliada com
Deus num só Corpo, que é a Igreja" (n. 21). Em conseqüéncia, "já nao há
grego nem judeu, nem circunciso nem incircunciso, nem bárbaro, nem cita,
nem escravo nem livre, mas Cristo, que é tudo em todos" (Cl 3,11; Gl 3,28)!
Cristo quer que tais conviccóes se traduzam em comportamentos
concretos. Ele mesmo mostrou-se acolhedor a todas as categorías de
pessoas com quem entrou em contato (a Samaritana e os Samaritanos,
a Sirofenícia, os pagaos, os publícanos, os doentes...). E solenemente
advertiu: seremos julgados sobre a atitude que tivermos para com o es-
trangeiro ou o menor de nossos irmáos; sem mesmo o sabermos, é com
Cristo que nos encontramos ao abordar cada um destes {cf. Mt 25, 38-40).
Por conseguínte, a Igreja tem no mundo a vocacáo de ser o povo
dos remidos ou dos que formam em Cristo um só Corpo Místico. O Concilio

525
46 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

do Vaticano II definiu-a muito adequadamente como "o sacramento ou


sinal e instrumento da íntima uniáo com Deus e da unidade de todo o
género humano" (cf. Lumen Gentium n. 1). Na Igreja nao pode haver
discriminacao devida a raca ou nacionalidade, condicao social ou sexo
(cf. Lumen Gentium n. 32). É precisamente este o sentido da palavra
católico, universal, que caracteriza a Igreja. As falhas quetenham ocorri-
do ou ocorram na execucao desse projeto, sao devidas á fraqueza humana,
mas nao invalidam a missáo que a Igreja recebeu por mandato divino.
Tal doutrina implica graves conseqüéncias de ordem prática, que
podem ser compreendidas sob tres palavras: respeito das diferencas,
fraternidade, solidariedade.

Respeito das diferencas... Embora portadores da mesma digni-


dade, os homens nao tém todos as mesmas capacidades físicas e os
mesmos talentos intelectual e culturáis. Igualdade nao quer dizer unifor-
midade. É necessário, pois, reconhecer a diversidade e a
complementariedade das riquezas culturáis e das qualidades moráis de
uns e outros. A nenhum grupo humano é lícito atribuir a si urna superiori-
dade de natureza sobre os outros.

O respeito mutuo deve desenvolver-se em fraternidade: "Todo


homem é meu ¡rmáo" (Tema do Dia Mundial da Paz em 1971). A carida-
de, que está na raiz dessa fraternidade, nao é mero sentimento de bene
volencia ou piedade; ela tem como objeto permitir a todo individuo viver
em condicóes dignas, que Ihe competem por justica.
A própria fraternidade deve ser levada adiante até a prática da so
lidariedade, que abraca todos os homens, em particular ricos e pobres.
Disto depende a paz entre os homens e as nacóes: "A obra da solidarie
dade é a paz" (Encíclica Sollicitudo Rei Socialis n. 38).
4. A contribuyo dos cristáos (n. 24-32)

O preconceito racista nao será extirpado apenas mediante meios


extrínsecos (legislacáo, demonstracáo científica...). É preciso combáte
lo na sua raiz, onde ele se forma, ou seja, no coracáo dos homens. Por
isto o primeiro passo a dar em demanda da superacao do racismo é o da
conversao dos coracoes.

Por sua vez, a conversao dos coracoes há de ser baseada em con-


viccóes firmes a respeito da dignidade de todos os seres humanos, tal
como a Tradicáo oral e escrita a incute. "O recurso á Biblia para justificar
os preconceitos racistas deve ser resolutamente denunciado. Jamáis a
Igreja autoriza urna leitura táo disforme da Escritura" (n. 25).
As conviccóes assim concebidas deveráo exteriorizar-se em con-
duta e atitudes concretas:

526
A IGREJA E O RACISMO 47

1) disponibilidade ao diálogo, á partilha, á ajuda recíproca, á cola-


boracáo com todos os homens.

2) Defender as vítimas do racismo, onde quer que se encontrem.


Muitos o fazem por motivos humanitarios. "Os cristáos nao hesitam... em
participar nesta luta pela dignidade de seus irmáos, preferindo sempre
os meios nao violentos" (n. 26).

3) Na denuncia do racismo a Igreja quer manter urna atitude evangé


lica. Com efeito; importa nao apenas denunciar os males, mas procurar com-
preender as situacóes e as pessoas que Ihes dáo origem, a fim de as ajudar
a encontrar urna solucáo razoável para seus problemas. "A Igreja se preocu
pa por evitar que as vítimas reajam com violencia e venham, por sua vez, a
assumir um comportamento semelhante áquele que elas rejeitam. A Igreja
quer oferecer um espaco de reconciliacáo e nao exacerbar as oposicóes" (n. 27).
4) O papel da escola, como foco nao só de instrucáo, mas também de
educacáo, é primordial. É importante ensinarque o outro, precisamente por
que é diferente, pode enriquecer a nossa experiencia. De um lado, a forma-
cao cívica deve enaltecer os valores patrios, nao porém a ponto de se tornar
nacionalismo exacerbado e hostil aos estrangeiros. Possa a escola oferecer
aos filhos dos imigrados a ocasiao de se inserirem na populacáo autóctone.
5) Os textos de lei, as instituicóes nacionais e regionais háo de
traduzir o respeito pelo próximo. No interior de um mesmo Estado a lei
deve ser a mesma para todos os cidadáos; nao sejam discriminadas as
minorías étnicas, lingüísticas ou religiosas.

De modo especial, sao vítimas de preconceitos raciais os imigra-


dos, os refugiados, os trabalhadores estrangeiros temporarios... A lei
deverá velar por reprimir qualquer forma de exploracao contra tais pes
soas. Precisamente ñas relacóes de trabalho deveráo originar-se melhor
conhecimento e aceitacáo mutua entre pessoas de origem étnica e cultu
ral diferente; nao permitam as leis que, por urna prestacáo igual de traba
lho, os estrangeiros sejam discriminados em relacáo aos trabalhadores
autóctones no tocante ao salario e á previdencia social.

6) A nivel internacional, é necessário continuar a elaborar instrumen


tos jurídicos de luta contra o racismo; e, sobretudo, é preciso torná-los efica-
zes. As Nacoes Unidas tém-se empenhado notavelmente na proclamacao
dos direitos dos homens e dos povos; aos 21-12-65, por exemplo, declarou
a ONU: "Nada pode justificar em caso algum a discriminacáo racial, nem em
teoría, nem na prátíca" (Convencáo Internacional sobre a Eliminacáo de to
das as formas de Discriminacao Racial, Preámbulo, § 6). Aos 02-11-1973 a
ONU proclamou o decenio da luta contra o racismo e a discriminacio racial,
decenio que foi renovado em 1983. A Santa Sé, como membro qualificadó
da comunidade internacional, tem participado das decisóes da ONU.

527
48 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 474/2001

7) Os Bispos do mundo inteiro tém também urna acáo de relevo a


exercer, continuando, alias, a que vém praticando. Merece especial refe
rencia o Episcopado dos Estados Unidos, que ainda em 26-03-87 se pro-
nunciou contra a persistencia de sinais de racismo na sociedade ameri
cana, notadamente na organizacáo dita Ku Klux Klan. Outro testemu-
nho saliente é o dos Bispos da África do Sul, que lutaram contra o
apartheid com o apoio da Santa Sé manifestado pelo Papa Joáo Paulo II
em sua visita áquele país:

"A questáo do apartheid, entendida como um sistema de discrimi-


nacáo social, económica e política, empenha a vossa missao como mes-
tres e guias espirituais dos vossos rebanhos, num esforgo necessário e
determinado em combateras injustigas e em sustentara substituigáo dessa
política pela baseada na justiga e no amor. Animo-vos a permanecer, de
maneira firme e corajosa, nos principios que estáo na base de urna resposta
pacífica e justa as legítimas aspiragóes de todos os vossos concidadios".
Termina o capítulo 4 do Documento que analisamos, nos seguintes
termos:

"Ospaíses onde existem graves tensóes raciais, devem darse conta


da precariedade de urna paz que nao se baseia no consenso de todos os
componentes da sociedade. A historia ensina que desconhecer por lon
go tempo os direitos do homem acaba quase sempre por provocar explo-
soes de violencia incontroláveis. Para instaurar urna ordem fundada so
bre o direito, é preciso que os grupos antagonistas se deixem guiar pelos
valores supremos e transcendentais, nos quais se funda toda a comuni-
dade humana e toda a relagáo pacífica entre as nagóes" (n. 32).
O texto, denso como é, encerra-se com urna

Conclusáo

Apesar das Declaracóes da ONU e da Igreja, o racismo ainda exis


te em nossos dias numa gama assaz ampia de modalidades: o apartheid
foi a sua forma mais característica. Existem, porém, outros tipos de dis-
criminacáo, cujo motivo explícito nao é o de raga, mas que tem efeitos
semelhantes. Seria hipócrita acusar um só país: muitos poem em prática
urna discriminacáo, que eles mesmos em teoría abominam.

A Igreja encoraja a erradicacáo desses preconceitos. Pede a Deus


que converta os coracóes e oferece-lhes um espaco de reconciliacao.
Apesar dos pecados de seus membros, ela tem consciéncia de haver
sido constituida testemunha do amor de Cristo sobre a térra. A palavra
de Deus que a todos propoe, é aquela que ela mesma procura viver:
"Todo homem é meu irmáo".
Estéváo Bettencourt O.S.B.

528
LIVROS Á VENDA NA LUMEN CHRISTI:
- UM MONGE QUE SE IMPÓS A SEU TEMPO - pequeña Introducáo com antología á vida
e obra de SAO BERNARDO DE CLARAVAL - Pe. Luis Alberto Rúas Santos O. Cist
Musa e Edicóes Lumen Christi. 2001. 200 pp r$ 26,00.
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cóes: Claudio Pastro. "Este livro pretende evocar Deus nos ambientes de trabalho. Suas
oracóes nos proporcionaráo momentos de louvor, alegría e grapa. De coracáo aberto,
poderemos, entáo, refletir sobre nosso relacionamento com os companheiros de jorna
da". Saga Editora e Mosteiro Nossa Senhora da Paz. 2001. 160 pp R$ 19,00.
- O EFÉMERO E O ETERNO - poemas de sóror mínima.
Trecho da apresentacio de Irma Eugenia Teixeira O.S.B.: "Com muita alegría, queremos
partilhar com os irmáos e as irmás um dos nossos preciosos tesouros de familia: as
poesías de Ir. Inés, esta coluna de nossa comunidade..."
Mosteiro da Virgem - Petrópolis - RJ. 2001. 170 pp r$ 19,00.
TRATADO SOBRE A ORACÁO: TERTULIANO, S. CIPRIANO, ORÍGENES.
Tres grandes mestres da espiritualídade crista dos primeiros séculos, comentam ma
gistral mente o Pai-nosso.
Ed. Mosteiro da Santa Cruz de Juiz de Fpra - MG. 2001. 2a ed. 216 pp R$ 19,00.
JESÚS CRISTO IDEAL DO MONGE - Dom Columba Marmion, OSB. Versio portugue
sa dos Monges de Singeverga. 682 págs r$ 40,25.
JESÚS CRISTO NOS SEUS MISTERIOS, Dom Columba Marmion, OSB. - Conferenci
as Espirituais. 3a edicáo portuguesa pelos monges de Singeverga.
540 Pá9S R$ 40,25.
JESÚS CRISTO VIDA DA ALMA, Dom Columba Marmion, OSB. Quarta edicáo portu
guesa pelos Monges de Singeverga, Portugal. 1961, 544 págs R$ 40,25.
POEMAS E ENSAIOS - RAÍSSA MARITAIN. TRADUCÁO E COMENTARIOS DE CESAR
XAVIER BASTOS. Edícáo CXB - Juíz de Fora - MG. 2000. 200 páginas R$ 20,00.
SAO BENTO, UM MESTRE PARA O NOSSO TEMPO, D. Gregorio Paixáo, OSB. Edi
cóes Sao Bento - Salvador - BA - 1996. 112 págs R$ 11,00.
Trecho da ¡ntroducáo: "...Assim, além do texto inicial sobre a atualidade de Sao Bento,
acrescentamos outros, especialmente selecionados, de sua Regra e de sua Vida, corrí
urna traducáo facilitada, aproximando o texto do leítor de primeira viagem...".

DIÁLOGO COM DEUS. INTRODUCÁO A "LECTIO DIVINA". D. Garda M. Colombás,


MB. Traducáo: Monges do Mosteiro da Ressurreicáo. Paulus. 1996,
128 págs R$ 10,50.
Trecho da apresentacáo: "...O presente texto, como lemos no prólogo da edicáo espa-
nhola reúne conferencias originariamente dirigidas a auditorios monásticos. Podem,
entretanto, por sua simplicidade, aliada ao dominio seguro e profundo do tema, orientar
leigos e religiosos na prática frutuosa da lectio divina...".

O MANTO DE ELIAS. ITINERARIO ESPIRITUAL PARA A VIDA RELIGIOSA. Enzo


Bíanchí. Traducáo Mosteiro de N. Sra. das Gracas. Cimbra-1996. Editora Santuario.
114 P^s R$ 12,oo!
Trecho do prefacio: "...Na crise atual que a vida religiosa, profundamente, ainda atraves-
sa. nao é oportuna urna modernizagao, mas apenas urna resposta do radicalismo evan
gélico testemunhado pela grande tradicáo...".

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Roma. Para Professores e Alunos de Teología, é um Tratado de "Deus Uno e Trino", de
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Medeiros, OSB. Publicacáo da Escola Teológica da Congregacao Beneditina do Brasil. Estambra
foi feita em homenagem a Dom Estéváo. Além do esbogo bio-bíblíográfico de Dom Estéváo,
encontram-se artigos de amigos e admiradores de Dom Estéváo. Sao professores da Escola
Teológica, do Pontificio Ateneu de Santo Anselmo em Roma, que ministraram varios cursos
nesta e outros que o estimam. Sumario: Historia, Bíblica, Histórico-Dogmática, Dogmática,
Canónica, Litúrgica, Pedagógica, Literaria e Noticias Biográficas. 1990. 315 págs RS 14,50.
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cos e irmáos separados tém mostrado a necessidade de um repertorio de textos bíblicos breve
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das, surge, pela Editora Santuario, sua quarta edicáo, revista e atualízada.
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entender o Antigo Testamento e aprofundar seus conhecimentos sobre questoes muitas
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