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De uma carta para Christopher Tolkien 12 de Agosto de 1944 (FS 43)

Passou mais tempo do que aquilo que eu desejava desde o meu aerograma de 8 de Agosto... Eu li as tuas
cartas com muito cuidado, e parece claro que tu nos abres o teu coração pesaroso; mas não penses que
qualquer detalhe da tua vida privada, dos teus amigos, conhecidos, ou dos acontecimentos menos importantes,
não são merecedores de uma carta ou de interesse. Fico feliz por estares a conseguir viver a vida facilmente
(por vezes). Eu não me devia preocupar demasiado, se o processo por vezes parece ser uma decadência dos
modelos mais elevados (intelectuais e estéticos, de qualquer forma, não morais). Eu não acho que tu estejas,
no mínimo, provavelmente permanentemente a recusar o pior; e devo dizer que deves enrijecer a tua pele,
como protectora da parte interior, mais sensível; e se conseguires, ela será permanentemente valiosa em
qualquer caminhada na vida que venhas a realizar neste mundo cruel (e que não mostra sinais de suavizar). E
claro, como já tiveste oportunidade de descobrir, uma das descobertas do processo é a realização de valores
que muitas vezes se escondem por baixo de terríveis aparências. Urukhai é a penas uma figura de linguagem.
Não há Uruks genuínos, ou seja, pessoas que se tornaram más devido à vontade do seu criador; e não há
muitos que estejam tão corrompidos que a sua situação seja irremediável (apesar disso, tenho de admitir que
há criaturas humanas que parecem irremediavelmente em falta de um milagre e que há, de forma anormal,
muitas dessas pessoas na Alemanha e no Japão – mas é certo que estes tristes países não têm o monopólio: eu
encontrei-os, ou pelo menos pensei que sim, nas terras verdes e agradáveis da Inglaterra). Tudo o que dizes
acerca da secura, sujidade e cheiro dessa terra lambida por Satanás (Christopher estava na África do Sul a
ser treinado para piloto) faz-me lembrar a minha mãe; ela odiava-a (como país) e estava alarmada ao ver
sintomas crescentes no meu pai que mostravam que ele estava a começar a gostar dele. Costumava-se dizer
que nenhuma mulher nascida em Inglaterra conseguia ultrapassar esta sensação de antipatia ou ser mais do
que um exilado, mas que os Ingleses (devido às condições libertadoras de paz) podiam e, geralmente,
conseguiam adora-lo (como país; não me estou a referir a qualquer um dos seus habitantes). Estranhamente,
tudo o que dizes, até em seu desabono, apenas serve para aumentar o desejo que há muito sinto de voltar a
vê-lo novamente. Apesar de gostar e admirar as pequenas encostas e precipícios e árvores murmurantes e os
suaves contornos ondulados de planícies ricas, a coisa que mais me prende e que chega mais perto da
satisfação do meu coração é o espaço, e eu ficaria de bom grado com a esterilidade desde que tivesse espaço;
na realidade, eu até gosto de esterilidade em si, de todas as vezes que a vi.. O meu coração ainda anseia pelas
altas desolações pedregosas, pelas morenas (amontoados enormes de resíduos no antigo ponto de
emersão de dois glaciares, resultantes do desaparecimento desses mesmos glaciares) e pelos
desagregações montanhosas, silêncio em vez do som da água fresca transparente. Intelectualmente e
esteticamente, claro; o homem não pode viver nas pedras e na areia, mas eu não posso de maneira nenhuma
viver apenas de pão; e se não existisse pedra e areia sem caminhos e o mar não desbravado, eu começaria a
detestar todas as coisas verdes, como sendo produto de um crescimento fúngico. ...
Estou completamente seco de inspiração para o Anel e estou de volta ao ponto onde estava na Primavera, com
toda a inércia a actuar de novo. Que alívio seria acabar a obra. A falta que me fazes pode por si só justificar tal
coisa! Quando te mandei o manuscrito esqueci-me de te avisar, mas suponho que tenha sido há cerca de um
mês e podes em breve recebe-lo. Eu não devo mandar-te mais nenhum até saber a tua próxima direcção,
apesar dos capítulos seguintes serem melhores. Eu estarei ansioso por saber o que achas deles. Este livro
acabou por ser cada vez mais dirigido a ti, por isso a tua opinião conta mais do que a de qualquer outra pessoa.
As expressões a negrito são notas que me pareceram oportunas para a boa compreensão do texto.

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