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ABORDAGEM PSICOTERÁPICA DA CRIANCA

E DA FAMfLlA
NAS PSICOSES INFANTIS

Salvador A. H. Celia

Diretor da Escola Terapeutica Leo


Kanner-Porto Alegre
Professor do Curso de Pós-Graduayao
em Psiquiatria Infantil da FMP A
- Presidente do Capítulo Gaúcho da
ABENEPI

Entendo por psicose, a condiyao psicopatol6gica baseada num seve-


ro comprometimento do ego, seja ela de natureza congénita, adquirida,
emocional ou neuropsicofisiológica, muitas vezes com caráter de irreversi-
bilidade, com consequentes defeitos na estruturayao da personalidade e de
dificuldade de adaptayao ao meio ambiente.

Em outras palavras, a crianya psic6tica é urna crianya extremamente


vulnerável, situayao que se agrava quando estamos diante de um quadro de
vulnerabilidade mata, submetida a riscos externos. As tentativas de melho-
ramento estao situadas no reconhecimento de um diagnóstico e de urna
ayao terapeutica que envolva técnicas dirigidas el crianya e ao seu meio ambi-
ente, geralmente os familiares.

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Para Anthony, as crianyas vulneráveis vivem em ambientes igual-
mente vulneráveis. É difícil avaliarmos se foi a falta de condiyoes emocio-
nais ambiental que deixoua crianya piorar, ou se foram as deficiencias cons-
titucionais dela que mais agravaram o quadro. Esses dois fatores se con-
jugam, formando urna ou mais estruturas relacionais que sao rigorosamente
interdependentes. Frequentemente, como é o caso da crianya psicótica, essa
estrutura está alterada, acarretando com isto distúrbios do comportamento
na crianya e nos familiares. Essas estruturas poderao sofrer influencias e até
serem modificadas pela conduta determinada por um novo elemento dentro
do campo de ayao, o terapeuta. Na prática, visamos o reforyo da crianya,
buscando melhorar sua personalidade, usando técnicas que atinjam a
crianya e seus familiares.

Entre as técnicas que usamos, estao as psicoterapias de orientayao


analítica, que podem ser usadas diretamente com o paciente, e, em algu-
mas vezes, por via indireta, com o uso de seu s pais, ou mesmo com o auxi-
lio de outros técnicos.

"Ekstein, num de seus trabaJhos referentes as psicoses infantis, diz


que a personalidade da crianya normal está ligada a várias estruturas ou or-
ganizay6es previsíveis que podem sofrer pequenas variay6es decorrentes do
período de crescimento. Compara essa personalidade assim formada, como
urna cebola, que para se atingir o miolo, passamos por várias camadas ou
estruturas perfeitamente previsíveis.

Na crianya psicótica, essas estruturas estao deficitárias ou até em


falta, sendo que a única coisa que se pode esperar é a falta de previsibilida-
de. Em vez das camadas organizadas e adaptadas, há um processo desorga-
nizado, em que as várias funyoes do ego como atenyao, orientayao, senso-
percepyao, pensamento, afeto, conduta, entre outras, estao profundamen-
te alteradas, trazendo com isto a perda da identidade da crianya. Há fus5es
do passado e do presente, realidade e fantasia, combinadas com a rápida
destruiyao dos contatos interpessoais.

A tarefa do terapeuta deve incluir o uso de técnicas que possibili-


tem um sistema de comunicayao adequado, num nivel afetivo apropriado
em que nao haja extremos de "distanciamento ou de fusionamento". A
inseguranya e a desconfianya sao sentimentos que estao "incrustados" no.
modo de sentir da crianya psicótica, relacionados a experiencias prévias
com o mundo. O terapeuta deve desenvolver meios de aproximayao usando
urna linguagem e urna conduta tal, que possa ser tolerada e absorvida pela
crianya.

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A compreensáo da linguagem e da conduta, muitas vezes "metafó-
rica", usada pelo paciente e compreendida pelo terapeuta, pode ser que
seja a ponte ou a rela9ao inicial que unirá a crian9a a e1e, encurtando a <lis-
tancia e o isolamento afetivo a que a crian9a está submetida.

Vejamos o caso de Pau1o, com 10 anos de idade, que ao vir ao COIl-


sultório, se apresentava com urna conduta' agitada, agressiva com os ami-
gos, professores e familiares, fato esse que determinou há alguns meses,
sua saída da escola. Na entrevista, seus familiares revelavam que Paulo
tinha urna paixao especial pelo futebol e que nos últimos tempos de colé-
gio s6 comparecia as atividades recreativas em que estava inc1uído o fute-
bol.

Relutava ele em vir as consultas, amea9ando quebrar tudo, fato


este que deixava os pais céticos em rela9ao as possibilidades de seu trata-
mento. Urna vez conseguida sua vinda, foi notória a presen9a de urna bola
acompanhando Paulo nas primeiras visitas e o seu desejo de jogar no con-
su1tório ou no pá tio da clínica, procurando evitar maiores diálogos ou con-
tatos que nao fosse com a bola. A compreensao pelo terapeuta do uso da
bola e do seu significado fez com que se iniciasse urna rela9íi'o de seguran-
9a e confian9a notada mais tarde na conduta de Paulo que passara a con-
versar e desenhar.

Outras vezes, os pacientes usam, dependen do da idade e preferen-


cias, estorietas infantis, pe9as teatrais, que além de dramatizarem, mas..
tram-se "fusionados" com alguns personagens.

Urna outra abordagem, por mim usada, é o auxilio de um ou mais


técnicos na fun9ao de auxiliar, acompanhante, cuidador ou amigo da cri-
an9a, nurn trabalho que visa a socializa9ao da mesma. Muitas vezes, o tra-
balho é realizado na própria casa da crian9a, sendo elaborado um plano
de atividades socializantes no sentido de refor9ar a intera9ao social e a
independiza9íi'0 da crian9a. Procura o acompanhante desenvolver ativi-
dades como jogar, brincar, sair a roa, entrar em contato com amigos e ou-
tras crian9as, participar de acontecimentos do dia-a-dia como coml'ras de
material escolar e até domésticos, visitas a supermercados, lojas, idas a
espetáculos teatrais, cinemas, etc ...

Essa técnica, tenho recomendado principalmente em casos gra-


ves, que necessitam de aten9ao especial, principalmente nas crian9as que
rem um turnoJivre em casa e em casos de crian9as que vivem muito longe
da clínica, como o caso de pessoas residentes no interior do Estado.

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Há necessidade do "cuidador" ser muito bem escolhido, podendo
ser um professor, um psicólogo, um pedagogo, um estudante em forma-
¡;ao e até mesmo uma babá especial, desde que se encontre em sua perso-
nalidade qualidades especiais para desenvolver essa importante tarefa ~
rnister salientar a importancia da fun¡;ao desempenhada pelo cuidador e as
possibilidades iatrogenicas que poderao ser desenvolvidas caso nao sejam
satisfeitas as fle~essidades básicas para um bom atendimento.

Urna outra abordagem psicoterápica da crian¡;a psicótica é a por


intermédio de seus pais, chegando-se a ela pelo uso de urna via indireta.
Há altemancias no atendimento, pois nao se trata de uma terapia para
os pais, mas sim para ela e os pais, o que podemos chamar de abordagem
rnista.

Um caso ilustrativo de urna situa¡;ao rnista é de Júlio, com oito


anos de idade, que há alguns anos atrás apresentava urna conduta pré-psicó-
tica tendo sido avaliado e sugerido aos pais que o menino fIzesse um tra-
tamento ambientoterápico em regime de clínica turno. Tal medida nao foi
ace.ita, havendo um mal entendido entre os familiares e o terapeuta, fato
este que fez com que Júlio nao viesse para a clínica. Tempos após, seu s
pais o levaram a vários especialistas e muitas tentativas de tratamento
foram feitas sem exito.

Ultimamente, face a piora da conduta do menino que apresentava-se


emagrecido, recusando alimentar-se, acompanhado de crises de agressivi-
dade com .os familiares, isolacionismo e devido ao fato dos pais se en con-
trarem em tratamento, foi o menino trazido ao antigo terapeuta. Na entre-
vista, os pais relataram, além da crítica situa¡;ao do momento, que o meni-
no pedia para ir a um "médico", pois sentia-se com dor de cabe¡;a, porém,
nao acreditavam na possibilidade de ele vir a aceitar um tratamento psiquiá-
trico.

Foi entao marcada urna entrevista para Júlio que compareceu mos-
trando-se negativista e revoltado, pedindo constantemente para ir embora.
Ao sair, disse que nao mais voltaria e "ralhou" com os pais, pelo acontecido.
Foi visto que o encaminhamento por parte dos pais, para a entrevista, fora
mal feito, pois o menino foi apanhado de surpresa e mal informado. Tais
fatos trouxeram o aumento da desconfIan¡;a por parte do menino em rela-
¡;aOao seu futuro tratamento.

Ap6s algumas entrevistas com os familiares, em que foram examina-


das as condutas ambivalentes dos pais em rela¡;ao ao tratamento, e como o
caso se agravasse, foi marcada urna nova visita de Júlio que, apesar de se
recusar a comparecer, enviava urna série de mensagens ao terapeuta, deixan-

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do claro seu interesse pelo tratamento. Foi vista a necessidade de se usar
firmeza, fato esse que foi confundido com violencia, pois Júlio veio contra-
riado a consulta. Ao chegar, criou urna crise de agita~ao, amea~ando deses-
peradamente fugir do consu1tório, como já o fizera em outras situ~Oes em
locais diferentes. Foi necessário conte-lo, para que pelo menos pudesse en·
trar em seu automóvel com seguran~a, afim de que se evitasse maiores aci·
dentes.
Em face a recusa e a impossibilidade prática de Júlio ser atendido
em regime ambulatorial, o terapeuta passou a fazer visitas a sua casa, as
quais foram precedidas com amea~as de recusa de contato, fugas de casa,
etc ... Atualmente, já está ocorrendo a aceita~ao das visitas, sendo esta
demonstrada pela euforia de Júlio e seus irmaos com a chegada do terapeu-
ta. Enquanto seus pais conversam sobre as dificuldades do momento e re-
visam situa~oes de manejo ocorridas no presente e no passado, Júlio faz
uso constante de um telefone interno, através do qual procura rnanter
seus contatos com o terapeuta. Apresenta-se agora, segundo os familiares,
mais disposto, já comendo em companhia da famt1ia e principalmente as
escondidas, melhorando seus contatos sociais, trazendo em sua casa ou
mesmo voltando a visitar antigos companheiros. Todos esses contatos
assinalam a abertura das possibilidades de Júlio vir a conseguir se tratar,
ocorrendo no momento, um verdadeiro período de provas e testes, no sen-
tido de que conhe~a e sinta os verdadeiros interesses do terapeuta e de
seus pais.
Há, como se ve, em cada situa~ao, a necessidade de se criar estra-
tégias que possam favorecer as abordagens terapéuticas que devem estar
baseadas nos conhecimentos psicodinamicos, mas cuja fonna de agir é es-
tritamente individual.

Vejamos agora, o atendimento psicoterápico propriamente dito dos


familiares da crian~a psicótica.
Urna das áreas mais atingidas nas rela~oes dos familiares com a
crian~a psicótica é a da comunica~ao. B muito usual encontrarmos alguns
processos ou linguagens comunicativas expressas em formas de "duplo-
-vínculo" ou em atitudes de procura de um "bode expiatório" do sistema,
ou mesmo de urna tentativa de "coisifica~ao" da crian~a. Há necessidade
de se descobrir, de sedecifrar os verdadeiros c6digos que comp5em o sis-
tema interacional decorrente das rela~oes ambientais vivenciadas pela
crian~a e os familiares. Basicamente, procuramos adaptar os pais a reali-
dade do momento e as possibilidades futuras da crian~a que dependerao em
muito de sua evolu~ao, se lhe for 'dada essa chanceo Geralrnente, encontra-
mos um alto nível de frustra~ao, pois os desejos e planos em rela~ao a
crian~a estaD longe de serem atendidos, surgindo daí urna série de situa-
~5es em que predominam as distor~oes e os contlitos que terminam por
criar um ambiente ansiogenico e até rechassante.

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Certas crianyas, com déficits constitucionais, sao fatores "stres-
santes" permanentes a seus pais que sao submetidos a verdadeiros desafios
de suas capacidades adaptativas. Quando nao compreendidas e atendidas
em suas necessidades, elaS podem ter seu quadro emocional agravado,
chegando mesmo a um estado psicótico. Nossa intenyao é de colocar os
pais como "agentes terapéuticos", pois desde logo sabemos, pelas experien-
cias vivenciadas, quao complexa é a situayao de manejo, tanto para os pais,
como para a equipe técnica, na abordagem da crianya psicótica. Além dis-
to, em sua grande maioria, as crianyas vivem e por isto passam a maior par-
te do tempo em suas casas com os seus familiares.

Para serem melhor conseguidos os objetivos desta tarefa, penso ser


igualmente importante a formayao psicodinfunica do terapeuta, para
melhor entender e compreender o campo de ayao formado pelo trinórnio
"crianya-família-terapeuta". Ele deve adaptar-se as possibilidades de seus
pacientes, regular seu narcisismo, suas idealizayOes e perdas, entre outros
fatores, para poder melhor desempenhar suas funyoes. Na verdade, sao
sentimentos muito similares aos vividos pelos familiares, na busca da adap-
tabilidade funcional.

Penso que a melhor denominayao para a terapia realizada seja a


de orientayao de pais. Ela é diretiva em seus objetivos, ou seja, na modifi-
cayao do relacionamento estruturalque possibilitará a mudanya do siste-
ma familiar, fazendo com que possam se desenvolver as possibilidades
de aceitayao da realidade. Urna visao pré-concebida ou parcial, por parte
do terapeuta no sentido da avaliayao das responsabilidades do binórnio
"crianya-família", 'poderá ser fatal ao mesmo que deve estar voItado sem-
pre para a estrutura que é decorrente, como vimos, de urna conduta rigo-
rosamente interdependente das duas foryas, e que variará em cada caso de
acordo com as vicissitudes peculiares a cada situayao contextual.

Outro erro muito comum, feito pelo terapeuta, é o da falta de


balanceamento adequado ou de dosificayao exagerada na sua conduta "in-
terpretativa", levando a intoxicayao os familiares, tendo seus reflexos mui-
tas vezes no abandono total -do tratamento. Assim, como para a crianya
psicótica, também para os pais da mesma há necessidade de colocayoes
adequadas, nos momentos exatos, para evitarmos um processo iatrogenico.

Sob o aspecto didático, para simplificarmos as vivencias que ocor-


rem e que muitas delas foram acima referidas, vejamos como elas ocorrem
nos diferentes estágios da conduta terapeutica.

Inicialmente, há urna fase exploratória e informativa para o tera-


peuta e os pais. O terapeuta deve estar voItado para conhecer a profundi-

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dade do problema da crianya e da intensidade da estrutu~ funcional re-
sultante da interayao entre ela e os país. Igualmente, o nivel de sensibili-
dade deve ser avaliado, para ser transmitido o diagnóstico e o plano de a-
tendimento.

Os país vivem essa fase, sob uma atitude de desconfianya, medo,


inseguranya, defendendo-se de possíveis ácusaye5es de responsabilidade pelo
estado da crianya, que poderao trazer, como consequencia, o aumento do
sentimento de culpa.

o segundo estágio, é por n6s denominado de intennediário (1)


pennanecendo com as características funcionais exploratórias e compre-
ensivas. Nos país existem os sentimentos de esperanya e de idealizayao
acentuada do tratamento, depositadas no terapeuta.

O terceiro estágio, intennediário (11), pennanece no terapeuta as


atitudes explorat6rias e compreensivas, enquanto que nos país, predomi-
nam os sentimentos de revolta pela perda da idealizayao. Isto é sentido nas
atitudes com a crianya, como desleixo nos cuidados com a mesma (vesti-
mentas, brinquedos, falta de reposiyao de material usado na terapia,.etc ...)
e com o terapeuta, no atraso do pagamento, falta ou pequenos atrasos nas
entrevistas com o casal e na vinda da crianya a escola (falta, atraso, etc ... ).

Na fase fmal, quando a alcanyamos, há urna colaborayao nítida dos


familiares para com os terapeutas, funcionando como verdadeiros agentes
terapeuticos. Em outras palavras, dizemos que atingimos um coeficiente
de adaptabilidade satisfat6rio, sendo essa urna de nossas metas ao iniciarmos
o tratamento.

BffiLIOGRAFIA

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tric Risk - John Wiley & Sons, 1974 - New York

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5 - CELIA, S: Conduta Médica frente a crian9a atípica - Relatório para o
IV Congresso Latino-Americano de Psiquiatria Infantil, 1977 - Belo
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6 - EKSTEIN, R: Functional Psychoses in children: Clinical features and


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7 - OSORIO, L. C.: Agentes Terapeuticos em uma comunidade hospitalar


infantil - 1 Congresso Brasileiro da ABENEPI, 1968 - Guarujá

8 - PREGO y Silva, L: Conferencia, Infancia normal e patológica, 1977


- Porto Alegre

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