Você está na página 1de 13
LUGAR COMUM N90, pp. 147-159 O imaginario camp e a crise ' Somos todos travestis. | do individualismo | Denilson Lopes De um lado, Narciso estd em busca de interioridade, de autenticidade, de intimidade psi; do outro, tende a reabilitar 0 espetaculo de si mesmo, 0 exibicionismo Itidico e deslocado, a festa das aparéncias. Gilles Lipovetsky, O império do efémero, p. 128) Por vivermos numa sociedade onde tudo que se refere ao individual estd to presente, no gosto, no comportamento, mesmo na cultura, esquecemos, ou nos fazem esquecer, que 0 individuo é uma construgao e nao dado inerente ao humano. O proprio mito do Homem emergiu na Grécia Classica em oposigéio 20 mito miceno-cretense e egeo-anatélio de Dioniso (Souza, 1973, p. 126). Portanto, criar uma cultura antropocéntrica e metafisica em meio ao teocentrismo gene- ralizado foi a grande revolugao grega, 0 que implicou pela primeira vez a sepa- ragdo entre natureza e cultura. O individualismo, como um desdobramento hist6rico do mito do Homem, é uma ideologia moderna, ou seja, um conjunto de representagdes comuns, especificas da civilizagao modema, em formagao a partir do Renasci- mento. O individualismo destaca o individuo do mundo contrapondo-se a uma perspectiva holistica. Nao é que 0 individuo enquanto sujeito empirico seja uma caracterfstica nova da modernidade, mas sim como ser moral, aut6nomo e essencialmente nao social (Dumont, 1985, p. 279-80), 0 que obviamente causa tensdes em sociedades, como as modernas, construfdas sobre esses novos va- lores. Por um lado, 0 individuo tornou-se um sustentdculo da sociedade capita- lista, da burguesia, encarnado no apogeu do liberalismo pelo self-made man. O individualismo possibilitou, em iltimo grau, até mesmo a exploragao e colo- nizagio de todo 0 mundo conhecido, abrindo novos mercados consumidores a 148 SOMOS TODOS TRAVESTIS (0 IMAGINARIO CAMP E A CRISE DO INDIVIDUALISMO) i i Europa e aos Estados Unidos. Mas, por outro lado, o individualismo trazia em si sua propria crise, j4 presente no artista moderno do século passado, dos ultra- romnticos ¢ Baudelaire aos decadentistas e simbolistas, que moldam 0 com- portamento de recusa do social, ou pelo menos da sociedade burguesa, por parte das vanguardas. Essa sensagio de insatisfagao frente ao social se alastrou por todo o século XX, particularmente com a sociedade de massa, nos diferentes s. Essa subjetividade, que se pretendia liberta da sociedade, frag- mentou-se, de forma crescente, até um processo de perda de uma identidade estratos sociai individual claramente definida. O leque de andlises sobre essa nova subjetividade que se descortina tem como principal problema a inter-relagao homem/mundo. A tese principal de Richard Sennett em O declinio do homem piblico & que A medida que 0 espago ptblico foi psicologizado, ou seja, vivido em termos pessoais, 0 espago privado se viu crescentemente reduzido, isolado e destitufdo de significado. No com- prazet-se em confissdes caudais, o individuo perdeu, paradoxalmente, o senso de sua diferenga, pois esta s6 pode ser estabelecida em relagao a um outro. Con- tudo, a perspectiva de Sennett nao esconde sua visao de vivéncia do espaco publico nos limites inaugurados pelos ideais democraticos do século XVII, constatando na sociedade intimista de hoje um acoplamento entre narcisismo e comunidade destrutiva, segregadora e segregada, bairrista... Mesmo em um tra- balho posterior, que tenta langar pontes sobre novas vivéncias do espaco ptiblico, Sennett enfatiza 0 isolamento do desenho urbano, em detrimento das tentativas de superar as fronteiras reais entre bairros/guetos, possibilidade que ele vislumbra na arte (Sennet, 1991, p. 261). A nao ser pela arte, 0 espacgo ptiblico parece trivializado pelo consumo e turismo, desprovido de uma experiéncia humana (ibid., p. X1-XTM), No lugar de um individuo auténomo, conquistador, emerge um eu minimo, defensivo, narcfsico. Conforme Cristopher Lasch, o narcisismo frutifica nao s6 como uma atitude existencial mas cultural. Ao se fechar dentro de si, ainda que por uma estratégia de sobrevivéncia, 0 sujeito se perde mais, pois a capaci- dade de ser outro, de compreender um outro, se rarefaz. Lasch tem 0 mérito de abordar uma problematica vinculada a um mal-estar frente ao consumismo em sociedades de massa, mas sua tendéncia apocaliptica é bastante unilateral. Denilson Lopes mi 149 No que Lasch e Sennett véem um problema, o (neo)individualismo, Lipovetsky vé uma solugio. Valoriza a moda, como uma espécie de sinal do efémero eregido em sistema permanente e fator de incentivo a valores democratico-liberais. A légica da moda, do ef€mero, implica na autonomia do sujeito num culto do hedonismo e da pluralidade. No entanto, quem melhor ceracteriza as possibilidades de superagao do impasse narcisista ¢ desenvolve novas perspectivas de encenagio do espago ptiblico, de reencantamento do mundo para além de uma esfera privada, intima, € Michel Maffesoli. Embora haja uma tendéncia, em sua obra, a subestimar as questdes decorrentes do narcisismoe seu confronto com outras subjetividades, de fato relevantes hoje em dia, sua defesa de um neotribalismo abre novas pos- sibilidades, nas quais se forja uma ordem, talvez, até mais projetiva do que presente, em que a tatibilidade e 0 sens{vel sfo valorizados em detrimento de associagdes mais institucionalizadas. O sujeito contemporaneo, assim, nio segue 0 modelo do individualismo classico, seguramente inserido no contexto de redes sociais claramente delineadas, do qual sua identidade também clara- mente definida emergiria. Também diferente do Narciso entrincheirado na sua intimidade, os primitivos de uma nova era cartografam em grupos e tribos a paisagem das metrépoles em crise. E nesse perambular noturno a toa pelos bares, ruas, festas, cria-se um novo valorizar do espago ptiblico, distinto da tradi¢do iluminista, centrado em movimentos politicos organizados como partidos e sindicatos e aproximando-se de uma tradigao popular, espontaneista, celebratéria. Introduzir a ficgéo na vida cotidiana é uma manifestagao de resisténcia que escapa a tematica "ati vista" da liberagdo (Maffesoli, 1984, p. 69). O desafio desse novo sujeito é articular suas mAscaras em constante troca, seu eu mutante, sem se deixar dissolver no puro movimento, na velocidade, no mercado de imagens. O que também exige a configuragaéo de um "paradigma estético" para a compreensao da criagao e da composigao de perceptos e afetos mutantes (Guattari, 1992, p. 116). Portanto, as possibilidades do jogo que vivificam a subjetividade pelo uso de mascaras reside na compreensio da natureza imagética da sociedade atual. A mascara nao é disfarce de um vazio existencial, mas uma tatica de coexistir numa sociedade onde o primado € 0 da velocidade. O que interessa 4 andlise de 150 I SOMOS TODOS TRAVESTIS (0 IMAGINARIO CAMP E A CRISE DO INDIVIDUALISMO) Stella Manhattan de Silviano Santiago. Hé um confronto permanente entre memiéria e olhar, narcisismo e tribalismo, representado sobretudo pelo protago- nista, cujo centramento na sua vida pessoal, intima, se configura como uma estratégia complexa e dificil de ser mantida frente as mudangas do mundo exte- rior. Stella Manhattan é uma Mme. Bovary atual que em Nova York deseja a praia, o sol do Rio de Janeiro, nao lembrando da ditadura do Brasil em 1969, e Ricky, em quem ela vé um James Dean reencarnado, a possibilidade de uma grande paixdo e nado mais um miché. Em termos genéricos, Stella Manhattan & um romance de ilusdes perdidas, de uma formagao frustrada, ou talvez de uma impossibilidade contemporanea em articular satisfatoriamente 0 ef€mero e 0 duravel nas relagdes intersubjetivas. Ateatralizagao do cotidiano, que se cristaliza de forma hiperbélica em Stella Manhattan, pode ser situada num fildo muito especifico dentro da crise do sujeito, o de um imagindrio camp. E ao compreender assim 0 romance, é necessdrio redimensionar a problematica da homossexualidade, posta a deriva. “Perda das mitologias viris, mas também dos emblemas femininos — em beneficio de uma miragem nareisica transexual comum aos dois (sexos) € que sé toma fal- samente um ar de homossexualidade" (Baudrillard, 1987, p. 67). E importante lembrar que "vocabulérios diversos criam ou reproduzem subjetividades diver- sas" (Costa, 1992, p. 14), como no caso da etiqueta "homossexual" que unidi- mensionaliza uma subjetividade e a estigmatiza (ibid., p. 21), palavra tanto mais perigosa quando sabemos, a partir de Foucault, que a sexualidade genital tornou-se sindnimo de nossa auténtica e profunda identidade ou do nticleo de nosso eu. Nao caracterizo, portanto, Stella Manhattan como romance gay, pois, rotulando-o dessa forma, ressaltaria apenas um aspecto do texto, a sexualidade, isolando-o dos demais, assumindo uma perspectiva essencialista, preconceituosa, segregacionista, em que a caracterizagao homoerstica implicaria em sensibili- dade de gueto (Lopes, 1991, p. 69) e nao, como no caso do camp', em um viés que passa pela sexualidade, mas vai além da composig&o de uma subcultura, constituindo-se mesmo num imaginério ou regime de imagens relevante na “Para quem quiser uma maior desenvolvimento do conceito de camp, remeto ao meu ensaio "Manifesto camp", publicado em Gragoatd. Niter6i: Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, n. 3, 2# semestre 1997. Denilson Lope contemporaneidade. $6 como exemplo, destacamos a trajetéria da disco, talvez uma das mais marcantes expresses do camp, oriunda de clubes negros e sobre- tudo de uma estética gay, que foi aoropriada pela classe média, na medida em que os dilemas das relagdes instaveis, do efémero, tornaram-se uma questdo disseminada em larga escala. E ainda que a disco tenha acabado por overdose no fim dos anos 70, a fest das aparéncias continua, com toda sua ale- gria e desespero, noite apés noite, como veremos mais adiante... O imagindrio camp se carscteriza por uma predilegao pelo artificial e pelo exagero, por um tipo de esteticismo, uma forma de ver 0 mundo como um fendmeno estético, mas nao em termos de beleza e sim em graus de artificio e estetizac&o (Sontag, 1987, p. 318-320), que enxerga a natureza artificial de cate- gorias sociais ¢ a arbitrariedade dos padrdes de comportamento (Macrae, 1990, p. 231). A estetizagao da vida cotidiana implica uma revitalizagao hidica da comunicacio, da representacio, artificio de sedugao ¢ liberacdo de uma identi- dade individual tinica. A aparéncia do vestudrio faz do proprio corpo algo inde- terminado, indefinido, fluido. A valbrizagio da afetagdo e da aparéncia nao é a simples reedigao de um dandismo esteticista e parédico na sociedade de massa, mas um aspecto da formagio de uma socialidade sustentada por cédigos espect- ficos de uma ética do estético em coatraponto a uma moral universal (Maffesoli, 1989, p. 1). A vida sé tem um sentido quando desejamos fortalecer no coragaio de outrem a imagem do que nos parece belo (Cardoso, 1963, p. 424). O camp redimensiona 0 espago piiblico através do ludismo das massas, do gosto pela fantasia no cotidiano e da valorizagao da beleza; nesse sentido, € a na Sociedade de massa. "O com- um dos herdeiros de uma atitude aristocré portamento aristocratico, diz-se, ¢ aquele que mobiliza todas as atividades secundarias da vida, situadas fora das particularidades sérias de outras classes, e injeta nessas atividades uma expressio de dignidade, poder e alta categoria” (Goffman, 1989, p. 39). Esta tradicdio tem origens medievais, mas seu apogeu se deu na corte de Luis XIV, onde a etiqueta representava uma hierarquizagao e ao mesmo tempo uma estetizag4o do social (cf. Ribeiro, 1983) e sofreu um deslo- camento a partir do século XIX, na medida em que os valores burgueses de uma ética do trabalho se firmaram em deirimento de uma estética do 6cio, 0 dinheiro ocupou 0 lugar de uma formagao e o modismo consumista, o lugar da elegancia. 161 4182 Ml SOMOS TODOS TRAVESTIS (0 IMAGINARIO CAMP E A CRISE DO INDIVIDUALISMO) / | ! Novos valores, que s6 se tornaram vitoriosos a partir da Primeira Guerra Mundial (cf. Meyer, 1987). Assim, esta sensibilidade melancélica e aris- tocratica perdeu, ultrapassou seu cardter de classe e sustentou uma li- nhagem de estetas da vida, artistas ou nao. Dos poetas malditos romanticos aos dandis decadentistas, moldou-se uma ética estética que nutre a atuali- dade seja na formagio de gangues de jovens ou no préprio camp, ambos decorrentes de uma culturalizagao do politico e de uma estetizagao do cotidiano. A problematica entao se desloca de um discurso em torno da diferenga, entendida como uma alteridade radical, que possibilita tanto a cultura do gueto quanto a da "tolerancia mascarada por indiferenga, cinismo e violéncia’ (Costa, 1992, p. 166), e passa para o estranho que ha em nés e nos outros. O travesti, cindido entre o exagero da afetividade e a festa das aparéncias, o brilho da noite ea solidao dos quartos, o éxtase da miisica e a violéncia do cotidiano, amascara © 0 corpo marcado, a alegria e a melancolia, é o ser por exceléncia de um mundo simulacral, "Por tras da maquiagem do travesti néo hé nenhuma mulher ou homem verdadeiro. O verdadeiro/falso perde o sentido, pois j4 nao se pode falar em c6pias, modelos ou imitagéo em referéncia ao travesti, (Terto, 1989, p. 53- 54) que sabe que a mulher a ser imitada é s6 uma apar€ncia, produto da imagi- nagao masculina. No travesti nao habita uma dualidade homem/mulher, e sim “uma intensidade de simulacao que constitui seu proprio fim, fora do que o incita" (Severo Sarduy apud Terto, op. cit., 54). Mais do que copia-la, tentar buscar uma identidade ou sua esséncia, o travesti busca na mulher a forga de sua meta- morfose (ibid., p. 59). Idéia explorada ao maximo pela performer Orlan, cujo rosto alterado por sucessivas cirurgias plasticas e o corpo tornado escultura re- presentam a impossibilidade de representar 0 ideal masculino do feminino. Nariz de escultura da Escola de Fontainebleau. Boca da Europa de Boucher. Testa da Mona Lisa de Leonardo. O queixo da Vénus de Boticelli. Olhos da Psyche de Gérome. Enfim, um belo monstro composto por atos deliberados de alienaco (cf. Rose, 1993, p. 82-7 e 125). Se Walter Benjamin fosse realizar um estudo sobre este fim de século, talvez inclufsse o travesti entre os seus perso- nagens alegricos, seres intrevalares entre o frenesi das imagens e as demandas éticas das derivas identitarias. Denilson Lopes ml 153 | | Trata-se nao s6 do travesti como realidade social ou simbolo de ambigiii- dade sexual, abertura para identidaies transgenéricas, ou da ambigiiidade rout court, crossing identities, identidades intercessivas, mas do travestimento como valorizacao do artificio como categeria central. Artificio que nao remete & men- tira em oposigao a visio rousseaufsta de uma verdade interior, mas a uma subje- tividade que remete a m4scara, a ludicidade, presente no teatro do mundo barroco e€ no libertino do século XVIII, reafirmando sua linhagem aristocratica. O travesti é um aristocrata da imaginagao, um aristocrata possivel, elegante na Sarjeta, que oscila entre o sublime e 0 grotesco, com uma velocidade estonteante. Almas travestis. Mais que ambiguos: feminino no masculino, masculino no feminino. Um jogo, mas "no more the crying game". Mas ainda, jogo de géneros (noir, conto de fadas, suspense, melodrama), em que papéis se inter- cambiam, interseccionam-se num encontro inesperado, sensivel em meio a um mundo de violéncias. Stella, no fim, pode dizer "agora sou uma estrela", pois, ainda que ela tivesse morrido numa pristio americana, violentada pelos presos (uma das ver- sdes), 0 que hd de mais belo e terrivel do que uma morte sobre a lama? Uma morte em pleno ar como estrela? Stella, de fato, ndo morre, ela desaparece nas palavras dos outros personagens. Seu corpo se dispersa. "Viado nao morre, vira purpurina" (Laura de Vison). Mas se em Stella Manhattan o imaginério camp esta presente basica- mente através da fala do protagonista ou no didlogo de suas mdscaras, este é fundamental para a compreensao de O beijo da mulher aranha, de Manuel Puig. Aqui, os filmes melodramaticos, em geral com um personagem feminino de destaque, contados por Molina a Valentim, seu companheiro de prisio, so nio s6 0 anverso da cela nojenta ou o espaco minimo do sonho em tempos de Tepressao, mas também a forma de comunicagao que se estabelece entre per- sonagens tao diferentes. Molina acaba por se construir em enigma através dos filmes. Molina, a mulher-aranha que “agarra os homens em sua teia", segundo Valentim (Puig, 1981, p. 226). A busca de Molina pelo feminino nao é outra coisa sendo a busca da androginia, da ambigiiidade. A identidade como devir. Ainda em Cobra, de Severo Sarduy h4 um encontro entre 0 neo- barroco e 0 camp. O temor ndo se trata tanto, como no Barroco, de uma tensaio 154 Ml SOMOS TODOS TRAVESTIS (0 IMAGINARIO CAMP E A CRISE DO INDIVIDUALISMO) ‘entre mundo e transcendéncia, mas entre c6pia e original (Chiampi, 1994, p. 19), ou melhor, da precariedade do simulacro. Cobra € uma espécie de herdeiro do principe melanc6lico, "o martir do exilio num corpo simulante" (ibid, p. 19). Seu dilema, particularmente, num primeiro momento é cristalizado no tamanho dos pés. "Dios mio (...) por que me hiciste nacer si no era para ser absolutamente divina?" (Sarduy, 1981, p. 11). Mas a sucessao de violéncias, remédiosculmina numa metamorfose postica: dos pés de cobra nascem flores (ibid., p. 37). ‘Vit6ria da poesia contra as limitagdes da natureza e do cotidiano. Nesse sentido, um caminho proficuo para mapear, desdobrar esse imaginario camp, em vez de conceitué-lo, seria apresentar uma ordem de imagens em contraposigao & divisio entre real ¢ irreal, na formagao de identi- dades, no continuo do simulacro. A busca da fama, de ser star nao representa apenas uma projegio do imagindrio coletivo, em geral, frustrante, mas uma condigfio na qual a aparéncia, 0 estar torna-se mais importante que uma identidade fixa. As reagies frente ao predominio da imagem so de uma resignagiio quase nostalgica: Nada a fazer, tenho de passar pela imagem; a imagem é uma espécie de sevigo militar social; no posso ficar isento, nao posso ser reformado, desertar, ete. Conhecer a propria imagem torna-se uma busca apaixonada, esfalfante (nunca se consegue), anéloga a teimosia de alguém que quer saber se tem raziio de ter citimes, (Barthes, 1988, p. 355), Até os que buscam a qualquer custo o seu minuto de gloria, nao mais os quinze minutos de fama, mas que aceitam o desafio de uma personalidade mutante, e nesse sentido, superficial: I'd prefer to remain a mystery; I never like to give my background, and anyway, I make it all different all the time I'm asked. It's not just that's part of my image not to tell everything, it's just that I forget what I said the day before and I have to make it all up over again. I don't think I have an image, anyway, favourable or unfavourable. (Andy Warhol) Denilson Lopes a 155 Para Lipovetsky, é pela ética da moda que deve ser encarada a sociedade, ou seja, através da mescla do efémero e da fantasia, da readaptacio permanente, do tempo que urge e do espago que se aproxima midiaticamente. Ela representa ainda a revalorizacao da dimensao estética do social, superando elemento sociodiscriciondrio da etiqueta aristocratica do século XVIII. A moda nfo é s6 questdo de consumo, mas também de identidade. Ser nao é ter, mas parecer. Revelar-se superficial, hoje, nao é necessariamente sinénimo de bana- lidade, de vulgaridade, mas reintroduzir a ludicidade na relagio social. Sempre na lembranga a voz da musa Grace Jones, em "Private Life", como lema e desafio: Lam very superficial Ihate everything official. A preocupagao camalednica nio € apenas uma estratégia de manutengao da singularidade existencial e estética frente ao desejo feroz dos mass media por novidade, mas de revalorizagaio do prazer, dos dandis decaden- tistas aos new-romantics, de disco-dancers a tecnopoppers, ou mesmo de aposta nas possibilidades politicas, éticas e epistemoldgicas da deriva entre os pés- as, como em Deleuze, Foucault e Kristeva. Ha uma constante luta estruturalis contra a institucionalizagao do sentido das aparéncias, o que, contudo, nao cessa de acontecer. A melancolia pela perda da unidade do eu convive com novos ritos tribais, como no estilo vogue, onde as pessoas imitam pela danga poses de stars. Eu gostei da idéia dessas pessoas tentarem parecer importantes, tentarem ser notadas, Ser uma estrela por um momento, numa pista de danga... Quando saem do nightclub, talvez. no sejam ninguém. Foi essa tragédia romantica que eu achei fabulosa. (McLaren, 1989, p. 43) If the music’s pumpin’, it will give you new life. You're a superstar, yes.. that's what you are, you know. (Madonna, "Vogue") 156 Ml SOMOS TODOS TRAVESTIS (0 IMAGINARIO CAMP E A CRISE DO INDIVIDUALISMO) O fascinio pela noit : desejo de integragao orgidstica e a solidao em meio & multidao. Mito romantico? E como se as estrelas que nos anos 30 e 40 imperavam nas telas tivessem descido a Terra e aspergido seu brilho onde houvesse fantasia. Além das pistas de danga, nos descaminhos da metrépole, brilhando fugaz, a elegancia. Julgam-se belos quando sao comoventes. A sentimentalidade nao pode viver o tempo louco da moda? Penso em Liza Minelli cantando "New York, New York", seus bragos querendo saltar do corpo, 0 corpo querendo sair de si mesmo, numa explosio, numa dispersio. Lembro Judy Garland, no fim de "O Pirata", na afirmagao da alegria. Lembro Rita Lee cantando "I wanna be a star", mesmo que ela ainda seja a ovelha negra da familia. Meu corpo explode em referéncias ¢ imagens de brilho e do que hé depois do brilho, da fugacidade. Derivagées Se é adequada esta perspectiva, 0 confronto entre olhar e meméria implica em dua atitudes existenciais: uma, a nostalgia da unidade do eu repre- sentada pela solidao narcfsica ou um retorno a valores tradicionais, em geral, no bojo do neoconservadorismo moral, e outra, a adesao a teias fugazes em que a subjetividade reencontra a dimensao do jogo social. O que implica em Ultima instancia a tensao entre relagdes permanentes ¢ relagdes efémeras. Pode-se ainda mesmo falar da configuragéio de uma critica a uma ordem socioeconémica de classe por uma ordem cultural de sensibilidades. Idéias e sensibilidades so mais importantes que meios de produgao, na medida em que sao fatores de criacao de saber, de questionamento sobre 0 nosso tempo e de diversidade. Ainda, ao se falar em uma nova formagao sustentada por uma ética estética, obviamente no se pensa em resgatar a arte como meio privilegiado de formagaio, nos moldes de Schiller, mas pensar uma existéncia estetizada. O que nao implica a dissolugao dos limites entre arte e vida, mas a consideragdo da vida cotidiana como jogo de mascaras. O Homem como mito fundador da civilizagao ocidental, base para a Paideia grega e atualizada pela Bildung iluminista, tem sido desconstruido, desde o século XIX, por categorias de classe, sexo, opgdo sexual, etnias, ragas, Denilson Lopes ic 157 culturas, etc. Quando se fala de uma nova formagio, 0 que ocuparia, entao, 0 lugar do Homem? Talvez exaurida a légica da diferenga (alguns sao diferentes) que desnaturalizou e problematizou a perversidade histérica e redutora de uma l6gica identitaria (todos somos iguais), base para um imperialismo masculino, heterossexual, burgués e euro-norte-americano, travestido de humanismo uni- versalista, seja a hora de falar de uma légica do estranhamento (todos somos estranhos), em que o desafio da pluralidade conduz. nao a uma estratégia politico- tedrica de gueto, mas 4 manutengao de estratégias especificas que desafiem a sociedade (por exemplo, Warner, 1991, p. 12-13) e mais, a visualizagao de um sujeito plural, composto por fluxos, uma maquina de desejos, nos termos de Deleuze ¢ Guattari, em vez das velhas e modemas dualidades individuo/socie- dade, sujeito/objeto. Talvez, nesse novo horizonte, o Homem encontre seu subs- tituto na Mascara, mito adequado ao mundo de imagens em constante mutagiio, se & que precisamos de mitos fundadores, Mas enquanto isso, 0 homem estético perambula frente aos embates de nossa época como um ator secundério observando os protagonistas atuarem. Quem sabe se forga tao fragil, tao frivola nado sera necessdria quando as utopias de nosso tempo se exaurirem definitivamente (j4 agora?). Com Apolo e Dioniso mortos em batalha, talvez o velho deus Cronos reviva cobrindo com memériae esquecimento todas as rufnas. E na noite do humanismo, os fragmentos e as sombras voltem a significar. 4158 ll SOMOS TODOS TRAVESTIS (0 IMAGINARIO CAMP E A CRISE DO INDIVIDUALISMO} Referéncias bibliograficas BARTHES, Roland. O rumor da lingua. Sao Paulo: Brasiliense, 1988. BAUDRILLARD, Jean. Coo! memories: 1980-1985. Paris: Galilée, 1987. CARDOSO, Liicio. Crénica de uma casa assassinada, Rio de Janciro: José Olympio, 1963. CHIAMPI, Irlemar. El Barroco en el ocaso de la modernidad. Cadernos de Mestrado/Literatura, Rio de Janeiro: Uerj, n. 8, 1994. COSTA, Jurandir Freire. A inocéncia ¢ 0 vicio. Rio de Janeiro: Relume-Dumaré, 1992. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Edipo. Lisboa: Assirio e Alvim, s.d. DUMONT, Louis. 0 individualismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1985. FOUCAULT, Michel. A vontade de saber. 6. ed. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1985, GOFFMAN, Erving. A representacdo do eu na vida cotidiana. 4. ed. Pettépolis: Vozes, 1989. GUATTARI, Félix. Caosmose. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. JONES, Grace. Private Life. LP Warm Leatherette, 1979 LASCH, Cristopher. O ménimo eu. 4, ed. Sao Paulo: Brasiliense, 1987. LIPOVETSKY, Gilles. 0 império do efémero. Sio Paulo: Cia. das Letras, 1988. LOPES Jr., Francisco Caetano. Uma subjetividade outra. In: REIS, Roberto (org.). Towards socio-criticism, ASU at Tempe: Center for Latin-American Studies, 1991. MACRAE, Edward. A construgdo da igualdade. Campinas: Editora da Unicamp, 1990. MADONNA. Vogue. LP /'m Breathless, 1990. MAFFESOLI, Michel. A conquista do presente. Rio de Janeiro: Rocco, 1984. _____. 0 tempo das tribos, Rio de Janeiro: Forense, 1987. _____.. Ftica da estética, Rio de Janeiro: CIEC/UFRJ, 1989. McLAREN, Malcolm. Boas maneiras e subversao. Bizz, n. 52, 1989. (Entrevista a Anamaria G. de Lemos.) MEYER, Amo. A forca da tradigdo. Sao Paulo: Cia, das Letras, 1987. PUIG, Manuel. 0 beijo da mulher aranha. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. Denilson Lopes mi 159 | i RIBEIRO, Renato Janine. A eri-seta no antigo regime. Sio Paulo: Brasiliense, 1983, ROSE, Barbara. Is it Art? Orlarand the Transgressive Art. Art in America, n. 83, p. 82-87 e 125, 1993, SANTIAGO, Silviano. Stella Manhattan, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. SARDUY, Severo.Cobra. Barcéona: Edhasa, 1981. SENNETT, Richard. O declinio#o homem piiblico. Sao Paulo: Cia. das Letras, 1988, The consciousness of tt eye. Nova York: Alfred Knopf, 1991. SOUZA, Eudoro de. Dioniso eneCreta e outros ensaios. Sao Paulo: Duas Cidades, 1973. TERTO, Veriano. No escurinhoe cinema... socialidade orgidstica nas tardes cariocas, Rio de Janeiro: Deparamento de Psicologia/PUC-Rio, 1989. Dissertagio de Mestrado WARNER, Michael. Fear of a qeer planet. Social Text, n. 29, p. 3-17, 1991. Denilson Lopes é Professor de © municagiio da UnB e autor de Nés os mortos: melancolia e neo-barroco. Rio de Janeiro: & te Letras, 1999.

Você também pode gostar